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Herbert Marcuse: cem anos Isabel Maria Loureiro* "Um intelectual & alguém que se re- cusa a fazer compromissos com os domi- nantes.” (Herbert Marcuse) Herbert Marcuse, filésofo cuja popu- laridade foi muito além dos meios aca- démicos nos anos 60 ¢ 70, tem sido qua- se que relegado ao esquecimento no Bra- sil, salvo as infaliveis excegdes de sem- pre. Como era de se esperar ele voltou as pSginas dos cademos de cultura da gran- de imprensa por ocasifio das comemora- ges dos 30 anos do maio de 68, que por sinal coincidiam com 0 centendrio do seu nascimento. Contudo, exceto por esse revival mereadolégico, Marcuse € visto com suspeigio numa época como a nos- sa, de hegemonia conservadora. A verdade porém € que nao s6 no Bra- sil mas igualmente nos Estados Unidos, no final dos anos 60 e durante os 70, quan- do fazia grande sucesso junto avs estu- dantes rebeldes, ele ja era muito critica- do, tanto pelo marxismo soviético, que taxava suas idéias de “individualismo burgués”, quanto pela direita académica € politica que via no “pai da Nova Es- querda” um novo Sécrates corruptor da juventude. $6 para dar um exemplo: quan- do Marcuse saiu da Universidade de Brandeis (na qual lecionou de 1954-65) e foi para a Universidade da Calif6rnia (La Jolla), ele era regularmente atacado nos jomais, e pressées do California Board of Regents obrigaram-no a deixar de leci- onar oficialmente em 1969, embora tives- se permissio para manter sua sala na universidade e dar semindrios informais. No Brasil inclusive seus livros foram postos no index dos colégios catélicos, associados As drogas e A permissividade sexual. Agora, passados quase 20 anos da sua morte, & possfvel um balango mais equilibrado de suas idéias que, para sur presa dos desavisados, revelam-se mais atuais do que nunca. Marcuse foi o tinico filésofo da Esco- la de Frankfurt que mesmo sem ter militancia politica em sentido estrito, sempre permaneceu um tedrico da revo- lugio. A sua obra gira, desde 0 infcio, em toro de um problema — a necessidade de transformagiio revolucionaria da so- ciedade capitalista. Diferentemente de Adorno e Horkheimer que a partir dos anos 40 se dedicaram A critica da cultura dissociada da politica radical, Marcuse nunea abandoncu © projeto da teoria critica dos anos 30 — unir filosofia, teo- ria social ¢ polftica radical. Esse fio con- dutor percorre toda a sua obra, © seu batismo politico, como para muitos da sua geragio, deu-se com a Pri- meira Guerra Mundial. Tendo entrado no Partido Social-Democrata Alemio em 1917, ali permaneceu até 1919. Em 1918, eleito membro de um conselho de solda- dos em Berlim, participou ativamente da revolugaio de novembro. Abandonou 0 conselho de soldados quando antigos oficiais passaram igualmente a ser el tos, © que demonstrava a falta de matun dade dessa meia revolugto, como dizia * Professora do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciéncias da Unesp, ‘campus de Marflia, CRITICA MARXISTA * 157 Rosa Luxemburgo. Acabou finalmente deixando o SPD por consideré-lo respon- sdvel pelo assassinato de Rosa Luxem- burgo e Karl Liebknecht. De 1919 a 1920 estudou germanistica na Universidade Humboldt de Berlim. Em 1920, mudou-se para Freiburg onde se doutorou em 1922, em germanistica, com um trabalho sobre “O romance de artista alemao”. Retornando a Berlim ali ficou até 1928, quando entao voltou nova- mente para Freiburg, a fim de estudar fi- losofia com Martin Heidegger. No final dos anos 20 e inicio dos anos 30 publi- cou uma série de artigos na revista Die