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Eugenio Diniz
Pucminas e GEE
Domício Proença Júnior
COPPE/UFRJ e GEE
Maio de 2004
v 15 – final
4. INTRODUÇÃO
Nossa intenção aqui é introduzir conceitos, fenômenos e dinâmicas fundamentais da
guerra. De saída, deixemos claro que aquilo de que se fala aqui é exclusivamente o
fenômeno bélico. Trata-se de guerra, no sentido estrito do termo tal como empregado
no âmbito dos Estudos Estratégicos, e que será explorado mais abaixo. Nada há aqui
que, segundo nosso entendimento, possa automaticamente ser apropriado para outras
esferas de atividade humana: não tratamos, nem mesmo metaforicamente, da “guerra
dos negócios”, da “guerra contra a fome”, da “guerra contra a inflação” ou, nem
mesmo, para os amantes de boutades falsamente profundas, da “guerra contra a
guerra” ou da “guerra pela paz”.
O gigante do campo dos Estudos Estratégicos é Carl von Clausewitz. Foi ele o primeiro
a fazer da guerra um objeto científico. É dele a sólida base de conhecimento e conceito
que hoje reconhecemos como a Teoria da Guerra que reside no centro do programa de
pesquisa científica que, em sua homenagem e memória, bem pode ser chamado de
Programa de Pesquisa Científica Clausewitziano1. O que se segue é, simplesmente, o
nosso entendimento 2 do que seja a sua proposta, e os desdobramentos de sua
1 De acordo com Lakatos, o foco de preocupação e ação dos cientistas, o progresso da ciência, se encontra
contido em programas de pesquisa científicos. Estes são o conjunto de atividades de investigação que resultam da
assunção de uma determinada teoria como explicativa de um conjunto de fenômenos. Um programa de pesquisa
científico é um empreendimento histórico concreto, em que sucessivas versões das teorias que o integram
competem na busca de soluções explicativas ou preditivas a problemas lógicos ou empíricos de sua viabilidade. Só a
normatividade Lakatiana permite aferir o estágio relativo de teorias ou Programas de Pesquisa Científicos por um
processo comparativo, e interativo, de sua capacidade de produção de conteúdos empíricos excedentes – isto é, não
apenas a explicação de fatos, mas a incorporação de fatos novos: fatos que eram anomalias, antes não explicados,
ou que só são descobertos como resultado do trabalho do Programa de Pesquisa Científico em superação de seu
rival. A competição entre teorias, e Programas de Pesquisa Científicos, portanto, se dá na forma do contraste entre
suas capacidades diante do teste empírico num determinado momento, compondo um quadro comparativo dos
resultados de cada um. Ver Lakatos et al. (1999a; 1999b), especialmente os Caps 1, 2, 3 e 4 do vol 1 e 8 e apêndices
do vol 2; apresentação sumária que pode ser útil é Larvor (1998).
2 Esse entendimento é devedor de Diniz (2002), particularmente do capítulo 3.
proposta desde a sua apresentação, em 1832. São a melhor introdução ao fenômeno da
guerra que podemos lhes dar.
Essa opção decorre da seguinte proposta: nossa intenção é informar sobre o conjunto
de problemas e, portanto, considerações e decisões postas para decisores pela
dinâmica da guerra3. A meta aqui é ajudar a compreender a guerra e sua condução.
Essa proposta exclui, portanto, a consideração de outras abordagens sobre o
fenômeno da guerra, que têm têm enfoques e propósitos distintos. Uma delas,
particularmente prolífica, adota um enfoque marcadamente estatístico, buscando
estabelecer correlações entre determinados processos políticos, sociais, demográficos
e a ocorrência de situações de emprego de força. Essa abordagem está fortemente
associada a um conjunto de trabalhos freqüentemente identificados coletivamente
como Estudos de Paz4 (Peace Studies, Peace Research). Diretamente relacionados a
essa abordagem, embora, em alguns casos, menos marcada por métodos quantitativos,
está a discussão de “causas da guerra”5. Independentemente de qualquer juízo que
façamos quanto ao mérito intrínseco dessas abordagens, o fato é que elas não nos
ajudam a compreender e analisar decisões tomadas na guerra e nem mesmo uma
decisão crucial, a de guerrear ou não.
A proposta também nos obriga a desconsiderar uma parcela importante — em termos
de quantidade de publicações — da literatura voltadas para a tentativa de identificação
do que seus autores entenderiam ser a maneira correta de guerrear6. A questão é que
esta literatura, em larga medida, reduz-se à proposição de fórmulas vagas que
deveriam ser seguidas em quaisquer circunstâncias: ambições de príncipios,
promessas de vitória. A questão é que estas obras, ao proferirem diretrizes imutáveis
de validade alegadamente universal, excluem exatamente a análise das circunstâncias
que põem problemas que exigem considerações e decisões.
Por sua vez, as restrições de espaço nos impedem de incluir uma discussão crucial
para a análise da guerra em nosso tempo, relativa a meios de força contemporâneos7.
Como se verá ao longo do texto, aquilo que é possível ou não fazer com esses meios de
força é uma consideração crucial para o desenvolvimento da guerra. Contentamo-nos
aqui em identificar por que isso é importante, qual é seu impacto na condução geral e
na análise da guerra, ressaltando os problemas fundamentais aí envolvidos. Em
seguida, identificam-se alguns desdobramentos particularmente relevantes para a
3 Portanto, ao contrário de Diniz (2002), cuja finalidade é analítica, o presente texto tem finalidade
eminentemente didática. Sendo assim, tomamos algumas liberdades quanto à exposição, visando a uma maior
clareza, e não seguimos ponto por ponto o fio de exposição do próprio Clausewitz. Exercemos, ainda, uma tomada
de decisão sobre o que sejam os tópicos adequados – necessários e suficientes – a um texto introdutório, mais
incisivo e atual na apresentação da teoria do que o que apresentamos anteriormente, como por exemplo Proença Jr,
Diniz & Raza (1999) ou Proença Jr (2003).
4 Uma amostra representativa de estudos nessa vertente está reunida no volume organizado por Vasquez e
Hennehan (1992). Também útil é o volume organizado por Wallensteen (1988).
5 Bueno de Mesquita (1981) e Van Evera (1999) são representativos dessa vertente, sendo o primeiro mais
marcadamente estatístico que o segundo.
6 Por exemplo, Liddel Hart (1982); Jomini (s.d. [1862]); Mahan (1911). Sobre estes, v. Proença Jr., Diniz e
Raza (1999). Excluem-se também os manuais para governantes, como Sun-Tzu (1994).
7 Para uma introdução histórica a essas questões, v. Proença Jr. e Diniz (1995); para uma introdução
temática, v. Dunnigan (1993).
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análise de guerras e também para considerações em tempos de paz. Por fim, tentam-se
identificar alguns pontos para discussão acerca da tomada de posição diante da
guerra.
Todas as referências e citações da obra fundamental de Clausewitz, o Da Guerra, se
referem à edição do On War (Vom Kriege) de Clausewitz (1984), editada por Peter
Paret e Michael Howard. As traduções são nossas. Como a obra se divide em livros e
capítulos, referimo-nos aos primeiros em algarismos romanos e aos últimos em
arábicos. Quando acontece de um capítulo ser dividido em seções, respeitamos a
numeração de Clausewitz, também em arábicos; quando divididos em partes, usamos,
como o autor, letras maiúsculas. Sendo assim, IV-26 é o capítulo 26 do livro IV; I-1-15
é a seção 15 do primeiro capítulo do livro I; e VIII-6B é a parte B do capítulo 6 do livro
VIII; e indicamos as páginas em seguida.
Antes de passarmos à exposição propriamente dita, é necessário esclarecer o emprego
de alguns termos e expressões de nossa parte, uma vez que eles diferem
marcadamente dos escolhidos por Howard e Paret:
Na exposição da teoria da guerra, não empregamos o termo “inimigo”, mas sim
oponente. Como afirma Clausewitz, a intenção hostil é necessariamente associada à
guerra — não é concebível guerrear se não houver a intenção de empregar força
contra o oponente; já o sentimento hostil, embora nunca esteja ausente, não se
associa necessariamente à própria idéia de guerra. Como o termo “inimigo” conota
sentimento hostil, e não apenas intenção hostil, optamos por oponente — que, de
resto, é o termo empregado por Clausewitz no texto alemão (Gegener).
