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Da política das letras à lógica das petas:

Francisco de Paula Brito e a imprensa oitocentista1

Bruno Guimarães MARTINS2


Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG

Resumo

Tomamos o multifacetado Francisco de Paula Brito como exemplar para observar


relevantes transformações da imprensa na transição entre as regências e o segundo reinado,
período no qual redigiu, editou e publicou diversas folhas e periódicos. Para este artigo nos
interessa compreender como e porque transfigurou sua identidade de “impressor-livre”,
coincidente com os ideais iluministas associados à imprensa, para assumir-se como um
membro fundador da Petalógica, sociedade litero-humorística que defendia disseminar
petas (mentiras) como forma de se alcançar a verdade. Em sua formulação paradoxal na
qual “verdade e mentira caminham juntas”, a Petalógica apresenta um curioso paralelo
histórico com a noção contemporânea de manipulação midiática.

Palavras-chave: História do Jornalismo; Política; Petalógica; Francisco de Paula Brito;


Século XIX.

Acirradas e violentas disputas políticas tomaram a antiga corte após a abdicação de


Pedro I em 7 de abril de 1831. Foi nesse momento de profunda instabilidade, ouvindo a
algazarra de múltiplas vozes dissonantes que reivindicavam direitos e afirmavam
identidades, quando o tipógrafo mulato Francisco de Paula Brito adquiriu sua primeira
tipografia no antigo Largo do Rocio. A agitação política que movimentou as praças e ruas
da capital federal refletia-se nos impressos, periódicos e panfletos que protagonizaram
verdadeiras batalhas nos turbulentos anos regenciais. Por vezes significações contraditórias
se apresentavam na palavra falada e impressa, pois havia se instalado uma verdadeira
balbúrdia identitária em que “muitos dos que se autodesignaram ‘brasileiros’ não nasceram
necessariamente no Brasil. Muitos dos ‘cabras’ ou ‘pardos’ não eram forçosamente de pele

1
Trabalho apresentado no GT História do Jornalismo integrante do 11º Encontro Nacional de História da Mídia.
2
Professor doutor do Departamento de Comunicação Social da UFMG, email: brunomartins@ufmg.br

1
escura” (LIMA, 2002, p. 30). A hostilidade mútua entre os grupos colaborava para que o
significado de palavras como “cidadão”, “brasileiro”, ou das confusas matizes que
buscavam precisar uma identidade racial – “branco”, “de cor”, “cabra”, “cabrito”, “mulato”,
“pardo”, “negro” – mantivesse uma relação estreita com as especificidades de um lugar de
fala. Entretanto, se o sentido dependia de um contexto de enunciação marcado pela
polifonia, a página impressa incrementou esta complexidade com assinaturas anônimas e
pseudônimas dos redatores.
Cercado de iletrados, marcado pelo salto técnico em um mercado em expansão,
como o pioneiro tipógrafo-editor Paula Brito se posicionou diante das “rusgas de
identidade” que confundiam a tradicional oposição entre conservadores e liberais? Suas
múltiplas faces — soldado, mulato, tipógrafo, político, empresário, editor, autor, jornalista
— embaralharam as distinções entre ser, fazer e dizer. As transgressões que partem desta
identidade múltipla se desdobram por todos os aspectos da atividade editorial e da vida
literária. A biografia do editor permitiu uma experiência ampla que percorreu desde
mecânicas atividades na oficina tipográfica aos mais ambiciosos desafios literários, sentiu
as dificuldades que sua cor impunha para a ascensão social que se mostravam contraditórias
com a sociedade com o Imperador e a Imperatriz, foi capaz de se formar como leitor
oscilações que permitiram infiltrar no universo da letra muda e falante dissonâncias e
novidades, deixando surgir incômodos não-literários que confundiram os voos autônomos
que as letras desejassem alçar.3
Apesar do reconhecido temperamento conciliador, Paula Brito foi acusado de traição
ao imprimir folhas políticas de orientações divergentes, tendo sua tipografia atacada por um
grupo de descontentes.4 Em sua maioria, as primeiras folhas que publicou poderiam ser
identificados com a facção dos “exaltados”, como a folha que assinou travestido de

3
Na tentativa de compreender as Políticas da Escrita, Rancière nos remete à dupla crítica colocada no mito platônico de
Fedro: a escrita seria, simultaneamente, muda e falante. Muda porque não há nenhuma voz presente que a acompanhe,
pois as letras escritas se libertam do ato da palavra, do face a face, deslocando, assim, o logos de sua legitimidade
personificada. Uma vez que o enunciado livre permitiria um certo anonimato do enunciador, que pode se dirigir a qualquer
um, temos uma escrita falante, ao se deslocar de espaços autorizados passa a circular livremente, sem saber ao certo a
quem diz e o que significa. Uma definição estético-política de literatura que incorpore esse seu aspecto de fala pode
contribuir para compreender a partilha do sensível operada por um sistema literário que se desenvolvia na sociedade
brasileira dos oitocentos. (RANCIÈRE, 1995).
4
“Ontem 5 do corrente, pelas 7 horas da tarde, uma porção de brasileiros natos saídos dentre vós, depois de me haver
tratado com detestáveis epítetos de restaurador, pretendeu invadir meu domicilio e armados de paus demolir meu
estabelecimento tipográfico e arrancar-me a vida, pelo mero fato de haver dele saído um pequeno impresso (ainda que
legal), no qual não tive parte alguma, e somente pela imparcialidade de IMPRESSOR LIVRE.” (Diario do Rio de Janeiro,
12 de dezembro de 1833).

