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AS ‘MULHERES’ DE MILTON HATOUM: O MITO E O PAPEL DO SEGUNDO SEXO


NA OBRA ÓRFÃOS DO ELDORADO

Giovana Lazaretti1

Resumo: Este artigo tem como objetivo investigar o papel da mulher amazônica no romance
Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum, e sua inserção na sociedade, sob o enfoque nas relações
de gênero. O trabalho será desenvolvido a partir da análise de cinco personagens míticas da
região: Florita, Angelina, Dinaura, Madre Joana Caminal e Estrela, mulheres que marcaram a
trajetória de vida do personagem principal Arminto, e o papel que cada uma exerceu no
desenrolar da trama. Para isso, citar-se-ão alguns autores como Beauvoir (1980), Lemos (2014),
Zinani (2013), os quais ressaltam a importância da figura feminina e as questões de gênero no
meio social, fazendo referência às simbologias e aos mitos que representam no romance.

Palavras-chave: Mito. Mulheres. Relações de gênero.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A obra Órfãos do Eldorado, escrita pelo autor manauense Milton Hatoum, em 2008,
elege como ambientação a própria Amazônia, terra natal do escritor. Ao ler o romance, percebe-
se que há riqueza de detalhes, paisagens naturais, típicas do Amazonas, como os mitos e as
lendas, observados logo nas primeiras páginas, em que a personagem Florita traduzia da língua
indígena para o seu enteado Arminto Cordovil: “Florita traduzia as histórias que eu ouvia
quando brincava com os indiozinhos da Aldeia [...]. Lendas estranhas”. (HATOUM, 2008, p.
12). Mitos contados pelos avós indígenas e Florita, após ouvir essas histórias, repetia-as em
casa “nas noites de solidão da infância”. (HATOUM, 2008, p. 13). Florita contava essas lendas
para Arminto quando era ainda criança, tinha nove ou dez anos de idade e, de certa forma,
algumas delas fazem sentido para o desenrolar da vida da personagem principal como a Cidade

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Mestranda do curso de Pós-Graduação Scrictu Sensu em Letras, Cultura e Regionalidade, pela Universidade de
Caxias do Sul, UCS, e licenciada em Letras, pela mesma universidade.
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Encantada e a Cobra-Grande, marcadas pelo amor de Arminto a Dinaura, personagem que


desaparece ao ter um caso com ele e reaparece de forma surpreendente no final do romance, e
a lenda do boto, por ser a representação do ser mítico masculino que tem o poder de seduzir as
moças e engravidá-las.
Nascido em 1952, descendente de libaneses, Milton Hatoum é consagrado
nacionalmente e internacionalmente também com os seus diversos romances, contos e crônicas,
pois alguns deles foram traduzidos para doze idiomas e publicados em mais de quatorze países.
Ganhou prêmios consagrados pela literatura brasileira, entre eles, o Prêmio Jabuti, segundo
lugar, categoria romance com Órfãos do Eldorado. Com isso, surgem discussões acerca de o
autor ser regional ou ser regionalista. Entretanto, Hatoum deixa claro, em uma de suas
entrevistas, que não admite ser chamado de regionalista por sua obra ser lida no país inteiro e
fola dele, principalmente. Além disso, ele menciona que Órfãos interessou aos diretores da
indústria cinematográfica, e o filme, inspirado no livro, foi gravado com atores globais, Dira
Paes (Florita), Daniel de Oliveira (Arminto Cordovil) e Mariana Rios (Dinaura), personagens
principais da trama.
A culinária é citada na vida cotidiana das personagens: “Depois do banho ela [Florita]
serviu o almoço: feijão com jerumim e maxixe, peixe na brasa e farofa com ovos de tartaruga”.
(HATOUM, 2008, p. 26). O autor faz referência também às bebidas típicas amazônicas, como
a cachaça turubá e o licor de taperabá, o cajá conhecido no sul do Brasil, quando Estiliano,
advogado e amigo da família de Amando Cordovil, convida o personagem principal da trama,
Arminto, a participar de um sarau literário na lagoa da Francesa e, para acompanhar a recitação
dos poemas, servia vinho e o licor aos leitores de Vila Bela:

Na tarde de um sábado me arrastou para o sarau literário na lagoa da Francesa.