A expressão forças armadas pode ter dois significados. O primeiro, mais amplo, se
refere simplesmente a qualquer grupo de pessoas armadas; o segundo, mais restrito,
se refere a organizações que planejam, preparam e empregam a força armada e são
parte de um determinado aparato governamental. Ao longo do texto, utilizaremos a
expressão forças armadas apenas na segunda acepção: quando pertencem a um
determinado aparato governamental. Para todos os outros casos, utilizaremos a
categoria mais geral de forças combatentes — termo que inclui as forças armadas
como um subconjunto específico, um caso especial.
Outros esclarecimentos serão feitos em notas específicas.
8 Os autores estão agradavelmente cientes de que as mulheres são seres humanos, e portanto, que dois seres
humanos numa briga podem ser homens ou mulheres. Ao escrever em português, no entanto, vemo-nos privados
do recurso do termo neutro comum, por exemplo, no inglês. A escolha e uso de tais termos no gênero masculino,
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A guerra é portanto um ato de força para compelir nosso oponente a fazer nossa
vontade. [I-1-3: 83, ênfase no original].
Cada parte deste conceito merece atenção.
O primeiro elemento é o contexto particular para o ato de força: o mundo material é
pleno em atos de força: desde respirar e engolir, passando por colher uma flor ou
quebrar um ovo etc., que não são guerras. A questão aqui é particular, explicada pelo
segundo elemento, os relacionamentos humanos: o desejo de compelir – obrigar pela
força – o nosso oponente, que é oponente porque não faz o que queremos. Uma porta
só cede quando a quebramos a trava em pedaços; mas a vontade humana pode ser
dobrada. É possível obrigar pela força. O terceiro elemento é a nossa vontade, isto é, o
que queríamos que ele não fez, ou o que ele queria e não fizemos, que é razão de ser da
coisa toda.
É isto que se entende seja uma guerra: não há nenhum qualificativo de época, de
local, de motivo, de tamanho ou relação de capacidade entre os envolvidos. Assim, não
se trata, ainda, de guerra em algum cenário específico. Não importa se a briga tem
lugar em terra, no mar, no ar, no espaço etc. Nem de guerra entre alguma identidade
específica: não importa se a briga é entre indivíduos, pequenos grupos, grandes
grupos, grupos organizados, clãs, tribos, Estados, etc. Não está em jogo o preparo, o
equipamento, a atitude ou as trajetórias históricas de quem está brigando.
A questão crucial, portanto, é a existência de vontades opostas, ou seja, de objetivos
políticos opostos. A idéia de política envolvida aqui é a de interação, e não de
programas de metas a serem implementadas 9 . No interrelacionamento entre dois
atores, diante da existência de objetivos opostos, é perfeitamente possível que pelo
menos um dos lados considere empregar a força para forçar o outro lado a ceder.
Se esse outro lado atribuir a seu objetivo político um valor tal que lhe torne pronto a
empregar de toda a força de que pode dispor para alcançá-lo, será necessário
desarmá-lo, isto é, torná-lo incapaz de prosseguir lutando, para que sua vontade seja
dobrada. Isso exigirá do lado que está considerando o emprego da força que se
empenhe o suficiente, isto é, que empregue força e esforço tal que possa sobrepujar a
resistência encarniçada que o oponente lhe oferecerá.
Se o lado que estiver considerando o emprego de força sobre o oponente valorizar de
tal modo o seu objetivo político que esteja disposto a tentar fazê-lo diante de tal
expectativa de resistência, ele estará travando uma guerra ilimitada, isto é, uma
guerra que, para viabilizar a obtenção do objetivo político original, terá que ser
prosseguida até a prostração do oponente. Nesse caso, será necessário, em primeiro
lugar, destruir as forças de seu oponente até o ponto em que elas não possam mais
produzir danos em escala significativa; em segundo lugar, ocupar seu território, de
como em “um”, “outro”, e mais tarde “o oponente” etc. não implica qualquer predisposição de negar, ocultar ou
minorar o papel de mais da metade da espécie humana, as mulheres, na briga ou na guerra, em particular, ou na
política ou na sociedade, em geral, ou na História, no presente ou no futuro. Trata-se, antes, de uma decisão
arbitrária de estilo, que visa facilitar a leitura do texto, evitando a alternância de gênero em cada ocasião e ainda
pela remoção de (a)s e (o)s ao final de cada instância em que se poderia estar falando de homens ou mulheres. O
tempora, o mores. [Cícero, Catilinárias, I,1; Verrinas – De Signes 25,56]
9 A intenção aqui é distinguir dois significados do termo política: a política partidária, do Estado, da
sociedade, isto é, o jogo de interesses, disputas e concessões (o que é designado, em inglês, pelo termo politics); —
e política [pública] — ou seja, uma mescla de normas, diretrizes e decisões que orienta, dirige e condiciona a
materialização de metas (em inglês, identificada pelo termo policy). Desnecessário dizer que toda política (policy) é
resultado da atividade política (politics).
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modo a lhe negar a possibilidade de se valer de seus recursos para reconstruir alguma
capacidade combatente, criando novas forças; por fim, será necessário impor a
obediência sobre a população do oponente, isto é, neutralizar até mesmo sua vontade
de resistir.
Porém, nem sempre isso é necessário. Muitas vezes, um dos lados estará disposto
apenas a um esforço limitado, um empenho menos que total em termos de força para
alcançar seu objetivo político. Nessas circunstâncias, a imposição de perdas para além
de um certo ponto pode bastar para forçar uma negociação mais favorável: a ocupação
de apenas uma parte do seu território, ou, freqüentemente, de sua capital — ainda que
apenas para devolvê-las depois, após um acordo favorável; a imposição de uma certa
quantidade de destruição às suas forças; às vezes, apenas uma incursão com o
propósito de produzir algum estrago em uma parte de seu território, ou destruir uma
parte de sua produção, ou impor uma quantidade limitada de sofrimento a sua
população. Alternativamente, um dos lados pode ser bem sucedido se apenas
demonstrar que o sucesso do oponente é improvável, ou que terá que ser obtido a um
custo mais alto do que imaginava. Nesse caso, fala-se de guerras limitadas.
10 O termo Gefecht foi traduzido na edição em inglês de Howard e Paret como engagement, e na edição
francesa, como engagement. Aron (1976: 83, nota 1) corretamente considera essa tradução inaceitável, pois não
incorpora o elemento essencial de luta. Aron, porém, não distingue o combate (Kampf) de cada elemento que o
compõe (Gefecht), referindo-se sempre ao termo combat. Para manter a distinção e o elemento essencial de luta,
optou-se aqui pelo termo enfrentamento.
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Cada enfrentamento tem seu propósito específico: expulsar o oponente de uma
posição, desgastar suas forças, atrasar parte delas para que não se junte a outra, etc.
Porém, para se atingir qualquer que seja o propósito de um enfrentamento específico,
seu meio é a ação de uma força sobre a outra: os meios dos enfrentamentos são as
forças combatentes.
A dinâmica das forças no combate é simples. Existem apenas dois tipos de combate:
(i) o combate à distância11; e (ii) o combate cerrado12. O combate à distância se
dirige primariamente contra as forças físicas do oponente, contra o seu número,
embora tenha efeitos sobre as suas forças morais, sua coesão e vontade de lutar. A
questão de seu uso diz respeito às formas de maximização do poder de “fogo” amigo e
minimização do oponente. O combate cerrado se dirige primariamente contra as
forças morais do oponente, contra sua coesão, sua força moral, sua coragem, embora
tenha efeito em suas forças físicas, o seu número. A questão de seu uso diz respeito às
formas de se sobrepujar o oponente e de frustrar suas tentativas de nos sobrepujar.
Estas possibilidades são suficientes para dar conta de todo e qualquer tipo de
combate13.
