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Resumo
Edith Stein procura em seus escritos fazer a integração entre a tradição metafísica clássica e a tradição
fenomenológica moderna no que tange o entendimento da pessoa humana. A pessoa é aquela que pode relacionar-
se consigo mesma, com os demais e com o mundo, mas que carrega em si sua individualidade que a distingue das
demais. Neste trabalho pretendo mostrar como se deu a construção do princípio de individuação em Edith Stein,
tendo como base elementos da filosofia medieval de Tomás de Aquino e de Duns Escoto, e como a partir deste
princípio e de uma aparente influência do texto Castelo Interior ou Moradas de Teresa D’Ávila ela construiu seu
próprio conceito de pessoa. Tal conceito de pessoa apresentado como uma unidade integrada e totalizante de três
estratos: corpo, alma (ou psique) e espírito. Num momento seguinte focarei no aspecto da intersubjetividade
humana defendido por Stein, que conduz o conceito de pessoa humana a outro conceito, o de comunidade. Pode
até parecer paradoxal, mas para ela é possível que coexistam os elementos de singularidade e comunidade quando
se fala em pessoa humana, pois a sua singularidade não se dá como fechamento, mas como uma abertura aos
outros, e é esta abertura que conduz o ser humano à empatia e finalmente à plenitude pessoal e à harmonia do ser.
Por fim, mostrarei que a relação entre pessoa e comunidade descrita por Stein não é contemplada apenas pela
perspectiva antropológica, mas também teológica, pois a pessoa plena transcende a si mesma e encontra nessa
transcendência a sua realização última.
Palavras-chave: Pessoa. Comunidade. Relação
1 Introdução
Edith Stein, filósofa que viveu do final do século XIX a meados do século XX, tinha uma
sede pela Verdade. E nesta busca se encanta com as possibilidades da Fenomenologia, após ler
as “Ivestigações Lógicas” de Husserl. O filósofo, de quem Stein posteriormente se tornou aluna
e assistente, propunha um novo método para a busca do conhecimento. Tal método pretendia
não se prender a uma simples mundivisão, mas captar o sentido da existência e encontrar os
fundamentos de toda e qualquer visão de pensamento, ir à essência de todas as coisas. Ele,
proveniente da Matemática, viu em Franz Brentano, seu professor, indícios de que o objeto da
1
Aluna do Mestrado em Filosofia da Religião, do Programa de Pós-Gradução em Filosofia – Departamento de
Filosofia da Universidade de Brasília – Matrícula: 16/0043794 – E-mail: manupcruz@gmail.com
2
filosofia podia ser avaliado de maneira rigorosa, que conduzisse a um conhecimento que se
daria pela clareza do pensamento.
Apesar de ainda muito ligado à formulação metodológica matemática, Husserl ao estudar
Descartes, faz uma crítica à ciência moderna que parecia promover um divórcio total entre o
homem e o mundo onde vive e assim, desligando-se da realidade nunca encontraria a totalidade.
Surge, como consequência deste período (que envolve não somente Descartes, mas as
investigações de autores contemporâneos a ele como Galileu, Copérnico e Kepler) uma
profunda ruptura entre os aspectos intelectuais e sensoriais, e extensivamente entre os conceitos
mentais e as percepções físicas.
Edith Stein se apoia então no pensamento de Husserl para descrever todos os fenômenos
segundo o modo como aparecem aqui agora, ou como ambos afirmam, apresentar os fenômenos
em carne e osso. E isso se aplica também à pessoa humana. A filósofa não quer partir de um
conceito engessado de pessoa, mas da pessoa real inserida num complexo microcosmos e
possuidora de diversos ângulos e possibilidades.
Pode-se dizer que
2
ALFIERI, F. Pessoa e singularidade em Edith Stein, p. 18
3
3
ALFIERI, F. Pessoa e singularidade em Edith Stein, p. 40
4
Isso faz com que só haja de fato a existência do fenômeno pessoa, quando se dá
primeiramente a relação consigo mesmo e posteriormente com os outros. Nas palavras da
autora: “O eu individual é um sujeito que recolhe uma multiplicidade de eus individuais.”4
A pessoa para Stein forma-se a partir da participação na natureza humana mas também
quando reconhece a sua singularidade, como indivíduo único e irrepetível. Toda e qualquer
diferenciação exterior do ser remete à interior e esse movimento só é possível de dentro para fora.
Assim, Stein afirma que o que nos torna singulares em última instância é o núcleo da pessoa
humana (Kern). Mas para melhor compreender o que consiste esse núcleo, é importante
entender antes como se apresentam os três estratos da pessoa humana na análise steiniana.
4
STEIN, apud ALFIERI, F. Pessoa e singularidade em Edith Stein, p. 40
5
A ação humana envolve assim o homem todo, e são essas vivências que traduzem a sua
singularidade. É esta singularidade que faz com que a pessoa conserve de fato a sua marca
pessoal, mesmo sendo a todo momento influenciada pelas relações com os outros sujeitos. A
esta marca pessoal, Stein chama de Kern, ou núcleo da personalidade. É uma propriedade
permanente, inserida dentro do homem, não de forma material, pois vai além de todos os
estratos. É este selo que identifica cada ser humano como uma pessoa única e genuína.