Estiliano não deixava nenhum livro morrer nas estantes da sala. Quando ele se mudou
para cá, trouxe de Manaus uma biblioteca que assombrou a cidade. Caminhava de
manhãzinha até o porto de Santa Clara e voltava para ler. Aos sábados, recitava
poemas e oferecia vinho e licor de taperabá aos poucos leitores de Vila Bela. Dizia:
Quando parar de trabalhar, não quero mais saber de leis, códigos, nada disso. Só de
ler. (HATOUM, 2008, p. 85).

Essa história se desenrolou nos períodos do ciclo da borracha, da Guerra da


Cabanagem e o final da Primeira Guerra Mundial, fatos estes considerados importantes para a
história do país, vividos por algumas gerações brasileiras e demonstrados na vida de alguns
personagens: “Morreu porque perdeu uma licitação vantajosa, a grande concorrência antes da
Primeira Guerra: borracha e mogno para a Europa. O coração não aguentou, a ganância era
maior que a vida”. (HATOUM, 2008, p. 77).
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Por meio da leitura desta obra, tem-se como objetivo analisar o papel da mulher
amazônica no romance de Hatoum e sua inserção na sociedade, sob o enfoque nas relações de
gênero, a partir das personagens femininas Florita, madrasta, com quem o personagem principal
teve um caso amoroso, Angelina, mãe que conhecera só por fotografia, Dinaura, amor platônico
de Arminto, Madre [Joana] Caminal, a qual cuidava do orfanato onde viviam algumas órfãs,
entre elas, a Dinaura, e Estrela, que aparece no final da trama, atração de Arminto, e as suas
representações, as quais se relacionam direta e/ou indiretamente com Arminto. Esse tema será
abordado no capítulo posterior, a fim de averiguar o mito ligado à mulher, interferindo no
destino do personagem.

2 AS MULHERES E AS SUAS SIMBOLOGIAS NA OBRA

Ao ler a obra, percebem-se algumas personagens femininas que presenciam a vida da


personagem principal masculina Arminto: Florita, Dinaura, Angelina, Madre Caminal e Estrela.
Logo no começo da leitura, ele, que também é narrador da trama (narrador-personagem), refere-
se a uma índia que conta histórias à beira do rio Amazonas e, Florita, atrás dele, traduzia as
frases, pois eram narradas em língua indígena. Essas lendas, ouvidas pelas avós das crianças
das aldeias, eram contadas novamente pela Florita na casa da família Cordovil, em noites de
solidão, na infância de Arminto:

Florita traduzia as histórias que eu ouvia quando brincava com os indiozinhos da


Aldeia, lá no fim da cidade. [...] Lendas que eu e Florita ouvíamos dos avós das
crianças da Aldeia. Falavam em língua geral, e depois Florita repetia as histórias em
casa, nas noites de solidão da infância. (HATOUM, 2008, p. 12-13).

Casada com Amando Cordovil, Florita vivia na chácara em Manaus e também no


palácio Branco, em Vila Bela. Florita queria que Arminto morasse com ela e seu pai, Amando.
Entretanto, seu pai afirmara: “Tua mãe te pariu e morreu”. (HATOUM, 2008, p. 16), e uma
índia (tapuia) quem amamentou Arminto, mas Florita, sempre que podia estava perto de
Arminto. Lavava a roupa do enteado, visitava-o com frequência na pensão onde morava com
Juvêncio. Não gostava do lugar que Arminto morava: “Com essa janelinha de cadeia, tu vais é
morrer sufocado”. (HATOUM, 2008, p. 15). Amando tinha ciúme de Florita e não queria que
seu filho a encontrasse e, muito menos, tivessem contato. Escondia o fato de sua madrasta ir à
pensão até de seu amigo Stelios (Estiliano). Florita, no quintal, ressalta que seu pai, desde a
morte de Angelina, não é mais o mesmo e, com isso, Florita beijou-o. Na verdade, Florita é
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quem recepciona o afloramento do desejo sexual de Arminto: “Ela me beijou na boca, o