É em função dos enfrentamentos que se reconhecem, em cada época, as capacidades
de combate de diferentes arranjos de armamento e organização de tropas, que se
expressam em especialidades e até em estilos combatentes. Cada um destes arranjos
combina capacidades diferenciadas dos dois tipos de combate,
pondera a mobilidade e a proteção das tropas em diversas circunstâncias ou
terrenos,
11 Evidentemente que as armas de combate à distância têm um efeito aproximado em seus alvos; a descrição
aqui é da forma de combate entre os lados. A questão é portanto o tipo de combate com mísseis ou projéteis de
qualquer tipo, desde a pedra ou pau lançado passando pelo arco e flecha, a arma-de-fogo, o míssil etc.
Normalmente, em nosso tempo, fala-se em fogo como descritor do combate à distância; trata-se apenas do uso
mais corriqueiro do combate à distância, e não há empecilho a que se use este termo por comodidade, desde que
não se emancipe da questão do combate à distância. O lança-chamas, por exemplo, que certamente dispara fogo,
tem, devido a seu papel na dinâmica combatente, um papel predominante no combate cerrado. Note-se que o que
se discute aqui inclui tanto o tiro individual de um combatente quanto todas as formas concebíveis de tiro e
bombardeio em que a perspectiva de combate cerrado não é iminente. É neste sentido amplo que se trata de
“combate à distâcia” ou “fogo” com abreviatura de “combate com armamentos de alcance” ou “combate à distância
com mísseis (de qualquer tipo)”. Para um panorama histórico, veja-se Delbrück (1990); Jones (1986); um
entendimento mais atual do combate à distância está em Bailey (1983); Hughes (1999) e Shaw (1988).
12 A questão do combate cerrado, do combate pelo choque, é facilmente compreensível antes das armas de
fogo, porque se resumia ao uso das armas brancas, de corte e impacto, que só podiam ser usadas em distâncias tão
pequenas que o caráter aproximado, imediato da luta e seu impacto sobre a posição, formação e coesão do
oponente eram evidentes. Modernamente, as armas de fogo têm um papel no combate cerrado, quando usadas a
curtas distâncias; isto não altera a caracterização que se quer fazer. Sua característica é que os lados estão
próximos, e o combate ele mesmo contesta a posição ou a integridade da formação de cada um deles pela
possibilidade do embate físico. Assim, o combate cerrado admite tanto a baioneta e a coronha quanto a granada e a
arma de fogo de curto alcance – a pistola, a submetralhadora ou o lança-chamas, por exemplo. É neste
entendimento do combate cerrado – que impõe a luta, a retirada, a submissão ou a morte – que se entende que
haja combate de choque, por exemplo, no ataque de forças mecanizadas ou, para tomar outro exemplo, na
passagem da luta de fogo mísseis de longo alcance para a luta cerrada de aeronaves com seus canhões (dogfight). O
efeito é o mesmo: a resolução do combate desfaz a coesão e dispersa a um ou ambos os lados, forçando o abandono
de uma posição e/ou formação; um morro ou, no caso aéreo, um dispositivo. Para um panorama histórico, veja-se
Delbrück (1922); Jones (1986); um entendimento mais atual do combate de choque está em Stoneberger (2000) e
Shaw (1988).
13 Clausewitz (1998); este texto trata de uma perspectiva mais sistemática a discussão do livro IV do Da
Guerra [Clausewitz (1984)] em termos de teorizar a dinâmica do enfrentamento em termos das possibilidades de
uso e efeito do combate sobre as forças físicas e morais; mas não se identificou ainda a sua data de escritura, nem
tivemos notícia de estudos críticos deste texto.
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pondera sua capacidade de dar conta dos arranjos de armamento e tropas do
oponente e ainda
expressa o que uma dada sociedade é capaz de reunir em termos de recursos na
constituição de forças combatentes.
Existem, portanto armas14, cada uma das quais expressa uma determinada proposta
de uso da força no combate, cada uma das quais tem capacidades e limites próprios,
cada uma das quais contém em si os limites societais da conversão de recursos em
força combatente. O armamento, a organização e o treinamento das tropas – que
determinam a forma de luta e do que as armas são capazes – é a parte do plano de
enfrentamento de cada lado que, normalmente, não pode ser mudada de acordo com
as circunstâncias15.
As forças combatentes, porém, não são apenas realidades físicas. Existem também os
fenômenos psicológicos, que no campo dos Estudos Estratégicos ficaram conhecidos,
graças ainda a Clausewitz, como forças morais16. “O combate ... é um embate de
forças morais e físicas por meio destas últimas” [II-1: 127]. As forças morais – a
disposição dos humanos armados de lutarem, e seguirem lutando, apesar do medo, da
dor, da morte à sua volta, da derrota – são decisivas na guerra.
É a vontade humana presente no próprio combate, a vontade de lutar, a disposição de
arriscar-se a morrer e matar. Há dinâmicas propriamente morais — no sentido de
psicológicas — a serem consideradas. Tropas que estão entrando num enfrentamento
depois de uma longa série de reveses tendem a estar menos dispostas do que as que o
fazem depois de uma série de sucessos; tropas que lutam próximas de seus lares,
conscientes do risco que a sua derrota traz para seus entes queridos, tendem a estar
mais dispostos que as que lutam longe dos seus lares. O mesmo vale para tropas que
lutam sob o comando de líderes que as inspiram e em quem confiam; as que sentem
que são capazes de devolver os golpes que recebem em oposição às que simplesmente
os absorvem; as que confiam que seu sacrifício serve a um propósito maior em que
acreditam, e as que não; etc.
A dinâmica das forças morais é ainda crucial para que se possa compreender como
elas são ainda a única forma de superar as dificuldades intrínsecas da ação na guerra:
o perigo [I-4: 113-114], a fadiga [I-5: 115-116], a incerteza [I-6: 117-118]; “tudo na
guerra é muito simples, mas a coisa mais simples é difícil.” [I-7: 119]. Este ambiente é
caracterizado ainda pelo que se conceitua na Teoria da Guerra como a fricção – a
dificuldade perversa das coisas, dos acidentes, dos erros [I-7: 119-121]; e sua soma
produz um ambiente de fricção geral. A única coisa capaz de superar este
impedimento, que embaraça a ação tanto das tropas quanto do seu comandante, é o
14 O idioma admite tanto o uso de armas como sinônimo de armamentos quanto como descritivo das
diferentes especialidades contidas nas forças combatentes, como neste caso; há ainda o uso de armas como os
ramos ou quadros de especialidades de todo tipo numa organização militar, como por exemplo a arma do material
bélico, da comunicação etc.
15 Clausewitz (1998): 56 ; parágrafo 222.
16 O termo “forças morais” resgata um entendimento de moral no sentido de estado de ânimo, disposição,
fervor ou coesão, isto é, o “moral da tropa”. Não se trata, portanto, da discussão de moralidade no sentido de
propriedade dos atos perante o que é Bom, Belo e Justo, nem ainda de um julgamento valorativo do motivo ou da
forma da luta. Note-se que existe um vínculo entre uma coisa e outra: humanos convictos da bondade, beleza e
justiça de sua luta, ou, dito de outra forma, que lutam pelo que amam, tendem a estar preparados para empenho e
sacrifício maiores do que outros que apenas fazem o que lhes mandam.
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conhecimento tácito e específico do próprio ato em si, a experiência de guerra, a
experiência de combate [I-8: 122].
