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Era uma vez dois sertões:

A representação do Sertão nordestino nos filmes


Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Baile Perfumado,
de Paulo Caldas e Lírio Ferreira
20/02/2008

Matheus Andrade*

INTRODUÇÃO

No decorrer dos acontecimentos históricos de nosso país, o Sertão brasileiro


transformou-se em sinônimo indissociável de seca, devido à condição climática natural
da região, que afeta seu solo e, consequentemente, a vida de milhares de pessoas que
vivem nessas terras.
A ausência da água, causada pela estiagem, atinge as terras do Sertão deixando-
as em grave estado de improdutividade, assim, os camponeses ficam impossibilitados de
exercer suas principais atividades econômicas: agricultura e pecuária. Nesse período, a
vegetação sobrevivente limita-se a plantas adequadas à alta temperatura, à aridez do
solo e sol ardente. Nessas condições, o povo sertanejo é levado a abandonar a sua
região em busca de outros campos que dêem condição de sobrevivência.
O espaço assolado pela seca, considerado nos discursos políticos como principal
causador da miséria dos habitantes das terras do Nordeste, mais precisamente do Sertão
nordestino, tornou-se o grande dramalhão representativo da história da região. Entre os
diversos meios de expressão artística que utilizam esse discurso da seca como tema, o
cinema nacional fez de tal problema um enredo recorrente, sem desperdício de
sentimentalismo, os diretores escreveram roteiros de filmes que representam o Nordeste
brasileiro a partir dessa imagem cristalizada de região predominantemente árida e
pobre.
Contudo, a seca não é um fenômeno constante na região, o Sertão brasileiro não é
predominantemente árido, não atravessa eternamente essa condição climática
desprovida de água, não é definitivamente desértico e a estiagem ocorrida nas terras da
região Nordeste é periódica, embora freqüente.
Com a chegada da chuva, a região muda visualmente. As terras ficam aptas para a
prática agrícola, banhadas pela água em abundância armazenada nos açudes e rios que
servem às plantações e animais. A paisagem luminosa reflete o verde da vegetação que
transforma o ambiente. O povo sertanejo cultiva seus roçados e alimenta suas criações
com as condições disponibilizadas pela natureza do lugar. O índice de imigração e
mortalidade dos nordestinos diminui graças às novas condições do solo do Sertão.
Entretanto, a fertilidade das terras sertanejas, derivada da presença de água na
região, e a alegria dos homens que nelas sobrevivem também se transformam em
referência para os cineastas que utilizam a temática nordestina como narrativa de seus
filmes, o cenário elaborado sobre um Sertão sem seca parece possuir tanta carga
dramática para o cinema quanto a abordagem da miséria.
Embora haja uma predominância de filmes nacionais que abordam o Sertão e o
Nordeste brasileiro sob a perspectiva da seca, pode-se identificar, também, filmes que
mudam essa perspectiva em suas histórias, que diferem desse olhar sobre a
problemática rural, passando a representar o Sertão nordestino, em seus períodos de
fertilidade.
O presente trabalho, intitulado de Era Uma Vez Dois Sertões, apresenta as
distintas formas pelas quais o Sertão nordestino é representado nos filmes Vidas Secas,
de Nelson Pereira dos Santos, e Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira.
O Sertão mostrado em Vidas Secas é uma região arcaica e miserável,
impossibilitada de se enquadrar ao sistema econômico urbano e a cultura perde todo o
seu valor; lugar onde não há esperança de um futuro para o povo. Enquanto em Baile
Perfumado o Sertão é apresentado como uma região rica em tradições e costumes, que
sofre a influência do processo de modernização dos centros urbanos, mutável e
contraditória.
A análise realizada sobre os filmes Vidas Secas e Baile Perfumado no presente
trabalho, parte dos pressupostos de que “a arte do cinema é a arte de uma atitude, o
estilo de um gesto. Não é tanto o quê mas o como” (BERNARDET, 1994. p.58), e que
“um filme é um produto cultural inscrito em um determinado contexto sócio-histórico”
(VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 1994. p.26). Desse modo, buscamos compreender como se
dá a representação do Sertão brasileiro a partir da forma pela qual a temática é
abordada nos referidos filmes, valendo-nos de uma análise sobre os elementos estéticos
e buscando situar os contextos históricos das obras.
Para a explanação do conteúdo apresentado no presente trabalho, dividimos o
texto entre três capítulos e conclusões a fim de obter organização plena durante as
atividades de pesquisa e a produção textual, e fornecer para o leitor maior clareza do
conteúdo tratado.
No Capítulo 1 discutimos o cinema como forma de representação e suas
características como forma narrativa ficcional e documental. E, também, apresenta-se o
percurso histórico do conceito de Nordeste e Sertão brasileiro, bem como a sua
representação e absorção na cinematografia nacional.
Nos Capítulos 2 e 3 apresentamos a análise dos filmes escolhidos para o trabalho.
No Capítulo 2 discute-se a representação do Sertão e do Nordeste brasileiro em Vidas
Secas, centrado na abordagem predominante sobre a região: a seca e seus problemas;
no Capítulo 3 analisa-se a representação do Sertão e do Nordeste em Baile Perfumado,
como um olhar inovador em relação à forma predominante de abordagem
cinematográfica sobre a região: o Sertão verde dos homens fortes, que incorporam a
modernidade e não representam sua negação. A estrutura dos Capítulos 2 e 3 organiza-
se na forma de tópicos, seguindo o esquema: o período histórico de produção do filme, o
roteiro e a história narrada, a estética do filme, a representação das terras e do homem
do Sertão no filme e a interpretação de algumas cenas que contribuem para a análise
feita a propósito da representação proposta por cada filme.
Por fim, nas Conclusões apontamos os paralelos encontrados entre os filmes,
esclarecidos nos capítulos anteriores, buscando as diferenças e as repetições e
permanências em suas abordagens sobre a temática, apresentadas nas distintas
representações do Sertão e do Nordeste brasileiro.
Era Uma Vez Dois Sertões é o resultado da disciplina Projeto Experimental do
curso de Comunicação Social, habilitação em Radialismo, da Universidade Federal da
Paraíba, Campus I, realizado no período letivo de 2003.2, atividade obrigatória para
conclusão de curso.

CINEMA E REPRESENTAÇÃO

1.1 Imagem Fotográfica: entre o Real e a Ilusão

Para dar início à reflexão sobre representação cinematográfica, inicialmente


utilizaremos a imagem fotográfica. Não dissociando-a do cinema, e sim pensando nela
como embrião da sétima arte. A partir da foto, buscaremos compreender o processo de
representação através da imagem em movimento.
Ao longo dos anos de nossas vidas nos lembramos, com maior precisão, dos
momentos mais significativos que vivemos, das situações mais importantes e mais
marcantes pelas quais passamos. Mas, provavelmente, algum dia presenciamos uma
situação, um tanto comum, como a narrada a seguir: certa ocasião, nas últimas férias de
verão, um conhecido fez uma viagem ao Rio de Janeiro, a “cidade maravilhosa”. É
cabível lembrar que a máquina fotográfica é um acessório típico do turista em todo o
mundo. Então, ao retornar de sua viagem, ele trouxe várias fotos para mostrar os
lugares onde esteve.
Numa noite qualquer, resolvi visitá-lo para saber como foi seu passeio turístico. E
ele, imediatamente, trouxe seus álbuns de fotografia da viagem, repletos de imagens,
para me mostrar. Em meio a tantas fotos, de repente, chega aquela clássica em que o
sujeito está em frente à estátua do Cristo Redentor.
Por mais que possamos ironizar o registro fotográfico dos turistas, até mesmo a
clássica foto, essas imagens nos dizem implicitamente: “Estive lá. Olhe aqui!”.
Outra experiência marcante que me vem à memória, quando falo sobre fotografia:
há alguns anos, um amigo estava de férias e resolveu ir passear em Maracaípe,
Pernambuco, uma bela praia, onde, devido à natureza do ambiente, a prática do surfe é
intensa, local que comportou diversos campeonatos brasileiros desse esporte radical.
Ao retornar, dias depois, fui visitá-lo. Logicamente, ele me trouxe as fotos
da viagem e eu comecei a observá-las tranqüilamente. De repente, a surpresa: três
fotografias me impressionaram. Na seqüência estava a foto de um surfista em atividade,
executando uma manobra; na segunda fotografia uma outra manobra que parecia
dificílima, diferente da primeira. O detalhe é que nessas duas fotos não era possível
reconhecer o personagem, em virtude da distância em que foram tiradas. Então, a
terceira foto era a conclusão da seqüência. A imagem era a do meu amigo saindo da
praia de sunga de banho, com os cabelos molhados, carregando uma prancha. Não pude
me conter. Por conhecê-lo, eu sabia que aquilo era mentira, mas as fotos arrumadas
nessa seqüência, conduziam a uma outra narrativa, que contrariava a realidade: ele
nunca praticou surfe em toda sua vida dele. E, por fim, ele perguntou se eu havia
gostado de sua seqüência. Resultado: gostei.
Diante dos exemplos citados anteriormente, percebemos que as fotos aparecem na
mesma situação (tratamos de dois turistas), porém com cargas semânticas
diferenciadas; uma revela imagem em que eu acredito: a presença do turista em frente
à estátua do Cristo, mas na outra imagem, aquela do amigo surfando, eu não pude crer,
mas apenas por conhecê-lo bem.
A imagem fotográfica possui duas características inatas e que se fazem importante
para a discussão propostas adiante. Utilizando os exemplos já citados, na primeira
história o turista registra uma dada realidade e nos traz a prova de que o fato aconteceu
de verdade, ele realmente esteve em tal lugar. Numa situação como essa, nossa reação
é de concordar com a imagem fotográfica apresentada. De fato, a outra história também
está sujeita à mesma reação. Imagine se eu não o conhecesse? Eu jamais discordaria de
que ele pegava ondas, e ele poderia jamais contar a verdade.
Independente da situação, supomos que tudo que um dia foi registrado por uma
câmera fotográfica deve haver existido em determinado tempo e espaço. Uma fotografia,
por mais simples, mal tratada, preto e branco ou amadora que seja, da estátua do Cristo
Redentor, por exemplo, pressupõe que ela existe. Segundo Paulo Roberto Arruda de
Menezes (1996, p.83-84), esse pressuposto contido na imagem fotográfica é responsável
por toda verossimilhança do processo. Ele diz: “É evidente que esse pressuposto não
leva em conta o fato de que as imagens, como qualquer outra linguagem, são passíveis
de serem adulteradas ou montadas, podendo, portanto, enganar ou mentir.”. Em relação
à clássica fotografia do turista em frente à estátua do Cristo Redentor, nós nem se quer
pensamos em observá-la melhor para saber se foi realmente verdade, ou seja, se ele
estava realmente no Rio de Janeiro.
Ainda segundo Arruda de Menezes, “por mais que possamos ter em conta essa
perspectiva de simulação e engano, sempre temos a tendência quase natural de
acreditar nas imagens que contemplamos antes que algo nos induza a desconfiar de sua
veracidade” (p.84). Na fotografia do meu amigo “sufista” eu pude pressupor, por
conhecê-lo, que não foi ele quem fez aquelas manobras no mar. Desvendei a montagem.
Mas, para uma outra pessoa, aquela informação poderia ser absorvida sem levantar
dúvidas.
Por suas possibilidades, a imagem fotográfica tem a capacidade de nos causar uma
impressão de realidade através do registro qualquer de objetos e pessoas, mesmo
quando sofreu efeitos de montagem ou manipulação.
A imagem cinematográfica proporciona efeito equivalente, de forma até mais
poderosa, pois a película cinematográfica além de registrar 24 exposições fotográficas
por segundo, rodando-as sucessivamente quando exibidas, dá a impressão do
movimento humano assim como nós o percebemos. Para Jean-Claude Bernardet (1980,
p.12) diante de suas características, o cinema simula a realidade, ele nos dá a
“impressão de que é a própria vida que vemos na tela, brigas verdadeira, amores
verdadeiros”. Por esse motivo, em conversas informais sobre filmes entre diversos níveis
de espectadores, nós podemos, com freqüência, ouvir frases como: “Aquele filme é pura
realidade!” ou, quando o filme infringe o que para nós é verdadeiro, “Aquele filme é
muito fantasioso!”. Opiniões essas, resultado do modo pelo qual o cinema conta suas
histórias.
A arte cinematográfica, assim como a literatura, narra histórias. Antonio Costa
(1989, p.23), em seu livro Compreender o Cinema, afirma que “o cinema é,
simultaneamente, narração e representação”. Só que, enquanto a literatura narra
através de palavras, dando-nos uma história a ser imaginada, o cinema narra com
imagens nos mostrando a história imaginada por um cineasta. E, tal característica, ao
contrário da literatura, faz do cinema uma máquina de invenção da realidade. Costa diz
que, além de narração, “o cinema pode ser visto como um dispositivo de representação,
com seus mecanismos e sua organização dos espaços e dos papéis” (p.26). As histórias
contadas nas narrativas cinematográficas clássicas são bastante parecidas com a
realidade. Não apenas pela imagem em movimento, como também através da
adequação de seus cenários, figurinos, atuação, som, etc., o cinema consegue construir
ambientes semelhantes ao que costumamos presenciar em nossas vidas, ou evocam
sociedades do passado, tornando o filme um crédulo instrumento de representação,
simulador da realidade social, presente ou passada.
Para buscarmos um melhor entendimento sobre cinema e representação, faremos
referência aos primeiros registros cinematográficos, considerando alguns momentos de
sua história e reflexões a propósito do desenvolvimento do filme, visto como ferramenta
da intenção de representar a realidade, baseada na verossimilhança, no imaginário social
ou, ainda, no desejo humano de ultrapassar limites, como é o caso da ficção científica.

1.2 Imagem Cinematográfica: primeiras Representações

Neste texto, iremos nos ater à descoberta da arte cinematográfica e às primeiras


experiências do olhar humano sobre o cinema, a fim de percebê-lo como ferramenta de
representação e seu potencial narrativo.
No início, os inventores do cinema não tinham idéia do futuro da nova invenção,
tanto que as primeiras palavras diante da nova máquina foram, segundo Bernardet
(p.11), que esse aparelho “não tinha o menor futuro como espetáculo, era um
instrumento científico para reproduzir o movimento e só poderia servir para pesquisas”.
Essa postura vai se revelar como um grande equívoco. O cinema, com passar do tempo,
se transformou numa das maiores ferramentas narrativas da história da humanidade.
Mesmo considerando-o como mais uma entre suas invenções “banais”, os irmãos
Auguste e Louis Lumière, ao executarem as primeiras experiências com o
cinematógrapho, entre elas filmar a chegada de uma locomotiva na estação e exibir no
dia 28 de Dezembro de 1895, no Grand Café em Paris, nunca imaginariam até onde
chegaria a arte cinematográfica, se é que se pensaria que aquela “geringonça” teria
função na produção artística.
A reação dos primeiros espectadores foi totalmente inesperada. Diante de um
registro mal acabado do trem, um filme em preto e branco e sem som, ninguém
pensaria que aquelas imagens influíssem diretamente no comportamento das pessoas
que assistiam ao filme dos Lumière. Pois a reação do público diante da tela foi de puro
medo e insegurança devido à aproximação daquela locomotiva que, por alguns instantes,
parecia totalmente desgovernada, e, como observa Merten (1995, p.17): “Hoje parece
mentira, mas há 100 anos houve gente que quis se atirar debaixo da cadeira,
escondendo-se para fugir do trem que parecia vir na direção deles”.
Os filmes dos irmãos Lumière foram realizados como registros experimentais de

situações alheias. Em La Sortie des Usines (A saída das Fábricas), eles puseram a

câmera em frente à fábrica e gravaram, em película única, a saída dos operários ao final
do expediente de trabalho. Antonio Costa fala que, embora pareçam insignificantes esses

registros primários, eles exprimem a tendência natural do cinema, por sua vez derivada

da fotografia instantânea, ou seja, a representação de uma realidade pressuposta.

Não muito distante, em 1902, o cinematográpho inicia uma nova fase em sua
existência. O mágico Georges Méliès adquire um aparelho de filmagem e descobre, por
acaso, a magia que se encontrava por trás das grandes telas. Méliès estava filmando um
ônibus em Paris quando, de repente, a câmera enguiçou. Nesse instante, o ônibus saiu e
um carro funerário parou no mesmo lugar. A câmera voltou a funcionar e quando o
trabalho foi concluído, ele percebeu que o filme ficou com a ilusão da mágica na troca
dos veículos. Por esse fato, o mágico logo descobre que no cinema o fantástico,
construído pela possibilidade da montagem que, assim descoberta, induziria tanta
credibilidade quanto a realidade capturada diretamente pela câmera, sem intervenção
alguma. Segundo Costa (p.49),

o cinema dos primeiros anos debateu-se entre a


consciência do caráter de autencidade de
reprodução do real que o novo meio assegurava e a
extraordinária facilidade com que se podiam
produzir simulações perfeitamente aceitáveis,
sobretudo por parte do público ingênua e crédulo
que enchia as primeira salas de cinema. Entre os
pioneiros da nova arte houve logo quem
considerasse justo defender seu caráter de
autenticidade contra qualquer tentativa de
contrafação.

Abordando os primeiros momentos de existência do cinema, Luiz Carlos Merten


(p.18) diz que “a glória dos irmãos Lumière está na paternidade do invento do
cinematógrafo, e não do cinema como linguagem”. Mesmo assim, com seus primeiros
experimentos de registro cinematográfico, os pais do cinema iniciaram uma linguagem
de filme documental. O filme La Sortie des Usines é a reprodução, em imagens, da ação
dos operários ao término de seu expediente de trabalho. Eles gravaram em película
cenas do meio em que eles viveram naquele período, tudo isso dotado de valores
referentes àquela sociedade. Porém, com sua repentina experiência, Meliès iniciou o que,
após alguns anos, se convencionou chamar de montagem cinematográfica, o que seria a
colagem dos planos de cena para obter-se a história narrada como se deseja,
subvertendo o tempo real.
Em referência ao realismo dos irmãos Lumière e à fantasia de Meliès, o crítico
cinematográfico João Batista de Brito (1995, p.210) afirma que esses aspectos
marcaram a arte do cinema. Segundo ele, a trajetória de desenvolvimento do cinema
“confirma que, o tempo todo, essa dicotomia entre a cópia mimética do real e a criação
gratuita esteve no cerne de sua natureza”.
Ainda em referência aos filmes de curta duração da primeira década do cinema,
Costa (p.53) diz que “(...) não é possível separar nitidamente no cinema dos primeiros
anos uma tendência ‘realista’, objetiva e uma ‘irreal’, ‘fantástica’(...)”, ao ato de
assistirmos àquelas imagens. Nos primórdios da imagem em movimento, os irmãos
Lumière e o mágico Meliès conseguiram reproduzir imagens parecidas com as da vida
real (mesmo usando formas diferenciadas), imagens que puseram em questão o que se
via no cinema: real ou irreal.

1.3 Construção e Ilusão da Realidade

“A vida não é como você viu no cinema. A vida é mais difícil”. Essas são as
palavras usadas pelo projecionista Alfredo no filme italiano Cinema Paradiso (Giuseppe
Tornatore, 1989). Sempre preocupado com o futuro de Totó, um menino fascinado pela
magia do cinema, ele o aconselha com essa frase, explicando o que foram todas aquelas
“imagens amadas” durante sua vida, esclarecendo, assim, que elas eram parecidas com
a vida, mas que, no fundo, a vida não é realmente aquela ficção vivida por vários
personagens na tela do cinema, nem mocinho, nem bandido, donzelas ou beijos
censurados, ela é verdadeiramente muito mais difícil.
Segundo Bernardet (p.13), uma das principais características do cinema é a ilusão,
o fato de trazer à tona uma realidade semelhante àquela que você conhece, provocando
afinidade pelo que lhe foi apresentado no filme, seja o real ou o sonho humano, isso
causa, imediatamente, a impressão da realidade, pois “no cinema, fantasia ou não, a
realidade se impõe com toda a força”.
Jacques Aumont (1995) explica que a ilusão construída pelo cinema é derivada das
técnicas de profundidade: a profundidade de campo e a perspectiva. Técnicas utilizadas
na composição das imagens para simular uma visão tridimensional. É a partir desses
elementos que o cinema consegue mostrar espaços semelhantes ao real; ainda segundo
Aumont, outro elemento fundamental para a ilusão cinematográfica é o som. Montado
juntamente com as imagens, o som torna a narrativa cinematográfica mais verossímil:
“o som se tornou um elemento insubstituível da representação fílmica” (p.45). Esses
elementos fazem com que, antes de percebermos os aspectos irreais do filme, a história
pareça ser realidade. Para ele, como qualquer meio de expressão artística, o cinema
possui suas limitações (recorte espacial, ausência de terceira dimensão, caráter artificial
ou ausência de cor, etc.), mesmo assim, no momento em que nós assistimos ao filme

(...) reagimos diante dessa imagem plana como se

víssemos de fato uma porção de espaço de três

dimensões análogo ao espaço real no qual vivemos.