primeiro beijo, e pediu que eu tivesse paciência. Louco pelas indiazinhas. Repeti essas palavras
com o gosto do beijo de Florita”. (HATOUM, 2008, p. 24).
Arminto morava em uma pensão, na Saturno, porque Amando descobriu que foi traído
por Florita e por seu filho que, com ela, ocorreu a primeira relação sexual. A punição foi
expulsá-lo do palácio branco e o obrigou a procurar uma pensão em Manaus. O próprio Arminto
reconheceu a culpa, mas afirmara que era jovem e o castigo era merecido: “Minha maior dúvida
naquela época era saber se o silêncio hostil que nos separava era culpa minha ou dele. Eu ainda
era jovem, acreditava que o castigo por ter abusado de Florita era merecido; por isso, devia
suportar o peso dessa culpa”. (HATOUM, 2008, p. 16).
As mulheres, na literatura, desempenham um papel considerável que, segundo a
filósofa francesa Simone de Beauvoir (1980, p. 225), por seus múltiplos aspectos e valores, seja
ela má, devassa, ardilosa, são as que conduzem o homem à perdição; ou as meigas e caridosas,
que se apresentam como anjos protetores. E, por isso, o mito está ligado ao uso que dele fazem
os homens, pois, a partir do sexo feminino, que se realizam: “Através dela realiza-se sem cessar
a passagem da esperança ao malogro, do ódio ao amor, do bem ao mal, do mal ao bem. Sob
qualquer aspecto que se considere é essa ambivalência que impressiona primeiramente”.
(BEAUVOIR, 1980, p. 183).
O mito pode ser observado nos papéis exercidos pelas cinco mulheres: Florita,
Dinaura, Angelina, Madre Caminal e Estrela que serão citadas ao longo deste artigo.
Devido ao trabalho de Amando Cordovil, Florita sentia-se sozinha e, atraída pelo
próprio enteado, uma relação incestuosa houve entre os dois. O papel feminino na sociedade
foi construída sempre por intermédio da dominação patriarcal. Em meados do século XVIII e
XIX, e ainda nos dias atuais, a mulher vive por meio desses valores tradicionais, passados de
geração a geração. Nessa obra, há a ruptura desses valores, pois o sexo feminino se apropria do
discurso. Assim, de acordo com Zinani (2006, p. 17),

A desconstrução do discurso patriarcal, a voz feminina passa a ser ouvida,


possibilitando-lhe revelar a sua experiência e expressar uma nova ordem social e
simbólica, cujos parâmetros desvelam o universo da mulher, com a intenção de
projetar uma estética de caráter feminino, na medida que esse universo é representado
na literatura, e que pode se converter em elemento político influente na transformação
dos sistemas de poder existentes.
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Ao mesmo tempo que Arminto ameaçava o próprio pai pelo ciúme em relação à
Florita, também era o espelho de Angelina, o algoz de uma história de amor entre seu pai e sua
mãe, que havia falecido.
Angelina, mãe de Arminto Cordovil, era sempre lembrada com muito carinho, possuía
uma imagem dela e colocava-a na parede da sala de sua pensão. Arminto, por meio dessa
fotografia e das lembranças, invocava uma proteção, como se recorresse à imagem da Virgem
Maria, aquela que protege seus filhos, cheia de misericórdia, durante as caminhadas pelas vias
misteriosas e desconhecidas, ou seja, segundo Beauvoir (1980, p. 225), o “papel misericordioso
e terno é um dos mais importantes que foram atribuídos à mulher”. Angelina é vista aos olhos
do filho como uma pessoa imaculada, pudica, santa. Silva (2011, p. 72) ressalta que Angelina
simboliza

o protótipo da mulher e mãe idealizada e inatingível pelos dois homens, pai e filho
(Amando e Arminto), mesmo não fazendo mais parte da estrutura terrena. Ela
funciona como um significante ausente que, por assim ser, mobiliza e converge para
si o desejo e o destino dos dois homens, pois continua sendo amada por eles mesmo
depois de morta. É justamente por estar fora do alcance de ambos que ela se torna
fortemente idealizada.

As lendas relatadas, como a “cobra-grande” e a “do boto”, são ligadas ao imaginário


do fascínio feminino, assim como existe na figura masculina. Essas lendas representam os
amores platônicos, não concretizados. A “cobra-grande” ou sucuri, na região amazônica,
simboliza paixões irrealizáveis, alucinadas, abalando as estruturas familiares. O poder de
sedução feminino entra em conflito com as guardiãs, aquelas que acreditam em uma estrutura
familiar sólida, associando a figura de uma mulher sedutora aos perigos e encantos de seres da
mitologia. Já, o boto representa o ser mítico masculino, ou seja, a imagem feminina era somente
vista como ser de reprodução da espécie, e o olho do animal serve como amuleto e talismã, com
a intenção de conquistar a mulher amada:

Viajei numa embarcação velha: um vapor do Mississippi, o último que navegava na


Amazônia. Pendurei no pescoço o olho de boto que ganhei de Florita e enfiei no bolso
da calça a fotografia de minha mãe, Angelina. Dormi numa rede na terceira classe, no
convés da linha d’água. Muita zoada, aves e porcos amarrados, um cheiro azedo de
suor e sujeira. E a comida, uma babugem. Nada disso era importante, porque aquela
podia ser a viagem da minha vida, ao coração esquivo da mulher que eu amava.
(HATOUM, 2008, p. 100).
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Enquanto Arminto idolatrava a mãe Angelina, Florita seduzia-o sempre que podia,
agradava-o com a roupa lavada, trazia comida, porém ele só tinha olhos para uma mulher, além
de sua mãe, Dinaura. A figura do sexo feminino, associada à mitologia, adquire sentido
ambivalente e oposto em determinados momentos: enquanto Dinaura representa a perdição aos
olhos de Florita, a imagem de Angelita adquire um sentido maculado para o filho.
Arminto Cordovil conheceu Dinaura, uma órfã, em Vila Bela, no orfanato da Madre
Joana Caminal. Estiliano soube que seu amigo estava enfeitiçado por essa mulher, porém, desde
que soube, tentou enganá-lo, parecendo uma mulher desconhecida. Somente no final do
romance, Stelios entrega a verdade sobre Dinaura: “Essa é boa, um Cordovil embeiçado por
uma mulher que veio do mato”. (HATOUM, 2008, p. 31).
Sendo assim, Florita desperta um ciúme de Dinaura, mulher de duas idades, como
afirmava o próprio Arminto. Sustentava também que Dinaura era um ser sobrenatural, “uma
mulher encantada”, iria devorá-lo e, após, arrastá-lo para a lendária cidade encantada que existia
no fundo do rio, o Eldorado: “O olhar dela era só feitiço: parecia uma dessas loucas que sonham
em viver no fundo do rio”. (HATOUM, 2008, p. 31). A personagem Dinaura era calada, cunhatã
misteriosa e, no porto de Vila Bela, “alguém espalhou que a órfã era uma cobra sucuri que ia
me devorar e depois me arrastar para o fundo do rio. E que devia quebrar o encanto antes de ser
transformado numa criatura diabólica”. (HATOUM, 2008, p. 34). Nota-se, portanto, mais uma
figura da mulher amante e, com o seu poder de sedução, tornavam-se, Florita e Dinaura, figuras
estigmatizada e cercada pelo mistério. O corpo de Dinaura personifica o belo e o sensual
femininos amazonenses, permitindo aos mitos a metaforização dos sentimentos mais profundos
e inacessíveis dos homens.
Ao longo da narrativa, as expressões “o fundo do rio” e “o fundo das águas” aparecem
algumas vezes, simbolizando o mistério e a riqueza, e o Eldorado, a cidade encantada. Dinaura
faz reviver essa lenda: uma mistura entre o mistério e o enigma do fundo do rio, representando
o mistério da mulher amada, e o encanto, a beleza do Eldorado, a encantada, para Arminto.
Dinaura era calada, não falava com ninguém, e as pessoas, ao redor, não sabiam de
onde ela tinha surgido: “Como Dinaura não falava com ninguém, surgiram rumores de que as
pessoas caladas eram enfeitiçadas por Jurupari, deus do Mal”. (HATOUM, 2008, p. 35).
A personificação da mulher virgem também é destacada na personagem de Dinaura:
“Quando Dinaura andava na cidade, os homens iam atrás. Nenhum falava com a mulher. Por
quê? Medo. Alguma coisa no seu olhar inibia mais que uma voz ou um gesto. Com medo, eram
machos vencidos”. (HATOUM, 2008, p. 37). A mulher, até meados do século XX, era
prometida para um só, aquele escolhido por seus pais. Os critérios eram diversos; os ricos
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sempre se casavam com mulheres de famílias ricas e com posses. Os pais, que não tinham
muitas possibilidades financeiras, observavam certos olhares masculinos e obrigavam as suas
filhas a casarem com eles para garantirem o seu futuro e de sua prole. Em certas culturas, o
homem desejava a mulher virgem, que significava o ser único, dele próprio, que “se guardava
para o homem certo”, e que não foi de nenhum outro macho, a não ser ele, ou seja, o sexo
masculino gostava de ser a posse da mulher, assim como reafirma Simone de Beauvoir (1980,
p. 194):