2
“redatora”, A mulher do Simplício ou A Fluminense Exaltada, publicado com peridiocidade
variável de 1832 a 1846. A despeito de sua “explícita” posição “exaltada”, Paula Brito
imprimiu folhas ligadas aos “caramuru” e aos “restauradores”, além de ter se alinhado ao
“tempo saquarema”, adotando uma postura progressivamente conservadora, o que pode, ao
menos em parte, ser explicado pelas constantes transações financeiras entre as empresas do
editor e os políticos no poder (GODOI, 2016). No entanto, a publicação de impressos com
orientações políticas divergentes, obrigou o editor a desviar-se das polarizações exigidas
por uma identidade fixa e, além de flutuações ideológicas, o impressor encontrava-se
sujeito a pressões pouco pois nos primeiros anos, o recém-casado Paula Brito
provavelmente necessitava de recursos para sustentar a vida doméstica urbana e a criação
de suas duas filhas pequenas. Ao publicar textos contrários às suas próprias convicções,
lapidava uma identidade ambígua, sustentada pelo ofício autodeclarado de “IMPRESSOR-
LIVRE”. Nem moderado, nem restaurador, tampouco fiel exaltado; ancorando-se no ofício
da tipografia e no artifício das letras, poderia servir a quaisquer correntes políticas sem abrir
mão de seu ofício ou de suas opiniões. Se tal postura corroborava com os negócios, também
implicava riscos, pois ao conservar o anonimato dos redatores, o impressor assumia a
responsabilidade legal pela publicação.5 Daí a necessidade de receber clientes nos fundos da
sua loja na Praça da Constituição para discutir os “impressos de segredo”.6
Um exame na bibliografia publicada pelas tipografias de Paula Brito revela que, em
seus primeiros anos, dedicou-se à publicação de um grande número de folhas políticas.
(GONDIM, 1965; DEAECTO, MARTINS FILHO, RAMOS JR, 2010). Contamos quarenta
e oito diferentes títulos de 1831 a 1840, quando as regências chegaram ao fim, lembrando
que a grande maioria desses “periódicos” circularam apenas uma única vez ou tiveram
poucos números impressos. Essa efemeridade se adequava à confusão política do período
regencial, mas certamente impossibilitava o financiamento das publicações por assinaturas
e significava mais trabalho sem garantia de lucro, pois mitigava as tentativas de

5
O Código Criminal do Império determina as responsabilidades no capítulo I, artigo 7º: “§ 1º. O impressor gravador ou
litógrafo os quais ficarão isentos de responsabilidade mostrando por escrito obrigação de responsabilidade do editor.
Sendo esta pessoa residente no Brasil, que esteja no gozo dos direitos políticos, salvo quando escrever em causa própria,
caso em que não existe esta qualidade; § 2º. O editor que se obrigou, o qual ficará isento de responsabilidade, mostrando
obrigação pela qual o autor se responsabilize tendo este as mesmas qualidades exigidas no editor, para escusar o autor”.
(PIERANGELI, 2004, p. 237-238).
6
“(...) por ter a mesma casa, fundos para a rua de S. Francisco de Paula (...) onde o poderão procurar todas as pessoas que
se quiserem utilizar do seu préstimo, como Impressor; e aqueles Srs. que em particular necessitarem falar sobre impressos
de segredo (o que tem observado, e observará religiosamente); o poderão fazer dirigindo-se ao número acima [n. 44] por
ser o do seu Escritório particular.” Diario do Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1835, grifo nosso.

3
sistematização do trabalho nas oficinas tipográficas. Somente com uma certa periodicidade,
cabeçalho e outros elementos fixos de um jornal não eram modificados de um número ao
outro, o que poupava o trabalho de composição. Nesta fase dedicada às folhas políticas o
esforço manual do tipógrafo era grande e o lucro reduzido, o que explica parcialmente a
necessidade de publicar um grande número de títulos.
Dentre as primeiras folhas publicadas por Paula Brito, é útil destacar o sempre
lembrado O Homem de Cor (1833).7 Mesmo que existam apenas quatro números
conhecidos, essa folha, que retificou precocemente seu título para O Mulato ou O Homem
de Cor a partir do terceiro número, confirma uma certa dificuldade em se nomear ou fixar a
identidade àquele momento. A despeito de lançar a questão racial à visibilidade pública,
diferentemente do que se poderia pensar, a ênfase argumentativa do jornal não tinha por
base um ideal humanista igualitário. Colocadas lado a lado no cabeçalho, encontramos duas
citações: um trecho da Constituição Política do Império instituída em 1824: “Todo o
Cidadão pode ser admitido nos cargos públicos civis, Políticos, e Militares, sem outra
diferença que não seja a de seus talentos, e virtudes”; e uma citação de Manoel Zeferino dos
Santos, então presidente de Pernambuco: “O Povo do Brasil é composto de Classes
heterogêneas, e debalde as Leis intentem misturá-las, ou confundi-las sempre alguma há de
procurar, e tender a separar-se das outras”.8 A leitura cruzada das citações revela uma
defesa “legalista” do texto constitucional que visava defender o acesso do homem de cor
aos cargos públicos. “Mulato” ou “homem de cor” eram, acima de tudo, homens livres, ou
seja, nada ali impresso tratava de trabalho escravo. Esse ponto cego não era privilégio do
periódico, mas se encontrava disseminado por toda a imprensa por meio da publicação dos
muitos anúncios que tratavam do escravo como um objeto a ser encontrado, comprado ou
vendido. Restringindo-se aos “cidadãos”, o editor mulato não fora capaz de incorporar a
voz escrava que também se manifestava nas ruas.
Em A força da escravidão, estudo revelador das lógicas políticas e sociais capazes