Apesar de suas limitações essa analogia é

vivenciada com muita força e provoca uma

‘impressão de realidade’ específica do cinema, que

se manifesta principalmente na ilusão de movimento

e na ilusão de profundidade (p.20-21).

A elaboração de um filme, desde o roteiro, depende de uma série de elementos que


podem modificar a história a ser narrada, direta ou indiretamente. De fato, devido às
características estéticas do cinema, às influências políticas, culturais e sociais do diretor,
o investimento econômico do produtor e, até mesmo, alguns imprevistos a que estão
sujeitos na hora da gravação, a história a ser narrada pelo cinema, por mais que pareça
realidade é sempre uma representação dos fatos, daquilo que o diretor quer nos
mostrar:

O filme não pode simplesmente contentar-se em


apresentar, em mostrar os acontecimentos, ele é
também uma seleção tendenciosa desses
acontecimentos, a sua confrontação, libertos de
tarefas estreitamente ligadas ao tema, realizando,
em conformidade com o objetivo ideológico do
conjunto, um trabalho adequado no público
(LEITÃO, 1981. p.19).
O cineasta soviético Sergei Eisenstein, um dos primeiros estudiosos a refletir sobre
a arte cinematográfica, em seus conceitos sobre cinema diz que a montagem significa
tudo para um filme. Segundo ele, duas determinadas imagens montadas em colisão têm
o poder de fabricar uma terceira imagem situada na mente do espectador, ou seja,
lança-se um propósito metafórico que se encontra além dos elementos explícitos no
filme.
Em suas reflexões, Eisenstein (1990a) afirma que a câmera de cinema fixa, em
película, eventos reais e elementos da nossa realidade, tendo em vista que a técnica
fotográfica favorece uma imagem com alto índice de verossimilhança daquilo que se quer
representar. Após a captura das imagens, o filme, agora, submete-se ao que
convencionou chamar de montagem. Para ele, a montagem é o que determina como a
história do filme será narrada, ou seja, “a ordem final é inevitavelmente determinada,
consciente ou inconscientemente, pelas premissas sociais do realizador da composição
cinematográfica” (p.15).
Ainda na perspectiva do cineasta soviético, “a necessidade legítima de combinar
esse fragmentos da realidade se transformou em concepção de montagem que
pretendiam suplantar todos os outros elementos de expressão do cinema” (p.17). A
manipulação das imagens, vistas no conceito de montagem, implica diretamente na
realidade mostrada no cinema. Ainda para Eisenstein, a capacidade do cineasta de
conectar os fragmentos dessa realidade, exposta nos registros da película
cinematográfica possibilita ao diretor fabricar um novo sentido ou elaborar uma outra
interpretação ao real.
A forte analogia entre a imagem fílmica e o mundo material fazem da sétima arte
um instrumento de força e credibilidade quase que inabalável enquanto construtor de
realidades.
É possível dizer que a função do cinema é a representação, independente do
conteúdo exposto no filme. O cinema tem a capacidade de recortar o tempo e o espaço
de uma determinada situação, juntar as imagens captadas passando, assim, por todo
um processo de produção para representar o conteúdo proposto em forma de narrativa.
Mesmo assim, abordando posteriormente alguns conceitos sobre a imagem
cinematográfica e a realidade, é importante afirmar que o cinema pode ser visto,
também, como uma realidade.
A representação do real, inata da arte cinematográfica, impulsionou movimentos
cinematográficos em alguns países, dando forma à ideologia de algumas vanguardas do
cinema mundial. Na Alemanha, por exemplo, o movimento expressionista (1907/1926)
se opôs ao realismo explícito, pois tinha a intenção de mostrar, através dos filmes, a
realidade interior da vida. Para isso, os cineastas utilizavam elementos deformados em
suas imagens, exacerbavam as formas para criar os universos, usavam sombras e
silhuetas nas composição das cenas, era um cinema de “visões” e “alucinações”
(VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 1994. p. 33).
Por sua vez, o período mais influenciado pelo filme como representação do real,
ocorre a partir da década de 50. Surgem escolas cinematográficas que buscam, como
principal propósito, colocar nas telas a realidade de suas nações – Neo-realismo italiano,
Cinema Novo brasileiro. No Brasil, Glauber Rocha (1981, p.30), falando sobre o Cinema
Novo, diz que a importância e repercussão mundial do movimento deve-se ao “seu alto
nível de compromisso com a verdade”. Segundo Ismail Xavier (2001. p.13), o cinema
dos anos 60, período das produções cinemanovistas, se impôs “como uma espécie de
vitrine de exacerbação dos sintomas mais drásticos da vida cultural(...)”. O ideal era
registrar as situações e os conflitos sociais e políticos, ainda que fosse com uma câmera
na mão e, utilizando o cinema como instrumento de denúncia, buscando influir na
transformação política e econômica a partir da exposição da realidade através dos filmes,
pois, mostrando nas telas a problemática social enfrentada diariamente pelo povo
brasileiro, colocariam uma idéia na cabeça da população a fim de conscientizá-la para
construir um mundo melhor.
Segundo o historiador francês Marc Ferro (1992), que percebe o filme como uma
fonte de pesquisa legítima para o estudo da história, as imagens cinematográficas
parecem terrivelmente verdadeiras. Ferro mostra-se atento ao cinema, ciente de suas
características de representação, afirmando que “(...) todo mundo sabe que essas
imagens, essa pseudo-representação da realidade, são escolhidas, transformáveis, já
que são reunidas por uma montagem não controlável, por um truque, uma trucagem”
(p.83). Porém, acima de tudo, para ele um filme é uma testemunha de algo; “(...)
imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é
história” (p.86).
Para a atividade de análise histórica sobre o cinema, segundo o método proposto
por Ferro, é necessário pesquisar não somente o filme, enquanto objeto de análise, mas
também todo o universo que o rodeia, referindo-se assim a todos os componentes
contidos ou não no filme. O pesquisador deve

analisar no filme tanto a narrativa quando o cenário,


a escritura, as relações do filme com aquilo que não
é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o
regime político. Só assim se pode chegar à
compreensão não apenas da obra, mas também da
realidade que ela representa (p.87).

Frente aos conceitos de representação imagética, o cinema funciona basicamente


como um espelho, onde os fatos simulados por ele parecem reflexos perfeitos do
conteúdo material existente na vida real. Com isso, o mundo das narrações fílmicas
consegue fundir-se facilmente com o real na imaginação humana e o espectador, por sua
vez, cria uma leve tendência a confundir os universos distintos – realidade e ficção.
Em A Rosa Púrpura do Cairo (Woody Allen, 1985), a história narrada pelo filme é
um grande exemplo. Para fugir dos problemas que enfrenta no dia-a-dia, Cecília vai ao
cinema e assiste a filmes. Nesse momento, ela assiste ao filme A Rosa Púrpura do Cairo
diversas vezes, todas a contemplar o personagem romântico Tom Barxter. De repente,
em uma das sessões, Tom simplesmente sai da tela do cinema e vai ao seu encontro,
afirmando estar perdidamente apaixonado por ela. Imerso na outra realidade (a
realidade fílmica), Tom não entende como tudo é tão diferente no mundo de Cecília,
como as situações correntes naquele mundo são tão estranhas em comparação às
vividas por ele no filme. Em seguida, Tom leva Cecília para dentro da grande tela, ela
experimenta o tão sonhado mundo do cinema percebendo, nitidamente, as diferenças
daquele universo em relação ao ambiente em que ela vive. Cecília, então, ficou bastante
confusa com tudo aquilo que conhecera, a mistura e a confusão entre o sonho e a
realidade, entre o mundo real e a realidade cinematográfica ficcional.
O roteiro de Allen desvenda o abismo entre os dois universos ao ponto de Cecília e
Tom Barxter perceberem que não poderiam viver felizes para sempre – como são as
histórias do cinema. Em consolo à despedida de Tom Barxter, após compreender melhor
toda aquela situação, Cecília diz: “No seu mundo tudo acaba dando certo. Sou um ser
humano. Tenho que escolher o mundo real, apesar da tentação”.
Assim, o cinema tem a capacidade de (re)construir histórias convincentes em sua
estrutura narrativa. A partir de suas características de representação, sua forma de
narrar histórias incorpora marca autoral e bastante veracidade pela semelhança criada
entre o espaço fílmico e o real, podendo-se considerar um instrumento narrativo de
grande poder persuasivo. Por essa razão, as imagens cinematográficas infiltram-se na
consciência do espectador sem maiores entraves, transportando-o para outros universos,
levando-o a viagens imaginárias ilimitadas, por vezes a galáxias distintas, por vezes a
paisagens inóspitas como aquelas que retratam o Nordeste de um país possível chamado
Brasil.

1.4 O Nordeste Brasileiro Representado

Para iniciar a discussão sobre a forma pela qual o Nordeste e o Sertão brasileiro

são representados pela arte cinematográfica no Brasil, a princípio se faz necessário


entender como essa região se tornou sinônimo de um lugar distante de toda e qualquer

civilização, antônimo de toda modernidade associada ao Sul do país, tal como ela é vista

e entendida por grande parte da sociedade brasileira. Para tanto, citaremos duas

abordagens distintas sobre como se deu a construção desse espaço. A partir do enfoque

dado, veremos como esse espaço regional aparece narrado na cinematografia brasileira.

Até meados do século XIX, o Brasil se dividia entre o “Norte” e o “Sul” do país. O

Nordeste ainda não era região reconhecida, sua denominação se dava como províncias

ou estados do Norte. Nesse período, acentuou-se o desenvolvimento social e econômico

na região Sul, que adotava modelos estrangeiros de civilização, privilegiando a

urbanidade ao final do século XIX. A região Norte transformou-se em pólo menos

evoluído do país. Enquanto o Sul surge como o espaço da indústria e do progresso

nacional, o Norte nasce destinado a ser seu avesso, a partir do final do século XIX.

Situação que se consolidaria ao longo da primeira metade do século XX.

Em 1877, um acontecimento notável, climático, contribui para fixar a imagem de

pobreza e subdesenvolvimento associados ao Nordeste brasileiro. A região enfrentou três

anos marcantes de seca, até 1879, período esse conhecido como “grande seca”, e

milhares de pessoas morreram de fome. O fenômeno fez com que a população sertaneja

emigrasse, na esperança de sobreviver em outros lugares, condenando, definitivamente,

a região pela sua natureza climática. A seca foi um fato determinante em relação ao

Nordeste e seu reconhecimento nacional, fixando-o, definitivamente, como região árida e

improdutiva do país. A seca de 1877 fixou no imaginário nacional o lugar do Nordeste.

Por outro lado, diante da decadência das atividades econômicas das províncias do Norte

– a produção de algodão e açúcar –, a “grande seca” tornou-se o maior instrumento

político utilizado para a arrecadação de fundos públicos para o Nordeste. Toda a

problemática da região passou a ser atribuída à seca. As elites regionais, dessa forma,

contribuíram para reafirmar uma característica para o espaço nordestino: decadente,

atrasado, necessitado de ajuda.

Segundo a historiadora Rosa Maria Godoy Silveira (1984), o Nordeste brasileiro é

fruto da forma como a atividade política e econômica regional se desenvolveu após a


“grande seca”, realizada frente à regionalização desencadeada pelo Estado Nacional. O

Nordeste, como elo mais fraco do processo produtivo sob o capitalismo tardio da nação,

foi engendrado pela necessidade desse modo de produção de gerar a desigualdade,

numa combinação perversa de desenvolvimento e escassez, riqueza e pobreza sob

mesma teia capitalista. A ela interessou analisar esse processo a partir do discurso dos

representantes políticos e dos proprietários de terra ante o período de crise, verificando,

também, a documentação produzida na Paraíba e em Pernambuco, estados

emblemáticos da representação do espaço regional na época. Para ela, o desequilíbrio

regional vivido após a desvalorização geográfica e social dos estados do Norte vincula o

Nordeste, diretamente, à “caracterização da identidade regional em estado de crise e sua

oposição a uma outra identidade espacial, o Sul do país” (p.16).

Ainda segundo Silveira, devido à conjuntura econômica no Brasil, a região

Nordeste ficou marcada como espaço geográfico em estado de crise e

subdesenvolvimento. O investimento e a entrada do capital europeu no Brasil causou

mudanças na área de comércio. Com isso, enquanto a região Sul estabelece uma alta

circulação monetária e um grande desenvolvimento comercial, o Nordeste perde

movimento de capital sofre uma desvalorização de seus produtos no mercado,

especialmente, no caso da economia nordestina, do açúcar. Sendo assim, no final do

século XIX o discurso regionalista começa a ficar cristalizado, estabelecendo, do ponto de

vista ideológico, o discurso das elites dirigentes, que, na impossibilidade de outra

inserção, buscam, na representação da crise, na presença constante da escassez, na

imagem tórrida da terra, manter meios de recursos públicos que, em última instância,

são por elas apropriados. Para ela, “a ideologia regionalista, tal como surge é, portanto,

a representação da crise na organização do espaço do grupo que a elabora” (p.17).

Não há nenhuma outra região brasileira sobre a qual se tenha escrito mais do que

o Nordeste. Diante da grande produção acadêmica, Silveira observa essa historiografia

do espaço nordestino da seguinte forma:


Constituem a produção, nesse termos, as histórias

provinciais e estaduais (...). O espaço é pouco

visualizado em suas relações externas, por vezes

referenciado apenas a um espaço contíguo (ex.:

província ou estado vizinho); e, internamente, é

caracterizado como unívoco, pasteurizadas as

diferenciações e contradições. Outras vezes, o

espaço é visualizado passivamente em relação ao

espaço nacional (...) (p.21).

Diante dessa construção do espaço regional, o Nordeste é freqüentemente

associado no imaginário popular a um espaço arcaico e subdesenvolvido, distante de

toda e qualquer civilização, visão diferente daquela atribuída ao Sudeste que, por sua

vez, identifica-se como espaço moderno, progressista, propulsor do desenvolvimento do

país. Desta forma, imagina-se o nosso país como uma espécie de “dois Brasis” (p.29).

Uma outra abordagem sobre a construção do conceito de Nordeste é do historiador

Durval Muniz de Albuquerque Jr., autor do livro A Invenção do Nordeste - e Outras Artes

(1999). Para ele o Nordeste brasileiro é uma invenção cultural; foi um espaço construído

a partir dos discursos de várias ordens produzidos no Brasil durante o século XX sobre a

região: “o Nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a partir de uma

sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente, em relação a uma dada

área do país” (p.49).

Para Albuquerque Jr., durante o processo de desenvolvimento do Brasil, o

Nordeste foi identificado através dos seus problemas, em especial a seca e, em segundo

plano, o cangaço e o messianismo. Esse ponto de vista tornou-se predominante no

discurso nacional. Assim, o Nordeste brasileiro foi construído como uma região submissa

a partir da forma pela qual foi representado nos diversos discursos, entre eles o discurso

artístico. Para ele,


As obras de arte têm ressonância em todo o social.
Elas são máquinas de produção de sentido e de
significados. Elas funcionam proliferando o real,
ultrapassando sua naturalização. São produtoras de
uma dada sensibilidade e instauradoras de uma
dada forma de ver e dizer a realidade. São
máquinas históricas do saber (p.30).

Ainda para Albuquerque Jr. (p.59), a partir desse discurso sobre o Nordeste e o
Sertão brasileiro, centrado na miséria e no sofrimento, criou-se uma imagem cristalizada
sobre o espaço nordestino. As obras de arte contribuem intensamente nessa divisão
hierárquica entre as regiões brasileiras. Esse discurso sobre as condições climática do
espaço nordestino “vai ser um dos responsáveis pela progressiva unificação dos
interesses regionais e um detonador de práticas políticas e econômicas (...)” dos espaços
áridos. Essa “descrição” do Nordeste “tenta compor a imagem de uma região
abandonada, marginalizada pelos poderes públicos”.
Segundo Albuquerque Jr., o discurso produzido pelas obras de artes brasileiras,
entre elas o cinema, contribuiu para a divisão regional nacional estabelecendo uma
hegemonia do Sul do país, a partir dos interesses da burguesia paulista que tinha como
finalidade tornar-se o centro da identidade nacional.
Frente ao exposto, essas distintas abordagens relacionadas à forma como o espaço
nordestino foi construído nacionalmente, resultam numa forma singular de observar a
região, pois discursiva ou historicamente o Nordeste brasileiro é facilmente associado à
pobreza e à miséria, marcado desse modo por uma imagem parcial e definida na
consciência de grande parte do povo brasileiro.

1.5 A Região em Cena

Entre as várias companhias cinematográfica brasileiras responsáveis pela produção


nacional existiram duas de fundamental importância para a história do cinema no Brasil:
a Atlântida e a Vera Cruz. Ambas tiveram a preocupação de tentar fazer do cinema
nacional uma indústria comercial, no entanto, não alcançaram muito sucesso nesse
objetivo. Os filmes produzidos por essas companhias sofreram grande influência
estrangeira, principalmente da cinematografia norte-americana, que dominava o
mercado de filmes em diversos países do mundo.
A Atlântida foi fundada no ano de 1941, no Rio de Janeiro e sua produção é
essencialmente constituídas dos filmes musicais denominados de “chanchadas”, os
famosos musicais carnavalescos, uma espécie de paródia do cinema americano, pois
Hollywood foi uma das maiores referências da época para os produtores brasileiros.
Segundo Antonio Moreno (1994, p.99), “a Atlântida foi a maior responsável pela
produção de filmes brasileiros” durante a década de 40. Além disso, ainda segundo
Moreno (p.100), “os filmes da Atlântida e as chanchadas de outras companhias
obtiveram enorme sucesso de bilheteria” tornando Oscarito e Grande Otelo verdadeiros
astros de cinema.
Enquanto a companhia Vera Cruz, criada em 1949 pela burguesia paulista, no
momento insatisfeita com o modelo de filme considerado inferior, esteticamente pobre,
produzido pelos cariocas, estabelece como objetivo o modelo estrangeiro de produção
cinematográfica, a fim de realizar filmes com um padrão de qualidade de nível
internacional. Para tanto, a Vera Cruz importou equipamentos e profissionais da Europa,
entre eles: diretores, produtores, editores, técnicos de som, para compor o quadro de
funcionários da empresa. Entretanto, seus filmes não tiveram tanto sucesso de bilheteria
quanto as “chanchadas”. Os investidores da companhia não obtiveram retorno financeiro
imediato, consequentemente, a empresa não pôde se manter por muito tempo e, em
1953, a companhia cinematográfica Vera Cruz fechou suas portas.
Os filmes da Atlântida apresentavam, em seus enredos e personagens, traços de
nacionalidade. Albuquerque Jr. diz que nos anos 40, baseado nos programas de humor
do rádio, as “chanchadas” já produziam um estereótipo do homem nordestino nas telas
de cinema. “O nordestino se aproxima muito da imagem do matuto ou do caipira. Ele é
sempre mostrado como a inversão da figura (...) do civilizado, do polido” (p.266). Em
suas primeiras imagens, o homem do campo foi representado como paradoxo do cidadão
urbano, fidalgo e educado, colocando-o à margem dos valores sociais das cidades.
A Vera Cruz, até então, estava sempre preocupada em produzir filmes com uma
estética internacional. Em parâmetros gerais, suas produções possuem um perfil
estrangeiro de representação, isentos de qualquer característica nacional, seus filmes
reproduzem uma imagem cinematográfica importada. Mas, não muito distante, o cinema
nacional começa a se auto-referenciar e logo a temática nordestina invade a grande tela.
A indústria paulista lança, nos anos 50, dois filmes sobre o Nordeste brasileiro: O
Cangaceiro, de Lima Barreto, 1953, realizado pela Vera Cruz e O Canto do Mar, de
Alberto Cavalcanti, 1954, realizado pela Kino Filmes.
O filme de Cavalcanti narra o drama dos sertanejos que abandonam suas terras
secas à procura de um lugar melhor para viver. Inicialmente, mostra imagens de
enxada, caveira de boi, terra rachada e, em seguida, um mapa que, de forma didática,
aponta para o espectador que aquilo se passa no Nordeste brasileiro. Durante os
primeiros momentos do filme, uma voz em off afirma, redundantemente, que naquela
região não chove. Essas primeiras cenas do cinema nacional do período sobre o Nordeste
reafirmam elementos do discurso da seca já existente. O Canto do Mar não obteve
grande sucesso de público, mas enriqueceu a nossa filmografia.
Já o filme de Barreto teve êxito, sua repercussão transformou-o num grande
sucesso mundial, sendo, assim, um dos filmes brasileiros mais conhecidos. Foi o primeiro
sucesso internacional da cinematografia brasileira, projetando uma imagem nacional no
exterior, traduzindo em imagens os valores culturais e sociais do próprio país, dando
início à consolidação da imagem do Nordeste no cinema brasileiro. Para Paulo Emílio
Sales Gomes (1996, p.77), com O Cangaceiro, em meios àqueles diretores quase todos
estrangeiros, Lima Barreto “inaugurou um gênero que permanece ainda vivo e fecundo”,
tendo, assim, deixado marcas duradouras para a cinematografia nacional. Wills Leal
afirma que o filme O Cangaceiro iniciou o ciclo de produção de “filme-de-cangaço”. Na
busca de realizar um filme com temática nacional, Lima Barreto criara o protótipo para
os diversos filmes do gênero, produzidos posteriormente. Porém, para Leal (p.97), o
filme de Barreto “foi também o primeiro que negou, mentiu e disfarçou (...) o homem e
a cultura do Nordeste. Baseado na história do cangaceiro Lampião e seu bando, O
Cangaceiro foi filmado no interior do Estado de São Paulo, produzido e realizado por uma
equipe de cinema do Sul do país, fazendo com que, em muitos momentos, a narração
distancie-se dos valores sociais, culturais do povo nordestino e dos espaços do Sertão
brasileiro.
A estética de O Cangaceiro está bastante relacionada ao modelo de filme
conhecido como Western americano, nos quais os enredos do gênero mostram o
distanciamento entre os pólos sociais, dividindo a sociedade entre o progresso e o
regresso, a ordem e a desordem. Em O Cangaceiro podemos encontrar esse discurso
explícito na cena do filme em que a professora Olívia, ao ser tirada do bando pelo
cangaceiro Teodoro, lhe diz: “você é um fora da lei em quem não se pode confiar!”.
Percebe-se, também, na contribuição com esse tipo de discurso, a identidade e os
sentidos sociais determinados a cada personagem da cena – professora e cangaceiro;
um socialmente educado, o outro, selvagem, fora dos padrões educacionais e civilizados,
contribuindo dessa forma para a elaboração do mito do nordestino primitivo.
Segundo Jean-Claude Bernardet (1978, p.45), discorrendo sobre o filme de Lima
Barreto e a imagem do cangaceiro presente no cinema nacional, “a personagem não é
recente no cinema brasileiro; já aparece em filmes pernambucanos de 1925/27 (Filho
sem Mãe e Sangue de Irmão), num momento em que cangaceiro ainda não era
fenômeno do passado”. Para ele (p.46), o cangaceiro cinematográfico está desvinculado
do seu significado social (violento), o personagem transforma-se em um “bandido de
honra”, importando apenas que “ele não se fixe, não tenha pouso certo e sua vida seja
uma andança; ele vai de aventura em aventura” nas trilhas dos seus solos encandecidos
e castigados pelo sol avermelhado.
Após a bem-sucedida série de filmes-de-cangaceiro, dotada de personagens
primitivos e violentos, os mitos regionais nordestinos, inclusos no seu cenário natural,
serão incorporados a uma série de filmes onde seus problemas sociais e econômicos são
a grande atração das telas. A partir do sucesso de O Cangaceiro, de Lima Barreto, os
cineastas brasileiros são seduzidos pelo espaço arcaico e marginal do país, movidos pela
vontade de expressar o que parece exótico para os espectadores.