Ao falar desta “alma da alma” parece que Stein se inspira na mística e santa cristã Teresa
d’Ávila, em sua obra “Castelo interior ou Moradas”. Neste livro, Teresa fala às suas irmãs de
carmelo da alma humana, apresentando-a como um castelo que possui em si sete moradas. Em
seu centro, emana uma luz da qual identifica em última instância com o próprio Deus. Stein faz
algo semelhante, quando fala da “alma da alma”: é necessário que haja um aperfeiçoamento e
crescimento espiritual para encontrar-se mais perfeitamente a si mesmo e em última instância
encontrar o próprio Deus que habita na consciência humana.
Ela parece antecipar o que muitos anos depois será afirmado no Concílio Vaticano II, na
Constituição Pastoral Gaudium et Spes, 16:
No mais profundo da consciência, o homem descobre uma lei que não se deu
a si mesmo, mas à qual deve obedecer e cuja voz ressoa, quando necessário,
aos ouvidos do seu coração, chamando-o sempre a amar e fazer o bem e a
evitar o mal [...]. De fato, o homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio
Deus [...]. A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem, no
qual ele se encontra a sós com Deus, cuja voz ressoa na intimidade do seu ser.
Assim, para Edith Stein, a vida psíquica humana chega a ser plena apenas quando se abre
à vida espiritual, num movimento de conhecimento e aprofundamento de si, para uma abertura
6
e saída de si rumo ao mundo dos objetos e rumo à subjetividade alheia. A comunhão com o
espírito dos outros se dá à medida que se partilha da vida e do conhecimento, dando existência
a um conjunto de vivências comuns.
“Somente no âmbito do mundo espiritual, consciente e intersubjetivo, o ser humano pode
superar o isolamento inevitável de uma vida psíquica limitada à dimensão individual voltada
apenas para o mundo material e vital”.5
Assim, toda pessoa deve estar aberta a viver e ser comunidade.
No lugar em que uma pessoa se posiciona diante de outra como sujeito diante
de um objeto, a investiga e dá um tratamento racional com base no
conhecimento adquirido, para suscitar efeitos intencionados, aí as pessoas
convivem como sociedade. No lugar, ao contrário, em que um sujeito aceita o
outro como sujeito e não se posiciona diante dele, mas vive com ele e se deixa
influenciar pelos seus movimentos vitais, aí eles formam uma comunidade
juntos.6
Desta forma, dado que a abertura aos outros e ao mundo dos valores pertence à atitude
original de indivíduos espirituais, e que a dimensão espiritual não se realiza em indivíduos
totalmente isolados e fechados neles mesmos e no mundo natural, pode-se afirmar que o ser
humano é originalmente tanto um ser social como um ser individual, e que os organismos
sociais possuem o seu fundamento nos indivíduos.
É da compreensão e vivência da dimensão comunitária que se pode se aproximar de Deus
que transcende o homem. Não uma transcendência que o faz alheio ao homem, mas que faz
com que o homem o encontre dentro de si, e que possa leva-lo a compreender os demais. Parece
que aqui que surge fortemente uma influência Agostiniana no pensamento Steiniano, o que a
aproxima à reflexão teológica.
Cito, pois um trecho do texto de Santo Agostinho que sintetiza bem todo o caminho
delineado por Edith Stein para a compreensão da pessoa humana:
Entrei no meu íntimo sob a Tua Guia e consegui, porque Tu Te fizeste meu
auxílio. (...) Os homens saem para fazer passeios, a fim de admirar o alto dos
montes, o ruído incessante dos mares, o belo e ininterrupto curso dos rios, os
majestosos movimentos dos astros. E, no entanto, passam ao largo de si
mesmos. Não se arriscam na aventura de um passeio interior.7
5
FARIAS, M. Edith Stein. A pessoa na filosofia e nas ciências humanas, p.50
6
STEIN apud FARIAS, M. Edith Stein. A pessoa na filosofia e nas ciências humanas, p.51
7
AGOSTINHO, S. Confissões, p.276
7
3 Considerações finais
Concluo, pois afirmando que a rica reflexão de Edith Stein oferece ao mundo
contemporâneo uma visão do ser humano, plena e detalhada, diferenciada e unitária, que faz
jus à complexidade das dimensões que o compõem: corpo/psique/espírito, dimensões social e
religiosa. A comunidade humana só pode ser compreendida a partir da espiritualidade que faz
com que a pessoa possa transcender as relações causais que dominam no seu ser físico e
psicológico, para abrir-se ao mundo dos valores e das motivações, ao mundo da liberdade e da
comunhão.
Referências
AGOSTINHO, Santo. Confissões. 20ed. São Paulo: Paulus, 2008.
ALFIERI, Francesco. Pessoa humana e singularidade em Edith Stein. São Paulo: Perspectiva, 2014.
FARIAS, Moisés (org). Edith Stein. A pessoa na filosofia e nas ciências humanas. São Paulo: Fonte
Editorial, 2014.
STEIN, Edith. Obras completas, II. Escritos filosóficos. Etapa fenomenológica. Madri: Monte Carmelo,
2005.
___________. Obras completas, III. Escritos filosóficos. Etapa de pensamiento cristiano. Madri: Monte
Carmelo, 2005.