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Breve Tratado sobre Pessoa, Comunidade

e Empatia em Edith Stein

Manuele Porto Cruz1

Resumo
Edith Stein procura em seus escritos fazer a integração entre a tradição metafísica clássica e a tradição
fenomenológica moderna no que tange o entendimento da pessoa humana. A pessoa é aquela que pode relacionar-
se consigo mesma, com os demais e com o mundo, mas que carrega em si sua individualidade que a distingue das
demais. Neste trabalho pretendo mostrar como se deu a construção do princípio de individuação em Edith Stein,
tendo como base elementos da filosofia medieval de Tomás de Aquino e de Duns Escoto, e como a partir deste
princípio e de uma aparente influência do texto Castelo Interior ou Moradas de Teresa D’Ávila ela construiu seu
próprio conceito de pessoa. Tal conceito de pessoa apresentado como uma unidade integrada e totalizante de três
estratos: corpo, alma (ou psique) e espírito. Num momento seguinte focarei no aspecto da intersubjetividade
humana defendido por Stein, que conduz o conceito de pessoa humana a outro conceito, o de comunidade. Pode
até parecer paradoxal, mas para ela é possível que coexistam os elementos de singularidade e comunidade quando
se fala em pessoa humana, pois a sua singularidade não se dá como fechamento, mas como uma abertura aos
outros, e é esta abertura que conduz o ser humano à empatia e finalmente à plenitude pessoal e à harmonia do ser.
Por fim, mostrarei que a relação entre pessoa e comunidade descrita por Stein não é contemplada apenas pela
perspectiva antropológica, mas também teológica, pois a pessoa plena transcende a si mesma e encontra nessa
transcendência a sua realização última.
Palavras-chave: Pessoa. Comunidade. Relação

1 Introdução
Edith Stein, filósofa que viveu do final do século XIX a meados do século XX, tinha uma
sede pela Verdade. E nesta busca se encanta com as possibilidades da Fenomenologia, após ler
as “Ivestigações Lógicas” de Husserl. O filósofo, de quem Stein posteriormente se tornou aluna
e assistente, propunha um novo método para a busca do conhecimento. Tal método pretendia
não se prender a uma simples mundivisão, mas captar o sentido da existência e encontrar os
fundamentos de toda e qualquer visão de pensamento, ir à essência de todas as coisas. Ele,
proveniente da Matemática, viu em Franz Brentano, seu professor, indícios de que o objeto da

1
Aluna do Mestrado em Filosofia da Religião, do Programa de Pós-Gradução em Filosofia – Departamento de
Filosofia da Universidade de Brasília – Matrícula: 16/0043794 – E-mail: manupcruz@gmail.com
2

filosofia podia ser avaliado de maneira rigorosa, que conduzisse a um conhecimento que se
daria pela clareza do pensamento.
Apesar de ainda muito ligado à formulação metodológica matemática, Husserl ao estudar
Descartes, faz uma crítica à ciência moderna que parecia promover um divórcio total entre o
homem e o mundo onde vive e assim, desligando-se da realidade nunca encontraria a totalidade.
Surge, como consequência deste período (que envolve não somente Descartes, mas as
investigações de autores contemporâneos a ele como Galileu, Copérnico e Kepler) uma
profunda ruptura entre os aspectos intelectuais e sensoriais, e extensivamente entre os conceitos
mentais e as percepções físicas.
Edith Stein se apoia então no pensamento de Husserl para descrever todos os fenômenos
segundo o modo como aparecem aqui agora, ou como ambos afirmam, apresentar os fenômenos
em carne e osso. E isso se aplica também à pessoa humana. A filósofa não quer partir de um
conceito engessado de pessoa, mas da pessoa real inserida num complexo microcosmos e
possuidora de diversos ângulos e possibilidades.
Pode-se dizer que

(...)quando falamos da concepção de pessoa em Edith Stein, compreendemos


que não há em si uma conceituação no sentido mais estrito da palavra. Ela não
busca compreender o significado da palavra “pessoa”, mas busca entender a
pessoa como fenômeno. Isso quer dizer que a antropologia filosófica proposta
por Edith Stein não é construída sobre uma formulação ideal do que seria uma
pessoa, mas sobre a experiência do ser pessoa.2