1.6 Nordeste Novo Brasileiro

Na década de 60, o Nordeste e o Sertão brasileiros recebem um novo tratamento


cinematográfico, um novo olhar é lançado sobre a região árida. Os cinemanovistas
filmam o espaço nordestino com realismo, inovando também a forma de se fazer cinema
no Brasil, contrariados pelo fracasso industrial passado. O movimento conhecido como
Cinema Novo busca expressar a problemática social do país através de seus filmes. Um
país em estado subdesenvolvido deve realizar filmes temática e esteticamente
subdesenvolvidos. Para Ismail Xavier (p.28), os filmes produzidos pelo grupo
cinemanovista “promoveram uma verdadeira ‘descoberta do Brasil’, expressão que não é
um exagero se lembrada a escassez de imagens de certas regiões do país na época”.
Segundo um dos principais integrantes do movimento, Glauber Rocha (p.31), seria por
intermedio desses filmes “feios e tristes, (...) gritados e desesperados onde nem sempre
a razão falou mais alto”, que o povo brasileiro entenderia sua condição perante o
sistema capitalista.
Neste momento, o Nordeste e o Sertão brasileiro entram em evidência, com novo
enfoque, nas produções cinematográficas. Nos filmes produzidos nesse período, o
Sertão, juntamente com seus problemas é, simultaneamente, cenário e personagem de
suas histórias.
Ainda segundo Rocha, nos filmes que representam o Sertão brasileiro, “o Cinema
Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome”
exibindo personagens marginalizados em cenários problemáticos, “(...) foi essa galeria
de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo (...)” (p.30). Assim,
ainda segundo Xavier, “em sua feição original, anterior ao golpe militar de 64,” o
movimento “tem seu momento pleno em 1963/64, com a realização da trilogia do sertão
do nordeste: Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Fuzis” (p.28). Em
seqüência, os filmes foram dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Ruy
Guerra. Suas histórias colocam em ascensão os temas da seca, do cangaço e do
messianismo, representando-os como freqüentes problemas sociais do país.
Segundo Albuquerque Jr. (p.277), o Cinema Novo capturou “(...) no Nordeste, as
imagens de um país de rosto roto e esmolambado. Um rosto cruel e violento em
oposição ao rosto polido e civilizado da estética hollywoodiana da Vera Cruz e a
mascarada carnavalesca das chanchadas cariocas”.
Essa geração de filmes subdesenvolvidos foi influenciada por um documentário
curta-metragem produzido e realizado no estado da Paraíba no fim da década de 50.
Pode-se afirmar que tudo começou nos anos cinqüenta, quando Linduarte Noronha
decidiu filmar a história da população negra de Serra do Talhado, em pleno Sertão
paraibano, resultando no seu clássico Aruanda, lançado em 1959. O filme, produzido em
condições precárias, mostra a forma sofrida com que esse povo desenvolve sua
economia com a finalidade da sobrevivência.
As imagens da miséria ascendem nas obras cinemanovistas. O Nordeste brasileiro
é reduzido, imageticamente, ao espaço árido. Os filmes de ficção recebiam um
tratamento estético de alto teor realístico, de forma que seguisse o propósito do
movimento. Em artigo publicado sobre a primeira exibição de Deus e o Diabo na Terra do
Sol, Arnaldo Jabor (1995, p.69) descreve detalhadamente sobre o que havia visto
naquela sessão:

E aí o filme começou. Um plano aéreo do sertão de


Cocorobó. Corte súbito para o olho morto de um boi
roído de sol. Villa Lobos na trilha. E caiu um silêncio
sideral na sala. Todos os olhos estavam sendo
feridos por imagens absolutamente novas. Como
explicar isso? Não era apenas um bom filme que
víamos. Nada. Era um país que nascia à nossa
frente. Não um país que reconhecíamos como
sendo, digamos, de Graciliano. Não. Era uma
realidade desconhecida que começávamos a
compreender. Ela esteve esbolçada na literatura, em
Os Sertões, em Rosa. Mas, ‘no olho’, era a primeira
vez. Ela nos via. Ela nos incluía.

No decorrer dessa época, diversas vezes o Sertão brasileiro encontra-se como


tema representado na grande tela, como lugar e espaço digno de aparecer num filme,
como assunto interessante para ser roteirizado e, posteriormente, virar “coisa de
cinema”, como afirmam as pessoas quando vêem algo grandioso. Porém, dificilmente a
grandiosidade que é atribuída aos cenários Hollywoodianos é também atribuída à região
árida do Nordeste.
Segundo Ivana Bentes (2001), em artigo publicado no Jornal do Brasil, no cinema
dos anos 60, o Nordeste e o Sertão foram representados como uma região em crise,
primitiva, onde o sertanejo parte em busca de conquistar o espaço urbano e, por fim,
transforma-se em favelado e suburbano. Contudo, “o cinema brasileiro dos anos 90 vai
mudar radicalmente de discurso diante desses territórios da pobreza (...) com filmes que
transformam o sertão ou a favela em ‘jardins exóticos’”. Os filmes que apresentam este
outro olhar sobre o espaço nordestino estão em pequena quantidade em relação ao
discurso presente nas demais produções cinematográficas sobre o Nordeste, em sua
maioria realizadas na região Sul do país. Nesse sentido, Ivana Bentes propõe a tese da
Cosmética da Fome.
O discurso transformador do Sertão cinematográfico aparece junto com a inovação
tecnológica no cinema brasileiro. A partir de meados dos anos 80, o cinema nacional
incorpora novas formas de produção, munido de novas técnicas, direcionado a uma nova
estética assumida como um compromisso profissional com o público. Nessa década o
Brasil “afirmou a técnica e a ‘mentalidade profissional’” (XAVIER, p.40).
Após a década de 90, com o desenvolvimento da arte cinematográfica no Brasil,
em filmes com histórias que se passam no sofrido Sertão brasileiro, como Eu, Tu, Eles
(Andrucha Waddington, 2000) e Abril Despedaçado (Walter Salles, 2001), os cineastas
flexibilizam o discurso cinemanovista. A belíssima fotografia realizada nesses filmes,
utilizando a excessiva luminosidade da região para compor o cenário, possibilita ao
espectador observar o Sertão não mais como um lugar feio e triste, visão tão marcada
nos filmes já produzidos sobre o tema.
Segundo Leal (p.15), entre as décadas de 50 e 60 havia um cinema de temática
nordestina, e não um cinema nordestino. A produção de filmes no Nordeste era
minoritária em relação ao resto do país. Apenas a partir das décadas posteriores, “a
inteligência cinematográfica nordestina se voltou para concretizar um cinema
nordestino”, produzindo filmes que exibem para o país as diversas possibilidades de uma
região.
Atualmente, algumas produções nacionais realizadas no Nordeste e por cineastas
da região, escolhem os espaços urbanos para a realização de seus filmes. O
documentário O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (Paulo Caldas e
Marcelo Luna, 2000) e o longa-metragem ficção Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2003),
produzidos em Pernambuco por cineastas nordestinos, em suas imagens, mostram um
espaço poucas vezes explorados na história da nossa cinematografia, o urbano, no caso,
a cidade do Recife.
No Brasil, ao longo da história de sua produção cinematográfica, muitos filmes
foram baseados em fatos reais, mesmo sabendo-se que a proposta não era apresentar o
registro de tal realidade, e sim fazer filme de ficção. Contudo, a forma excessiva pela
qual o Nordeste e o Sertão brasileiro são representados nas grandes telas de cinema é
responsável pela visão unilateral sobre a região. Na maioria dos filmes nacionais,
segundo Iza L. Mendes Regis (2003, p.116), o espaço nordestino representado

é o mais claro protótipo imaginado por nós: seco,


com uma vegetação sem folha à espera de chuva,
distantes de povoamento onde as casas não se
avistam e onde o sol impiedoso esfria as
esperanças, pois ao contrário das miragens
provocadas pelo sol nos desertos orientais e
africanos, o sol dos sertões nordestinos destrói as
ilusões dos sertanejos.

Assim, em alguns filmes, talvez na grande maioria dos filmes produzidos sobre o
Sertão brasileiro, é possível que, ao término da sessão, o espectador saia da sala de
cinema ofuscado com a imagem de uma região miserável, subdesenvolvida, arcaica, de
cores opacas e avermelhadas; uma região totalmente vencida pela natureza de sua
vegetação seca, pela escassez da água gerando a improdutividade nas áreas do campo.
Essa é a versão predominante e recorrente na cinematografia sobre o Nordeste.

A REPRESENTAÇÃO DO SERTÃO NO FILME VIDAS SECAS

2.1 A História do Filme

Nos anos 50, o povo brasileiro alimentava a esperança de um país melhor. Na


conjuntura do pós-guerra, o parque industrial nacional, prejudicado pelo longo período
do esforço de guerra, necessitava se reerguer. Essa situação levou à implantação de
novos planos governamentais, em especial a meta de industrialização traçada pelo ex-
presidente Juscelino Kubitschek em 1955 – “Cinqüenta anos em cinco”. Contudo, os
projetos progressistas implantados por JK, não foram tão eficientes para assegurar o
desenvolvimento pretendido pois as bases de sua implantação tornaram o país mais
suscetível às oscilações da economia mundial. No Brasil começou a despertar uma grave
inquietação política e social, decorrente da crise econômica em curso nos anos 60.
O plano de desenvolvimento centrava-se no Sul do país, não havia investimento
direto para solucionar os problemas agrários do Nordeste o que acentuava, ainda mais,
as disparidades regionais. Neste contexto, em 1958, surgiram as Ligas Camponesas
nordestinas protestando pela reforma agrária. Preocupado com o problema, JK criou a
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), em 1959. O Órgão seria
responsável pelo desenvolvimento industrial no Nordeste, porém a atuação da SUDENE
revelou-se insuficiente para debelar as disparidades regionais e o problema da reforma
agrária continuava sem solução.
A geração de artistas que viveu esse período político do país produziu
intensamente, no final da década de 50, uma série de obras de arte engajadas a
representar o povo brasileiro, buscando mais uma vez impulsos de mudança.
Segundo Marcelo Ridenti (2000), as lutas políticas e culturais vividas nos anos 60
e princípio dos anos 70 no Brasil são relevantes para compreender a história do país.
Nessa fase, a esquerda apresentava suas posições, também, através das diversas
produções artísticas, como a música popular, o cinema, o teatro, as artes plásticas e a
literatura. Sendo assim, Ridenti convencionou chamar o processo social e as concepções
artístico-estéticas engajadas dos artistas desse período de “Romantismo Revolucionário”,
expressão cujo conteúdo para Ridenti consiste na busca de reconstruir uma identidade
nacional através do ideal revolucionário de transformação social, frente ao modelo
capitalista. Para ele, “a utopia revolucionária romântica do período valorizava acima de
tudo a vontade de transformação, a ação dos seres humanos para mudar a História, no
processo de construção do homem novo (...)” (p.24).
A construção de um homem novo, segundo o conceito de Ridenti, está centrada no
resgate das tradições ou raízes da cultura nacional para revigorar valores não mais
existentes no homem contemporâneo, porém sem o passadismo característico de uma
posição regressiva: “a volta ao passado, contudo, seria a inspiração para construir o
homem novo” (p.25).
Ainda segundo Ridenti, os grupos de artistas e intelectuais revolucionários
andavam fascinados pelas idéias de povo, libertação e identidade nacional, influenciados
pelas mudanças políticas dos anos 50. Um dos fatos que mais favoreceram a emergência
desse romantismo revolucionário foi a morte do ex-presidente, Getúlio Vargas, em 1954.
Com isso, enquanto a direita tomava uma atitude de recuo, a esquerda, fortalecida pelo
socialismo que contagiava o mundo das transformações políticas, avançava no cenário
nacional. Isso se somava à vontade que os intelectuais e artistas tinham de despertar o
povo brasileiro para maiores reflexões sobre a realidade de seu país.
Nesse momento, entram em cena os CPCs, especialmente o CPC da UNE (Centros
Populares de Cultura), entidades com independência política, cuja proposição era a
superação, através da arte, do estado de alienação política instaurada na consciência
popular. Em sua produção artística, inclusive no cinema (Cinco Vezes Favela, 1962),
temáticas com teor revolucionário eram trabalhadas com freqüência. Foi nesse contexto
que surgiu o Cinema Novo.
O movimento surgiu no início dos anos 60, formado por cineastas ligados ao CPC.
Concentrado no estado do Rio de Janeiro, segundo Ridenti, o Cinema Novo era
“composto basicamente por cariocas, baianos e cineastas de outros estados radicados no
Rio, cuja influência espraiou-se Brasil afora” (p.99). Os integrantes desse grupo
possuíam vínculos fortes com o pensamento da esquerda e ideais revolucionários.
Para Ridenti, o Cinema Novo enquadrava-se com precisão no conceito de
romantismo revolucionário, sua militância, via imagens, tinha grande importância para
as batalhas políticas e culturais daquele período: “o cinema estava na linha de frente na
reflexão sobre a realidade brasileira, na busca de uma realidade nacional autêntica do
cinema e do homem brasileiro, à procura da revolução” (p.89). Segundo Glauber Rocha
(1981), os filmes realizado pelo integrantes do movimento são novos porque o Brasil, ali
representado, também era novo para os espectadores. Ele diz: “nossa originalidade é
nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida”
pelo povo brasileiro. (p.30). Ainda segundo Rocha, o objetivo do Cinema Novo era de
produzir “um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a
consciência de sua própria existência” (p.33).
A produção cinematográfica da década de 60 alcançou um considerado número de
trabalhos, porém, esses filmes não obtiveram sucesso de bilheteria, pois dificilmente
caiam no agrado do grande público. Segundo Ismail Xavier, “o Cinema Novo, em
particular, problematizou a sua inserção na esfera da cultura de massas, apresentando-
se no mercado mas procurando ser a sua negação (...)” (2001, p.24). A safra de filmes
dos cinemanovistas foi, também, uma resposta às metas de desenvolvimento
fracassadas na década anterior. Mesmo assim, o movimento comporta alguns dos filmes
mais importantes da história do cinema brasileiro.
O filme Vidas Secas, do cinemanovista Nelson Pereira dos Santos, foi produzido em
1963 e lançado em 64, às vésperas do Golpe Militar. Certamente, isso não foi uma
missão fácil, pois, após o golpe, o cinema passou a ser alvo de críticas, perseguido por
uma censura institucionalizada que castrava a liberdade de expressão da maioria dos
cineastas. Em entrevista concedida a Maria do Rosário Caetano, publicada em Revista de
Cinema, Nº 19, Nelson Pereira dos Santos explica: “em 64, quando lancei ‘Vidas Secas’,
o tema era subversivo. As autoridades diziam que nós, cineastas, queríamos denegrir a
imagem do país no exterior” (2001, p.20).
Baseado na obra literária homônima do escritor Graciliano Ramos, o filme
representa o Sertão da década de 40 com seus problemas sociais, marcado pela
opressão do latifúndio sobre a população camponesa. Uma região predominantemente
hostil pela recorrência da seca e migrações; representado sob a exacerbada luz do sol,
onde os homens se tornam duros como a terra seca. Para Albuquerque Jr. (1999),
“transpor Vidas Secas para a tela visou contribuir com o debate da problemática da
reforma agrária no Nordeste, que estava na ordem do dia” (p.273).
Na abertura do filme, antes de qualquer imagem, Nelson Pereira expõe um texto
que mostra-nos, de certa forma, as idéias revolucionárias traçada pelo grupo de
cineastas integrantes do Cinema Novo:

Este filme não é apenas a transposição fiel, para o

cinema, de uma obra imortal da literatura brasileira.

É, antes de tudo, um depoimento sobre uma


dramática realidade social de nossos dias e extrema
miséria que escraviza 27 milhões de nordestino e
que nenhum brasileiro digno pode ignorar.

Através deste tipo de discurso, presente nesse e nos demais trabalhos dos
cineastas do movimento, os cinemanovistas acreditavam que dariam uma contribuição
para a transformação política e social do país. Nessa perspectiva, segundo Ismail Xavier
(2000, p.51), “é o Nordeste dos polígonos das secas o espaço simbólico que permite
discutir a realidade social do país”, e que participa da luta política e ideológica em curso
na sociedade. Mas, após o Golpe de 64 e, definitivamente após o AI-5, em 1968, todas
essas pessoas foram impedidas de expressar suas idéias e sonhos. Artistas e intelectuais
foram cada vez mais pressionados a abandonar suas atividades artísticas e intelectuais
críticas da realidade social. A produção cultural, mesmo alguns dentro dos padrões de
legalidade, declinou, e os CPCs foram fechados em 1964.
O Cinema Novo deparou-se com problemas de ordem política e econômica,
enfrentou a carência tecnológica e aceitou a ausência de espectadores em suas sessões.
Ainda com todos esses entraves, o movimento perdurou por uma década e obteve
reconhecimento mundial.