É no contexto bélico assim definido que se pode compreender o que seja a essência do
gênio guerreiro, a combinação harmoniosa dos dons intelectuais e temperamento que
se aplicam à ação na guerra. O primeiro destes dons é a coragem moral de decidir
diante da gravidade das conseqüências, em contraste com a coragem física do risco
individual. O segundo deles é a capacidade de lidar com a incerteza, capaz de produzir
uma decisão correta a partir de informações claramente insuficientes, que combina a
capacidade de preservar uma certeza interna intocada em meio à confusão e ao caos,
identificando um rumo num relance, o coup d'oeil, e ainda a coragem de seguir esta
certeza, a determinação. A questão não é de brilho, no sentido amplo do brilho
intelectual, abrangente; a questão é antes de uma presença de espírito, diante do
inesperado, diante de todos os motivos para o desespero. Cada um destes aspectos
incide diferentemente sobre os vários elementos que compõe a fricção geral do
ambiente da guerra – mas a estes á que se acrescentar ainda a imaginação. É na
habilidade de integrar todos estes dons e encontrar, diante de cada momento, a
decisão e a forma de agir capaz de produzir ação, inspiração, que está o que distingue
um grande comandante dos demais. Tanto o leigo, distante da dificuldade intrínseca
da guerra, quanto o combatente, mergulhado na alternância entre rotina e urgência,
pode facilmente perder de vista como é o comandante que permite ou dificulta
encontrar o rumo no ambiente da guerra, e como este indivíduo pode ser um fator
preponderante. A força, concreta, real, é composta de seres humanos e é simplesmente
equivocado que se pense em força combatente sem que se tenha em mente quem a
comanda. [I-3: 100-112]
17 Somos gratos aos questionamentos de Paul K Davis, sem os quais talvez não viéssemos a clarificar desta
forma a questão do efeito de considerações estratégicas e políticas no combate, e portanto permitisse o
enquadramento das regras de enfrentamento dentro do arcabouço da Teoria da Guerra. Uma exemplificação mais
extensa deste processo em diversos contextos combatentes politicamente diferenciados pode ser encontrada, num
estado menos desenvolvido conceitualmente, mas mais exemplificado, em Proença Jr (2003a,b).
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quais seriam as condições para se ter esta expectativa, à luz da sua avaliação acerca
das capacidades da força oponente;
se esse ou aquele enfrentamento ajudará ou dificultará a obtenção do propósito da
guerra, ou do objetivo político.
Às lideranças políticas cabe decidir se se irá à guerra, ou não; e ponderar se vale a pena
alocar uma determinada quantidade de força a um determinado teatro de operações
ou subtraí-lo de outro; ou investir ainda mais guerra e tornar-se menos preparado
para outras que se possa querer travar; ou que seu enfraquecimento na guerra atual
possa tornar outras guerras mais prováveis, e em todos os momentos se vale a pena
continuar esta guerra por este objetivo político.
5.3.2. LOGÍSTICA
Existe, porém, uma outra perspectiva crucial na abordagem do fenômeno bélico, que
não é diretamente decorrente das características intrínsecas ao próprio conceito, mas
que se associam necessariamente ao fenômeno. É, antes, a sua condição de
possibilidade. Ela decorre do fato de que, para que os enfrentamentos possam ocorrer
e ser bem sucedidos, as forças têm que existir e estar no lugar certo em condições de
combater, quando e tantas vezes quanto for necessário na guerra. Isso significa que as
forças precisam ser criadas, movidas e sustentadas.
Nossa classificação se aplica e exaure apenas a utilização das forças combatentes.
Mas a guerra é servida por muitas atividades que são bastante diferentes disto;
algumas próximas, outras muito distantes. Todas estas atividades dizem respeito à
manutenção das forças combatentes. Ainda que sua criação e treinamento
preceda a seu uso, a manutenção é simultânea e uma condição de possibilidade.
Em termos estritos, todas deveriam ser consideradas como atividades
preparatórias ao enfrentamento, de um tipo tão próximo à ação que são parte das
operações militares e que se alternam com a utilização concreta [das forças]. É
justificável que se exclua estas tanto quanto a todas as demais atividades
preparatórias do significado estrito da arte da guerra – da condução concreta da
guerra. De fato, é necessário fazer isto se a teoria for servir a seu papel principal de
discriminar entre elementos diferentes. Não se poderia considerar todo o
empreendimento de manutenção e administração como parte da condução
concreta da guerra. Ainda que possa haver uma interação constante entre estes e
a utilização das tropas, são essencialmente muito diferentes. [II-1: 128-129,
ênfases no original]
A criação da força é uma decisão de conversão dos recursos de uma sociedade em
meios de força – pessoas e coisas, que precisam ser reunidas e então urdidas em forças
combatentes. Uma força é um arranjo de pessoas, materiais, equipamentos,
organizações, liderança, treinamento e doutrina – grupos combatentes, que
correspondem a uma determinada concepção de sua forma de lutar e de seu papel no
combate diante dos limites de como se pode combater com as pessoas e coisas que
uma sociedade tem ou pode ter.
Uma vez criada a força, ela tem que ser movida até onde é necessária. Mover a força é
onde se revela uma distinção importante, que diz respeito aos modos de transporte e
as conseqüências destas alternativas modais na guerra. É preciso compreender como
estas alternativas – sumariamente, os meios de transporte em terra, mar e ar – estão
na raiz dos arranjos que distinguem, por exemplo, as assim chamadas forças
singulares: o exército, a marinha e a força aérea. Isto porque na medida em que se
pode usar a terra, o mar ou o ar como caminho para passagem da força, é natural que
18 Note-se bem: quando dizemos armas terrestres, o que está sendo dito é armas, no sentido apresentado
anteriormente, que são orientadas para o enfrentamento no palco terra. Esta é a qualidade que queremos
adjetivar, e não que pertençam ao que se defina como sendo as armas de uma organização particular, como a(s)
força(s) terrestre(s) de um país, o Exército, por exemplo, no caso brasileiro; ou o Exército e a Gendarmeria, na
França. Da mesma forma quando falamos de armas marítimas e aéreas, queremos dizer: orientadas para os
enfrentamentos nos palcos marítimo e aéreo. A defesa de costa, por exemplo, é uma arma marítima: destina-se a
enfrentamentos cujo palco é o mar. Não obstante, geralmente suas instalações e pessoal ficam em terra e tendem a
ser subordinados à(s) força(s) terrestre(s).
19 Havia algo de interessante e profundamente honesto no modelo soviético de cinco forças singulares, três
armas independentes. Num certo sentido, foi talvez a construção organizacional mais sincera com relação à
diversidade de papéis e possibilidades combativas da última metade do século XX. De fato, se acrescentarmos a
esta estrutura as milícias (polícias) regionais e metropolitanas, as forças paramilitares do Ministério do Interior, da
Guarda de Fronteiras e da KGB, o modelo soviético torna-se um espelho da diversidade de missões esperadas das
forças do Estado em nossos dias. Ver, por exemplo, Menaul (1980).
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A guerra é uma só. Os enfrentamentos no mar ou no ar são apenas alguns dos
enfrentamentos de uma guerra. São objeto da mesma estratégia, para os mesmos
propósitos da guerra. Assim, faz sentido falar com rigor das armas e tática terrestres,
ou marítimas, ou aéreas – com tudo de articulação que a guerra exige e as
possibilidades do combate permitem em termos de influência mútua. Mas com rigor
só se pode falar de estratégia ou guerra com a perspectiva do todo. Qualquer
adjetivação tem que ser afirmada, e compreendida, como sendo relacionada a este
todo.
Em todos os momentos, a força tem que ser sustentada. Isto significa atender à
necessidades básicas de pessoas e coisas. Na guerra, isto significa que é preciso manter
supridas as necessidades de munição e combustível, cujo uso varia de acordo com a
freqüência ou o resultado dos enfrentamentos. Manter a força significa ainda cuidar
da saúde física e mental dos vivos, da manutenção dos equipamentos e sistemas; dar
conta dos mortos e feridos, repor as baixas, recompletar os equipamentos, atualizar
coisas e procedimentos. Isto admite que se esteja alerta para aprender com o que
oponente ensina em cada enfrentamento: identificar e suprir carências, vantagens ou
vulnerabilidades; orientar tanto o processo de criação quanto de movimentação da
força.
A esse amplo conjunto de atividades, sem os quais a força não tem como existir, agir
ou perdurar, às considerações e decisões relativas à criação, movimentação e
sustentação das forças dá-se o nome de logística.
Questões logísticas são tão cruciais que, em qualquer guerra, várias decisões acerca de
quais enfrentamentos travar são tomadas em função de considerações estritamente
logísticas — por exemplo, pontos de passagem obrigatória que têm que ser liberados
ou que são excelentes para emboscar uma força oponente; posições vitais que têm que
ser asseguradas de imediato ou das quais o oponente têm que ser expulso; o quanto de
força tem que ser deixado para trás para proteger o fluxo de forças e suprimentos; as
áreas vitais para a produção, aquisição e transporte de equipamentos e suprimentos
que têm que ser protegidas, o quanto de força se pode utilizar no enfrentamento, ou
mover, ou sustentar, numa dada região ou numa determinada posição, etc. Ora, como
já visto, decisões relativas a enfrentamentos são decisões estritamente estratégicas, e
muitas dessas áreas e pontos vitais para a execução de tarefas e atividades logísticas —
isto é, relacionadas à criação, deslocamento e sustentação da força — são também, e
muito propriamente, chamadas de áreas e pontos estratégicos.