7
Apesar de existirem dúvidas a propósito da autoria do jornal aceitamos a interpretação de Hélio Vianna de que o
impressor teria alguma influência sobre o conteúdo publicado no periódico: “Poderia realmente, ser tido O Homem de Cor
como órgão dos mestiços brasileiros, e certamente o primeiro em data, caso obedecesse à orientação de seu impressor, o
tipógrafo Paula Brito, principal proprietário da então Tipografia Fluminense (...). Contra esta hipótese depõe, entretanto a
informação contida no 10º número do Indígena do Brasil, onde se diz que O Homem de Cor era redigido por um certo
Conrado, talvez o Cel. Conrado Jacob de Niemeyer, comprometido na intentona restauradora de 17 de abril de 1832. É
licito supor, porém, que o tipógrafo tenha tido influência na orientação do periódico que imprimia, sendo, como era, ativo
membro do Partido Exaltado.” (VIANNA, 1945, p. 219).
8
O Mulato ou O Homem de Cor, 16 out. 1833.

4
de sustentar por quase duas décadas “modos de não ver” o contrabando de mais de 750 mil
africanos, mantidos ilegalmente no regime de escravidão desde a lei que proibia o comércio
escravo em 7 de novembro de 1831, Sidney Chalhoub (2012) descreve algumas estratégias
que consolidaram hiatos e interditos entre os discursos institucionais e as práticas cotidianas
de uma “liberdade precária”. Se os desvios retóricos e silenciosos da política buscavam
legitimar o enriquecimento da elite que se utilizava dos braços ilegais, o comércio
convocava a um esquecimento diário da lei, uma vez que a idade dos cativos anunciados
pela imprensa denunciava sua ilegalidade. No contexto de reações às estratégias políticas
que buscavam derrubar a proibição do tráfico negreiro, foi republicado em 1837 um
opúsculo de autoria de Domingos Alves Branco Muniz Barreto, intitulado Memória sobre a
Abolição do Comércio da Escravatura. O livreto endereçava argumentos que justificavam o
tráfico de escravos aos “ilustrados e para aqueles que sabem raciocinar sem se confundir”.
De forma astuta, diferentemente de categorizar os “pretos africanos” como bárbaros ou
animais, Muniz Barreto identifica “uma espécie de Constituição” nas nações africanas que
possibilitaria a realização de um “pato social”. De acordo com o autor, seria moralmente
justificável que os africanos, poupados da morte certa diante da captura pelo inimigo,
pudessem viver sua clemência no “centro do cristianismo e da verdadeira religião”, além, é
claro, de vantajoso devido à sua imprescindível utilidade para a economia do Império. Não
devemos nos alongar na descrição desses argumentos que não constrangiam leitores da
época. É interessante destacar que o livreto foi impresso na Tipografia Imparcial de Paula
Brito. Esta publicação nos faz duvidar de uma relação de “esclarecimento” mecanicamente
atribuída à imprensa, assim como acrescenta matizes de complexidade à identidade do
editor. Nesse sentido, não devemos nos assombrar ao ler o seguinte anúncio: “VENDE-SE
um preto, sem moléstias, vícios ou defeitos, na Praça da Constituição n. 64, loja do Sr.
Paula Brito.”9
Outro título significativo que realiza uma complexa aproximação da política ao
feminino surgiu no mesmo ano de 1832 em A Mulher do Simplício ou A Fluminense
exaltada, folha que foi continuada de forma irregular até 1846. Nesse “não-periódico”,
Paula Brito travestia sua pena com uma faceta voz feminina, assinando anonimamente
como “a redatora” artigos e charadas na forma de versos. Assim como apontou Helio

9
Diario do Rio de Janeiro, 24 de novembro de 1847.

5
Vianna, o editor mostrou-se oportunista e atento à boa aceitação do formato: “o nome era
imitado, para explorar a popularidade do ‘Simplício’, que circulara em 1831, obtendo tão
grande aceitação que logo deflagrou uma epidemia de títulos parecidos”. (MAGALHAES
JÚNIOR, 1958, p. 11). Seguindo a bem sucedida trilha humorística, Paula Brito percebeu o
florescimento da leitura entre as mulheres. Versejar com humor utilizando uma máscara
feminina funcionava ao autor-editor como artifício para realizar uma difícil aproximação do
feminino à política. Não só o título, A Fluminense exaltada, mas a estrofe incluída no
cabeçalho explicitava o objetivo de inserir a mulher como voz ativa na discussão política:
Frágil fez-me a Natureza,
Mas, com firme opinião:
É justo que a Pátria escute
A voz do meu coração.
(Da Redatora)