2.2 Autoria, Direção e Adaptação

A literatura sempre foi uma grande fonte de histórias para o cinema. Durante
anos, diversos filmes foram produzidos baseados em contos ou romances, algumas
vezes tentando narrar, a seu modo, com fidelidade à obra, outras apenas tomando-a
como referência. Contudo, não é uma tarefa simples adaptar um bom livro para o
cinema e fazer um bom filme. De fato, diversos leitores/espectadores, na maioria das
vezes, dão preferência ao tratamento dado a uma das duas ferramentas narrativas,
quando comparadas, geralmente, apontando a insuficiência das versões
cinematográficas. Apenas exceções transformam um clássico da literatura em um
clássico do cinema. Nesse caso, quando nos referimos a dois ícones da produção cultural
brasileira, Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos, podemos encontrar essa
raridade. Vidas Secas é uma dessas exceções.
O escritor nordestino Graciliano Ramos, nascido no estado de Alagoas em 1892, é
reconhecido pela expressividade contida em toda a sua obra literária, um romancista da
realidade de seu tempo, dotado de rara habilidade para a produção textual, conciso,
econômico, com um estilo único em nossa literatura, um verdadeiro conhecedor da arte
de escrever.
Militante do Partido Comunista na década de trinta, seus romances foram
influenciados pela sua opção política, visto que a literatura de trinta tentou contribuir
para o conhecimento da realidade nordestina. Influenciado, também, pelo movimento
regionalista, desenvolveu a temática nordestina, colocando em foco o espaço sofrido do
Sertão, conforme aquela imagem discutida no item anterior. Nesse período, o romance
nordestino narrava um Brasil que estava ficando para trás. Segundo o professor de
literatura Lourival Holanda (2003, p.14), “sua literatura desenha o duro desejo de dizer a
crueza do mundo”. Ainda segundo Holanda, nas formas aparentes de destruição vista
nos livros de Ramos, encontra-se o desejo de uma possível reconstrução.
O Nordeste inscrito nos livros de Graciliano Ramos projetava o ápice do estado de
subdesenvolvimento do país com seu povo em alto nível de alienação. Para Albuquerque
Jr. (1999, p.229), “o camponês nordestino é visto por Graciliano como um ser silenciado,
quase apenas grunhindo como animal”. Elaborando, assim, um homem impossibilitado
de reagir decisivamente diante dos problemas políticos, sociais e naturais de seu
universo.
Autor de quatorze livros, uma de suas obras mais significativas, com um duro
caráter representativo do espaço nordestino, foi Vidas Secas, publicado em 1938. O livro
retrata a realidade dos nordestinos diante a problemática da seca, lutando
incansavelmente pela sobrevivência. Os personagens de Graciliano Ramos estão sujeitos
a enfrentar o fenômeno climático de sua região, mantendo-se em busca de novas terras
a fim de realizar sua cotidiana sobrevivência. Para o crítico Álvaro Lins (1999, p.136),
Ramos consegue transformar “este mundo árido e sombrio numa verdadeira categoria
de arte”.
Vidas Secas narra a história de uma família de emigrantes nordestinos em busca
de melhores condições de vida, movidos pela esperança de sobreviver no Sertão. Para
tanto, alojam-se como empregados de uma fazenda. Fabiano, o pai vaqueiro,
trabalhador, sofre para manter sua família, e submete-se à exploração do fazendeiro.
Devido à sua ingenuidade, ele é humilhado constantemente em diversas situações, pelo
patrão e pelas autoridades representativas das instituições sociais. Sinhá Vitória, sua
mulher, a mãe, é responsável pelo trabalho doméstico e controle da casa. Ela carrega
consigo o sonho de “uma cama de couro” que simboliza a sua esperança na mudança de
vida. Os dois meninos, filhos do casal, meninos sem nome, vivem curiosos a tudo que se
passa, e a cadela, Baleia, aparece como integrante da família sertaneja. Fabiano e sua
família labutam na tentativa de conseguirem condições de vida mais favoráveis, livre da
expropriação dos latifundiários e da seca que agrava suas condições de submissão diante
os donos de propriedades da região.
Para Lins, através desta obra, Graciliano Ramos consegue revelar algumas de suas
melhores qualidades como escritor. Um livro escrito com maturidade, apresentando a
problemática do Sertão nordestino e de seus habitantes através da concisão de suas
frases e precisão de sua forma narrativa. Uma referência importante da literatura
brasileira.
O cineasta Nelson Pereira dos Santos, por sua vez, nasceu em São Paulo no ano de
1928 e radicou-se no Rio de Janeiro nos anos 50. Ainda estudante, partilhava do
pensamento esquerdista de sua geração. Considerado um dos mais importantes
diretores do Brasil, Nelson Pereira é conhecido pela ousadia e expressividade de sua
obras cinematográficas. Filmou e mostrou os fenômenos sociais do seu país com
características realistas, influenciado pelo neo-realismo italiano, realizou filmes imortais
para a cinematografia brasileira, um mestre na arte cinematográfica.
Integrante do movimento do Cinema Novo brasileiro, algumas de suas obras
possuem forte tendência ao pensamento da esquerda revolucionária dos anos 60.
Durante sua carreira, produziu filmes que trazem temáticas suburbanas, acontecimentos
sociais e culturais do país, registrou em imagens a história do povo brasileiro, na maioria
das vezes. Segundo Ridenti (2000, p.103),

estão na filmografia de Nelson Pereira: a introdução

nas telas da vida do homem simples do povo

favelado (...); a presença do povo camponês

migrante do Nordeste (...); a busca histórica do

indígena, das origens brasileiras (...); as raízes

negras da sabedoria popular, num projeto de

descolonização cultural (...); a cultura de artistas


populares (...); a resistência popular à ditadura do

Estado Novo (...).

Até o ano 2000, sua filmografia havia atingido 18 obras, permanecendo com

projetos a serem rodados. Por coincidência, um dos filmes mais importantes da carreira

de Nelson Pereira dos Santos é Vidas Secas, uma adaptação do romance de Graciliano

Ramos. O filme, assim como o livro, representam com vigor uma vertente da produção

cultural brasileira.

Adaptar a literatura de 30 foi um grande passo para o cinema nacional. Segundo

Augusto Guilherme (2000), no artigo Quando o Cinema Brasileiro Encontra a Literatura

Nacional, a literatura dos anos 30 e 40 influenciou a produção cinematográfica nacional

dos anos 60 em conteúdo e forma narrativa, tendo importantes obras transpostas para

as telas. “Este perfil da literatura moderna dos anos 30 e 40 faz-se necessário para

compreender o movimento estético cinematográfico que nasceu com o cinema novo”.

Glauber Rocha (1981, p.30) explica que, a pobreza e miséria narrada pela literatura de

30, posteriormente foi mostrada nas telas do cinema dos anos 60: “se antes era escrito

como denúncia social”, no Cinema Novo “passou a ser discutido como problema político”.

As afinidades temáticas contida no livro Vidas Secas com a problemática vivida no Brasil

dos anos 60, levou Nelson Pereira dos Santos a filmar a história escrita décadas antes. A

seguir, ele explica como surgiu a idéia de fazer o filme Vidas Secas:

Nos anos 50 eu trabalhava para Isaac Rosemberg,

produtor de cinejornais e documentários. Certa vez,

realizando documentário sobre o Rio São Francisco,

nos deparamos, em Juazeiro, com levas de

flagelados, crianças esquálidas, que vinham com a

família, em busca de condições melhores de vida.

Sem saída, eles invadiam prédios públicos e

mercados. Se falava muito em reforma agrária, mas


pouco de prático era feito. Fiquei de tal forma

impressionado com aquela realidade, que escrevi

dois ou três argumentos sobre o tema. Mas eram

todos muito ruins, muito superficiais. Neles havia

apenas o olho do repórter, um olho fora de foco. Ao

ler ‘Vidas Secas’, percebi que tinha um roteiro

perfeito na mão, feito por quem conhecia a

realidade ali registrada. E tudo era narrado com

secura, com rara economia de recursos” (2001,

p.15).

A transposição do romance de Graciliano Ramos para o cinema resultou num

belíssimo filme. Em 1964, recebeu o prêmio de Melhor Filme para a Juventude, no

Festival Internacional de Cannes, na França, sendo o responsável pelo reconhecimento

do cinema brasileiro, naquele ano, em âmbito internacional. Para Wills Leal (1982, p.18),

o diretor conseguiu realizar “um filme à luz do documento, da situação, flagrando os

momentos excepcionais criados pelo escritor alagoano”. Para tanto, Nelson Pereira dos

Santos adequou o conteúdo narrado com precisão para os elementos cinematográficos,

prezando, principalmente, pelo sentido poético do livro. Leal (p.18) explica que

logo em seus primeiros instantes, Vidas Secas se

manifesta coerente com a densidade global do

romance: negação ao requinte, ao afresco, ao

barroco. As imagens são diretas, objetivas e os

planos são longos, demorados.

Para melhor compreensão deste processo de transferência da literatura para uma


outra linguagem, apontaremos algumas adequações necessárias, pensadas e aplicadas
por Nelson Pereira dos Santos para a realização do filme.
Primeiramente, Leal atenta para um apontamento curioso. Ele explica que na
primeira cena do filme, o diretor procurou situar o espectador em tempo e espaço
narrados. Nos créditos iniciais, sob o primeiro plano, aparece escrito: “Agradecimentos:
Governo do Estado de Alagoas, autoridades e população de Palmeira dos Índios”, e logo
depois, “1940”. Essa atitude foi indispensável “para não trair o espírito do livro de
Graciliano Ramos, pois, embora o escritor não faça referência a locais ou data, eles
reportam naturalmente, em especial quando se tem notícia de sua vida, de sua posição
frente à realidade nordestina, brasileira” (p.17).
No livro, vale ressaltar que o foco narrativo não está centrado unicamente em um
só dos personagens, Ramos o escreveu como narrador observador, contando sua história
apontando para os personagens em terceira pessoa. Isso contribui para conferir mais
secura ao texto. Já o filme é narrado a partir dos próprios personagens. O foco varia
entre eles de acordo com o desenrolar da história. A estrutura narrativa é articulada a
partir do ponto de vista da família, com a câmera pondo o espectador como um
coadjuvante da situação. Por exemplo, em algumas cenas a cachorra, Baleia, guia a
família, fazendo com que a história gire em torno dela. Ciente de que a maioria das
vezes Fabiano (Átila Iório) é o agente principal da narrativa do filme.
Graciliano Ramos dedicou um capítulo a cada um dos personagens, distinguindo os
universos paralelos, causando uma condição, diria, paradoxal: uma família unida que
vive distanciada. Segundo Lins (p.152), sobre o romance de Ramos, “(...) os capítulos,
assim independentes, não se articulam formalmente, com bastante firmeza e segurança.
Cada um deles é uma peça autônoma”, o que fornece um grande valor literário para o
romance. No filme, os personagens são articulados de outra forma, Nelson Pereira dos
Santos os põe em diálogo, porém expressam a perspectiva da ausência de diálogo, de
escassez de palavras, da secura das relações familiares naquele espaço árido que
contamina a afetividade. Pereira dos Santos dedicou algumas cenas para descrever o
universo particular de cada um dos personagem, Fabiano falando carinhosamente com o
gado, Sinhá Vitória (Maria Ribeiro) sonhando com “uma cama de couro”, os meninos
(Gilvan e Genivaldo Lima) hesitando sobre as coisas, tudo isso concretizando o
distanciamento proposto pelo livro.
Contamos, também, com dois momentos exclusivos do filme, não existentes no
romance, para uma leitura imagética mais eficaz. O primeiro é o “diálogo” de Fabiano
com Sinhá Vitória. O marido fala uma coisa, a esposa outra, uma explosão de palavras
sem coerência discursiva, incompreensível tanto para eles como para o espectador. Os
assuntos se fundem num diálogo desconexo. No cinema, os elementos estéticos
enfatizam a inexistência de diálogo comum entre eles, o que no livro está marcado pela
ausência da troca de palavras. O outro momento é a aparição dos cangaceiros, um tipo
de poder paralelo no Sertão. Após sair da cadeia, a mando dos cangaceiros, Fabiano
depara-se com uma possibilidade de vingança contra aqueles que o oprimem, assim
como grande parte das pessoas que se tornaram cangaceiros. Segundo Leal (p.24), a
inserção dos cangaceiros pelo diretor foi inteligível, além da relação com o tempo e o
espaço retratado. “Pela primeira vez, só porque se encontra numa situação nova, (...)
em que são os cangaceiros que ditam a Lei, (...) Fabiano é contemplado”. Na cena, o
cangaceiro que estava na cadeia com ele pergunta: “Capitão paga bem. Quer ir mais
nós?”. Mas Fabiano, olhando ora para os cangaceiros, ora para sua família, decide
continuar em sua saga de vaqueiro oprimido.
Nas duas obras aparecem um momento convergente. No livro, o drama do
primeiro capítulo se repete no último. Graciliano Ramos descreveu os capítulos
denominados de “Mudança” e “Fuga”, para marcar o romance com a idéia de migração
constante, natural dos nordestinos que sofrem pela seca e sonham com outras terras. No
filme, Nelson Pereira dos Santos descreveu com dois planos gerais, o de abertura e o de
encerramento, cronologicamente longos, no qual ele mostra as condições precárias da
terra e das pessoas que nela sobrevivem, em estado de intermináveis andanças. No fim,
ele exibe, sob a imagem de encerramento, a seguinte frase, quase a mesma frase do
final do livro: “E o sertão continuaria a mandar para a cidade homens fortes, brutos,
como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos”.
O filme Vidas Secas é o resultado de um trabalho audacioso, no qual o cineasta
adaptou uma grandiosa obra da literatura brasileira e conseguiu realizar um fabuloso
filme para a cinematografia brasileira. Para o crítico Paulo Emílio Sales Gomes (1996,
p.80), o filme de Nelson Pereira dos Santos “coloca-se pela sua universalidade entre os
melhores já realizados no Brasil”. Essas palavras de Gomes foram escritas em 1973,
após dez anos da realização do filme. Ainda hoje, podemos afirmar que Vidas Secas é
uma referência para a cinematografia nacional.

2.3 Estética Cinemanovista: Luz, Som e Montagem

Insatisfeitos com a produção cinematográfica brasileira dos anos 50, em especial a

tentativa da Vera Cruz de estabelecer um cinema industrial no Brasil e sua proposta de

fazer filmes nos moldes do cinema estrangeiro, os cinemanovistas assumiram a condição

de subdesenvolvimento do país para a realização de seus filmes, trabalhando sem

grandes recursos financeiros para seus projetos. Produziram com o suporte técnico

mínimo, desprovidos de estúdios, cenários artificiais e equipamentos sofisticados,

expressando assim, não apenas em conteúdo, como através da forma de seus filmes, o

perfil da pobreza e miséria do Brasil.

A técnica narrativa aplicada pelo grupo de cineastas integrantes do Cinema Novo

sofreu influência, também, das vanguardas européias do neo-realismo italiano e da

nouvelle vague francesa. O neo-realismo foi criado no final da década de 40, na Itália do

pós-guerra, recém libertada do regime facista. Diante as circunstâncias, os cineastas

italianos, com o intuito de reerguer o cinema comercial, desenvolveram o estilo, que

também se contrapõe ao modelo hollywoodiano.

O movimento projetou a imagem da sociedade italiana contemporânea, em sua

condição pós-guerra, mostrando, sobretudo, a verdadeira situação social da população

pobre. Assim, as câmeras abandonaram os estúdios e cenários artificiais e direcionaram

suas lentes para as ruas, para o dia-a-dia do povo italiano, desta forma, simplificando a

linguagem fílmica e baixando o custo das produções. Segundo Antonio Costa (1989,

p.104), “o cinema rodado pelas ruas, os atores apanhados na rua, a realidade fixada

sem manipulações e sem preconceitos”, são algumas fórmulas da estética do neo-

realismo. Ainda segundo Costa, em quase todos os filmes do movimento é possível

encontrar esses aspectos realistas.


Essa forma de realizar filmes obteve grande importância para o cinema mundial,

Costa diz que o neo-realismo italiano “tornou-se um ponto de referência obrigatório para

definir os novos rumos da estética do filme”, assim como aconteceu com o cinema

soviético da década de 20 ou o expressionismo alemão (p.105).

O fenômeno cinematográfico nascido na Itália pôde ser observado em outros

países, entre eles o Brasil, com sua devida importância. Segundo Costa, nos filmes do

Cinema Novo Brasileiro, “a adoção de modelos expressivos da vanguarda internacional

convive com um grande compromisso de conhecimento e interpretação das

características originais e das contradições da situação política e cultural do Brasil”. A

estética dos filmes italianos da década de 40 enquadrou-se aos ideais de mudança social

dos cinemanovistas, especialmente os de Nelson Pereira dos Santos (p.129).

O filme Vidas Secas, em sua forma, trabalha com as possibilidades de produção

herdadas do Neo-realismo italiano. Mesmo sendo uma história de ficção, sua estética o

transforma em uma série de imagens que mais parece realidade. Segundo Bernardet

(1978, p.72), após a aparição de outros filmes de temática nordestina, o filme de Nelson

Pereira do Santos passou a ser observado como “quase um documentário” sobre os

problemas do povo brasileiro, visto que é ficção.

Sob direção de Luís Carlos Barreto e José Rosas, a fotografia de Vidas Secas é um

dos pontos altos de sua estética. A câmera é manuseada com freqüência de duas

maneiras: ora fixa num pedestal, ora na mão, impondo, assim, uma linguagem que

possibilita maior verossimilhança à história narrada. Dá a impressão que, ali parada, a

câmera “se fixou num lugar e captou o que estava em sua frente” (LEAL, p.18). Quando

afixada e filmando planos mais abertos, a imagem expressa menor teor de manipulação,

mostrando sem interrupções aquilo que se passava. Na mão, criando algumas vezes

planos subjetivos ou caminhando ao lado dos personagens, a câmera coloca o

espectador junto às situações do filme, envolve o olhar de fora da tela com o olhar por

dentro, traz o público para o espaço diegético.

As imagens em preto e branco retratam, pela ausência de cor, a pobreza da vida

dos sertanejos que, a cada cena, parece estar se tornando cada vez mais miserável. A
fotografia em preto e branco fornece substância ao rústico cenário do filme,

representado pela região árida do Nordeste brasileiro.

A fotografia de Vidas Secas é marcada pelo “estouro” de luz em suas imagens,

visto numa perspectiva positiva, utilizado pelo diretor como artifício narrativo de grande

carga significativa para a representação do Sertão no filme pois, em outros casos, o

“estouro” de luz pode ser assemelhado a erro fotográfico. Dessa forma, o excesso de

luminosidade natural da região está registrado na película cinematográfica, o que faz

com que as imagens presentes no filme terminem transportando para a tela o sol

causticante e o clima quente do Sertão, sob o qual os emigrantes nordestinos estão

condenados a tentar sobreviver.

Referir-se ao som de um ambiente cinematográfico em que o papagaio “nem sabia

falar”, segundo as poucas palavras de Sinhá Vitória, é fundamental. A sonoplastia do

filme foi feita com base nos ruídos naturais da região, resultando num filme

praticamente sem música. Para Leal (p.19), “do ponto de vista sonoro, Vidas Secas é

renovador, altamente expressivo. A utilização de pouca sonoridade no filme enriqueceu a

obra em relação à verossimilhança da história representada. Ainda segundo Leal (p.19),

“é nessa ausência de musicalidade, nesse apego ao pálido, que se cria um clima de

verdade” no filme de Nelson Pereira dos Santos.

Logo no começo do filme surge, gradativamente com os personagens, um som,

inicialmente, muito estranho. Com o decorrer da história o espectador percebe que

aquilo é o ruído do roçar das rodas de madeira com o eixo do carro-de-boi. O som

estridente reproduzido no filme, assemelha-se ao sofrimento de Fabiano e sua família,

reforçando o sentido da dor de viver num ambiente em que não incorpora algum tipo de

música alegre, animadora, motivadora. O som do carro-de-boi repete-se,

heterodiegeticamente, nos momentos de sofrimento ao longo da narrativa.

A escassez de diálogo entre os personagens no filme denota, também, a secura

sonora da narrativa. Em destaque, podemos ouvir algumas vezes o latido de Baleia,

poucos diálogos, momentos em que Fabiano fala com os bichos, Sinhá Vitória dando

explicações sobre as coisas para seu filho em poucas palavras.


Pode-se ouvir, durante o filme, a presença de uma série de ruídos, típicos da

natureza representada, como: o som da sandália a cada passo nas caminhadas, o

chocalho preso ao pescoço do gado, o sino da igreja convocando as pessoas para a

missa, a chegada da chuva.

Contudo, ainda há momentos de musicalidade em Vidas Secas, uma sonoridade

que acompanha o fruir estético dos sons desconhecidos num caso e o sofrimento de

Fabiano em outro momento. Ao ir à sede da fazenda receber dinheiro na casa do patrão,

Fabiano depara-se com um som novo para seus ouvidos, o violino tocado pelo professor

da filha do patrão. A música desperta a curiosidade de quem jamais ouvira tal melodia.

Fabiano encosta-se próximo à porta do cômodo onde a moça estuda música e

permanece admirado com o que escuta dali, sabendo que só num tempo roubado,

escondido, pode ouvir o tipo de som que permeio o universo sonoro do patrão.

A caminho da cidade, quando Fabiano e sua família dirigem-se a uma festa

religiosa, o filme mostra uma banda de pífano nordestina, formada por homens simples e

instrumentos regionais, que caminha pelas ruas do vilarejo, transmitindo os costumes e

a musicalidade daquela região pobre.

Ao ser preso pelo “soldado amarelo” e após ter levado uma surra da Polícia,

Fabiano permanece deitado, se contorcendo e gemendo, enquanto na rua, onde há uma

festa folclórica, toca-se música do Bumba-Meu-Boi, animando todo o povo da cidade.

Para Leal (p.20), “o Bumba-Meu-Boi liga as duas ações: a do presídio (...) e o riso dos

patrões, dos homens louvados pelo canto (...) de outros seres simples”. Nessa cena, o

sofrimento de Fabiano é acentuado pelo contraste com a alegria das pessoas que

participam da festa na rua, enquanto ele permanece se contorcendo de dor na cadeia.