Ao contrário do que geralmente se imagina, uma parcela muito grande dos
enfrentamentos e das guerras é decidida não em função de uma quantidade
significativa de baixas produzidas em combate, mas da percepção, por pelo menos um
dos lados (e, muitas vezes, dos dois), do que a continuidade, ou os resultados, dos
enfrentamentos ou guerras podem significar em termos logísticos. Uma unidade
combatendo com sucesso numa posição pode ter que abandonar este enfrentamento
porque, como resultado de um outro enfrentamento, o oponente ameaça a sua
retaguarda ou flanco, ou pode controlar a sua linha de suprimentos: ficar nesta
posição seria se expor ao isolamento ou a um futuro enfrentamento em desvantagem.
Assim, independentemente da expectativa de sucesso neste enfrentamento, é
necessário interrompê-lo, produzindo um insucesso tático ao se ceder ao oponente. Os
dois lados num enfrentamento podem decidir que o tanto de forças que perderam – ou
o tanto de munição que gastaram – até o momento começa a comprometer a sua
capacidade de defender suas linhas de abastecimento, e optar por cessar o combate
para garantirem força suficiente para a segurança de suas linhas.
TdG – v 13– joint. Abril de 2004 13
Portanto, embora a idéia de logística não decorra diretamente do conceito de guerra
como ato de força para obrigar o oponente a fazer nossa vontade, as considerações
logísticas estão íntima e diretamente conectadas a toda a atividade bélica, e são
centrais para o planejamento e análise de qualquer guerra e de qualquer
enfrentamento particular numa guerra. [II-1: 127-132]
20 Sobre isso, ver, mais abaixo, a seção “Os dois tipos de guerra que existem de fato: ilimitadas e limitadas”.
TdG – v 13– joint. Abril de 2004 15
um dos lados pode ser forte o suficiente para defender-se, sem ser forte o suficiente
para atacar. [I-1: 84]
21 A atividade das partes das forças, ou das forças como um todo, não se explica em si mesma, mas sim como
parte de um desígnio. Assim, ainda que se possa falar de ações militares (especialmente desde o ponto de vista da
tomada de decisão política pelo uso, ou não uso, da força), a questão é precisamente indicar como elas são
resultado e materialidade de uma determinada intenção; o termo operações se afirmou como sendo um descritivo
suficiente. O próprio Clausewitz utiliza tanto operações militares quanto empreendimentos bélicos com esta mesma
intenção.
TdG – v 13– joint. Abril de 2004 16
positivamente o equilíbrio de forças no teatro de operações. O que interessa na
produção de baixas na guerra não é, ordinariamente, o seu valor absoluto, em pessoas
ou equipamento. Nem ainda, na maioria dos casos, o seu valor expresso como
percentagem, por exemplo, das baixas sofridas por um lado em relação às que
inflingiu, tantas pessoas ou equipamentos por outras tantas pessoas ou equipamento.
A questão preeminente é a proporcionalidade em relação ao equilíbrio de forças no
teatro de operações à luz do propósito da guerra – isto é, se a quantidade de perdas
impostas ao oponente obriga a reconsideração, por parte deste, da oportunidade ou da
conveniência do prosseguimento de seus esforços.
É desta perspectiva estratégica, no sentido rigoroso do termo, que se pode distinguir
com clareza o que sejam o sucesso no enfrentamento do sucesso na guerra.
O sucesso num enfrentamento é a obtenção do propósito pretendido — a expulsão do
oponente de uma determinada posição, um determinado grau de desgaste nas suas
forças, ou simplesmente obrigar as forças do oponente a um enfrentamento que dure o
suficiente para impedirem-nas de chegar a tempo em outro local, por exemplo. Quanto
esse resultado obtido é facilmente identificável, completo, pode-se falar em vitória:
por exemplo, quando as forças do oponente são concretamente expulsas de uma
posição, ou quando uma parte determinada da força do oponente é efetivamente posta
fora de combate. Note-se que este entendimento teoricamente rigoroso da vitória no
enfrentamento expressa precisamente a medida do sucesso na produção do que se
desejava num dado enfrentamento. Se o que se desejava era, por exemplo, atrasar o
oponente, então o fato de que não se causou nenhuma baixa, ou que se perdeu toda a
força usada, é secundário em relação a esta missão. Pode-se perder toda a força, sem
causar baixas ao oponente, e ainda sim se ter sucesso neste enfrentamento, uma
vitória: a produção do resultado que se queria naquele enfrentamento de maneira
clara e evidente22.
O sucesso na guerra é a obtenção de um resultado que, espera-se, favoreça a obtenção
do objetivo político pretendido. É possível, porém, ter sucesso na guerra sem que se
tenha o sucesso político que se buscava com a guerra. A questão é em si mesma
simples: se o propósito de guerra escolhido é de fato capaz de aproximar o objetivo
político que se buscou com a guerra. Na Campanha de 1812, Bonaparte tinha por
objetivo político forçar um alinhamento da Rússia, por exemplo, com uma posição
anti-britânica. Escolheu como seu propósito de guerra a tomada de Moscou, cuja
ocupação acreditava fosse o suficiente para a produção de seu objetivo político.
Moscou de fato foi tomada e ocupada por Bonaparte; seu propósito de guerra foi
atingido; ele teve sucesso na guerra. Mas isto não foi o suficiente para a produção do
resultado político que ele ambicionava. Dito sinteticamente, neste caso ao sucesso na
guerra não correspondeu o sucesso político do uso da guerra para os propósitos
políticos: sua escolha do propósito da guerra foi, simplesmente, equivocada.
Independente do que escolha como seu propósito de guerra, cabe ao atacante – a
quem quer alterar a situação presente – modificar o status quo, isto é: agir.
Materializando esta ação, o atacante lança mão dos meios de força e ordinariamente
penetra no território do defensor. O defensor não pode empregar todos os recursos de
força de que dispõe neste primeiro momento: no mínimo posições e terreno estão
dispersos pelo território, como também estão os centros populacionais e de recursos
onde tem lugar a criação de forças adicionais para o defensor.
22 Ver a exposição de Gomes (2001); Gomes & Proença Jr (2002) para uma súmula.
TdG – v 13– joint. Abril de 2004 17
Em função da estratégia que o defensor adote, ele pode travar enfrentamentos em
pontos e momentos específicos, buscando aproveitar a superioridade da defesa. Assim,
o defensor pode enfrentar o atacante nas ocasiões em que a expectativa razoável de
sucesso sugere que as perdas do atacante serão maximizadas, ou onde possa
constranger o avanço do atacante, dificultar sua movimentação ou o sustento das suas
forças.
Assim, mesmo enquanto cede terreno, o defensor busca utilizar os seus recursos
defensivos nos enfrentamentos, e os resultados diretos e indiretos destes
enfrentamentos, para diminuir a superioridade do atacante no teatro de operações.
Trata-se precisamente do uso dos recursos exclusivos da defesa: aproveitar a espera e
a posição para usar de ataques e defesas táticas no contexto da campanha defensiva,
buscando diminuir a vantagem do atacante gradualmente em cada enfrentamento e
como resultado direto ou indireto dos efeitos destes enfrentamentos. [VI-8: 379-389]
O centro do planejamento e execução das campanhas — ofensiva e defensiva — é o fato
de que a força do atacante declina em relação à do defensor no desenrolar da
guerra23. Isto nasce de duas dinâmicas encadeadas.
(i) Quanto mais profundamente o atacante avança no território do defensor, quanto
mais tempo a guerra dura, mais o ataque tende a se enfraquecer. Distancia-se de suas
bases, dificultando a chegada de reforços que compensem suas perdas; estende suas
linhas de suprimento, que têm que ser guarnecidas; dispersa-se para controlar o
território em disputa de maneira a poder explorá-lo e para dar conta da resistência
local de milícias ou guerrilhas; seu próprio sucesso arrisca trazer aliados ao defensor,
em função do funcionamento da balança de poder; desgasta-se no movimento e na
ação no ambiente de fricção da guerra.