2 A Pessoa Humana a partir do método fenomenológico


Para compreender de fato quem é a pessoa humana em sua profundidade, me parece que
Edith Stein traça uma linha de raciocínio concisa e rigorosa a ser seguida, como propõe o
método fenomenológico: ela parte da compreensão do princípio de individuação humana,
desenvolvido pelos escolásticos (especialmente Tomás de Aquino e Duns Escoto), que faz
compreender o ser humano como um indivíduo único e irrepetível. Como um segundo passo
tenta entender o que significa ser pessoa, quais são as partes de cada pessoa, sabendo que apesar
de estudar cada uma delas, cada pessoa trata-se de um ser uno e indivisível. Seguindo, extrapola
o entendimento da pessoa para o entendimento da comunidade e suas diferentes instâncias e
por fim a transcendência da pessoa alcança não mais somente os pares mas a Deus, fazendo que
sua análise filosófica seja também objeto de estudo da teologia.

2
ALFIERI, F. Pessoa e singularidade em Edith Stein, p. 18
3

Após o início da participação da filósofa no chamado “círculo de Gotinga”, círculo de


fenomenólogos ao qual participavam, dentre outros nomes, Edmund Husserl, o casal Theodor
e Hedwig Conrad-Martius e Max Scheler, parece começar a se interessar pelo estudo dos
escolásticos e a partir daí propõe em seus escritos uma constante integração entre a tradição
metafísica clássica e a tradição fenomenológica no que tange o entendimento da pessoa humana.
Quando se fala da tradição metafísica clássica, entende-se especialmente o estudo de Tomás de
Aquino, Agostinho e Duns Escoto.

2.1 Individuação do ser

Apesar de respeitar e considerar a maior parte do ponto de vista de Tomás de Aquino a


respeito da filosofia, em alguns pontos discorda parcial ou totalmente dele. A investigação de
Stein acerca da compreensão do ser se inicia na concepção de individuação e no que diz respeito
ao tema, parece se aproximar mais da conceituação tomada por Duns Escoto do que na tomada
pelo Aquinate.
Tomás de Aquino no seu conceito de individuação acredita que a matéria é assinalada pela
quantidade, ou seja, o elemento que diferencia os indivíduos essencialmente é a matéria pela
qual são formados. A matéria é que determina a forma ou a essência destes. Assim, para ele,
pode-se dizer que o que diferencia um indivíduo do outro são suas características materiais, e
se por algum motivo possuírem características idênticas, o que os diferenciaria seria seu lugar
no espaço. “Para a escola tomista, a matéria signata quantitate e a dimensão espaço-temporal
seriam suficientes para dizer que o indivíduo é uma pessoa”.3
João Duns Escoto propõe um novo modo de conceber o ser, que vai além de sua ordem
categorial, isso quer dizer que seu princípio de individuação não é algo que se acrescenta a
partir do exterior à natureza comum. É a forma que determina a matéria, algo interno que funda
a própria natureza do ser. Além disso, o indivíduo é entendido por ele como uma “intrínseca
solitude última”, o que significa que não se enclausura em si mesmo, mas que está totalmente
em si.
Edith Stein parte de um princípio semelhante ao de Duns Escoto, pois ela afirma que o ser
humano possui em sua estrutura pessoal uma unicidade, e é por meio do reconhecimento de sua
própria singularidade que ele pode sair de si mesmo, abrindo-se, livremente, ao mundo e aos
outros.

3
ALFIERI, F. Pessoa e singularidade em Edith Stein, p. 40
4

Isso faz com que só haja de fato a existência do fenômeno pessoa, quando se dá
primeiramente a relação consigo mesmo e posteriormente com os outros. Nas palavras da
autora: “O eu individual é um sujeito que recolhe uma multiplicidade de eus individuais.”4
A pessoa para Stein forma-se a partir da participação na natureza humana mas também
quando reconhece a sua singularidade, como indivíduo único e irrepetível. Toda e qualquer
diferenciação exterior do ser remete à interior e esse movimento só é possível de dentro para fora.
Assim, Stein afirma que o que nos torna singulares em última instância é o núcleo da pessoa
humana (Kern). Mas para melhor compreender o que consiste esse núcleo, é importante
entender antes como se apresentam os três estratos da pessoa humana na análise steiniana.