A montagem cinematográfica constrói o ritmo lento, seco e escasso da narrativa de

Vidas Secas, transcrevendo a monotonia do ambiente para a diegese. O filme exibe em

cenas cansativas, do ponto de vista do espectador, o universo seco que castiga os

personagens.

Algumas cenas prezam pelo drama de viver naquele espaço desértico a partir da

composição entre as imagens que representam o olhar dos personagens. Na cena final,
ao clamarem por um lugar melhor, Fabiano e Sinhá Vitória olham para trás, a câmera

nos mostra, em plano geral, uma grande paisagem seca, e, pouco adiante, quando eles

param para prosseguir em sua caminhada, o último plano geral nos mostra outra grande

paisagem seca, por onde a família, ao som do carro-de-boi, anda até o desaparecer da

imagem.

Outras cenas, além do espaço seco, apontam para a realidade interior dos

personagens. Na cena em que a família contempla o imenso sol do Sertão nascendo por

trás das montanhas, por exemplo. Primeiramente, a câmera mostra o sol com “estouro”

de luz, acentuando sua força dramática. Em plano conjunto, podemos observar a família

em frente à casa: Fabiano em pé, com uma espingarda; Sinhá Vitória debruçada na

janela, com um pano na cabeça e um terço na mão; ao seu lado, o menino mais novo; e

o menino mais velho por trás da meia porta da frente da casa. Em primeiro plano, Baleia

deitada no chão quente, relaxada. Em seguida, a seqüência mostra cada um dos

personagens em planos mais fechados. Quando volta para Fabiano, ele fica de cócoras,

dá um trago no cigarro de palha e, assim que a câmera aponta para o sol novamente,

ele afirma convicto: “Vai pegar fogo!”. A seqüência, montada desta forma, ao estilo

construtivista soviético, possibilita ao espectador uma leitura sobre a consciência de cada

um dos personagens do filme diante aquela situação.

A morte de Baleia é um dos pontos altos da montagem do filme. A cachorra é

mostrada com a câmera no nível do personagem, conduzindo o espectador à sua

perspectiva, num plano conjunto. Baleia, após levar o tiro de Fabiano, caminha

mancando e grunhindo para baixo do carro-de-boi. Deitada, ela vê a casa se

distanciando, efeito causado pelo uso de uma lente zoom, e permanece olhando os preás

correndo sem poder caçá-los. Nesse momento, a montagem fortifica o sofrimento da

cachorra mostrando Baleia sob o eixo e a roda do carro-de-boi cujo som de atrito

estridente acompanha a agonia e morte da cadela.

Certamente, com as condições técnicas e propostas ideológicas de se fazer cinema

nos anos 60, o filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, expressa boa

performance em sua estética, usufruindo de uma linguagem coerente e harmoniosa,


fornecendo ao significado do conteúdo narrado maior verossimilhança sobre a

precariedade do espaço e do homem nordestino nele representado.

2.4 A Terra

O espaço geográfico representado em Vidas Secas constitui-se no Sertão

nordestino em seu aspecto mais negativo, miserável, proveniente da problemática

causada pela seca. Árvores desfolhadas, grandes rochedos, vários quilômetros de solo

varrido, gravetos prontos para o fogo, casa abandonada, caveira de boi morto, água suja

para consumo, terra rachada, palma utilizada como alimento, fogo a lenha, sol

inclemente, calor, aridez. Todas essas características compõem as imagens da paisagem

dramática do filme.

Sendo assim, Nelson Pereira dos Santos construiu uma seqüência em que faz uma

analogia para auxiliar a descrição da terra mostrada pelas imagens. Após o plano em que

Fabiano acabara de ser benzido, sob o olhar curioso do menino mais velho, ao ouvir a

palavra “inferno”, com muita insistência o garoto pergunta e permanece pedindo

explicação a Sinhá Vitória sobre “o que é o inferno”. A mãe responde, impaciente, que o

inferno “é um lugar para onde vão os condenados, cheio de fogueira, tempo quente...”. o

menino pergunta se ela já havia ido lá. Ela fica irritada, xinga-o e bate com a mão na

cabeça dele. O menino sai de casa chorando em direção a uma árvore seca próxima da

casa. Ele chama Baleia, coloca-a em seus braços, de onde fica observando a paisagem

em torno dele e falando: “inferno, lugar ruim!”. Ele olha para todas as direções e, a cada

espiada, repete a palavra “inferno”, como se estivesse comparando o lugar em que vive

à explicação rápida dada pela mãe. Assim, Pereira dos Santos utiliza a fala do

personagem (o menino) e as imagens desse Sertão para fazer uma analogia entre o

conceito de inferno, dado por Sinhá Vitória, e a terra onde eles vivem.

A terra pobre de Vidas Secas tem grande importância para o enredo e para o

desenvolvimento da narrativa fílmica. Segundo Bernardet (p.68), “a estrutura do filme

não é condicionada pela ação das personagens, mas sim pela natureza: é a seca e a
chuva que vão decidir do início, do meio e do fim do filme”, ou seja, os personagens é

quem são condicionados pela condição climática e geográfica.

A família de Fabiano é movida a partir dos fenômenos climáticos naturais da região

Nordeste, de modo que a história se desenvolve no intermédio de dois períodos de seca.

No início, eles aparecem escapando da primeira seca, caminhando à procura de um lugar

onde possam encontrar meios de subsistência. Ao acomodarem-se na fazenda, chega a

estação chuvosa possibilitando o desenvolvimento de atividades agropecuárias. Nesse

momento, o proprietário da terra explora a força de trabalho de Fabiano, mas a família,

necessitada, decide ficar por uma temporada nessas condições apesar da exploração,

que fica evidenciada no momento do pagamento do vaqueiro. Com o passar do tempo,

chega a nova seca. A produção começa a decair, a atividade econômica torna-se inviável

e a família, mais uma vez, segue caminhando em busca de outras terras para

sobreviver.

Segundo Leal (p.25), em Vidas Secas, o que determina a precariedade dos

sertanejos “não é a terra, é a ausência dela a causa da miséria”. Sem propriedade, sem

terra para produzir, “o vaqueiro fica sempre na dependência do patrão, do seu dinheiro,

com juros altos, e seus dias estão contados”. Um problema que persiste mesmo para os

grandes latifundiários do Sertão nordestino, cuja produção agropecuária está sujeita a

ser arruinada pela intempérie da região.

O cenário é montado a partir da problemática climática enfrentada pelo povo

sertanejo do Nordeste, no caso: campos devastados, falta de alimentos, propriedade

improdutivas, sem água e sem perspectiva de tê-la, com as condições de vida miserável,

uma representação derivada de uma realidade recorrente na região. A terra, na qual o

homem do campo cultiva seus meios de subsistência, enfrenta um processo natural de

aridez que inviabiliza a produção, gerando, como conseqüência, a ação desesperada dos

homens pela necessidade de sobreviver.

A representação imagética das terras do Sertão brasileiro em estado deplorável no

filme Vidas Secas partiu da necessidade de construir, com veracidade, a história dos

sertanejos que enfrentam a problemática da seca em suas terras. Contudo, as imagens


do território nordestino em crise, exibido no filme de Nelson Pereira dos Santos,

transformou-se no cenário predileto para os cineastas brasileiros contarem suas histórias

sobre o povo nordestino.

2.5 O Homem

A representação do homem em Vidas Secas é o mais fino retrato do nordestino

que sofre pelas condições improdutivas de sua terra ou pela expropriação e vive

migrando à procura de outras regiões, em geral para os grande centros urbanos, na

esperança de ter uma vida melhor. Para Bernardet (p.67), o filme traz uma performance

eficaz da imagem do povo brasileiro, um “verdadeiro tratado sobre a situação social e

moral do homem no Brasil”.

A família sertaneja se esforça para resistir, em sua precária existência, frente aos

vários problemas que enfrentam, retratados no filme, fazendo com que eles não se

sintam como cidadãos dignos. Fabiano assume os trabalhos externos, Sinhá Vitória fica

com as atividades domésticas e toma conta dos meninos. Ainda para Bernardet (p.68),

“essa família não se caracteriza como tipicamente sertaneja”, pelo tipo dos atores, a

estrutura física e organizacional familiar, ela “pode ser tanto sertaneja como da classe

média de qualquer centro urbano”. Ela representa as classes menos favorecidas do povo

brasileiro, muitas vezes saída dos campos para expandir o número de favelas nas

grandes metrópoles, sujeitos que deparam-se com os mais variados entraves sociais.

A situação da família perante o descaso de viver no Sertão leva-os a uma condição

animalesca, suas ações são ditadas pela necessidade de sobreviver; a escassez da fala

produz um processo de comunicação em gestos entre os personagens, suas condições de

vida comparam-se, em dado momento, à de animais, conforme revela o discurso de

Sinhá Vitória na cena final do filme. Segundo Bernardet (p.68), “embora não tenham

condições de ser gente, sabem que não são gente e aspiram a sê-lo”.

Fabiano não possui instrução suficiente para ser considerado cidadão. Disposto a

fazer qualquer coisa para sobreviver, consegue um emprego naquilo que é sua profissão,
trabalha como vaqueiro de um fazendeiro explorador. Ele tenta discutir o valor de seu

salário, quando patrão lhe rouba; na cidade, não consegue vender sua carne de porco,

pois não pagou os impostos; vai à igreja mas não permanece por muito tempo, e tenta

se integrar às pessoas da cidade na festa, mas é humilhado pelo soldado amarelo e vai

para a cadeia. Para Bernardet (p.80), “Fabiano é utilizado por esse governo como

símbolo do homem fabricado pelo Nordeste”. A história mantém uma certa distância

entre Fabiano e as instituições sociais. Um homem impedido, pelas leis e condutas

sociais, de viver como gostaria, de se tornar cidadão, permanecendo na condição

mostrada pelo filme, como ser insignificante. Segundo Leal (p.21), o personagem “é de

uma submissão total. É submisso em tudo e por tudo.(...) Sem recursos mentais

maiores, brutalizou-se no contato com o meio”.

Sinhá Vitória representa a esperança do homem do campo, sonhando

intensamente com uma “cama de couro igualzinha à de seu Tomás da Bolandeira”,

“homem de leitura”. Ela é a mais instruída dos personagens, com sua capacidade de

realizar cálculos e atitudes chegam a causar admiração ao marido. Segundo Glauber

Rocha (p.32), os filmes produzidos pelo Cinema Novo não eram como os melodramas do

cinema clássico americano que inspirou outros focos de produção no mundo, pois “as

mulheres do Cinema Novo sempre foram seres em busca de uma saída possível para o

amor, dada a impossibilidade de amar com fome”, como, por exemplo, Sinhá Vitória que

“sonha com novos tempos para os filhos”. É ela quem mais aspira a vontade de ser

gente através de seus sonhos, querendo deixar de dormir como bicho ou decidindo partir

à procura de um local que possibilite a realização de seus sonhos, fazendo com que ela

deseje outra vida para ela e os meninos.

Os meninos sem nome, o que explicita o lugar da criança no duro universo das

relações no campo nordestino, estão à mercê do destino da família; não compreendem

quase nada do que vêem, e por vezes, questionam o sentido das coisas. Eles expressam

enorme admiração pela valentia de seu pai. Para Leal (p.24), “os dois meninos, na visão

dialética da obra, representam o novo homem, o homem de amanhã, a força que está

prestes a brotar”. Eles são a extensão da esperança dos personagens adultos, vistos
como incapazes de concretizar seus ideais naquelas condições, ao mesmo tempo,

representam a continuidade de uma situação vista como possibilidade de mudança.

Baleia consegue se opor ao perfil dos demais personagens da história. Em Vidas

Secas ela é quem mais parece ser gente. A cachorra tem nome, é parte constitutiva da

família, tem fluxo de consciência e suas ações são coerentes. O apego da família pela

cadela encontra-se expresso em algumas cenas do filme. Por exemplo, enquanto Fabiano

estava preso, os meninos, sentados com Sinhá Vitória na calçada em frente à igreja,

perguntam por Baleia e não pelo pai. Baleia é objeto do afeto possível e, também,

agente desse afeto em relação às crianças, naquele mundo condicionado pela aridez do

solo e da vida.

A idéia de animalização da família de Fabiano, construída pelo filme, encontra-se

na consciência dos próprios personagens de Vidas Secas. Tanto que, na caminhada final,

num dos únicos diálogos coerentes entre Fabiano e Sinhá Vitória, ela diz para o marido:

“Podemos continuar vivendo que nem bicho, escondido no mato? Podemos?”. E ele,

reflexivo, responde: “Não podemos, não!”. E continuam prosseguindo com a esperança

de mudar essa triste condição de vida.

A representação do homem nordestino em Vidas Secas corresponde ao grande

número de sertanejos prejudicados pela condição problemática do acesso à propriedade,

da improdutividade e do atraso. O homem do campo surge como a contradição do

cidadão socialmente reconhecido, suas características são derivadas do arcaísmo contido

em seu espaço, resultando no homem desatualizado, distante de toda e qualquer idéia

de modernidade, associada aos centros urbanos.

2.6 Cenas das Vidas ainda Secas

A miséria do homem sertanejo e das terras do Nordeste podem ser encontradas,

de forma explícita, nas imagens de Vidas Secas. A história narrada pelo filme tem um

alto nível de afinidade com uma realidade desse povo nas condições impostas pelo

latifúndio e pela estiagem proveniente das condições climáticas.


Em Vidas Secas, o homem do campo transita no universo fílmico em busca de

melhores condições de vida, entretanto, depara-se com vários obstáculos que

impossibilitam essa mudança. Ao mesmo tempo que procura, ele não encontra saídas

para deixar a vida que já leva e permanece em suas condições precárias. Na narrativa

existe, em algumas cenas, a expressão da força de atrito que impede essas mudanças. A

seguir, discorreremos sobre duas cenas do filme onde podemos observar essas

situações.

No dia da festa na cidade, Fabiano e Sinhá Vitória saem arrumados pela porta da

frente da casa. A família toda veste novos trajes para ir à festa. Sinhá Vitória veste um

lindo vestido florido, sapato de salto alto, carregando uma sombrinha. Fabiano está de

terno listrado, chapéu fino, calçando sapatos elegantes. Minutos depois, estão

caminhando descalços. Após andar alguns quilômetros, eles encontram-se sentados à

beira de um açude lavando seus pés, que parecem machucados. Próximos à cidade,

novamente eles calçam seus sapatos grã-finos. Sinhá Vitória tenta colocar o sapato do

pé direito no pé esquerdo, mas logo pega o outro sapato e calça corretamente. Fabiano é

quem tem mais problemas pois, ele quase não consegue calçar mais seus sapatos,

prosseguindo sua caminhada meio manco. Momentos depois, já na cidade, após sair da

igreja, Fabiano, muito incomodado com os sapatos, tira-os permanecendo descalço pelo

resto do dia diegético.

A atitude dos personagens mostra que, pela sua precária condição de vida, o

sertanejo possui uma grande dificuldade de se adequar ao perfil social urbano, negando

o uso dos sapatos, o que simboliza, de certa forma, uma mudança de vida. Em Vidas

Secas, o vaqueiro usa o seu novo par de sapatos social, mas, simplesmente, não gosta.

Na cena, movido pela vontade de Sinhá Vitória, Fabiano tenta, porém nem os sapatos se

encaixam nos seus pés com conforto e nem ele vê sentido em calçar aqueles sapatos.

Para Bernardet (p.71), pela “confrontação da personagem com o leque dos principais

poderes da sociedade”, o filme põe seus personagens perdidos entre essas

personalidades. Fabiano é sempre esmagado pelo valor institucionalizado da sociedade

citadina, mantendo-o num determinado afastamento dessas novas condições de vida.


Cenas depois, em diálogo com Sinhá Vitória, o vaqueiro diz para sua esposa: “Sapato

caro, pra quê? Para andar que nem papagaio”. Desta forma, o filme concretiza a

perplexidade do personagem pois, Fabiano não encontra sentido em viver aos moldes

urbanos, parece se conformar com a vida no campo. Contudo, pode-se dizer que ele

também anseia por melhores condições de vida.

A outra cena é a seguinte: Fabiano sai da casa à procura de um bezerro perdido,

de repente, ele encontra o “soldado amarelo”, perdido em meio à vegetação seca. No

primeiro instante, o vaqueiro ergue o facão com a mão esquerda e anda em direção ao

soldado, que fica amedrontado. Então, Fabiano ameaça o golpe. Parece ser a vingança

da surra que, sem razão, levou na cidade. O soldado recua assustado até bater com as

costas numa árvore seca. Eles continuam firmes na troca de olhar. Fabiano, ameaçador,

o “soldado amarelo”, amedrontado. Num momento reflexivo, contudo, o vaqueiro abaixa

o facão vagarosamente. O soldado passa para trás da árvore seca, mas Fabiano continua

a acompanhá-lo. Parados frente à frente, os dois homens olham em direção ao sol como

se ele fosse a única testemunha do que ocorre ali. Saem andando, o “soldado amarelo”,

meio cismado, não vira as costas para Fabiano, que ainda permanece com o facão na

mão. E mais uma vez eles se encaram. Naquele momento, o som do mugido do bezerro

perdido quebra a fisionomia ameaçadora de Fabiano que, logo em seguida, guarda seu

facão na bainha presa à cintura. Novamente o som do mugido e o vaqueiro vira o rosto à

procura do animal. Então, o “soldado amarelo” assume o papel de ameaçador e se

aproxima de Fabiano, perguntando com arrogância: “Qual é o caminho da estrada,

Paisano?”. O vaqueiro tira seu chapéu e menciona para si mesmo: “Governo é

Governo!”. O soldado, sentindo-se por cima da situação, pergunta: “Por onde?”. Fabiano

caminha para perto do “soldado amarelo”, baixa a cabeça e aponta com o braço

esquerdo, dizendo: “No fim da vereda, à direita”. O soldado segue o caminho, às vezes

virando a cabeça para trás, observando Fabiano de forma agressiva.

Nesse momento, o “soldado amarelo” significa algo maior, algo que se sobrepõe

aos direitos de Fabiano que, por várias vezes, sofre pressão do Governo e, com sua

ignorância, não compreende nada. Parecia um momento de vingança, mas o vaqueiro se


sente impossibilitado de praticar tal ação, sendo sujeito a permanecer na sua condição.

Nessa cena, o poder mais uma vez castra Fabiano de seus atos, afixando-o à sua posição

social. O bravo vaqueiro não se vê no direito de lutar contra essa força maior que o

impede de crescer, o que mantém o distanciamento entre o homem arcaico do campo e

o perfil moderno associado ao homem urbano.

Assim, a abordagem de Vidas Secas sobre o Sertão e o Nordeste brasileiro fixa-se

na aridez e na miséria do espaço geográfico nordestino, prejudicado pela seca, e na

exploração dos latifundiários sobre os homens do campo. O filme representa, através da

problemática rural e do povo sertanejo que luta por melhores condições de vida, uma

realidade vigente na região Nordeste. Uma história que reitera o destino de famílias

como a de Fabiano e seu cotidiano, cujo retrato assemelha-se, na narrativa

cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos, assim como na literatura de Graciliano

Ramos, à secura do clima e da vegetação do Sertão nos tempos de estiagem.

BAILE PERFUMADO E OUTRA REPRESENTAÇÃO DO SERTÃO NORDESTINO

3.1 Contexto Histórico

Em meados dos anos 80, o Brasil renovava a esperança de mudanças, sonhando


com um país melhor, após ter atravessado a experiência do assolador regime militar. Em
1983, o país estava em crise econômica e social, marcado pelo descontrole inflacionário,
o alto índice de desemprego e a violência no campo, onde líderes rurais morriam sempre
a mando dos grupos de fazendeiros. Nessa conturbada situação, milhares de brasileiros
ganharam as ruas reivindicando eleições diretas para presidente da República, surgindo,
assim, o movimento nacional denominado de “Diretas-Já”.
Com a vitória de Tancredo Neves, eleito por um colégio eleitoral, sem voto direto,
em 1985, o regime militar deixou os palcos após 21 anos de ditadura. Mas, momentos
antes de sua posse, Neves foi hospitalizado e dias depois faleceu, passando o mandato
para José Sarney.
O período instaurado a partir do governo Sarney transformou-se em marco político
do processo de redemocratização e passou a ser conhecido como “Nova República”.
Implantou-se o voto direto e a liberdade de criação de partidos políticos, abrindo
discussões sobre os direitos sociais nos diversos níveis. Em 86, o governo aplicou o Plano
Cruzado, fazendo a substituição da moeda para melhor controle da economia. Os preços
foram congelados, caiu a inflação e aumentou a produção. Mas logo, em 87, a inflação
tornou a subir e a turbulência econômica do país prosseguiu até o fim de seu mandato,
havendo ainda outras tentativas de estabilização.
Com o Brasil praticamente desgovernado, necessitando sérias mudanças políticas,
em novembro de 1989 houve a primeira eleição presidencial desde 1960, na qual
milhões de brasileiros puderam exercer o direito de voto.
Nos anos 80, o cinema nacional enfrentava graves problemas de ordem econômica
que fizeram desabar a produção de filmes de longa-metragem. No início dos anos 80, os
cineastas assumiram uma nova consciência cinematográfica, abandonado modelos e
estilos passados de produção, moldando-se com dificuldade ao aparato técnico moderno
para a realização de seus filmes. Contudo, em virtude dos problemas econômicos, os
cineastas não tinham apoio financeiro para realizar seus filmes. Apenas diretores
veteranos deram continuidade ao processo evolutivo do cinema, realizando trabalhos
consagrados para nossa filmografia, como: Cabra marcado para morrer (Eduardo
Coutinho, 1984), financiado pela Embrafilme. Na segunda metade da década, com a
Nova República, a produção do cinema nacional reduziu-se ainda mais. A política do ex-
presidente José Sarney, junto com a problemática econômica, dificultava o processo de
modernização do país, o que causou uma frustração aos novos realizadores e a qualquer
impulso produtivo do cinema brasileiro.
Segundo Ismail Xavier (2001, p.52), em referência aos acontecimentos políticos
das décadas de 70 e 80 e seu efeito sobre o cinema,

a abertura política e a articulação de um governo


civil, a luta pelas diretas e o clima de transição
vivido pela sociedade encontram um cinema em
crise de produção, num quadro em que se fala da
morte do cinema e da necessária reformulação da
Embrafilme.

A Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes) foi criada em 1969 com o propósito


de financiar, co-produzir e distribuir os filmes brasileiros. A empresa, abstraindo o fato
de ter sido criada e mantida com objetivos de controle político sobre a produção
nacional, desempenhou um importante papel na produção do cinema brasileiro nos anos
70 e começo dos anos 80, possibilitando a realização de uma significativa quantidade de
filmes por ano. Além de outras verbas públicas, a manutenção financeira da Embrafilme
se dava a partir da comercialização dos próprios filmes por ela realizados, arrecadando
percentuais em bilheterias, imposto de renda das distribuidoras estrangeiras, vendas ao
mercado externo, sendo posteriormente aplicado em projetos previamente submetidos
ao Conselho da empresa. Assim, a Embrafilme apoiou cineastas da época, contribuindo
na diversificada produção até meados dos anos 80, quando começa declinar.
Em 1990, o ex-presidente da República, Fernando Collor de Melo, eleito pelo voto
popular no ano anterior, traçou novos planos para o Brasil, determinando novos rumos
para a cultura nacional. José Sarney, ao fim de seu mandato, entregou o país
economicamente quebrado, com a inflação em estado acelerado de ascensão.
Nos primeiros meses de mandato, Collor de Melo anunciou seu plano econômico,
traçando novas diretrizes com medidas como: a implantação de uma nova moeda
(Cruzeiro Novo), o confisco monetário e a privatização de empresas estatais. Tais
medidas resultaram na diminuição das atividades econômica e industrial, na
desvalorização salarial, no alto índice de desemprego, agravando ainda mais o problema
da inflação.
Dois anos depois, surgiram graves denúncias de corrupção que envolvia
importantes funcionários de seu governo. Paulo César Farias, o principal responsável
pelo esquema de corrupção, atuava sob conhecimento do presidente. Desse modo, uma
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), por iniciativa da câmara dos deputados e seu
trabalho, acaba resultando no pedido de Impeachment do Presidente, aprovado pelo
Congresso Nacional. Então, o vice-presidente, Itamar Franco, assumiu a presidência da
república.
A política de contenção do Plano Collor, aplicada no primeiro ano de mandato,
marcou definitivamente a vida de vários cineastas brasileiros, quando substituiu o
Ministério da Cultura por uma secretaria ligada diretamente à presidência e extinguiu a
Embrafilme. Essa atitude fez com que despencasse a produção artística no país,
principalmente a cinematográfica.
O período entre 1990 e 1993 pode ser considerado uma fase de colapso da
cinematografia brasileira. A crise fez a produção cair quase a zero, causando quase uma
paralisação no cinema nacional. Em 1992, por exemplo, o 25º Festival de Brasília, um
dos mais significativos do país, foi adiado pela falta de filmes concorrentes. Nesse
mesmo ano, Walter Salles buscou, como saída para essa problemática de produção, o
apoio de capital estrangeiro para realizar o filme A Grande Arte, co-produzido com uma
empresa norte-americana.
No governo do ex-presidente Itamar Franco, a partir do final de 1992, o Ministério
da Cultura foi reinstalado fazendo com que, em 1993, o cinema nacional retomasse sua
produção. Nesse ano as portas se abriam com o “Programa Banespa de Incentivo à
Indústria Cinematográfica” e o “Prêmio Resgate Cinema Brasileiro”, incentivos gerados
pelo Ministério da Cultura para a realização de filmes no país. Outra forma de apoio foi a
criação da “Lei do Audiovisual”, a qual propunha o apoio das empresas privadas em troca
da isenção fiscal. Os programas financiavam produção, finalização e comercialização dos
filmes. Com isso, aos poucos foram aparecendo novos trabalhos cinematográficos no
Brasil.
Em 1995, Walter Salles e Daniela Thomas realizaram um filme representativo do
estado de crise recém vivido no Brasil. Terra Estrangeira expressa a angústia dos
brasileiros decepcionados com a política de 1990, um país sem esperança ou
perspectivas progressistas, um povo sem identidade, sem rumo. Segundo Arthur Prado
Neto e Katharine Almeida (1996, p.241), o filme “utilizou do Plano Collor como pano de
fundo para sua ficção empregando, inclusive, imagens reais do anúncio do confisco”. Às
dificuldades de produção apresentadas pelo filme e o seu enredo somam-se ao valor
histórico adquirido por Terra Estrangeira.
No Nordeste brasileiro, com sua a minoritária produção cinematográfica, marcada
pela realização de curtas, realizou-se o longa metragem Baile Perfumado, dirigido por
Paulo Caldas e Lírio Ferreira, em 1996, no estado de Pernambuco. A dificuldade de
realização era imensa, o processo de produção de Baile Perfumado começou em 1994
quando, com o apoio do MinC, os diretores fizeram as primeiras imagens. Para a
continuação do trabalho, eles arrecadaram dinheiro através de festas, campanhas
publicitárias em outdoors e outros meios. Muitas pessoas ligadas ao cinema
pernambucano se envolveram na realização do filme. Segundo Alexandre Figueirôa
(2000, p.110), “o roteiro foi pensado para adequar a produção às condições locais”. A
equipe teve que contar com soluções criativas e práticas para a diminuição dos custos.
Contudo, o filme tem um significado especial para a produção regional, além de ser um
exemplo das possibilidades de produção na periferia, no estigmatizado Nordeste.
Em seu enredo, o filme aborda o Sertão dos anos 30 em sua grandiosidade e força.
O Sertão de Baile Perfumado é um Sertão ligado por laços estreitos à modernidade (com
cinema, fotografia, rádio, eletricidade, de vegetação verde, com água em abundância,
rico em tradições. Baile Perfumado narra o encontro do cinegrafista libanês, Bejamin
Abrahão (Duda Mamberti), com Lampião (Luiz Carlos Vasconcelos) e seu bando. Na
tentativa de realizar um filme sobre a vida do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o
libanês busca diversos meios para ter acesso aos cangaceiros. Nessa abordagem,
coerente com as convenções do gênero, Lampião é mostrado sob uma visão
emblemática, o mitológico “Governador do Sertão”. A narrativa, baseada em fatos reais,
é construída a partir de personagens e acontecimentos históricos.
Depois de uma longa e dura temporada de incredibilidade do cinema nacional por
parte dos espectadores brasileiros, em 1999, o filme Central do Brasil (Walter Salles,
1998), reedita o reconhecimento da cinematografia nacional no estrangeiro e no próprio
país, pela indicação ao Oscar de Melhor Atriz a Fernanda Montenegro, por sua atuação
no papel de Dora.

3.2 – Inquietude, Direção e Autoria

Na última cena de Baile Perfumado, narrada em flashback, Benjamim Abrahão


acabara de chegar a Recife de navio. Ele está dialogando com seu conterrâneo, Jamil,
sobre suas intenções na nova terra. A câmera faz um movimento em grua quando fecha
em Abrahão que afirma convicto: “Os inquietos vão mudar o mundo”. A imagem congela
e encerra o filme.
A frase mencionada pelo libanês na cena final reflete imediatamente a postura dos
ousados cineastas, Paulo Caldas e Lírio Ferreira, movidos pela inquietude de realizar um
longa metragem em Pernambuco num período em que o cinema no Brasil estava,
novamente, em fase de lento crescimento. No Nordeste, onde a produção nunca foi
constante, a situação parecia ainda mais difícil. Conseguir financiamento para realizar
um filme de cangaceiro realmente não seria tão simples. Em 1996, o primeiro longa dos
diretores e o único realizado em Recife nesse ano foi às telas de cinema do país, exibindo
para o público imagens da vida de um Lampião moderno e arrojado e um Sertão onde a
ênfase não é o problema rural da seca no Nordeste. Diante das circunstâncias, pode-se
afirmar que o filme de Caldas e Ferreira foi um produto singular, em todos os sentidos,
da cinematografia brasileira.
Paulo Maurício Caldas nasceu na cidade de João Pessoa, capital paraibana,
mudando-se para a cidade do Recife, Pernambuco, desde muito cedo. Iniciou sua
carreira no audiovisual quando realizou trabalhos em bitola super 8. Nos anos 80, já
apostando na carreira de cineasta, conseguiu aprovar alguns projetos pela Embrafilme e
realizou alguns trabalhos em 16 e 35 mm, entre eles, O bandido da sétima luz (1986),
uma homenagem ao cineasta pernambucano Fernando Spencer. Seus filmes têm como
característica histórias ambientadas em área urbana. Trabalhou, também, como
roteirista e produtor em vários filmes de curta e média metragens. Como diretor, Paulo
Caldas teve uma breve passagem pela televisão. Realizou cinco filmes em vídeo, entre
eles "Ópera Cólera", que obteve o prêmio máximo na “XIX Jornada Internacional de
Cinema e Vídeo da Bahia”, em 1992.
Lírio Ferreira, que já havia trabalhado como assistente de Paulo Caldas, nos anos
80 integrou um grupo de novos cineastas chamado Van-retrô, um grupo organizado com
a finalidade de conseguir viabilizar projetos para a realização de curtas em Pernambuco.
O grupo logo se desfez, mas alguns cineastas deram continuidade a seus trabalhos.
Ferreira foi diretor, roteirista e produtor de curtas e médias, entre eles: O crime da
imagem (1988/92) e o festejado That’s a Lero-Lero (1995), um curta que narra uma
farra noturna de Orson Welles no Recife, em 1942. O filme foi premiado em Gramado e
Brasília. Em vídeo, realizou clip e filmes experimentais. Dirigiu, também, alguns
programas de televisão e campanhas publicitárias/políticas em Pernambuco.
Juntos, Paulo Caldas e Lírio Ferreira, já haviam realizado alguns trabalhos em
audiovisual, o que provavelmente contribuiu para o melhor desempenho em Baile
Perfumado, do qual eles assinam roteiro e a direção. O filme foi exibido em quase todo o
Brasil. Segundo Figueirôa (p.107), “depois do Ciclo do Recife, foi a primeira produção
local a ganhar projeção nacional”, e logo obteve o reconhecimento da crítica e do grande
público. No “29º Festival do Cinema Brasileiro de Brasília”, em 1996, Baile Perfumado
ganhou o prêmio de Melhor Filme. Em seguida, no “Prêmio Cine Sesc”, foi considerado
como Melhor Filme Brasileiro. Segundo o crítico João Batista de Brito, no artigo ‘O baile
perfumado’ para o bem do cinema nacional, publicado no jornal O Norte (1997, p.06),
“se todos os filmes nacionais que nos chegassem tivessem seu nível, suponho que
começaríamos a acreditar num cinema brasileiro do terceiro milênio”.
Baile Perfumado conta, de maneira irreverente, a história de um fotógrafo e
cinegrafista estrangeiro, o libanês Benjamim Abrahão que, nos anos 30, aventura-se a
filmar a vida de Lampião e seu bando e realizar um filme para fazer sucesso
internacional. Homem de confiança do padre Cícero Romão Batista (Jofre Soares,
padrinho dos cangaceiros, Abrahão utiliza sua habilidade de estabelecer contatos para
conseguir financiamento e encontrar caminhos legais para realizar seu filme. Em sua
saga, ele se depara com diversas autoridades da região, como o maior inimigo do
cangaceiro Lampião, o Tenente Lindalvo Rosa (Aramis Trindade). Logo Abrahão se
agrega ao bando de Lampião e registra, com uma câmera de cinema, o cotidiano dos
cangaceiros. A notícia é publicada no Diário de Pernambuco, jornal de grande relevância
no estado, e a fotografia de Lampião aparece estampada. O governo Vargas resolve
reforçar a ofensiva contra o cangaço e fortifica suas estratégia de caça aos cangaceiros a
fim de acabar, definitivamente, com os bandos.
A narrativa de Baile Perfumado foi construída a partir de acontecimentos reais do
movimento social do cangaço, envolvendo o bando de Lampião em sua passagem pelo
estado de Pernambuco, ocorridos na década de 30. O fenômeno surgiu no sertão
nordestino em meados do século XIX, gerado pela desigualdade e miséria da região,
onde latifundiários exploravam a mão-de-obra camponesa. Os camponeses contestavam
a pobreza por via dos movimentos populares, entre eles o messianismo e o cangaço.
Segundo Vera Ferreira e Antonio Amaury (1997, p.11), “um bando de cangaceiros era
um agrupamento de homens armados que faziam do roubo, da vingança, da extorsão e
de outros delitos, seu meio de vida”. Lampião, conhecido como o “Rei do Cangaço”, foi o
mais famoso entre os cangaceiros. Virgulino Ferreira da Silva liderou, durante muito
tempo, um dos maiores bandos de cangaceiros do Nordeste, ficando consagrado pela
sua coragem e bravura entre tantos atos destemidos. Em 1938, na fazenda conhecida
como Angico, em Sergipe, Lampião, Maria Bonita e outros cangaceiros do seu bando
morreram atacados pela volante comandada pelo Tenente João Bezerra da Silva. “Com a
morte de Lampião morria também o cangaço” (FERREIRA & AMAURY, p.189). O
movimento durou até os anos 40 sendo, até os dias de hoje, um tema abordado em
livros, músicas, filmes, artesanato, transformando-se em uma espécie de símbolo
cultural e Lampião em herói nordestino.
O movimento foi ferozmente combatido pelo Estado Novo, com Getúlio Vargas,

tendo em vista que a repercussão nos jornais e a astúcia dos cangaceiros nas cidades do

interior do Nordeste começariam a prejudicar a imagem de ordem do seu governo. Em

1937, as películas filmadas pelo mascate libanês, Benjamim Abrahão, foram apreendidas

pela ditadura do Estado Novo, o cinegrafista terminou sendo assassinado e o combate

aos cangaceiros prosseguiu até a extinção do movimento. As imagens de Lampião e seu

bando foram recuperadas nos anos 60 pelo cineasta Paulo Gil Soares e seu produtor,

Thomas Farkas.

A pesquisa executada para a realização de Baile Perfumado trouxe às telas


referências históricas de acontecimentos reais, como a morte do padre Cícero Romão
Batista, a passagem de Benjamim Abrahão pelo Recife e sua coleta de imagens de
Virgulino Ferreira da Silva e seu bando, a pressão do governo para acabar com os
cangaceiros e a morte de Lampião e do libanês. Os fatos reconstruídos no filme ainda
contam com o auxílio de um elemento crucial da história da região Nordeste: as imagens
reais de Lampião e seu bando, feitas por Benjamim Abrahão na década de 30, em
Pernambuco.
A história do cinegrafista libanês que filmou o cotidiano do “Rei do Cangaço” nos
anos 30, transformou-se no roteiro de Baile Perfumado, uma saga contada em ficção
sobre a vontade e as condições de fazer cinema no Nordeste no começo do século XX.
No Brasil, o modo de produção, realização e comercialização de um filme nos anos 90
remete para a experiência vivida por Benjamim Abrahão, narrada no filme de Caldas e
Ferreira. Segundo Sarah Yakhni (2000), em O Baile Perfumado - subversões no cangaço,
Abrahão representa, diegeticamente, o alterego dos diretores. “Através de sua voz, os
cineastas se fazem ouvir, através de suas imagens os cineastas reinventam uma
experiência. O filme de Abrahão legitima o filme dos diretores”. Sendo possível, ainda,
associar a história diegética de Benjamim Abrahão à história vivida pelos realizadores e
sua trajetória para fazer o filme. Segundo João Batista de Brito (p.06), “é como se,
apesar de estrangeiro, o libanês que quer filmar Lampião fosse o alterego dos diretores
do filme, e por extensão, o de todo cineasta brasileiro”. Nesses termos, além de um
filme de cangaço, Baile Perfumado é, antes de tudo, um filme sobre cinema.
A narrativa do filme é movida intensamente pela força da imagem fotográfica.
Num dos primeiros diálogos do filme, Ademar Albuquerque diz para Abrahão, após uma
conversa sobre o equipamento: “Eu fico espantado como essa gente gosta de retrato!”.
Abrahão utiliza a imagem (fotográfica e em movimento) se valendo do seu poder de
manipulação e sedução para chegar até os cangaceiros, que também ficam encantados
pelas imagens. Através de fotografias e filmagens, o mascate agrada a muitos e
encontra caminhos para realizar seu filme. Com as películas da fazenda e do gado de um
poderoso fazendeiro da região, ele consegue financiamento para seu trabalho. As
imagens de Lampião e seu bando seduzem os jornalistas, mas não as autoridades,
acabando com sonho de Benjamim Abrahão. A força das imagens do cinegrafista
determinaram o fim, contribuindo tanto para a extinção do cangaço quanto para sua
própria morte.
O roteiro elaborado pelos diretores e Hilton Lacerda, fundamentado em fatos
reais, mistura tradição e modernidade. É um filme com caráter autoral preciso, afim às
temáticas do cangaço e do messianismo, tão utilizadas no país para representar a região
Nordeste, porém inverso à abordagem prevalecente nos filmes de cangaceiro realizados
até então. Baile Perfumado foge dos enredos centrados na luta entre os bandos e os
“macacos” da polícia ou da alienação religiosa do povo do Sertão nordestino. Esses fatos
encontram-se presente no filme, todavia, não como centro da narrativa, e sim como
fatos pertinentes à época. O objetivo maior da narrativa não é o cangaço em si, mas sim
o percurso do mascate libanês em busca de capturar imagens de Lampião e seu bando,
gerando uma nova versão a propósito do cangaceiro e seu bando.
O foco narrativo de Baile Perfumado está centrado no ponto de vista do
estrangeiro, o protagonista Benjamim Abrahão, que vê no cangaço uma excelente
história para o cinema. No filme, Virgulino Ferreira da Silva ganha um tratamento
autêntico e unívoco no gênero cinematográfico, condizente com a vida urbana, oposto ao
mito nordestino de “bandido-herói” do espaço rural. Em meio a seus conflitos, Lampião
vai ao cinema, ouve música, usa perfume francês, bebe whisky escocês, um cidadão
urbano moderno.
A fusão entre fatos reais e ficção, a exposição dos acontecimentos verdadeiros re-
elaborados em forma de drama e a aproximação estabelecida entre tradição e
modernidade, incorporando o tradicional a uma linguagem contemporânea, presente na
narrativa de Baile Perfumado, faz do filme uma obra com um estilo autêntico,
estabelecendo uma parceria da ficção com o documental, revigorando as tradições
regionais, questionando o estado de desenvolvimento do cinema no país. Baile
Perfumado mostra o Sertão e o Nordeste brasileiro sem os problemas causados pela
seca. É em meio ao Sertão verde e à exuberância da natureza nordestina que os
inquietos como Abrahão e o cangaceiro Lampião buscam mudar o mundo, e cineastas
como Paulo Caldas e Lírio Ferreira fazem uma nova interpretação sobre a natureza
arcaica da região.