A hesitação do macho entre o medo e o desejo, entre o temor de ser possuído por
forças incontroláveis e a vontade de captá-las, reflete-se de maneira impressionante
nos mitos da Virgindade. Ora temida pelo homem, ora desejada e até exigida, ela se
apresenta como a forma mais acabada do mistério feminino; é o aspecto mais
inquietante deste e ao mesmo tempo o mais fascinante. Segundo se sinta esmagado
pelas forças que o cercam ou se acredite orgulhosamente capaz de anexá-las a si o
homem recusa ou reclama que a esposa lhe seja entregue virgem. Nas sociedades mais
primitivas, em que o poder da mulher é exaltado, é o temor que vence; convém que a
mulher tenha sido deflorada antes da noite de núpcias.

Para Arminto, Dinaura existia, depois de uma noite de amor, apenas nos seus sonhos.
Ela, portanto, desaparece da trama, e o narrador-personagem delira pelo fato de sempre a ter no
pensamento. Florita tem crises de ciúmes e alega a seu enteado que nunca mais a virá e
aconselhou-o a esquecê-la: “Esquece aquela moça. Esquece antes de chegar a hora da tristeza.
A hora da tristeza?, perguntei. Ela nunca vai ser tua mulher. Nunca vai ser amada quem não é
de ninguém”. (HATOUM, 2008, p. 37). A amante que mais representa a lenda e o mito
amazônico, dentre as obras hatounianas, é a Dinaura – uma moça de origem desconhecida que
se torna alvo das investidas de Florita: “parecia uma dessas loucas que sonham em viver no
fundo do rio”. (HATOUM, 2008, p. 31). Florita confiava na sua influência sobre Arminto,
achando-se no direito de interferir na paixão dele por Dinaura, a qual ela renegava e
discriminava, insistindo que a órfã era o feitiço criado pela própria cabeça do filho de Amando,
ou seja, aproximava a amada do estereótipo de monstro ou, até mesmo, bruxa.
Em todo a história, Dinaura não fala, fica calada o tempo todo: “Ela escapa sem dizer
palavra. Não sei se escapava: era o silêncio que dava a impressão de fuga”. (HATOUM, 2008,
p. 37).
No final do romance, descobre-se que Dinaura, acobertada pelo principal amigo da
família, o advogado Estiliano, conhecido também por Stelios, mais íntimo pela família dos
Cordovil, guardava um grande segredo: “Dinaura seria então filha de Amando? Ou sua amante?
Seria ela, então, meio-irmã de Arminto? Ou sua madrasta? (HATOUM, 2008, p. 98).
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Entretanto, a história não revela, com segurança, qual é a verdadeira identidade de Dinaura.
Estiliano é quem diz ao amigo, ainda que com a dúvida da real participação na vida dos
Cordovil, que ela pode ser amante ou filha de Amando, salientando a sua idade: “Dinaura...
minha irmã?, eu disse engasgado. Meio-irmã, corrigiu Estiliano. Ou madrasta. Essa é a minha
dúvida. Por isso não queria te contar. Prometi ao teu pai que ia cuidar dela, caso ele morresse
antes de mim. Até hoje não sei quem é ela”. (HATOUM, 2008, p. 98).
Outra mulher que houve destaque pelo autor foi a Madre Joana Caminal. Graças a ela,
Dinaura e outras órfãs tinham abrigo. Uma mulher muito justa, que não permitia que crianças
e mulheres fossem mercadorias e tentava minimizar, com suas denúncias, a violência doméstica
da esposa e/ou empregada: “Em Vila Bela, madre Joana Caminal era conhecida como a Juíza
de Deus, porque proibia o escambo de crianças e mulheres por mercadorias, e denunciava os
homens que espancavam a esposa e as empregadas”. (HATOUM, 2008, p. 42).
O povoado comentava acerca da madre, desconfiando da sua pureza: “A madre
chefona, aquela espanhola, será que é virgem que nem santa? Queria ver, queria ver”.
(HATOUM, 2008, p. 35). Dinaura abrigava-se no convento de Caminal, e a madre, por sua vez,
afirmava que a órfã era sua afilhada e estava-a protegendo.
A mulher, em si, configurada por Hatoum, é

a mulher é, a um tempo, Eva e a Virgem Maria. É um ídolo, uma serva, a fonte da


vida, uma força das trevas; é o silêncio elementar da verdade, é artifício, tagarelice e
mentira, a que cura e a que enfeita; é a presa do homem e sua perda, é tudo o que ele
quer ter, sua negação e sua razão de ser. (BEAUVOIR, 1980, p. 183).