Além dos periódicos, nas publicações de Paula Brito encontramos teses, discursos
parlamentares, relatórios financeiros, regulamentos, estatutos de empresas. Dessa forma,
por exemplo, além da volumosa Revista Médica Brasileira, publicada por Paula Brito entre
1835 e 1840, haviam as teses da Escola Imperial de Medicina, era exigido ao estudante
arcar com as expensas da impressão de sua tese para que adquirisse o título de doutor, como
foi o caso do futuro romancista Joaquim Manoel de Macedo que teve sua tese
“Considerações sobre a nostalgia” composta nas oficinas da Tipografia Imparcial em 1844.
Importante notar que a Escola de Medicina era um celeiro de estudantes provenientes de
famílias abastadas cujo interesse na publicação ultrapassava o cumprimento de protocolo
burocrático, pois a inclusão do nome da família no volume impresso funcionava como
signo de distinção social. Chamam também atenção alguns títulos maçons, revelando os
laços do editor com a sociedade secreta. É muito provável que os ideais igualitários da
maçonaria tenham atraído o jovem tipógrafo, talvez influenciado pelo antigo mestre, o
tipógrafo francês Pierre Plancher que fundara o Jornal do Comércio. Para o mulato Paula
Brito, ser aceito como “irmão” efetivamente ampliaria seus contatos em círculos de
letrados, funcionando como “canal de mobilidade social”.10
É importante ressaltar que, até meados da década 1840, Paula Brito não recorreu ao
10
Em 1837 encontramos um volume de 93 páginas impresso por Paula Brito intitulado Coleção das Constituições,
Regulamentos e Mais Peças Maçônicas. As ligações com a maçonaria já foram esmiuçadas por Celia Azevedo: “Apesar
de o biógrafo e amigo [Moreira Azevedo] não fazer menção à filiação maçônica de seu biografado, é possível afirmá-lo
com certeza através do exame de diversos títulos maçônicos publicados por Paula Brito em sua editora ao longo de sua
vida. O próprio nome de uma de suas editoras não deixa dúvidas quanto à participação de seu proprietário na grande
irmandade maçônica: Typographia Imparcial do Irmão F. P. Brito.” (AZEVEDO, 2010, p. 83).

6
governo para a expansão dos seus negócios.11 Talvez, nas duas primeiras décadas de
atividade editorial, a conveniência da ambiguidade política tenha evitado essa aproximação.
Entretanto, a partir de uma posição privilegiada, resultante, ao menos em parte, da postura
ambígua de IMPRESSOR-LIVRE, em 1848 encontramos o requerimento de um
empréstimo feito à Assembleia Legislativa Provincial.12 A aproximação com o Império
resultaria na ampliação dos negócios com a criação da Empresa Tipográfica Dois de
Dezembro em 1850, quando o Imperador e a Imperatriz se tornaram sócios de Paula Brito.
O mecenato imperial estabeleceria altivos patamares para o sonho industrial do tipógrafo-
editor, mas também tornaria mais difícil manter a imparcialidade. Tentemos descrever
como a liberdade do impressor se reconfigurou.
O gesto de transformar o rumor das ruas em letras impressas, realizado pelo
“tipógrafo-copista” Pierre Plancher foi observado de perto pelo jovem compositor
Francisco de Paula Brito que àquela época integrava as oficinas do Jornal do Comércio.
Provavelmente essa experiência sensibilizou o futuro editor a escutar o improviso dinâmico
da voz para modelá-la em matéria impressa, conscientizando-o para a relação orgânica do
público leitor com o cotidiano. Editar a voz implicava não só selecionar e compor, mas
criar condições para sua performance e recepção. Ora, as famosas reuniões da sociedade
Petalógica aconteciam nas lojas e tipografias “ao redor” de Paula Brito. Ali ele
condicionou, ordenou, selecionou e compôs vozes. As primeiras reuniões informais,
acompanhando a monomania da época, versavam obsessivamente sobre política. No
entanto, abrigando-se sob o manto do ofício, o “IMPRESSOR-LIVRE” não defendia uma
ou outra posição; pelo contrário, para modular vozes divergentes, o que incluía a sua
própria, estabeleceu sua livraria como “campo neutro”.13 Neste sentido, o paradoxo

