Você está na página 1de 3

Gênero, Estado e parentesco: entrelaça-

mentos que orientam representações


sociais
O clamor de Antígona: fim de promover ao/à leitor/a um conhecimento
mais fiel sobre a organização da obra.
parentesco entre a vida e a No primeiro capítulo, intitulado “O clamor
morte. de Antígona”, Judith Butler retoma a tragédia
grega de Sófocles, para desenvolver um olhar
BUTLER, Judith.
sobre as relações gênero, Estado e parentesco.
Florianópolis: Editora da UFSC, 2014. 127 p. Mas essas três noções não estavam tão evidentes
no início de suas inquietações. Primeiramente, a
autora, em sua obra, propõe que Antígona teria
usado de esforços feministas para desafiar e
Filósofa estadunidense e pós-estruturalista, confrontar o Estado. Butler afirma que esse era
Butler é um nome de indiscutível relevância na um ponto principal de sua pesquisa, mas que se
área de estudos de gênero e dispensa apre- confrontou com uma forma de representação
sentações. Apesar da sua intensa contribuição, do parentesco que, de certo modo, está presen-
bem como da vasta utilização de suas obras e te na esfera política. Muito do que se percebe
pensamentos aqui no Brasil, alguns de seus em relação a questões de parentesco e organi-
trabalhos ainda não se encontram ao alcance zação social nesse nível se dá através da lingua-
de um número maior de pessoas por meio de gem e da posição em que a pessoa se encontra
traduções fiéis e cuidadosas. Em 2014, a Editora para poder expressar-se através dessa linguagem.
da UFSC, através do projeto de publicações da Para muitos, Antígona assume certa masculini-
coleção Gênero e sexualidade, proporcionou- dade ao ir contra as ordens de seu tio, herdeiro
nos a oportunidade de contemplar a publicação do trono. Ela se mostra masculina para vencer o
da tradução de um dos trabalhos de Butler em masculino. Ao se posicionar contra esse masculi-
português. Esse feito possibilita, de uma forma no e esse parente, Antígona seria uma espécie
mais plural, a difusão do pensamento de Butler e de “aberração fatal do parentesco” (p. 35).
também se torna muito importante para a área Lacan e Hegel são autores nos quais Judith
de estudos de gênero no Brasil. Butler se apoia para discutir essas relações fami-
O clamor de Antígona: parentesco entre liares; contudo, é referenciando-se em Lévi-Strauss
a vida e a morte foi publicado inicialmente em que a autora vai aprofundar a questão das regras
meados dos anos 2000, na versão em inglês. 14 do parentesco. O tema central da discussão se
anos depois, as discussões impressas nesse dá em torno do incesto, que, para Strauss, não é
trabalho de Butler continuam atuais. Pensando exclusivamente biológico ou exclusivamente
no contexto nacional brasileiro, esse texto social, mas existe na constituição cultural.
apresenta ainda muitas questões a serem No decorrer dos capítulos, Judith Butler faz
discutidas, principalmente sobre os papéis de alguns questionamentos e propõe algumas res-
representações familiares. postas. Ainda sobre o capítulo de abertura da
O livro conta com 127 páginas de uma obra, cabe-nos afirmar que a questão que
reflexão densa que busca auxílio em teorias consideramos mais relevante é o questionamento
psicanalíticas, bem como na contribuição de sobre a possibilidade de avaliarmos criticamente
autores/as como Hegel, Lacan, Levi-Strauss, o estatuto das regras que governam a inteligi-
Foucault, Juliete Mitchell, Hannah Arendt e bilidade cultural e de que forma funcionam essas
Giorgio Agambem. A filósofa Judith Butler, no regras (página 37 e 38). Butler informa que faz
entanto, não se limita ao diálogo com esses/as essa indagação com base no que “Foucault assi-
autores/as e nos apresenta suas próprias reflexões nalou como sendo a dimensão produtiva e exces-
enriquecedoras acerca do que já foi abordado. siva das regras do estruturalismo” (p. 38).
O livro foi dividido em três capítulos e um Posfácio Voltando a Lacan, Butler faz uma reflexão
à edição brasileira. Nesta resenha, vou seguir a inicial que vai nortear boa parte das futuras discus-
mesma ordem em que ele está estruturado, a sões propostas no livro, que podem ser interpre-