3.3 Estética da Retomada: Luz, Som e Montagem

No começo dos anos 90, o cinema brasileiro, até pouco tempo praticamente
estagnado, inicia uma nova fase, após acordar de um sono que parecia profundo e de
uma baixa nas produções cinematográficas, superando lentamente as dificuldades de
realizar filmes no país. Aos poucos, os filmes brasileiros ressurgiam no cenário nacional;
surge uma safra de novos diretores e profissionais mais experientes, trabalhos bem
sucedidos, com reconhecimento geral. À tal fase da cinematografia nacional, iniciada a
partir de 1993, convencionou-se chamar de renascimento ou retomada do cinema
brasileiro.
Nesse período, a qualidade do cinema produzido no Brasil teve um avanço
considerável, firmando trabalhos com nível técnico mais alto do que os de décadas
passadas. Os filmes produzidos na década de 90 demonstram a evolutiva determinação
dos profissionais da área, refletido no domínio tecnológico apresentado nos filmes, mais
precisamente em relação a som e imagem, e na forma pelas quais as temática nacionais
são abordadas. Na retomada do cinema brasileiro, a produção conta com uma vasta
diversificação de estilos, livre de determinados ideais políticos que intervinham nos
enredos, possibilitando aos cineastas mais liberdade de expressão em suas obras para
contar histórias retratadas com a presença de diversas influências das vanguardas
cinematográficas na estética dos filmes. Nesse momento, o cinema nacional começou a
projetar uma nova imagem, mostrando-se maduro, reconquistando o público brasileiro
com sua competência. Surge uma série de filmes que projetam o cinema brasileiro, não
apenas no próprio país, como também no mundo.
Segundo Xavier (p.44), a partir 1993, a nova safra de filmes se tornou mais
apresentável ao grande público e, em 1995, o cinema adquiriu mais densidade, uma
produção com personalidade indefinida, marcada pela grande variedade de estilos. “O
dado típico da década de 1990 foi a diversidade, não apenas tomada como fato, mas
também como valor”. Uma fase do cinema nacional sortida de filmes dos mais diferentes
gêneros, prevalecendo temáticas variadas e formas criativas aplicadas a partir das
condições de produção, com livre arbítrio dos cineastas.
Para algumas fontes, Alma Corsária (Carlos Reichenbach, 1994) é o filme que abre
as portas da retomada do cinema brasileiro. Ele retrata a busca ao sentido da vida,
tratando de forma peculiar e real o tema da periferia. Para Cristiane Nova (1996), o filme
O Qu4trilho (Fábio Barreto, 1995) é o ponto referencial do renascimento cinematográfico
dos anos 90. Depois de anos, o filme levou o cinema brasileiro ao exterior tendo
indicação para o Oscar, num contexto que auxilia a produção nacional a se reerguer. O
roteiro aborda a relação de dois casais de imigrantes italianos determinados a crescerem
social e economicamente no Brasil. A história apresenta adultério entre os casais. Para
Nova (p.164), O Qu4trilho deve ser observado “não apenas como um bom momento do
cinema brasileiro, mas ainda como um documento do ‘renascimento’ da cinematografia
brasileira”. Ainda no início da década de 90, a distribuição do cinema nacional na salas
comerciais e nas emissoras de tevê era um grande problema para nossa produção. A
viabilização e a repercussão dos trabalhos dos cineastas encontrava barreiras, pois o
mercado nacional estava dominado pela assídua produção do cinema estrangeiro.
O filme Baile Perfumado foi produzido com liberdade, apostando nas possibilidades
estéticas, característica da retomada do cinema brasileiro, trabalhando com o referencial
histórico em seu enredo e uma linguagem contemporânea em suas imagens. Segundo
Xavier, no cinema brasileiro dos anos 70 e 80, os cineastas começaram a focalizar o
passado do povo para auxiliar na construção de roteiros e na discussão da problemática
política do presente. Para ele (p.97),

esse diálogo com a história se desdobra também no


levar à tela material de arquivo, peças de museu,
monumentos, num impulso traduzido no aluvião de
documentos convencionais ou nos poucos trabalhos
experimentais que discutiram a questão de como
representar a história, como estabelecer recortes na
experiência visual e sonora de modo a despertar a
reflexão.

Nessa perspectiva, Baile Perfumado insere-se no contexto de filmes históricos


citado por Ismail Xavier, contando com a presença de elementos concretos da história da
região caracterizando a encenação de fatos reais. Na época, o filme de Caldas e Ferreira
não foi o único a enquadrar-se nesse estilo, podemos encontrar, ainda, alguns filmes de
ficção produzidos nos anos 90 que deram ênfase aos acontecimentos históricos do país.
Nesse mesmo período, surgiu, na cidade do Recife, o movimento musical
denominado de manguebit, liderado pelo músico Chico Science e o grupo Nação Zumbi,
Fred O4 e Mundo Livre. O ideal estabelecido pelo movimento era de elaborar um
tratamento contemporâneo para as manifestações culturais pernambucanas, unindo a
arte popular tradicional à estética artística moderna. O manguebit, com sua música
irreverente, contagiou o grande público e a produção artística local. Segundo Figueirôa
(p.105), com a nova forma de expressão, “os cineastas também lançaram sua marca de
fantasia, intitulando a produção pernambucana de árido movie, uma brincadeira, mas
uma tentativa de identificar e unir essa produção em torno de ideais compartilhados”.
Ainda segundo Figueirôa, os filmes do árido movie recebiam um tratamento cuidadoso
em sua forma, diferenciando-se da produção local.
Baile Perfumado não foi o primeiro trabalho desse movimento pernambucano mas,
pela sua repercussão e reconhecimento, sem dúvida, é o filme mais significativo do árido
movie. Uma estética formulada a partir de elementos tecnologicamente modernos,
distribuídos entre a fotografia, a sonoridade e a montagem do filme, aspectos que fazem
com que sua linguagem se torne contemporânea, dando vida nova às tradições nele
representadas.
A fotografia de Baile Perfumado, dirigida por Paulo Jacinto dos Reis, confere
grandiosidade à narrativa a partir dos movimentos de câmera e enquadramentos
aplicados no filme. Planos aéreos, travellings, panorâmicas, planos seqüência, câmera na
mão, uma linguagem que glorifica a história representada. Em alguns planos, a
fotografia segue uma linha baseada no expressionismo alemão, na qual observa-se a
predominância das sombras dos personagens bem definidas pela luz, imagens com
proporções distorcidas pela utilização de lente grande angular e cenas compostas com
espelho e reflexo.
O filme explora com abundância a cor verde nas cenas externas referentes ao
cotidiano dos cangaceiros no Sertão, a cor azul nas imagens flashback de Benjamim
Abrahão e a luz artificial amarela nas cenas internas. A coloração aplicada no filme
valoriza o espaço em representação, subsidiando o fortalecimento das tradições
sertanejas. Em Baile Perfumado, a luz amarelada, montada artificialmente nas locações
interiores, ironiza a exacerbação da luz amarelada natural dos espaços áridos, explorada
com freqüência por vários filme que abordam a temática do Sertão. Contudo, a
artificialidade da iluminação de algumas cenas transparece claramente.
A câmera comandada por Jacinto Reis, conduzida a partir do ponto de vista de
Benjamim Abrahão, a quem se dá o foco narrativo do filme, confere centralidade à
trajetória do libanês em busca das imagens de Lampião e seu bando de cangaceiros. Às
vezes, os diretores chegam a colocar o espectador na subjetividade das câmeras do
libanês, como nas cenas em que Abrahão está fotografando uma família e a imagem
aparece ao contrário, como também nas filmagens do bando.
A sonoridade de Baile Perfumado está totalmente agregada à musicalidade do
movimento manguebit. Com direção musical de Paulo Rafael, as músicas utilizadas como
trilha sonora do filme foram compostas por Chico Science, Lúcio Maia, Siba e Fred O4,
contando, ainda, com a participação outros músicos pernambucanos, como Mestre
Ambrósio, Lenine, Alceu Valença, Stella Campos, Luis e Manuel Paixão, Márcio Miranda e
Ortinho Coelho.
A música do Baile Perfumado assume um papel de relevância no enredo do filme,
as letras e a sonoridade participam da trama e da estética proposta com grande
afinidade. Segundo Brito (p.06), a música do manguebit usada como trilha sonora do
filme “não tem nada do Olê mulher rendeira da tradição”, utilizada com freqüência nos
demais filmes de cangaceiro. A trilha sonora contribui com a idéia de fundir tradição e
modernidade traçada desde o roteiro.
No filme, o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, no barco com o bando e outros
tripulantes, pede para alguém tocar uma música. Após insistir, um músico se oferece
para tocar para os cangaceiros. O músico do barco diz para Lampião: “Capitão, tem um
tal de um Baile Perfumado que eu não sei tocar direito, não, mas vou fazer uma meia
sola aqui para vê se é do seu agrado”. Então ele pega a rabeca, confere a afinação e
toca a música para o bando. A sonoridade natural da rabeca, logo se funde com uma
trilha sonora no estilo manguebit, transformando a situação sonora do filme para o
espectador, ou seja, a música se torna heterodiegética. A música Baile Perfumado,
versão rabeca, é a canção executada no barco, que se ouve em cenas posteriores em
outros arranjos.
No bando, a mando de Lampião, inicia-se um baile com direito a bebida e música
ao vivo. A festa dos cangaceiros é animada pelo grupo pernambucano Mestre Ambrósio,
numa estrutura de sonoridade tradicional da região, tocando, mais uma vez, a música
Baile Perfumado, em versão sanfona. Enquanto isso, o libanês registra, com sua câmera
de filmar, os cangaceiros dançando alegremente e embriagando-se. Pouco depois,
Abrahão se junta à festividade do bando. A música faz parte do espaço diegético do filme
enquadrando-se, também, às pretensões inovadoras dos diretores.
A sonoridade do filme também é exposta através de equipamentos modernos,
referentes à época, como na cena em que Benjamim Abrahão está na casa de Zé de
Zito, após tomarem aperitivo, conversando com a mulher do dono da casa, ao som da
música tocada no gramaphone; ou ao término do baile dos cangaceiros, quando Lampião
narra uma de suas histórias ao som de um vinil tocado no gramphone e, ainda, as
notícias radiofônicas sobre as imagens de Abrahão.
As últimas imagens do Capitão Virgulino Ferreira apresentadas no filme estão
postas em forma de clip ao som da música Sangue de Bairro, de Chico Science. Os
diretores misturam imagens aéreas do Raso da Catarina, onde os cangaceiros, por
vezes, se abrigavam, aos registros originais de Lampião feitos por Abrahão nos anos
trinta e aos monumentais planos do “Governador do Sertão” sobre os rochedos de sua
localidade. Nesse instante, a letra de Science favorece a mitificação do cangaceiro
proposta pela cena. Ao som da guitarra distorcida, a música cita o nome dos integrantes
do bando de Lampião e faz questionamento sobre vida e morte, característica marcante
do cotidiano dos cangaceiros.
Na montagem, Baile Perfumado se constitui uma narrativa com estrutura não-
linear, em que se dissolve a idéia de cronologia da história. Para Brito (p.06), a
montagem do filme “desmonta a convenção fazendo a estória se fechar, não no final,
mas no começo, ‘vinte e cinco anos atrás’”.
A não-linearidade da montagem de Baile Perfumado reduz a carga de importância
do desfecho tradicional das histórias de Lampião, centradas na morte do cangaceiro. A
cena em que os diretores tratam da morte dele, quando um soldado depõe sobre a
morte dos onze cangaceiros pegos numa emboscada na cidade, encontra-se dispersa
pela localidade empregada no filme, posta bem antes do encerramento. A cena final de
Lampião no filme mostra o Capitão Virgulino Ferreira pairando sobre a paisagem do
Sertão nordestino, estratificado sobre os rochedos como uma espécie de mito regional.
Essa seqüência indica o fim do cangaceiro e cristaliza a imagem do mitológico
“Governador do Sertão”.
A junção dos elementos sonoros com os imagéticos estabelecem um ritmo ágil e
dinâmico, composto por cenas rápidas, derivadas do vídeo clip. Uma performance que
transforma o arcaísmo do Sertão nordestino em cultura contemporânea, fortificando um
outro discurso sobre a região Nordeste, não mais o da problemática causada pela seca.
O ponto crucial da montagem de Baile Perfumado está no uso das imagens reais
de Lampião, feitas por Benjamim Abrahão na década de trinta, dentro da ficção que
narra o percurso percorrido para a captura das mesmas. O emprego de tais imagens na
montagem contribui claramente para o teor de credibilidade histórica do filme, ajudando
a legitimar a história narrada como registro do fato em si, ciente de que essas são as
únicas imagens de Lampião existentes até os dias de hoje. Segundo Brito (p.06), um
grande momento do filme “está na utilização dos documentários da época, e na criação
de falsos documentários, todos misturados e confundidos com a mise-en-scène de modo
a instantaneamente não permitir distinção”. Numa análise posterior sobre a narrativa, as
imagens reais de Lampião e seu bando desvendam o realismo exposto pela ficção, o
caráter de versão cinematográfica de ficção é contrastada com o documentário no
momento em que elas aparecem. O que até então parecia verdadeiro transfere-se para o
plano de representação fictícia da história do mascate libanês que filmou o Capitão
Virgulino Ferreira da Silva e seu bando.
Outro ponto importante sobre a utilização de imagens históricas do cinema
pernambucano, na montagem de Baile Perfumado, está na presença de trechos de A
Filha do Advogado (Jota Soares, 1927). O filme representa a obra mais importante do
Ciclo do Recife. Segundo Figueirôa (p.18), o filme de Soares “marcou o apogeu do
prestígio da produção pernambucana, tendo sido exibido comercialmente no Rio de
Janeiro em 31 cinemas”. A exibição do filme de Soares na cidade do Recife não se deu
na década de 30, a colocação dessas imagens em Baile Perfumado são uma menção à
produção local, uma homenagem de Paulo Caldas e Lírio Ferreira ao cinema dos
pioneiros da década de 20, cuja produção é considerada marco inaugural do cinema
pernambucano, conhecido nacionalmente como o “Ciclo do Recife”.
A organização da conexão entre as cenas de Baile Perfumado cria um aspecto de
unidade espacial aproximando o espaço rural ao urbano do Nordeste. A montagem
diminui a distância ideológica e geográfica entre a zona urbana e a rural no filme,
diminuindo assim a dicotomia social entre matuto e citadino.
Diante de suas condições de produção, o filme de Caldas e Ferreira possui uma
resolução estética madura, com a utilização de movimentos de câmera, trilha sonora e
seqüência de cenas que tornam a narrativa de Baile Perfumado, por vezes, um pouco
hermética para espectadores medianos. O filme expõe o potencial criativo dos cineastas
que trabalharam com poucos recursos financeiros.

3.4 A Terra Fértil

A representação do Sertão nordestino em Baile Perfumado centra-se num


momento de produtividade da região, repleto de água e terras verdes. A cena de
apresentação do ambiente em que a história se passa, constitui um plano aéreo em que
a câmera sobrevoa um rio com grande quantidade de água e falésias, mostrando a
vegetação verdosa das terras da caatinga, ao som do estilo musical manguebit. O plano
exibe as terras do Sertão brasileiro com grandiosidade e excelência.
O filme trás com freqüência, durante a narrativa, imagens do verde da vegetação
da caatinga e de águas correndo nos rios e armazenadas em açudes. O cenário de Baile
Perfumado difere dos demais cenários utilizados nos filmes que abordam o Sertão,
realizados anteriormente, onde a aridez e o clima tórrido de suas terras eram elementos
primordiais de tais narrativas.
No Diário de Pernambuco, o cinegrafista Benjamim Abrahão fala com orgulho das
imagens, por ele capturadas, aos jornalistas. Na entrevista, um jornalista pergunta sobre
a caatinga para o libanês que descreve a região da seguinte forma: “Olha, o caatinga é
um coisa muito séria. Desanima! A gente vê pra todo lado espinho de mandacaru,
facheiro, urtiga e macambira. Ser um excelente inferno!”. Paradoxalmente, Abrahão
revela em seu discurso a variedade de plantas existente na região, diferenciada da
vegetação sertaneja apresentada em outros discursos, dos galhos secos e da terra
rachada, mesmo afirmando que a caatinga ainda é um “inferno”.
A proximidade entre a zona rural e a zona urbana, projetada no filme, expressa o
fortalecimento da região Nordeste como um todo, constituindo um Sertão sem aspectos
de miséria ou escassez, com recursos e equipamentos modernos, que se agregam à
sociedade do campo.
O espaço urbano nordestino da época, representado em Baile Perfumado,
apresenta um estado de desenvolvimento citadino atualizado, marcado pela utilização
cotidiana de diversos equipamentos novos, constituintes de uma sociedade moderna. No
filme, há algumas cenas que expressam o desenvolvimento do Nordeste na década de
30. Benjamim Abrahão está sentado à mesa de jantar com algumas pessoas, lendo, com
orgulho, a matéria publicada com o depoimento de Lampião sobre suas filmagens
quando, de repente, falta energia. O libanês acende um palito de fósforo e diz com
ironia: “Você esqueceu de pagar a tarifa da eletricidade!”.
Ainda nos primeiros contatos para realizar suas filmagens, Benjamim Abrahão
encontra-se com Zé de Zito na estação ferroviária. Para tratar de negócios, Zé de Zito
leva o libanês, de automóvel, para sua casa. No caminho, Zé de Zito pergunta a Abrahão
se poderia andar mais rápido no carro, em seguida acelerando o automóvel e afirmando:
“velocidade! Isso é bom feito a peste!”. A frase se torna cômica quando ele afirma que já
chegou a quase 60 Km, dirigindo nas ruas do Recife. O automóvel, nessa e em outras
cenas, é um elemento que afirma o desenvolvimento regional, e a velocidade remete ao
ritmo do processo de modernização.
Quando o libanês chega com a idéia de fazer cinema em Pernambuco, isso já não
era mais novidade. Em Baile Perfumado, a cena de apresentação de Lampião e Maria
Bonita se passa no cinema, vendo A Filha do Advogado. O filme de Soares foi produzido
em Recife e apresenta imagens do centro da cidade na década de 20, com automóveis e
pessoas transitando pelas ruas.
O filme de Caldas e Ferreira ainda exibe alguns outros elementos que simbolizam
os traços de uma sociedade urbana moderna, como rádio, garrafa de whisky, perfume
francês, gramaphone, câmera fotográfica, entre outros.
A representação das terras do Nordeste e do Sertão brasileiro em Baile Perfumado
centra-se numa realidade pouco explorada sobre a região, retratada num período não
afetado pelo fenômeno climático da seca, provocador do subdesenvolvimento regional. A
narrativa é apresentada sob um cenário sertanejo não muito comum, filmado entre
folhas verdes e águas cristalinas, entre automóveis, máquina fotográfica e filmadoras,
representa uma região não mais representada a partir da problemática do atraso e da
miséria nordestina, e sim enfatizando a fartura e o progresso de suas terras férteis, um
Sertão não mais ultrapassado pela modernidade, e sim unido naturalmente ao progresso
urbano.