11
De todas as tipografias estabelecidas na Corte, é fato, incontestável, que a do Sr. Paula Brito é a única que não tendo,
desde sua criação (1833) [sic], obtido um só favor, uma só proteção, quer do governo, que das câmaras gerais, municipais,
etc., tem tido admirável progresso, e tem apresentado muitos desses melhoramentos que por aí se notam, e que podem ser
avaliados por qualquer obra, ainda a mais insignificante, que se seus prelos sai. Mas digamos a verdade, que animação
para isso tem tido o Sr. Paula Brito, a não se aquela que lhe dão seus numerosos fregueses; a não ser a justiça que
imparcialmente todo o mundo lhe faz? Nenhuma, absolutamente nenhuma! Iris, periódico de religião, belas-artes,
ciências, letras, história, poesia, Rio de Janeiro, Typ. do Iris, 1848, p. 336.
12
“Foi presente à comissão de fazenda provincial um requerimento de Francisco de Paula Brito, oferecendo-se para
montar na capital da província um estabelecimento tipográfico e litográfico em grande escala, que publique um diário
onde inserirá gratuitamente os atos da presidência e mais repartições, mediante o privilegio da impressão dos atos
legislativos e administrativos da província e um empréstimo da quantia de 50:000$ rs.” Diario do Rio de Janeiro, n. 7827,
21 de junho de 1848.
13
“A livraria foi declarada por ele [Paula Brito] campo neutro, e ficou sendo um dos pontos mais frequentados e de mais
amena reunião diária e constante do Rio de Janeiro.”. Joaquim Manuel de Macedo, Anno Biographico Brazileiro, Rio de
Janeiro, Tipografia e Litografia do Imperial Instituto Artístico, 1876, p. 547.

7
corporificado em seu tipo social –“o mulato letrado”– foi um costume perfeito para sua
função mediadora, sua presença demonstrava uma passagem oscilante que facilitava aos
debatedores enfrentar a oposição alternando tons e evitando os acirramentos. Se a suposta
neutralidade do espaço criou condições para o exercício da tolerância, para tanto, era
necessário ao editor da voz reprimir sua própria posição política. Isto explica em parte as
dificuldades em descrever suas preferências políticas de Paula Brito. Para este ensaio, mais
relevante do que identifica-lo com uma ou outra posição é destacar sua capacidade em criar
condições para o debate político, assim como perceber na descrição destas primeiras
reuniões feita por Moreira Azevedo:

[Paula Brito] transformava em club as salas de sua oficina. Ali, amigos e contrários, discutiam com
veemência, porém com dignidade: era uma luta, luta extrema; mas guerreavam-se as ideias e não os
homens; conheciam-se os adversários pelos princípios que sustentavam. Finda a discussão, renascia a
harmonia social, e vencedores e vencidos não se envergonhavam uns dos outros.
E era o dono da casa que dava maior exemplo de benevolência depois de calorosos debates.
Enquanto discutia, mostrava ardor na expressão, veemência no gesto, entusiasmo nas ideias: mas,
serenada a palestra política, era já outro homem: afável com todos, tinha uma palavra doce para
dirigir a cada um, um agrado para repartir com todos, julgando seus amigos aqueles que estavam em
sua casa. (AZEVEDO, 1863, p. XIV-XV)

As reuniões funcionavam como um espaço para a expressão de opiniões e ideias, em


que as certezas afirmadas funcionavam para aumentar a complexidade das discussões,
entretanto terminavam com “palavras doces”, legitimando a posição do mediador dentre
múltiplas vozes e perspectivas. É interessante destacar no trecho citado que os adjetivos
pouco se referem aos conteúdos das discussões – “benevolência”, “caloroso”, “ardor”,
“veemência”, “entusiasmo”, “afável” – dedicando-se a descrever diferentes modulações de
sentimentos pela voz, o que nos permite dizer que o “campo neutro” da discussão política
também apresentava um ambiente carregado de paixões e afetos. Assim como podemos ler
na descrição de um de seus mais célebres frequentadores, o jovem Machado de Assis, as
reuniões da Petalógica superaram a exclusividade temática, passando a versar sobre os mais
diversos assuntos do cotidiano da corte, inclusive, é claro, política. Em uma expressão
aparentemente contraditória, “a família da rua”, percebemos que a Petalógica mantinha um
ambiente confortavelmente familiar diante da diversidade temática e a ironia corrosiva.

[a] Petalógica dos primeiros tempos, a Petalógica de Paula Brito, – o café Procópio de certa época, –
onde ia toda gente, os políticos, os simples amadores, amigos e curiosos, – onde se conversava de
tudo, – desde o dó de peito de Tamberlick até os discursos do Marquês de Paraná, verdadeiro campo
neutro onde o estreante nas letras se encontrava com o conselheiro, onde o cantor italiano dialogava

8
com o ex-ministro. (...) Cada qual tinha sua família em casa; aquela era a família da rua, – le ménage
en ville, – entrar ali era tomar parte na mesma ceia (a ceia vem por metáfora), porque o Licurgo
daquela república assim o entendia, e assim o entendiam quantos transpunham aqueles umbrais.
Queríeis saber do ultimo acontecimento parlamentar? Era ir à Petalógica. Da nova opera italiana? Do
novo livro publicado? Do ultimo baile de E…? Da última peça de Macedo ou Alencar? Não se
precisava ir mais longe, era ir à Petalógica. Os petalógicos, espalhados por toda a superfície da
cidade, lá iam, de lá saiam, apenas de passagem, colhendo e levando notícias, examinando boatos,
farejando acontecimentos, tudo isso sem desfalcar os próprios negócios de um minuto sequer. Assim
como tinham entrada os conservadores e os liberais, tinha igualmente entrada os lagruistas e os
chartonistas: no mesmo banco, às vezes, se discutia a superioridade das divas do tempo e as
vantagens do ato adicional; os sorvetes de José Tomás e as nomeações de confiança aqueciam
igualmente os espíritos; era um verdadeiro pêle-mêle de todas as coisas e de todos os homens’.14