Estudos Feministas, Florianópolis, 23(1): 269-287, janeiro-abril/2015 285


tadas a partir de realidades contemporâneas, produtiva. Antígona não representa nem o
no campo da constituição de novos modelos de parentesco, nem o que lhe é radicalmente
famílias. A contribuição dos estudos lacanianos externo, mas torna-se a ocasião para leitura
apresenta a diferença entre as normas simbólicas de uma noção estruturalmente constrangida
e as sociais. Judith Butler esclarece sua posição de parentesco no que diz respeito à sua
diante dessa diferenciação: iteratividade social, à temporalidade aberrante
da norma (p. 52).
Meu ponto de vista é que a distinção entre lei
simbólica e social, enfim, não se sustenta, que O texto vai sendo enriquecido de argu-
o simbólico não apenas é, ele próprio, a mentos que nos possibilitam extrair as contradições
sedimentação das práticas sociais, como as impostas nas interpretações de Antígona, bem
alterações radicais no parentesco exigem uma como nos permitem perceber as relações de
rearticulação dos pressupostos estruturalistas da gênero colocadas a partir do olhar de Judith Butler,
psicanálise e, portanto, da teoria contem- sempre permeando as noções de regras, leis,
porânea de gênero e sexualidade (p. 40). Estado e parentesco como constituintes de
Com essa contribuição, a autora dá conti- saberes e norteadores de ações. Nas discussões,
nuidade a questões sobre a elaboração das a autora inclui a noção de culpa, que possivel-
regras, a obediência a elas, bem como as alte- mente pode ser a que Antígona sentiria ao deixar
rações que podem propor no campo simbólico, o corpo do irmão abandonado (culpa de paren-
que, por sua vez, é constitutivo do campo social. tesco) ou a que ela possa experienciar por deso-
Para embasar sua argumentação, Butler cita Juliet bedecer à lei ao enterrar o irmão (culpa em
Mitchell e o conceito de “lei universal e primordial”, relação ao Estado). De todo modo, Butler afirma
esclarecendo ser essa uma noção lacaniana que que até mesmo esse sentimento é mediado pelo
contribui para tentar separar aquilo que é Estado, no momento em que ele impõe regras
simbólico do que é biológico e social. que direcionam nossas ações, inclusive sobre
Trazendo a discussão sobre as famílias, que, como devemos agir em questões de parentesco.
a nosso ver, é uma contribuição muito significativa No caso de Antígona, a representação da
para questões tão atuais, Butler menciona quebra de regras e não cumprimento da lei
inúmeras formações de agrupamentos familiares ocorrem através do feminino: “Com efeito, a
que não contam necessariamente com um pai feminilidade não age politicamente; pelo contrá-
e uma mãe. Contudo, muitos dos modelos rio, constitui uma perversão e privatização da
familiares não são reconhecidos por lei, não estão esfera política, uma esfera governada pela uni-
dentro do padrão ou do que o Estado institui versalidade (p. 60).” Nesse sentido, ser mulher, ou
como instituições de parentesco. Retomamos, mesmo a feminilidade, é uma questão simbólica.
aqui, a discussão inicial de que o parentesco se Contudo, o simbólico é sempre externo ao sujeito,
dá através da linguagem e ainda incluímos a não é, por exemplo, porque sou mulher que
noção de que ele se dá através do discurso. represento todo o simbolismo instituído em torno
O segundo capítulo, denominado “Leis não disso. Para Butler, ele não representa um falso
escritas, transmissões aberrantes”, atribui um peso universal. O fato é que exerce uma função de
maior à política. Não apenas à pública, mas universalização.
também às de linguagens, de condições que No terceiro e último capítulo, “Obediência
permitem o exercício do poder do Estado. Nesse promíscua”, a autora retoma as questões de
momento, a filósofa faz um paralelo entre as duas parentesco, enfatizando que ele não representa
formas de parentesco propostas por Hegel e uma situação na qual estamos sem uma certa
Lacan. Na primeira, aquele sugere que Antígona colaboração. As relações de parentesco
representa as leis do parentesco. Na situação, ocorrem através de um conjunto de práticas em
quando insiste em exercer sua lei de parentesco que vários agentes estão envolvidos.
(enterrar o irmão), Antígona está indo contra a lei Butler propõe uma reflexão complexa
do Estado. A personagem também representaria sobre questões de incesto, modelos de relações
o domínio feminino da família. Lacan já a situa familiares e aceitações pelo Estado. Para ela,
no limiar do simbólico, enfatizando o domínio A releitura de Antígona conduzida pela teoria
linguístico, em que as relações de parentesco psicanalítica pode questionar a ideia de que o
são instituídas. Mais uma vez, Butler se posiciona tabu do incesto legitima e normaliza o paren-
enriquecendo a discussão: tesco como base na reprodução biológica e
na heterossexualização da família. Embora a
A minha leitura de Antígona, em resumo, psicanálise tenha insistido que a normalização
buscará colocar essas distinções em crise é invariavelmente interrompida e frustrada por

286 Estudos Feministas, Florianópolis, 23(1): 269-287, janeiro-abril/2015


aquilo que não pode ser ordenado por normas A formatação de novas famílias esbarra em
reguladoras, ela raramente abordou a questão leis, em normas sociais e simbólicas e impede
de como novas formas de parentesco podem que as relações de parentesco se instituam de
surgir e, de fato, surgem em função do tabu do maneiras diferentes daquelas impostas pelas
incesto (94-95). regras vigentes. Ora, se as relações de paren-
A nosso ver, nesse capítulo, o questiona- tesco se estabelecem pela linguagem, pelo
mento mais relevante da autora interroga se as discurso, as questões consanguíneas e os mode-
questões de parentesco podem ser (re)definidas los de representação das personagens de uma
de forma mais contundente. Butler volta a falar família poderiam ser cambiantes.
em modelos familiares distintos e lembra que Por fim, vale ressaltar que procuramos
sempre se busca preencher um papel de pai ou sintetizar as principais contribuições de Judith Butler
mãe, independente da constituição familiar sem, contudo, esgotar suas conclusões. Os argu-
proposta. A autora vai ressaltar a busca de casais mentos presentes no livro são instigantes e, ao
homossexuais por constituírem suas famílias, mesmo tempo, renováveis, o que permite a cada
evidenciando que, mesmo dentro dessas novas leitor contemplá-lo com novas interpretações.
formatações, socialmente se espera que alguém Enfatizamos a sua relevância para as questões
cumpra o papel de um “pai” e outro alguém de estudos de gênero no Brasil, ressaltando que,
cumpra o papel de uma “mãe”. À essa busca mesmo com 14 anos de “atraso” para uma tradu-
por um modelo, Butler dá o nome de “posições ção, o livro permanece atual e esclarecedor.
simbólicas”. Esse é um dos pontos de discussão
do livro que consideramos mais atual e relaciona- Rochelle Cristina dos Santos
do a tantas questões que vivenciamos no Brasil. Universidade Federal de Santa Catarina

Estudos Feministas, Florianópolis, 23(1): 269-287, janeiro-abril/2015 287

Você também pode gostar