A madre achava o senhor Amando muito generoso e, gentilmente, cumprimentou


Arminto na morte do pai: “ Madre Joana Caminal veio sozinha, me deu os pêsames e disse
secamente: O senhor Amando Cordovil era o homem mais generoso desta cidade. Vamos rezar
por sua alma”. (HATOUM, 2008, p. 28). Amando sempre conversava com a madre, os dois se
entendiam. Madre Caminal recebeu um poema das mãos de Arminto, escrito por Stelios,
destinado à Dinaura. Quando o pai de Arminto morreu, Caminal devolveu o poema para lê-lo
às vezes, até a velhice e, ainda, permitiu que a Dinaura o encontrasse, porém somente aos
sábados: “Leia esse poema de vez em quando, até a velhice. Se a minha órfã quiser, vai te
encontrar às cinco horas na praça. E só aos sábados. Nunca se aproxime do dormitório do
orfanato, nem entre mais aqui. Não é preciso dar nada para a nossa Ordem. Teu pai deu muito”.
(HATOUM, 2008, p. 40). Percebe-se que, ao longo da história, Amando era muito familiar para
a madre, mas como Dinaura era desconhecida, o narrador citava algumas características, mas
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não deixa dúvidas e desconfianças de que pertencia à família, tornando-se surpreendente ao


leitor, à medida que lê, com a ansiedade de descobrir o que Dinaura pretendia com o seu
silêncio, nem sequer falava o seu nome direito.
Essa história não sobre (vive) somente do simbolismo, da atração das mulheres por um
homem, mas marcada pelas guerras, pelas doenças, pela autodestruição do personagem
principal e pela ruína da cidade, assim como sustenta Lemos (2014, p. 71):

Além da ruína, marcada tanto no protagonista quanto na cidade, há, ainda, a denúncia,
no livro, de comportamentos ilícitos voltados para a exploração e violência de
mulheres e crianças. Nesse sentido, a personagem Madre Caminal destaca-se pelo fato
de estar relacionada a uma forte ideia de caridade e justiça, não só por ser a
responsável por acolher as jovens órfãs que havia na região em um número
considerável, protegendo-as de um destino cruel, mas também por proibir que fossem
exploradas.

Com isso, Madre Caminal tenta apaziguar a cidade, fazendo com que defendesse a sua
terra, depois de ter vindo da Espanha, da exploração infantil e da violência contra a mulher.
Tinha um papel primordial para fazer o bem e o combate a qualquer maldade em relação,
principalmente, às meninas e às moças órfãs.
Arminto, ao voltar de viagem, procura por Madre Caminal, esta que fazia seis anos
que já voltara para o seu país de origem, a Espanha: “Madre Caminal, eu disse. Nossa veneranda
Joana Caminal? Está na Espanha, senhor, disse a noviça. Ela nos deixou há seis anos. Nossa
veneranda quis morrer na Catalunha, mas está viva”. (HATOUM, 2008, p. 93). Assim ficou
conhecida a madre, como uma pessoa justa e que sempre preservava o bem e a inocência das
jovens residentes no colégio do Carmo, coordenada pela própria madre.
Estrela, vinda de Belém com seu filho e seu marido, moravam no palácio branco. O
interesse do personagem principal, no final da história, após perder tudo o que tinha herdado
do pai, era casar com ela para recuperar a residência que sempre fora de Amando e na qual
morava Florita: “O rosto já não escondia a velhice. Pus as mãos em sua cabeça e disse que meu
plano era casar com Estrela só para não perder o palácio branco. Um plano que não ia dar certo
porque eu amava Dinaura”. (HATOUM, 2008, p. 89). Estrela seria a mulher que o salvaria da
vida medíocre que conseguira, pois não assumiu, na morte do pai, as empresas, por pensar em
Dinaura, a qual também representa a sua autodestruição. As mulheres modificaram a vida do
personagem, levando-o a rumos totalmente diferente da vida que tinha e desfrutava enquanto
Amando estava vivo, tomando conta dos negócios. Essas que fizeram história e marcaram a
trajetória de vida dos personagens existentes na trama.
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Falar da ambientação da narrativa