Temos então dois diferentes momentos. Inicialmente, a monomania política


conformou a cordialidade do mediador, uma vez que as opiniões deviam ser mutuamente
apaziguadas e relativizadas, por sua vez, no período quando a Petalógica passou a publicar
registros impressos, a sociedade com a família imperial deslocou, ao menos aparentemente,
a centralidade ocupada pela política. De temática central a efeito secundário, as conversas
petalógicas se apresentavam como uma nova forma de ação. No debate político o mediador
regulava o tom de cada debatedor, que não deveria ultrapassar certos limites ou chegar às
ofensa pessoal, o que assinalava uma certa seriedade discursiva, mesmo que alguma ironia
fosse tolerada. Por sua vez, nas sessões da Petalógica quando “se conversava de tudo”, a
gravidade retórica só tinha lugar para servir o entretenimento cômico, o que, entretanto, não
dispensou uma faceta corrosiva e uma busca por uma ação política algo indireta. Vejamos
como um petalógico lembra as reuniões políticas que antecederam a pregação das petas:
A Sociedade Petalógica, ou de Petalogia, sociedade que, segundo o título, não trata senão de petas, é
um ajuntamento de pessoas, mais ou menos instruídas, que, há cerca de 20 anos, se reúnem num dos
lugares mais belos e mais conhecidos desta Corte [Largo do Rocio]. Criada espontaneamente sem
nome, ao principio o seu fim era todo político; mas como mudam-se os tempos e nós nos mudamos
com eles, – tempora mutantur et nós mutantur in ilis– passou a ser unicamente recreativa, podendo o
mundo que nela tem assento expender com franqueza a sua opinião, com tanto que haja de responder
pelos abusos que cometer no exercício deste direito. Exceto vida particular de famílias, de tudo se
trata na Sociedade Petalógica!15

Paula Brito, provável autor desta citação, seguia seu acento moralista e cuidava da
boa reputação de suas reuniões, evitando quaisquer discussões difamatórias. No entanto, a
Petalógica era uma verdadeira central de boatos composta pelos mais diversos tipos, que
talvez não fossem tão facilmente controlados pelo “editor”, especialmente durante as
reuniões. Isto nos faz desconfiar que os relatos impressos tenham apagado qualquer tipo de

14
Diario do Rio de Janeiro, 3 jan. 1865.
15
Marmota Fluminense, n. 380, 5 jul. 1853.

9
injúria ou difamação que surgia nas sessões, assim como escreveu Moraes Filho,
memorialista perspicaz que conheceu Paula Brito: “[na Petalógica] conhecidos figurões e
personalidades do tempo (...) discutiam política, ciência, literatura, religião, etc., não sendo
estranhas as discussões relativas a este ou àquele indivíduo, a esta ou àquela reputação,
supostamente duvidosa.” (MORAES FILHO, 1904, p. 138)
Com o lançamento de A Marmota na Corte, em 1849, parece ter surgido um
ambiente menos carregado de política, mais propício aos devaneios literários, talvez
impulsionado pelo ecletismo abusado das “vistas” redigidas por Próspero Diniz. É
interessante notar que a ascensão e a publicação dos primeiro relatos impressos da
Petalógica coincidem com o encerramento das atividades de dois importantes pontos de
encontro de letrados na corte: a Casa do Livro Azul, tido como mais antigo sebo da cidade e
do país, que fechou em 1852, devido à morte de seu proprietário; e a Livraria Mongie, que
encerrou suas atividades no ano seguinte. Foi nesse mesmo ano, em 1853, que Paula Brito
abriu uma nova loja na Praça da Constituição, resultado da consolidação de seu grande
empreendimento capitalista com o apoio da família imperial, a Empresa Tipográfica Dois
de Dezembro. Não nos parece coincidência que sucesso empresarial e a aproximação com o
poder estatal tenham modificado o reconhecido ambiente de tolerância política. A
sociedade com Imperador dificultou a sustentação de uma neutralidade, eliminando o
acento estritamente político das reuniões. Uma reviravolta cínica modificou a monomania
sem, no entanto, abandoná-la.
Não tinha esta reunião, a principio, tomado este título [Petalógica]; mas foi obrigada a fazê-lo para
ensinar a mentir aos que passavam por dizedores da verdade (...) mas que eram uns verdadeiros
mentirosos! Faziam e desfaziam ministérios; arranjavam e desarranjavam negócios, protegiam e
desprotegiam o gênero humano; Enfim, estavam acreditados, e eram cridos. Conheceu-se, porém, que
era preciso obriga-los a dizer mentiras, ao modo da Sociedade, em lugar das verdades, que
apregoavam à seu modo, que na reunião embutiam, e que muitos dos membros dela, na melhor boa
fé, espalhavam por toda a parte. Veja-se como a coisa se fez.
Apenas se apresentava um desses Srs., e citava um fato que vira, ou que ouvira, um dos presentes,
por combinação já feita, inventava uma mentira de outra ordem, mas mentira de espavento, e que era
confirmada logo por dois ou três dos presentes, e com circunstâncias especiais. Saia dali o
petalógico, e ia apregoando a obra como sua, de modo que, em poucas horas, corria a mentira com
mais força do que o incêndio lavra em cavacos de pinho! (Marmota Fluminense, n. 380, 5 jul. 1853).