(ii) Ao mesmo tempo, o defensor se fortalece, aproximando-se de suas bases,
ganhando suporte de sua população, pondo em campo as milícias e guerrilhas,
mobilizando forças adicionais ou obtendo aliados. Estes ganhos não são gratuitos: o
defensor cede parte de seu território, de seu povo e recursos ao atacante durante a
campanha. Mas o efeito da perda destes recursos do defensor – e seu controle pelo
atacante – não produzem, ordinariamente, resultados imediatos no equilíbrio de
forças. A retração da campanha defensiva aumenta a força imediata do defensor,
permitindo a exploração das posições defensivas e a agregação de novas forças – seja
pela incorporação de guarnições, seja pela criação de forças adicionais, seja pelo
acréscimo de forças de seus aliados.
O resultado final destas duas dinâmicas é francamente favorável ao defensor. Assim, a
diminuição da margem de superioridade do atacante pode produzir uma situação em
que ele não é mais capaz de seguir atacando com expectativa razoável de sucesso,
ultrapassando o ponto culminante do ataque. Antes que isto ocorra, o atacante
deveria reverter à defensiva, passando a defender o território que conquistou como
base para a paz que reconheça a nova situação.
23 Quando isto não acontece, a teoria avisa que se está diante de um caso excepcional. Este é precisamente o
seu papel: identificar os elementos que permitem que se afirme que um caso particular se distancia do que se
poderia esperar em geral, orientando uma abordagem mais cuidadosa e aprofundada e pautando os termos de
estudo. Estes casos são anomalias para a Teoria da Guerra, e portanto temas de pesquisa interessantes para o
programa de pesquisa científica Clausewitiziano: os casos em que a força da ofensiva não diminui com o seu
prosseguimento. O próprio Clausewitz via na ofensiva de guerrilha de Espanha uma possibilidade de exceção de
interesse. [VII-4: 527]
TdG – v 13– joint. Abril de 2004 18
Se, não obstante, o atacante decide prosseguir na ofensiva até ultrapassar o ponto
culminante do ataque, seu enfraquecimento pode vir a produzir uma situação em que
ele não é nem sequer capaz de defender o território que conquistou, ultrapassando o
ponto culminante da vitória. Neste caso, o atacante se expõe a uma contra-ofensiva
demolidora do defensor, um contra-ataque de largo alcance e potencial, a “espada
reluzente da vingança”, o momento máximo da defesa. Após o atacante ultrapassar o
ponto culminante da vitória, uma contra-ofensiva do defensor pode reverter todos os
ganhos do atacante. Como esta contra-ofensiva se dá contra um atacante que
enfraqueceu até o ponto de não ser mais capaz de se defender, ela pode vir a arriscar
até o próprio território original do atacante. [VI-6: 372-377, VI-8: 379-389, VII-4:
527, VII-5: 528; VII-22: 566-576]
É em função destes pontos culminantes que a campanha ofensiva se orienta pela
consideração do momento de reversão à defensiva, isto é, o momento em que o
atacante passa a defender o que conquistou. [VI-3: 365]. Se o atacante tiver alcançado
o seu propósito de guerra sem ter alcançado o primeiro destes pontos culminantes, ele
seria capaz de defender, com expectativa razoável de sucesso, o que conquistou.
Mas a questão segue sendo política. Se este resultado for algo que o defensor está
disposto a aceitar, então de fato o propósito de guerra escolhido pelo atacante
produziu termos viáveis para uma paz, obtendo seu objetivo político. O atacante, neste
caso, teve sucesso político no uso da guerra. Mas se o defensor não estiver disposto a
aceitar esta mudança, a luta continua.
Identificar a aproximação do ponto culminante do ataque durante a guerra é
extraordinariamente difícil. Não é possível conhecer com precisão o estado das forças
morais de ambos os lados, ou mesmo a correta dimensão e disposição da força à
disposição do defensor. O atacante pode ser tentado a mais um esforço, a mais um
enfrentamento, que prometa enfraquecer o defensor a tal ponto que ele possa ser
prostrado, permitindo obter o que quer que se queira dele, ou que ultrapasse o preço
que o defensor está disposto a pagar nesta guerra.
A isto se soma ainda que o atacante, na defensiva, não tem todos os recursos do
defensor. Ao reverter à defensiva, limitando-se a defender o que conquistou, continua
tendo que lidar com os efeitos de seu sucesso na balança de poder, continua tendo que
guarnecer e controlar a população que lhe é hostil, continua a ter que conviver com as
dificuldades do movimento de reforços e suprimentos desde o seu próprio território. A
reversão à defensiva tem que ser feita com força suficiente para que a expectativa
razoável seja do sucesso, pelo atacante, em defender o que foi conquistado contra os
contra-ataques do defensor. Se for este o caso, então construiu-se a situação em que
chegar a uma paz, aceitando o fato consumado, é a decisão lógica de parte do defensor.
Afinal, nessas circunstâncias, o defensor não tem como esperar vencer o atacante na
defesa.
Mas isto não significa que a simples reversão a defensiva seja uma panacéia em si
mesma. Se o atacante reverter à defensiva sem dispor de força suficiente para
garantir a defesa do que conquistou, a estratégia do defensor passa a ser a do
empreendimento de contra-ofensivas, isto é, do ataque às forças do atacante original,
buscando reduzir paulatinamente a margem de superioridade do atacante no teatro de
operações. Se o atacante não tem força suficiente, então o defensor pode tentar levá-lo
uma condição de inferioridade, ou até a certeza da eventual produção desta
inferioridade, para obrigá-lo a devolver o que tomou: em outras palavras, levar o
atacante, mesmo depois de reverter à defesa, a ultrapassar o ponto culminante da
24 Note-se como a idéia de batalha decisiva é inoportuna, ainda que retoricamente sedutora. A questão é que
qualquer batalha só poderá ser julgada decisiva a posteriori. A grande batalha descreve com vantagem o que
distingue este enfrentamento de outras batalhas, e por que ela tem o potencial – e apenas o potencial – de ser capaz
de decidir a guerra; porque ela representa uma ocasião de decidir o equilíbrio de forças no teatro de operações.
Note-se ainda que isto não decide, necessariamente, a guerra; o resultado deste enfrentamento pode produzir
conseqüências que neutralizem o seu efeito – uma intensificação dos esforços do lado perdedor, criando mais
forças, ou a entrada de um aliado na guerra, por exemplo.
TdG – v 13– joint. Abril de 2004 21
política de permitir ou não que o ataque prossiga o seu curso lógico, ou seja, a busca
da destruição da força oponente com a maior rapidez possível, e se submeta
permanentemente às considerações políticas. Dito de outra forma: a superioridade
intrínseca da defesa é que torna a guerra um fenômeno integralmente político.
25 Clausewitz não usa o termo “ilimitada”; considera os tipos de guerra como sendo aqueles em que se busca
a prostração do oponente e as em que não, chamando a estas últimas de “guerras limitadas”. No entanto, o uso de
Corbett (1986) do termo guerra ilimitada expressa precisamente o que se quer dizer, permitindo distingüir com
clareza as guerras ilimitadas, onde se busca a prostração do oponente, da abstração da guerra absoluta, que nunca
tem lugar na realidade. [VIII-2 a VIII-9: 579-640, com cautela para o que se coloca em I-1].
TdG – v 13– joint. Abril de 2004 23
Em primeiro lugar, fica claro que a guerra nunca deve ser pensada como algo
autônomo, mas sempre como um instrumento político; de outra forma toda a
história do bélico irá nos contradizer. Só esta abordagem permite penetrar no
fenômeno inteligentemente. Em segundo lugar, esta forma de ver a guerra nos
mostrará como a as guerras tem que variar em função da natureza de seus motivos
e das situações que lhes dão origem.