3.5 O Homem Valente

A representação do homem nordestino em Baile Perfumado diverge do esteriótipo


do sertanejo, construído a partir da figura do matuto sofredor, preso à crueza de sua
terra improdutiva, sujeito a permanecer fixado às suas tradições e condições precárias,
desprovido de qualquer educação social e conhecimentos atuais dos centros urbanos,
uma espécie de “selvagem inocente”.
No filme de Caldas e Ferreira, a imagem do homem do Sertão e do Nordeste
brasileiro centra-se na valentia dos principais personagens da narrativa, diante da
perseverança do libanês de realizar um filme sobre o homem mais perigoso da região, da
coragem do cangaceiro Lampião de enfrentar as forças volantes do Estado, e das
práticas violentas do Tenente Rosa sobre os homens oprimidos da região no seu objetivo
de deter os cangaceiros. A valentia do homem nordestino é valoriza tanto pela decisão e
atitude de Benjamim Abrahão de filmar o cotidiano de Lampião e seu bando, quanto na
personalidade do próprio Virgulino Ferreira da Silva e do Tenente Lindalvo Rosa.
O mascate libanês, Benjamim Abrahão, é um cidadão estrangeiro que veio a
Pernambuco com o propósito de filmar o cotidiano dos cangaceiros e de “mudar o
mundo” com sua inquietude. Em Recife, para adquirir recursos financeiros e encontrar
meios para filmar Lampião e seu bando, o cinegrafista, homem de muita conversa,
utiliza seu poder de persuasão, enquanto busca apoio de algumas figuras importantes da
região para alcançar seu objetivo.
Depois de tantas conversas com pessoas influentes, Abrahão consegue infiltrar-se
no bando de Lampião e convencer o cangaceiro a se deixar filmar pela sua câmera
cinematográfica. Dialogando sobre a proposta e mostrando fotografias ao Capitão, após
o pedido de explicação sobre as filmagens e as vantagens disso tudo, o libanês diz a
Lampião que aquilo renderá muito dinheiro para eles e, “além disso, Capitão vai ficar
mais popular ainda, todo mundo vai ficar sabendo até onde vai poder da ‘Governador do
Sertão’”. Ainda desconfiado, Lampião afirma que “Seu Abrahão” é um homem de muitas
palavras, mas concede ao libanês o direito de filmagem.
Com o trabalho quase terminado, o mascate libanês recorre à imprensa para
anunciar a audácia de sua atividade. Mas a repercussão da fita acaba por prejudicar o
sonho e a vida de Abrahão, pois as imagens de Lampião e seu bando seriam vistas como
uma afronta aos créditos da nacionalidade. Logo a fita foi apreendida e o cinegrafista
libanês foi assassinado no Nordeste brasileiro.
O interesse do libanês em filmar Lampião e seu bando termina por valorizar o
movimento do cangaço, visto como símbolo da tradição regional e elemento
representativo da cultura nordestina.
O Capitão Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, é o líder do bando de
cangaceiros, grupo formado por camponeses pobres e oprimidos, que juram vingança
pela humilhação sofrida, pelo abuso de poder dos coronéis e latifundiários da região. No
filme, Lampião é um homem rude, porém sofisticado, freqüentador e apreciador das
atividade sociais da cidade do Recife, conhecedor da região e decidido na liderança de
seus homens.
Em Baile Perfumado, o Capitão Virgulino Ferreira recebe o libanês em seu grupo e
concede o direito de filmagem, porém sempre desconfiado das atitudes de Benjamim
Abrahão, atento a qualquer movimento em falso. Dá confiança ao cinegrafista, mas
chega a ameaçá-lo por desconfiança, até bani-lo do grupo quando precisa partir em
retirada.
Frente à câmera de Abrahão, mostrando intimidade com o equipamento, Lampião
depõe com naturalidade: “Os Senhores está vendo aqui o verdadeiro ‘Governador do
Sertão’, a quem vocês deviam obedecer e a respeitar, mas, como não querem, a culpa
não é minha de ter de esgoelar vocês”, e prossegue seu depoimento com o punhal na
mão direita em posição de ataque.
O Lampião apresentado na narrativa do filme desfruta das mais variadas
habilidades típicas do cidadão urbano: ir ao cinema, passear de barco à vela, ouvir
música. Segundo Brito, o Lampião de Baile Perfumado foge das representações
formuladas pelo gênero em outros filme. No cotidiano do bando temos um sofisticado
cangaceiro que, “entre uma facada e outra, curtia whisky escocês e entre um tiro de
bacamarte e outro, se banhava de perfume francês” (BRITO, p.06). O Lampião proposto
pelo filme representa o homem do Sertão, predominantemente rural, incorporado ao
perfil do cidadão urbano, desfrutando dos privilégios de aparatos modernos somando-os
às suas tradições.
O Tenente Lindalvo Rosa é uma autoridade da região, personagem baseado no
típico soldado nordestino da época que abusa de sua patente e poder para se sobressair
no seu meio social; sua postura autoritária e violenta se expressa pela grosseria dele
com os soldados sob seu comando e com outras pessoas. No filme, Rosa vive
determinado a liquidar Lampião e seu bando. Quando se refere a Lampião, como
demonstra em seu diálogo com Abrahão, é da seguinte forma: o libanês fala que
conheceu Capitão Virgulino Ferreira da Silva em Juazeiro do Norte com padre Cícero.
Então, Rosa diz com ironia: “O senhor deve tá enganado, porque bandido não pode ser
Capitão e padre não deve ser coiteiro!”.
Pelo fato de não conseguir capturar Lampião, o Tenente Lindalvo Rosa agride os
moradores que acredita terem conhecimento do paradeiro dos odiados cangaceiros. No
filme, em outro diálogo com o libanês, Rosa convida Abrahão por um instante para ver
algo, e então, um soldado ergue nas mãos a cabeça de um cangaceiro. O libanês passa
mal quando vê aquilo, e, então, o Tenente brinca com ele: “Oxente, homem! Tá se
afrouxando, seu Benjamim? Apois me diga se isso aí não é a imagem mais justa do
mundo?”.
Lindalvo Rosa representa o perfil autoritário também representado pelos coronéis e
latifundiários da região Nordeste, que sustentam uma personalidade bruta, ignorante,
diante o povo da região em que atua. Porém, em sua jornada, Rosa termina sem
conseguir prender o Capitão Virgulino Ferreira da Silva e muito menos impor sua
autoridade sobre Lampião.
Um outro personagem posto no enredo tem grande importância na representação
do messianismo praticado no Sertão brasileiro: o padre Cícero Romão Batista. No filme,
ele aparece na primeira cena agonizando, prestes a morrer. Na narrativa, Abrahão usa
diversas vezes seu nome para alcançar seu objetivo, prevalecendo-se da credibilidade do
padre na região para abrir seus caminhos. O padre Cícero, até os dias de hoje, é um
mito messiânico de grande importância para a cidade de Juazeiro do Norte e para a
região Nordeste.
O homem nordestino, personificado em Lampião, representado em Baile
Perfumado, assume um perfil híbrido entre o urbano e o rural, sendo, ao mesmo tempo,
praticante de suas tradições camponesas e, também, dos novos costumes citadinos. O
homem nordestino em Baile Perfumado é construído através do valor de suas tradições e
do seu modo de vida, livre da repressão de autoridades regionais ou exploradores
emigrantes, marcado pela força de sua atitude e pela independência de sua maneira de
ser. Essa versão o mostra diferenciado dos demais modelos estabelecidos em outras
representações, pois incorpora os elementos de modernidade no seu cotidiano rural.

3.6 Cenas Perfumadas


O fortalecimento de uma região marcada pelo discurso do subdesenvolvimento
pode ser observado no enredo de Baile Perfumado através de diversos aspectos. Uma
história que retrata uma realidade poucas vezes vista sobre o Sertão e o Nordeste
brasileiro.
Em Baile Perfumado, as terras do Sertão são representadas em boas condições de
produtividade, verdes e úmidas, acessíveis a outros pólos, onde o homem do campo não
enfrenta os problemas de aridez e falta de acesso a determinados benefícios do processo
de modernização. A história narrada no filme transcorre sob uma abordagem nova do
Sertão nordestino, unindo cultura regional tradicional e contemporânea, o arcaico
mistura-se ao moderno. Na narrativa podemos encontrar, em algumas cenas, esse
tratamento do Sertão brasileiro potencializado. A seguir, discorreremos sobre duas cenas
do filme.
Segunda cena do filme, apresenta a querela entre os cangaceiros e os “macacos”
da polícia. Ao som de tiroteio, Lampião aparece, em plano fechado, correndo entre folhas
verdes, na luta contra os soldados da volante. Ele vira-se e atira em direção ao inimigo.
Os cangaceiros estão correndo. Um soldado parado atrás de uma árvore, dá um tiro de
espingarda, vira para os companheiros e grita: “Avança, peste!”. Fazendo gesto com a
mão para avançarem, os soldados prosseguem perseguindo os cangaceiros. A correria, a
troca de balas e os insultos orais continuam sem cessar. Um cangaceiro aponta a arma
para o inimigo gritando: “Macaco da peste! Toma essa, filho do cão!”, e atira nos
soldados. Os “macacos” continuam atacando. Um cangaceiro acerta um soldado, mas a
luta continua. Em plano fechado, Lampião mira com seu revolver e atira nos “macacos”.
Um cangaceiro grita para recuar quando o Tenente Lindalvo Rosa aparece com uma
metralhadora atirando contra o bando. Um cangaceiro, recém atingido na perna, está
sendo ajudado, por outro do bando, a fugir. Um “macaco” atira e grita furioso: “Lampião,
filho de uma égua, tu vai morrer, condenado!”. A essa altura, o Capitão Virgulino
Ferreira da Silva está protegido numa trincheira por trás de algumas árvores. Rosa
encontra o soldado atingido, abaixa-se para conferir o estado do soldado e percebe que
ele está morto. Então ele pega a espingarda, levanta-se e grita revoltado com a
situação: “Seus bandidos de merda! Apois eu vou é matar vocês tudinho. E promessa de
um Rosa é dívida de cemitério. Lampião, cão de uma figa, tu vai ver só como eu vou
acabar com a tua raça até o fim do mundo, boba serena! Tu vai ver só o que é que
acontece, molesta!”. Distante, Lampião está atento à luta, quando percebe que a troca
de tiros acabou. No silêncio da mata, com um ar risonho, ele ergue o revolver e atira
para cima, o que confirma o fim da querela.
Pode-se perceber que a cena da batalha entre os cangaceiros e os “macacos” da
polícia torna-se uma luta onde ambas as forças se mostram disponíveis a combater seu
inimigo, expressa na valentia de Lampião e na obrigação de ofício de Lindalvo Rosa. O
poder paralelo dos cangaceiros é então caracterizado como luta contra o poder
institucional do Estado. O bando de Lampião enfrenta as forças armadas do Governo,
troca tiros e insultos verbais, mata um soldado e continua nas terras do Sertão
nordestino. Os “macacos” tentam impedir o bando de cangaceiros, mas não conseguem
dominar o comando do Capitão Virgulino Ferreira da Silva. Nessa cena, o homem
nordestino não recua diante das ameaças das forças urbanas, ele combate e se mostra
capaz de suportar as agressões da polícia do Estado e responder à altura, com o mesmo
nível de violência.
Em outra cena, Maria Bonita está penteando, com afeto, os cabelos de Lampião. O
cangaceiro permanece de cabeça baixa, um tanto dengoso. Então ela olha para a câmera
de Benjamim e fala para o libanês: “Tá vendo como o bicho é manhoso, seu Abrahão?
Isso gosta que só desses carinhos!”. Em seguida, ela direciona o olhar para Lampião e
diz: “Não é, Virgulino?”. Lampião, um pouco acanhado com a situação, ergue a cabeça e
fala para Maria Bonita: “Minha filha, seu Abrahão não tá muito interessado nessas
coisas, não”. O libanês afasta olho que estava por trás da câmera de filmar e responde:
“Pois nós tá sim, Capitão. Nós tá muito interessado em tudo que fala de você”. Sendo
assim, Lampião começa a banhar, à vontade, Maria Bonita e ele mesmo de perfume
francês e, em seguida, vira-se para a câmera de Abrahão e joga perfume em direção a
ela, também.
O afeto trocado pelo casal de cangaceiros, expresso na cena descrita, expõe o lado
sentimental do destemido Lampião. Nessa cena, o rude Virgulino Ferreira se transforma
numa homem emotivo, manhoso, “derrotado” facilmente pela carícia de sua mulher,
uma imagem que acende as fraquezas do “Rei do Cangaço”. Outro aspecto encontrado
nessa cena é a vaidade do cangaceiro em se arrumar, pentear os cabelos e se banhar de
perfume, associando Lampião ao perfil citadino, marcado pela prática de costumes do
homem urbano que se veste bem para se adequar ao meio social e seus padrões de
vida. O sertanejo não é mais um homem bruto e selvagem, mas sim um homem incluso
ao perfil universal de cidadão.
Em parâmetros gerais, a abordagem de Baile Perfumado sobre o Sertão e o
Nordeste brasileiro, não mais centrada na secura das terras áridas da região e na
expropriação rural, e sim na cultura e na tradição de seu povo, retratando, também, o
desenvolvimento regional nordestino e o valor de seus atos; ele centra suas lentes
noutro aspecto do Sertão nordestino, que remete ao seu lado urbano, desenvolvido e
moderno. O filme sugere algo novo em relação ao tratamento temático prevalecente na
cinematografia brasileira, uma forma rara de representação cinematográfica da região.

CONCLUSÕES

O cinema é um meio de expressão artística no qual o diretor utiliza imagens em


movimento e som para contar histórias através das quais expõe suas idéias.
Primeiramente, na escolha do tema, depois, do ponto de vista narrativo que autoriza
uma certa abordagem lançada sobre o assunto e, finalmente, nas escolhas técnicas que
faz para compor a narrativa. O filme é, pois, uma obra com marca autoral. Através dele,
revela-se posições políticas, ideológicas, preconceitos, visão de mundo, etc., suscetíveis
de análise através da abordagem que o diretor/autor respalda.
Como ferramenta narrativa, o filme oferece uma ampla possibilidade de expressão
ao diretor, válido entre os elementos comunicativos possíveis, constituídos em imagem e
som, e as inúmeras condições de organização plástica desses elementos. Nessas
circunstâncias, o aspecto determinante do cinema é a forma pela qual as histórias são
contadas.
A contextualização histórica de um filme também é uma medida necessária para a
melhor compreensão sobre o modo pelo qual o diretor narrou sua história. Através do
referencial histórico do período de produção do filme, o conhecimento sobre as
tendências ideológicas da época e a estrutura estética da obra, tornam-se mais
esclarecedores em relação ao produto final. Com isso, pode-se observar os ideais de
produção da narrativa, a influência de modelos ou ideais de vanguardas cinematográficas
utilizados no filme, os aspectos sócio-culturais em representação, a militância
empregada na obra pelos seus realizadores, entre outros.
O estudo estético e histórico de uma obra cinematográfica são caminhos
imprescindíveis para o entendimento da forma narrativa de um filme; proporciona, em
si, a transparência da abordagem utilizada sobre uma determinada temática e
demonstra o quanto a história representada é verossímil.
Na história do cinema nacional, o Sertão e o Nordeste brasileiro foram tematizados
em roteiros cinematográficos por diversas vezes. Na maioria dos filmes, a abordagem
sobre a região utiliza a recorrência da seca, fenômeno climático que causa sérios
problemas para o Nordeste. O tema se tornou corrente em todo o Brasil a partir do
século XIX, desde a “grande seca” de 1877, transformado-se em discurso de conteúdo
social de várias ordens, inicialmente utilizado pelas elites dirigentes regionais para
satisfazer seus interesses e manter o fluxo de recursos públicos para a região,
apropriando-se de boa parte deles. Posteriormente, integrou os diferentes discursos a
propósito da região, o histórico, o sociológico, o artístico, entre outros.
Observamos que, numa minoritária produção cinematográfica, a temática do
Sertão e do Nordeste brasileiro é trabalhada numa perspectiva diferente, centrada na
fartura das terras, na riqueza cultural dos homens, na tradição regional, tendo ainda
histórias filmadas nos centros urbanos, em cenários citadinos, mostrando o
desenvolvimento regional e os efeitos causados pelo modernismo no Nordeste.
Decorrente da análise realizada no presente trabalho sobre os filmes Vidas Secas,
de Nelson Pereira dos Santos, e Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira
constatamos que eles apresentam afinidades e diferenças fundamentais, constituídas nas
abordagens que autorizam sobre o Sertão e o Nordeste brasileiro. O estudo histórico e
estético sobre os dois filmes aponta para a distinção entre as abordagens.
O contexto histórico é um dos elementos que, em nossa avaliação, conduz os
ideais de representação de cada um dos filme, levados por caminhos diferenciados, não
apenas sócio-político, verificados em cada um dos períodos, como também pelas
expectativas em relação à arte cinematográfica e as conquistas técnicas e estéticas de
cada época.
Vidas Secas foi produzido nos anos 60, no Sul do país, sob uma efervescente
conjuntura política na qual os artistas viviam o clima de ideais revolucionários. Os
artistas da época levavam o pensamento de esquerda para o âmbito de suas obras,
influenciadas, assim, pelo ideal de mudança, na esperança de construir um país melhor.
O ideal que conduzia os cineastas integrantes do Cinema Novo para a realização de seus
filmes confirmava-se na seguinte frase: “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”. A
frase, atribuída ao modo de produção, descreve a perspectiva dos cinemanovistas
daquilo que consideravam necessário para realizar filmes em meio à conjuntura política
do período. A intenção era fazer cinema subdesenvolvido para tirar o país do
subdesenvolvimento. As questões sociais são as principais temáticas, e o Brasil dos
deserdados invade, desse modo, as telas nacionais.
Nelson Pereira do Santos escreveu seu roteiro com base no romance do escritor
nordestino Graciliano Ramos. O livro integra a produção literária regional da década de
30, período em que as obras buscavam mostrar a realidade social. O filme é uma
adaptação do livro, que retrata com vigor um problema climático com repercussões
sociais existente no Nordeste brasileiro. Além da seca, o filme apresenta a condição de
pobreza dos camponeses e trabalhadores do meio rural e social do Sertão que são
explorados pelo latifúndio da região. Latifúndio esse que, tanto quanto a seca, oprime o
homem trabalhador no meio rural. Dessa forma, Vidas Secas constrói um discurso
cinematográfico sobre o Sertão e o Nordeste brasileiro a partir dos ideais revolucionários
de esquerda do Cinema Novo.
Já Baile Perfumado foi produzido nos anos 90, no Nordeste brasileiro, após a
política de contenção que quase extinguiu a produção artística do país. O filme surge
num período em que os ideais revolucionários de esquerda não estão mais na ordem do
dia. Os cineastas apontam para temáticas mais amplas. A diversidade é a marca da nova
produção cinematográfica nacional. Não há, nessa conjuntura, espaço para motes do
gênero Cinema Novo, pois tornou-se impossível fazer cinema com “uma idéia na cabeça
e uma câmera na mão”; também não é mais possível ignorar o mercado e suas
exigências estéticas e temáticas. O objetivo de produção dos diretores desta nova
geração é de prezar pela qualidade técnica dos filmes realizados no Brasil, resultando
num cinema que tem reerguido a produção nacional, recém saída de uma crise.
Paulo Caldas e Lírio Ferreira escreveram o roteiro de Baile Perfumado a partir de
fatos verídicos da história de Pernambuco. A história do filme é baseada em
acontecimentos ocorridos na década de 30. A narrativa engloba personagens e situações
reais da história da região, utilizando, também, elementos fílmicos condizentes à época
representada, além de mostrar a região sob uma outra realidade: a fartura. Uma
representação do Sertão nordestino construída a partir das condição climática natural do
inverno da região, centrado em tradições e cultura, influenciado pela modernidade e
desenvolvimento.
O discurso cinematográfico de Caldas e Ferreira se apresenta como voz opositora
do discurso predominante sobre o Sertão e o Nordeste brasileiro. Baile Perfumado se
mostra antagônico no sentido de construir um contra-discurso frente às abordagens que
contribuem para a formação de uma imagem cristalizada do Nordeste: o rural é arcaico,
o Sertão é miséria, e nordestino é ignorante.
Os diretores se contrapõem a este “discurso da seca” a partir da utilização das
mesmas temáticas abordadas nos demais filmes sobre a região: a do cangaço e a do
messianismo. O filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira mostra os referidos temas sob um
novo olhar mitológico. Expressos nos personagens de Lampião e Padre Cícero, Baile
Perfumado reafirma o papel histórico do cangaço e do messianismo para o povo
sertanejo e a importância desses, como parte da cultura popular nordestina. O
cangaceiro é o assunto do maior interesse para ser filmado pelo estrangeiro (o libanês
Benjamim Abrahão) e o padre é ícone da fé do Nordeste, um referencial da crença
religiosa do povo nordestino e uma personalidade que ajuda o libanês a conseguir
realizar as filmagens de Lampião e seu bando. Isto quer dizer que o cangaceiro não é
mais o selvagem e o messianismo não é puro e simplesmente produto de alienação.
As tradições do povo do Sertão nordestino são representadas em cada uma das
abordagens sobre a região nas proporções devidas. Enquanto Vidas Secas apresenta as
tradições nordestinas em sua forma mais arcaica, pela forma que representa o Sertão
nordestino, o Baile Perfumado transforma o que parece antiquado em cultura popular,
unindo as tradições a elementos modernos, criando uma metamorfose que revitaliza os
costumes do Sertão em sua representação.
Este contra-discurso dos diretores pernambucanos apresenta um espaço rural que
se moderniza pela proximidade estabelecida com aquilo que faz o cotidiano dos centros
urbanos, onde os moradores do interior da região tinham acesso a alguns equipamentos
do modernismo citadino, um Sertão verde e rico em tradições e um nordestino valente e
astuto, capaz de superar as condições adversas.
O filme não explora a recorrente cena da chacina do grupo de cangaceiros, suas
últimas imagens de cangaço concentram-se no Lampião vitorioso reinando sobre o
Sertão usando apenas como referência à morte a música de Chico Science. As últimas
imagens do filme, no flashback que mostra a chegada de Benjamim Abrahão em
Pernambuco, remetem à necessidade de “inquietude” para “mudar” o mundo. Nesse
caso, podemos apontar a necessidade de construir um discurso que “mude” a visão
fixada sobre a região, produto da inquietude dos cineastas.
O roteiro de Baile Perfumado moderniza a região representada entre o urbano e
rural, homens do campo e da cidade. Os diretores parecem mais preocupados em
discutir a importância da imagem, da novidade fotográfica que encanta,
simultaneamente, o rico fazendeiro e o famoso bandido do Sertão, do que os problemas
econômicos e sociais da região. A questão da imagem, presente na trama da história
narrada, apresenta-se, também, no plano diegético da obra, explícito na organização
plástica do filme, responsável pela projeção do contra-discurso dos diretores.
Enfim, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Baile Perfumado, de Paulo
Caldas e Lírio Ferreira, representam duas versões matizadas sobre a mesma temática.
Nesse sentido, os filmes reafirmam o ponto crucial das abordagens sobre a região: o
Nordeste é o Sertão. Contudo, o cinema da retomada, apesar de seu esforço por realizar
um contra-discurso afirmativo da região, recorre aos mesmos termos da equação. Baile
Perfumado mostra que talvez seja necessário utilizar outros espaços que não o da
tradição para realmente dizer algo cinematograficamente novo em relação ao Nordeste,
ainda que reconhecemos algo novo no olhar dos novos cineastas nordestinos.

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* Matheus Andrade é professor substituto do Curso de Comunicação Social da UFPB.

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