Temos, enfim, a lógica das petas. Em um ambiente previamente preparado – o


“aerópago petalógico”– mentiras de espavento eram enunciadas e confirmadas pelos
iniciados. Esperava-se que uma encenação verossímil convencesse os “verdadeiros
mentirosos” que, incautos, repetiriam as narrativas absurdas que ouviram, sendo, então,

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ridicularizados diante de outras audiências. Apesar da engenhosidade, podemos imaginar
que o real efeito deste mecanismo de desvelamento tenha sido limitado, pois sua eficácia
dependia de um desconhecimento da estratégia. Ao expor seu funcionamento em artigos
impressos, a Petalógica terminaria por prevenir mentirosos contra suas petas. Entretanto,
levando-se em consideração uma certa indeterminação de seus efeitos, é importante notar
que a reuniões agenciadas por Paula Brito alteraram a dinâmica de participação ao ampliar
as temáticas debatidas, pois não era necessário se mostrar informado sobre as disputas
políticas do momento, qualquer um poderia participar e pregar petas sobre quaisquer temas.
Percebemos claramente uma alternação de tom, do sério ao cômico. A diversidade temática
e a lógica das petas desviavam as conversas de qualquer linearidade argumentativa para
buscar diversão e causar hilaridade.
Descrever a Petalógica não foi tarefa fácil, assim como refletiu, utilizando metáforas
tipográficas, o editor Paula Brito: “Não sendo possível dar sessão por sessão, porque são
elas tão cheias de episódios, apóstrofes, reticências, &c., que difícil tarefa fora empreender
esse trabalho, sem esperança de resultado que seja satisfatório (...)”.16 Lemos nos relatos
que a sessões não possuíam regras ou hierarquias, afirmação que certamente tinha por
intenção distinguir a Petalógica de outras “instituições” tais como as câmara de deputados,
as lojas maçônicas ou clubs literários. Dessa forma, o início de um dos primeiros relatos
descreve-se a informalidade da Petalógica: “Às 7 horas da tarde presentes 18 sócios, abre-
se por si mesma a sessão, sem formalidade alguma, isto é, independente de ler-se e aprovar-
se a ata da antecedente.”17. Parodiando a rigidez formal do relato institucional, as
transcrições impressas das sessões dividiam-se em tópicos como “sumário”, “expediente” e
“ordem do dia”. A organização horizontal de temas e vozes que podiam comutar posições e
funções mais ou menos livremente apresentavam um desafio para sua representação
impressa. Esta ausência de hierarquia explica a alcunha corpo sem cabeça, pois o “Sr.
Presidente” mencionado nos relatos, possivelmente Paula Brito, não tinha controle total nas
sessões.
O ambiente informal estimulava a participação irrestrita dos participantes.
Embaralhar a hierarquia e ocultar a autoria das petas foi uma solução para representar a
vigorosa polifonia que estruturava as reuniões. Nesse sentido, é interessante notar a

16
Marmota Fluminense, n. 383, 15 jul. 1853.
17
Marmota Fluminense, n. 335, 28 jan. 1853.

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descrição de diversos ruídos tais como gargalhadas, gritos, tosses, espirros, choros etc. Este
procedimento reforça o protagonismo anônimo das reuniões, em detrimento à tentativa de
hierarquizacão. Os relatos dedicam-se longamente a uma série de elementos secundários,
como se o “conteúdo” do que se dizia importasse menos do que o ambiente descontraído de
conversa no qual se encontravam os petalógicos.
Grande concentração de literatos e políticos, a Petalógica também reunia artistas,
atores, músicos e “muita gente que não era intelectual”. No entanto, apesar dessa amplitude
de audiência, havia uma restrição naqueles dias patriarcais: “só entravam homens”.18 De
maneira indireta, ao publicar para o público feminino Paula Brito parecia compensar essa
ausência, promovendo na página impressa, a interação entre o masculino e feminino. Neste
sentido, a ambiguidade da “graça” permitiria a transposição dos chistes masculinos da
Petalógica para as páginas femininas da Marmota, obrigando ao editor considerar as
leitoras que iriam se deliciar com suas escolhas e omissões: “A petalogia é a ciência que
ensina a ocultar a verdade sob formas agradáveis, para não ferir os ouvidos suscetíveis, nem
desagradar os delicados espíritos”.19 A jovem e inexperiente imprensa, assim como
políticos incautos e falastrões, era vítima perfeita para as petas. Portanto as mentiras
inventadas eram tão importantes para os petalógicos quanto sua capacidade de leitura, uma
vez que, prevenidos pelo próprio veneno, seriam capazes de identificar petas impressas,
mesmo que viessem de livros estrangeiros. A leitura petalógica disseminava um certo
ceticismo generalizado, uma vez que petas poderiam se manifestar em quaisquer discursos,
impressos ou não, na política, na imprensa, na justiça, nas escolas e, mesmo, na religião...
Afinal, “todos são mais ou menos petalógicos”.20
Para exemplificar a potência política das petas, especialmente em sua relação com a
imprensa, lembramos aqui a “guerra dos chouriços”, incidente diplomático de grande