Especula-se que a própria região da Amazônia foi assim denominada porque o
explorador espanhol Francisco de Orellana, desbravando a floresta tropical sul-americana em
1541, afirmou ter lutado com mulheres guerreiras, que atacavam com flechas e zarabatanas.
Origem dos sarapós – diabo sem cu

Percebe-se que a mitologia amazônica exalta a mulher, faz dela um ser único, com a
cultura indígena, porém não se estuda o mito com essa cultura, mas dentro do folclore, fazendo
com que perca a identidade original, desvalorizando essa herança pelo fato de as pessoas não
estudarem, pesquisarem essas lendas regionais.
Os cuidados com os nomes - pagina 90 da dissertação de mestrado – que o autor teve

A MULHER? É muito simples, dizem os amadores de fórmulas


simples: é uma matriz, um ovário; é uma fêmea,
e esta palavra basta para defini-la. Na boca do homem o epíteto
"fêmea" soa como um insulto; no entanto, êle não se envergonha
de sua animalidade, sente-se, ao contrário, orgulhoso se
dele dizem: "É um macho!" O termo "fêmea" é pejorativo,
não porque enraíze a mulher na Natureza, mas porque a confina
no seu sexo. E se esse sexo parece ao homem desprezível e
inimigo, mesmo nos bichos inocentes, é evidentemente por causa
da inquieta hostilidade que a mulher suscita no homem; entretanto,
êle quer encontrar na biologia uma justificação desse sentimento. (Simone de Beauvoir, p. 25)

As mulheres são escravizadas à cozinha, ao lar, fiscalizam-


lhes ciumentamente os costumes; confinam-nas em um ritual
de savoir-vivre, que trava qualquer tentativa de independência.
Em compensação, honram-nas e cercam-nas das mais
requintadas delicadezas. "A mulher casada é uma escrava que
é preciso saber colocar num trono", diz Balzac (Simone de Beauvoir, p. 145)

questões telúricas
literatura regional

Willis (2007, p.260)


[...] Seus mitos locais demonstram uma unidade e coerências subjacentes, em que os mitos pertencentes a um
grupo parecem ser desenvolvimentos dos de outro grupo, assim ilustrando interesses comuns concebidos e
tratados por meio de uma lógica comum.
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REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. v. 1, trad. Sérgio Milliet. 4 ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira,1980. Disponível em:
<http://brasil.indymedia.org/media/2008/01/409660.pdf>. Acesso em:

Mulher amazônica. Artighttp://www.periodicos.ufam.edu.br/somanlu/article/viewFile/506/335

SILVA, Joanna da. Relações de gênero no romance de Milton Hatoum. São João Del-Rei, 2011.

http://www.brasilhipismo.com.br/noticias/dia-da-mulher-um-pouco-da-historia-e-do-mito-
das-amazonas acesso em: 15 mar. 2017

http://museudaamazonia.org.br/pt/2016/03/21/diabo-sem-cu-%E2%80%A2-origem-dos-
sarapos/

SÁ, Gladys Oliveira de; DUTRA, Márcia Guedes Egas. Mulheres na mitologia: uma análise
de personagens míticos da cultura amazônica. Disponível em:
<http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/3448/1/2009_DIS_MVMSILVA.pdf>. Acesso
em 29 mar. 2017.

BALZAC

HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Disponível em:
<http://lelivros.love/book/download-orfaos-do-eldorado-milton-hatoum-em-epub-mobi-e-pdf/>.
Acesso em: 15 mar. 2017.2

LEMOS,

WILLIS, Roy. Mitologias: Deuses, heróis e xamãs nas tradições e lendas de todo o mundo.
Tradução de Thais Costa e Luiz Roberto Mendes Gonçalves. Virtual Books. Disponível em:
<www.portaldetonando.com.br/>. Acesso em: 28 abr. 2017

ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Literatura e gênero: a construção da identidade feminina. 2. ed.
Caxias do Sul: EDUCS, 2013.

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Utilizou-se da versão impressa para fazer as citações. O ano de publicação e a edição são os mesmos.

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