A decisão primeira, suprema, o ato de juízo de maior alcance que o estadista e o
comandante têm diante de si é a determinação por este teste do tipo de guerra em
que está entrando; sem equivocar-se, ou querer fazê-la algo distinto de sua
natureza. Esta é a primeira das questões estratégicas, e a mais abrangente. [I-1:
88-89, ênfases no original]
Diante da guerra e durante a guerra, sopesa-se o que se pode obter, ou o que se arrisca
a perder. Isto leva em conta todas as considerações que se pode associar à política;
todas as considerações que se pode associar à tática; e, portanto, todas expectativas do
que se pode obter no combate, isto é, como resultado dos enfrentamentos e a forma
como este resultado contribui para que obtenha os objetivos políticos pelos quais se
luta, ou dito de outra forma, todas as considerações que se pode associar à estratégia.
A idéia de estratégia inclui integralmente a articulação de política e tática.
É um equívoco grave e pernicioso, que vai além do erro sobre o qual se alertou
anteriormente com relação à questão modal dos transportes, querer reduzi-la a uma
versão adjetivada, a uma “estratégia militar”, como se a guerra não fosse política
armada, ou como se a dimensão estratégica pudesse ser reduzida à dimensão tática,
considerando apenas as necessidades combatentes do uso da força no enfrentamento;
ou mesmo ambicionando monopolizar uma dimensão do fenômeno como sinecura
corporativa de uma determinada organização. Ao contrário: é precisamente porque a
estratégia usa os enfrentamentos para os propósitos da guerra que a consideração
estratégica inclui integralmente tanto os objetivos e as alternativas políticas que não
incluem o recurso à força quanto as expectativas e possibilidades táticas do combate.
É pela consideração de umas e outras que se pode falar de propósito de guerra
(Zweck) como distinto do objetivo político.
Por vezes o objetivo político e o propósito da guerra coincidem – por exemplo, na
conquista de uma província. Noutros casos o objetivo político em si mesmo não
produz um propósito de guerra imediato. Nesta situação, um outro propósito de
guerra será definido que sirva ao objetivo político e o simbolize nas negociações de
paz. (...) Há momentos em que para que se possa conseguir o objetivo político será
necessário encontrar um propósito de guerra bem mais importante do que o
objetivo político original. Quanto menos envolvidas forem as populações, e menos
sérias as tensões dentro e entre os Estados, mais os requisitos propriamente
políticos predominarão, e tenderão a ser decisivos. Há situações portanto em que o
objetivo político será praticamente o único fator determinante.
De maneira geral, o propósito da guerra corresponde ao objetivo político e irá se
reduzir em proporção a este; e isto será ainda mais pronunciado se o objetivo
político se tornar predominante. Daí se desdobra sem qualquer inconsistência que
as guerras podem ter todo grau de importância e intensidade, desde guerras de
extermínio até a simples observação armada. [I-1: 81, ênfases no original]
O que o propósito da guerra permite distinguir, portanto, é o que se pode obter
diretamente pelo uso dos meios de força, o que não necessariamente coincide
diretamente com o objetivo político da guerra. A história tem vários exemplos de como
uma ação militar – a conquista de uma província, ou até a ameaça concreta da
conquista de uma província; um bloqueio marítimo de comércio; o deslocamento de
TdG – v 13– joint. Abril de 2004 24
forças para uma fronteira – se torna peça de barganha para uma concessão política
noutra parte. Assim, se pode observar como a conquista e a devolução da Província do
Cabo (hoje, África do Sul) foi uma peça constante nos termos de paz entre Inglaterra e
Holanda no século XVII; ou como o bloqueio do comércio, o respaldo a um embargo
ou sua ameaça, é uma peça diplomática constante nas relações internacionais,
propósito de guerra para um objetivo político tão distante do ato em si quanto a
autorização para a entrada de uma vintena de inspetores num território.
Isto permite ainda considerar como mudanças pontuais nos propósitos de guerra de
guerra têm lugar durante o seu desenrolar, escolhendo-se tomar ou ceder esta
província e não aquela; aceitando este resultado mas resistindo a outro, em função de
fatos políticos ou táticos. É precisamente o que se espera que ocorra, diante da
pervasividade do dilema da segurança para todos os grupos, os imperativos da balança
do poder, a preeminência dos propósitos políticos e a centralidade do combate na
guerra.
A dinâmica da guerra pode levar a que se ganhem ou percam aliados, e que o oponente
sofra o mesmo processo em função dos interesses dos demais à luz das conseqüência
da vitória ou derrota de um dos beligerantes que resultam do desfecho, e do efeito, dos
enfrentamentos. Pode-se mesmo mudar de um tipo de guerra para o outro, de uma
guerra limitada para outra ilimitada no mesmo fluxo histórico, quando se alteram os
objetivos políticos que se buscam na guerra e/ ou se muda a percepção de o quanto o
objetivo é valorizado por cada um dos lados. A questão é compreender o que isto
significa em termos políticos: uma comunidade que se vê diante de uma guerra
ilimitada, que ameaça ou ambiciona algo que lhe é visceral, empenha-se muito mais
do que quando de uma guerra limitada, cujo objeto, ao fim e ao cabo, pode se revelar
mais caro do que se dispõe a pagar.
As diversas formas de relacionamento político não cessam porque a guerra começou; a
guerra é apenas uma forma adicional neste relacionamento. Assim, em qualquer
momento, pode-se chegar a uma solução política. Um dos lados pode comunicar que a
sua vontade foi dobrada, ou oferecer termos tais que o outro concorde em cessar as
hostilidades. É por isso que se pode afirmar que a guerra pressupõe, e sustenta, o
recurso de todos os outros tipos de ação não-combatente que possam vir a obter o
resultado para um dos lados.
26 Parece suficiente reproduzir uma nota de Diniz (2002), com relação a esta escolha de tradução: “O termo
em alemão é wunderliche. A tradução de Howard e Paret como “paradoxical” é injustificada. Outros autores têm
simplesmente modificado a tradução, mesmo quando citam a edição Howard e Paret. Villacres & Bassford (1995),
TdG – v 13– joint. Abril de 2004 25
A guerra é um verdadeiro camaleão, que adapta suas características ligeiramente a
cada caso particular. Enquanto fenômeno integral, suas tendências dominantes
sempre fazem da guerra uma trindade esquisita – composta de violência
primordial, ódio e inimizade, que podem ser tratadas como uma força natural,
cega; do jogo do acaso e de probabilidades, onde o espírito criativo pode enveredar
livremente; e de seu elemento de subordinação, de instrumento político, que a faz
subordinada apenas à razão.
O primeiro destes três aspectos diz respeito principalmente ao povo; o segundo ao
comandante e à sua força; o terceiro ao governo. As paixões que devem ser
inflamadas na guerra já devem estar presentes no povo; o alcance que a coragem e
o talento terão no campo das probabilidades e do acaso depende do caráter
particular do comandante e do de sua força; mas os objetivos políticos são
província exclusiva do governo.
Estas três tendências são como três diferentes fontes do direito, cada uma
profundamente enraizada em seu próprio tema, e ainda assim sensíveis em seu
relacionamento recíproco. Uma teoria que ignorasse qualquer uma delas, ou que
ambicionasse fixar arbitrariamente o seu relacionamento entraria em tal conflito
com a realidade que apenas por este motivo seria totalmente inútil.
Nossa tarefa é portanto desenvolver uma teoria que dê conta [da influência] destas
três tendências, com um pêndulo em movimento entre três magnetos. [I-1: 89]27
É o entendimento da guerra como uma trindade esquisita que permite compreender
que o propósito da guerra necessário para o objetivo político a que corresponde o
sucesso na guerra pode não estar contido na destruição das forças do oponente.
Existem Centros de Gravidade, pontos ótimos de aplicação da força, que
correspondem aos núcleos de poder e movimento, coesão e direção de que tudo
depende. É o entendimento da trindade que permite compreender que, ainda que a
destruição das forças do oponente sejam usualmente um início promissor, e sempre
tenham influência no desenrolar da campanha, seja possível identificar Centros de
Gravidade de seu esforço de guerra em outros pontos.
Que “o combate é um embate de forças morais e físicas por meios destas últimas” [II-
1: 127] não deve ser confundido com um aforisma: é uma descrição do que seja a
natureza do combate na guerra. Assim, compreende-se como a força do oponente
tende a ser o centro de gravidade da guerra: não apenas em si mesma, mas ainda como
materialidade da capacidade de resistência, cuja existência influencia a própria
vontade de resistir do oponente.