2.2 Os estratos da pessoa humana: Corpo, Psique e Espírito

Edith Stein identifica duas dimensões que se inter-relacionam na unidade da pessoa


humana: o corpo e a alma. Daqui aparentemente não parece diferir muito da concepção tomista
da pessoa, contudo a forma como entende cada uma delas é notavelmente nova e aparentemente
já influenciada por um léxico psicológico e por toda uma bagagem moderna, que já consegue
tratar da consciência e não se fixar somente na substância. A primeira dimensão identificada é
o corpo, que pode ser compreendido como corpo físico e como corpo vivenciado, aos quais
compõem a dimensão material. A segunda dimensão é a alma, que por sua vez é composta por
duas outras dimensões: a psique que corresponde à dimensão psíquica e o espírito, referente à
dimensão intelectiva, que se abre ao âmbito dos valores, dos sentimentos, da decisão.
O corpo vivenciado é próprio dos seres racionais, pois somente estes tem consciência da
sua própria corporeidade, por meio da percepção e receptividade. Este corpo envolve todos os
aspectos do eu psicofísico. O corpo é o campo perceptivo da pessoa humana, pois é por meio
dos sentidos que se pode sentir o ambiente circundante e traçar a diferença entre ele e o mundo
e as outras pessoas. Trata-se do ponto zero de orientação de um mundo espacial.
A psique é o segundo estrato tratado por Edith Stein. Essa dimensão relaciona-se à
qualidade e à intensidade das ações humanas, nos quais normalmente estão envolvidos os seus
estados emocionais.
Aparentemente parece que os animais também vivenciam os mesmos estados emocionais
humanos, mas Stein afirmará que eles se diferenciam dos seres humanos, pois os últimos
possuem em si a interioridade. Isso faz com que na alma humana, além de existirem
potencialidades psíquicas, expressas pela sensação, pela emoção, pela estima e pelo estado de

4
STEIN, apud ALFIERI, F. Pessoa e singularidade em Edith Stein, p. 40
5

ânimo, há também a dimensão do conhecimento e do sentimento, e estes se encontram por sua


vez no terceiro estrato, ou seja, no espírito.
O espírito humano opera todo conhecimento intelectual (cognitivo). Ligado a ele está a
atividade valorativa, mostrando que certos atos da consciência não são neutros, mas envolvem
atração ou repulsa.
É a reflexão sobre os valores que leva Stein a constatar que a dimensão espiritual humana
não envolve apenas a razão e o intelecto, mas também a vontade, pois essa se manifesta à
consciência movendo ou não o homem à ação.

2.3 A singularidade da pessoa humana: o núcleo da personalidade e relação com as


obras da mística Teresa D’Ávila

A ação humana envolve assim o homem todo, e são essas vivências que traduzem a sua
singularidade. É esta singularidade que faz com que a pessoa conserve de fato a sua marca
pessoal, mesmo sendo a todo momento influenciada pelas relações com os outros sujeitos. A
esta marca pessoal, Stein chama de Kern, ou núcleo da personalidade. É uma propriedade
permanente, inserida dentro do homem, não de forma material, pois vai além de todos os
estratos. É este selo que identifica cada ser humano como uma pessoa única e genuína.
Ao falar desta “alma da alma” parece que Stein se inspira na mística e santa cristã Teresa
d’Ávila, em sua obra “Castelo interior ou Moradas”. Neste livro, Teresa fala às suas irmãs de
carmelo da alma humana, apresentando-a como um castelo que possui em si sete moradas. Em
seu centro, emana uma luz da qual identifica em última instância com o próprio Deus. Stein faz
algo semelhante, quando fala da “alma da alma”: é necessário que haja um aperfeiçoamento e
crescimento espiritual para encontrar-se mais perfeitamente a si mesmo e em última instância
encontrar o próprio Deus que habita na consciência humana.
Ela parece antecipar o que muitos anos depois será afirmado no Concílio Vaticano II, na
Constituição Pastoral Gaudium et Spes, 16:

No mais profundo da consciência, o homem descobre uma lei que não se deu
a si mesmo, mas à qual deve obedecer e cuja voz ressoa, quando necessário,
aos ouvidos do seu coração, chamando-o sempre a amar e fazer o bem e a
evitar o mal [...]. De fato, o homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio
Deus [...]. A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem, no
qual ele se encontra a sós com Deus, cuja voz ressoa na intimidade do seu ser.