18
Compilando cuidadosamente informações na imprensa da época, Ubiratan Machado nos oferece uma rica descrição dos
literatos que frequentavam a Petalógica: “Ali compareciam escritores das mais diversas tendências e idades, famosos e
iniciantes, como Joaquim Manuel de Macedo, o dr. Macedinho, simples e comunicativo, ‘com um ar de capitalista
português’; Teixeira e Sousa, o melhor amigo do dono da livraria, em permanente dificuldade financeira; Laurindo
Rabelo, espirituoso e sarcástico, alto e desengonçado, o que lhe valeu o apelido de poeta lagartixa; Araújo Porto-Alegre,
sempre jovial, ‘com seu físico de urso’; Manuel Antonio de Almeida, muito afável, despertando ‘um sentimento de
irresistível simpatia’ em quantos o conheciam; Gonçalves de Magalhães, um tanto solene; Francisco Otaviano, ‘alto e
delgado, muito moreno, pouca barba, óculos de ouro, de sobrecasaca e cartola, elegante e correto no traje, o português
José Feliciano de Castilho, insinuante, mas apontado como pouco escrupuloso; e os adolescentes, como Salvador
Mendonça, Casimiro de Abreu — que começava a colaborar na imprensa — e um rapazinho considerado de muito futuro,
chamado Machado de Assis”. (MACHADO, 2010, p. 71-72).
19
A Marmota, n. 932, 9 mar. 1858.
20
A Marmota, n. 932, 9 mar. 1858.

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repercussão que se deve em parte ao forte sentimento antilusitano, mas que precede em
alguns meses a publicação dos primeiro relatos da Petalógica. A gravura anônima, O horror
que causa um chouriço, foi vendida “às centenas” em 1852 e encartada na Marmota
Fluminense no ano seguinte21, tendo o tema, ainda, gerado ao menos mais duas gravuras, o
que revela o impacto e a longevidade desta peta. Esse curioso episódio teve sua origem na
reprodução de um ofício diplomático que “por inadvertência” ou por “propósito do
governo” vazou para a imprensa.
(...) numa fábrica de chouriços, na Aldeia Galega, tinha sido ‘descoberta toda a espécie de
falsificações na manufatura deles, ajuntando-se-lhe à carne de porco, de que são compostos, carne de
cão, gato, cabrito, cavalo, e de outros animais mortos por doença e cansaço’.(...) ‘Desconfia-se que
até carne humana se lhe juntava!’ (MAGALHÃES JÚNIOR, 1957, p. 62)

Lançada à imprensa, a peta provocara a hilaridade geral e cativou o interesse dos


leitores, que se deliciavam a cada novidade, a cada caricatura. De acordo com a análise feita
por Magalhães Júnior, o hábil diplomata teria provocado o incidente para combater uma
prática onerosa para o Império: a falsificação de moedas. Imediatamente após lançar a peta
houve a ameaça de rompimento de relações diplomáticas, mas os ânimos terminaram por se
acalmar. O objetivo foi alcançado alguns anos depois, quando o Império Português se
tornaria responsável por reprimir e punir o crime de falsificação de moeda em seu território.
Ao publicar uma peta que poderia ter surgido como boato em uma esquina, a primeira a ser
enganada tinha sido a própria imprensa, que repetira a acusação inventada pelo diplomata.
Então, o riso dos leitores era motivado não só pelo absurdo da notícia, mas pelo fato de
encontrar-se impresso. No entanto, após o riso, seu efeito se revelaria eficaz ao sensibilizar
o Império Português para o problema dos moedeiros falsos. Dessa forma, a intenção de
enganar demonstrava-se útil para a séria política! Esse inusitado sentido positivo e
revelador para as petas publicadas implicava o editor da voz em uma sofisticada missão
pedagógica. Ao disseminar petas impressas alertava-se aos leitores de que petas, em geral
relacionadas ao boca a boca, também eram impressas.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, C. M. M. Maçonaria, anti-racismo e cidadania: Uma história de lutas e debates


transnacionais. São Paulo: AnnaBlume, 2010.

21
Marmota Fluminense, n. 392, 16 ago. 1853.

13
AZEVEDO, M. “Biographia” em BRITO, F. P. Poesias. Rio de Janeiro: Typographia Paula Brito,
1863.
CHALHOUB, S. A Força da escravidão: Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
FREYRE, G. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Recife: Imprensa
Universitária, 1963.
LIMA, I. S. As Rusgas da Identidade. Rio de Janeiro: 1831-1833. Em Acervo, v. 15, n. 1, p. 23-37,
jan/jun 2002. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002.
MACEDO, J. M. M. Anno Biographico Brazileiro. Rio de Janeiro: Tipografia e Litografia do
Imperial Instituto Artístico, 1876.
MACHADO, U. A vida literária no Brasil durante o romantismo. Rio de Janeiro: Tinta Negra,
2010.
MAGALHÃES JÚNIOR, R. O império em chinelos. São Paulo: Editora Civilização Brasileira,
1957.
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GODOI, R. C. Um editor no Império: Francisco de Paula Brito (1809-1861). São Paulo: Edusp,
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1809-1861. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editor, 1965.
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VIANNA, H. Contribuição à história da imprensa brasileira (1812-1869). Rio de Janeiro:
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