Mas há circunstâncias em que o centro de gravidade do oponente se encontra em
outro lugar. Em países cuja capital é não apenas seu centro administrativo, mas
também seu principal centro de atividade econômica e política, ou cuja população
esteja politicamente dividida, exatamente essa capital pode ser seu centro de
por exemplo, utilizam o termo “remarkable”, que faria mais sentido. Em português, “esquisita” capta a estranheza
que Clausewitz quis salientar.” Diniz (2002): 77, nota a.
27 Bassford, Christopher (on-line): “Teaching the Clausewitzian Trinity” (Clausewtiz Homepage:
http://www.clausewitz.com argumenta que esta imagem inclui uma componente dinâmica que não deve ser
subestimada. De fato, o pêndulo magnético de três pólos tende a ser pouco conhecido, porque já não faz parte da
educação fundamental. A questão é que o movimento do pêndulo é o que denominaríamos hoje como caótico, isto
é, a partir de pequenas variações na condição inicial – altura, força dos magnetos, velocidade etc. – o resultado
varia de maneira significativa, descrevendo movimentos que ora se aproximam, ora se distanciam dos pólos. É
preciso que não se pense que a imagem aqui é apenas a do equilíbrio equidistante. Veja-se um pequeno clip deste
tipo de movimento em http://www.clausewitz.com/CWZHOME/Trinity/romp2.htm.
TdG – v 13– joint. Abril de 2004 26
gravidade: ocupá-la pode produzir o colapso do oponente. Se um país é fraco e
depende de um aliado mais poderoso, o centro de gravidade do oponente não são as
suas próprias forças, mas sim as daquele aliado. Em levantes populares ou na
guerrilha, o centro de gravidade tende a residir na opinião pública e nos líderes.
A questão é assestar o golpe sobre o alvo que mais afete a coesão e a vontade de nosso
oponente, que atinja suas forças morais, tanto quanto físicas; o que melhor sirva para
que dobremos sua vontade à nossa. Assim, o Centro de Gravidade pode estar na força
principal do oponente, ou na força de um aliado mais poderoso, ou na Capital, ou,
como no caso de movimentos guerrilheiros, em sua liderança. A questão é a de
produzir um efeito favorável no equilíbrio de forças de tal ordem que ele não possa ser
revertido. Daí, portanto, em termos gerais, a prioridade para a grande batalha, e para
a exploração implacável de seus resultados. [VI-27: 484-487; VIII-4: 595- 600; VIII-5:
601-602; IV-9: 248-252; IV-10: 253-257; IV-11: 258-262; IV-12: 263-270]
6. DESDOBRAMENTOS
Como já dito, há três perspectivas distintas nas considerações e decisões relativas ao
fenômeno bélico:
política — as considerações e decisões acerca das maneiras pelas quais os resultados
da guerra podem favorecer a obtenção de objetivos políticos;
estratégia — as considerações e decisões relativas a como os resultados dos
enfrentamentos já travados e os por travar podem favorecer a obtenção dos
propósitos da guerra;
tática — as considerações e decisões relativas a como as forças combatentes foram
ou serão empregadas para alcançar os propósitos de cada enfrentamento.
Essas perspectivas surgem diretamente de elementos intrínsecos à idéia de guerra, a
saber: a especificidade do tipo de interação política que é a guerra, caracterizada pelo
recurso à força para dobrar a vontade de outrem; o fato de que ataque e defesa são
formas diferentes de combater; o fato de que à defesa não é possível utilizar
simultaneamente todos os seus recursos de força, e que portanto esse emprego de
força pelo defensor é seqüenciado; e o fato de que a defesa é a forma intrinsecamente
mais forte da guerra.
Isso tem uma conseqüência imediata: em geral, quanto maior o território do defensor
(do ponto de vista estratégico), maiores as vantagens que a defesa (estratégica) lhe
TdG – v 13– joint. Abril de 2004 29
agrega. Mais problemático, porém, é o oposto: quanto menor o território do defensor
(do ponto de vista estratégico), menos vantagens a defesa (estratégica) lhe agrega.
Isso significa que, do ponto de vista estratégico, países muito pequenos podem obter
muito poucas vantagens adicionais da posição (estrategicamente) defensiva.
No limite, países que podem ser varridos numa tarde e que têm alguma capacidade de
iniciativa poderiam, do ponto de vista estratégico, beneficiar-se mais de boas doses de
iniciativa e rapidez — eventualmente, mas não necessariamente, associadas a uma
rápida passagem à posição taticamente defensiva — que de uma posição de espera
(defesa) estratégica29. Note-se que isso independe do tamanho de seu oponente: se
um ator é suficientemente pequeno, uma ação rápida e decisiva de um oponente
(mesmo pequeno) que o pegue desprevenido poderá resultar em sua ocupação.
Em mais uma daquelas situações difíceis de compreender e de aceitar para quem não
tem familiaridade com a discussão da guerra, isso significa que, muitas vezes, um país
que queira apenas sobreviver como unidade política autônoma eventualmente
aparentará ser o mais agressivo e belicoso em toda sua região, em função de sua
constante necessidade de tomar a iniciativa (do ponto de vista estratégico) das
hostilidades. Basta que ele seja muito pequeno e tenha alguma capacidade de
iniciativa (estratégica) para que essa situação se torne altamente provável.
Por outro lado, países grandes que estejam geralmente mais beneficiados que
prejudicados com o status quo político tenderiam a permanecer na defensiva também
do ponto de vista estratégico, a não ser em casos de uma enorme disparidade em
termos de força. Com exceção desses últimos casos, países gigantescos são quase
inconquistáveis numa única guerra30 e, se beneficiados politicamente pelo status quo,
podem obter algumas vantagens políticas decorrentes de sua tranqüilidade
estratégica, isto é, de sua aparente pacificidade.
Com isso em mente, voltemos a considerar o problema da legítima defesa. Como visto,
países muito grandes geralmente tendem a ser beneficiados pela espera da iniciativa
estratégica alheia, pois a dinâmica de espaço e tempo normalmente os favorece. Já
países muito pequenos, mesmo quando são os principais interessados na manutenção
do status quo, podem não ter condições de se defenderem caso esperem um ato
concreto de agressão alheio, pois, no seu caso, a dinâmica de espaço e tempo lhes é
desfavorável. Por paradoxal que possa parecer, a conclusão é bastante clara: as
normas atualmente vigentes do Direito Internacional privilegiam os interesses dos
países grandes em detrimento dos interesses dos países pequenos, mesmo nos casos
em que os países pequenos seriam beneficiados pela não-ocorrência de hostilidades.
Desse ponto de vista, ao menos nesses casos, as normas vigentes do Direito
29 A guerrilha é o extremo tanto lógico quanto material desse fenômeno. Infelizmente, não será possível
explorar o tema aqui. Ver [VI-26] e Lawrence (1992).
30 É perfeitamente concebível que um país C, cujos objetivos são inviabilizados por um país de grandes
dimensões D, adote a postura de diminuir D progressivamente. Assim, pode travar diversas guerras em diversos
momentos para erodir paulatinamente o território e os recursos de D, tomando ou subtraindo pedaço por pedaço o
que é impossível obter de uma única vez. Isto pode ser uma forma de lidar com o fato de que D é inconquistável
numa única guerra. No entanto, a questão é que D também sabe disso, e portanto, se puder, não aceitará perder
nem mesmo uma vila, um pomar ou uma concessão de comércio para C. Um possível desdobramento é que uma
guerra que C deseja seja limitada por uma determinada província pode ser tomada como uma guerra ilimitada da
parte de D, que vê no risco desta perda mais do que apenas a perda da província.
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Internacional não só não defendem os menores, como também podem privilegiar o
lado mais interessado na alteração do status quo pela força. Ao não levar em conta as
realidades estratégicas, o Direito Internacional vigente, em muitos casos, favorece a
opressão e protege o belicoso.
Uma vez mais, o objetivo aqui é apenas constatar as dificuldades, de modo a contribuir
para uma discussão construtiva sobre o Direito Internacional, de modo a permitir que
sua obediência não seja autodestrutiva e produza os resultados que desejamos.
8. REFERÊNCIAS CITADAS
33 Como exemplo, o debate da guerra justa de Walzer (2000).
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