Assim, para Edith Stein, a vida psíquica humana chega a ser plena apenas quando se abre
à vida espiritual, num movimento de conhecimento e aprofundamento de si, para uma abertura
6

e saída de si rumo ao mundo dos objetos e rumo à subjetividade alheia. A comunhão com o
espírito dos outros se dá à medida que se partilha da vida e do conhecimento, dando existência
a um conjunto de vivências comuns.
“Somente no âmbito do mundo espiritual, consciente e intersubjetivo, o ser humano pode
superar o isolamento inevitável de uma vida psíquica limitada à dimensão individual voltada
apenas para o mundo material e vital”.5
Assim, toda pessoa deve estar aberta a viver e ser comunidade.

No lugar em que uma pessoa se posiciona diante de outra como sujeito diante
de um objeto, a investiga e dá um tratamento racional com base no
conhecimento adquirido, para suscitar efeitos intencionados, aí as pessoas
convivem como sociedade. No lugar, ao contrário, em que um sujeito aceita o
outro como sujeito e não se posiciona diante dele, mas vive com ele e se deixa
influenciar pelos seus movimentos vitais, aí eles formam uma comunidade
juntos.6

Desta forma, dado que a abertura aos outros e ao mundo dos valores pertence à atitude
original de indivíduos espirituais, e que a dimensão espiritual não se realiza em indivíduos
totalmente isolados e fechados neles mesmos e no mundo natural, pode-se afirmar que o ser
humano é originalmente tanto um ser social como um ser individual, e que os organismos
sociais possuem o seu fundamento nos indivíduos.
É da compreensão e vivência da dimensão comunitária que se pode se aproximar de Deus
que transcende o homem. Não uma transcendência que o faz alheio ao homem, mas que faz
com que o homem o encontre dentro de si, e que possa leva-lo a compreender os demais. Parece
que aqui que surge fortemente uma influência Agostiniana no pensamento Steiniano, o que a
aproxima à reflexão teológica.
Cito, pois um trecho do texto de Santo Agostinho que sintetiza bem todo o caminho
delineado por Edith Stein para a compreensão da pessoa humana:

Entrei no meu íntimo sob a Tua Guia e consegui, porque Tu Te fizeste meu
auxílio. (...) Os homens saem para fazer passeios, a fim de admirar o alto dos
montes, o ruído incessante dos mares, o belo e ininterrupto curso dos rios, os
majestosos movimentos dos astros. E, no entanto, passam ao largo de si
mesmos. Não se arriscam na aventura de um passeio interior.7

5
FARIAS, M. Edith Stein. A pessoa na filosofia e nas ciências humanas, p.50
6
STEIN apud FARIAS, M. Edith Stein. A pessoa na filosofia e nas ciências humanas, p.51
7
AGOSTINHO, S. Confissões, p.276
7

3 Considerações finais
Concluo, pois afirmando que a rica reflexão de Edith Stein oferece ao mundo
contemporâneo uma visão do ser humano, plena e detalhada, diferenciada e unitária, que faz
jus à complexidade das dimensões que o compõem: corpo/psique/espírito, dimensões social e
religiosa. A comunidade humana só pode ser compreendida a partir da espiritualidade que faz
com que a pessoa possa transcender as relações causais que dominam no seu ser físico e
psicológico, para abrir-se ao mundo dos valores e das motivações, ao mundo da liberdade e da
comunhão.

Referências
AGOSTINHO, Santo. Confissões. 20ed. São Paulo: Paulus, 2008.
ALFIERI, Francesco. Pessoa humana e singularidade em Edith Stein. São Paulo: Perspectiva, 2014.
FARIAS, Moisés (org). Edith Stein. A pessoa na filosofia e nas ciências humanas. São Paulo: Fonte
Editorial, 2014.
STEIN, Edith. Obras completas, II. Escritos filosóficos. Etapa fenomenológica. Madri: Monte Carmelo,
2005.
___________. Obras completas, III. Escritos filosóficos. Etapa de pensamiento cristiano. Madri: Monte
Carmelo, 2005.

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