Gesellschaft (6rgio te6rico da social-de- mocracia alema, dirigido por Rudolf Hilferding) e em revistas académicas, que constituem uma tentativa de, a partir de uma linha fenomenolégica, levar adian- te o empreendimento de Korsch e Lukics: dar uma fundamentagio filoséfica ao marxismo. Busca entiio em Ser ¢ tempo (1927), de seu mestre Heidegger, elemen- tos que contribuiriam para revitalizar a teoria marxista, petrificada pelas leituras deterministas, economicistas e sociolo- gizantes correntes nos partidos oficiais da classe operdria. © curioso nessa tentativa do jovem Marcuse de unir fenomenologia e mar- xismo é que ele Ié Ser e tempo com 6cu- los marxistas e n&o o contrério; a partir dai dé os primeiros passos para elaborar uma teoria da agiio radical que teria como objetivo “garantir” a revolugao proleté- ria. O objetivo de Marcuse é mostrar que a determinagao primeira do homem é a ago a qual, por sua vez, funda-se na “historicidade da vida” (Schriften 1: 485). Pensando a partir da recente derro- ta da revolugio alema, que tanto o mar- cara, Marcuse procura repensar os funda- mentos do marxismo de forma a preservé- 158 * NOTAS Jo da polftica reformista dos partidos ‘operfrios tradicionais. Em 1932 Marcuse publica © que de- veria ter sido sua tese de habilitagao sob aorientagio de Heidegger: “A ontologia de Hegel e a teoria da historicidade”. Uma série desencontros entre orientador e orientando, revelados por uma troca de mensagens, deixam no ar a suspeita de que Heidegger perdera o interesse em orientar Marcuse. Este, dada sua origem judaica e a situagio politica da Alema- nha também nfo via fazer carreira académica nesse pais. De qualquer modo, a ex-tese ainda foi publicada pelo editor de Heidegger, Klostermann. No segundo ntimero da Zeitschrift fiir Sozialforschung, Adorno publicou uma resenba simpitica ao li- vro dizendo que Marcuse estava se afas- tando da “ontologia fundamental para a filosofia da histéria, da bistoricidade para a hist6ria”. wis sentido em Esta idéia € confirmada por um outro ensaio do mesmo ano, “Novas fontes para a fundamentagdo do materialismo hist6- rico”, escrito sob o impacto da recente publicagiio dos Manuscritos econdmico- filoséficos de 1844. Agora 0 conceito de trabalho do jovem Marx dé-Ibe a con- cretude que buscara em Heidegger, per- mitindo-Ihe unir esséncia humana e€ con- digdes materiais de existéncia. Segundo Marcuse, a identidade entre esséncia e existéncia s6 pode ser “tarefa propria- mente livre da pratica bumana” (idem,> 532) ou, em outras palavras, de uma “re- yolugao proletéria como uma revolugio total e radical” (idem,: 516) que permita ao homem realizar todas as suas potencia- lidades pelo trabalho. Nesta época, em- bora ainda faga uso do jargiio ontolégico heideggeriano, a0 apropriar-se de Marx, Marcuse comega a abandonar a perspec- tiva estritamente filoséfica anterior, vol- tando-se para a teoria social. Esta nova perspectiva se desenvolve e amadurece com a sua participagao no projeto do Instituto de Pesquisa Social (PS), ditigido por Horkheimer. Em 1933, fugindo de Frankfurt antes da subida de Hitler a0 poder, Marcuse comega a traba- Ibar na filial de Genebra do IPS, trabalho que prossegue nos Estados Unidos onde chega em 4 de julho de 1934. O contato com Horkheimer e os outros membros do Instituto d4 origem a uma mudanga na ‘obra de Marcuse: desaparecem os vesti- gios de Heidegger no seu pensamento e, por conseguinte, qualquer trago de ontologia, Marcuse deixa de dedicar-se a temas filos6ficos abstratos, e volta-se para problemas hist6ricos e sociais con- cretos, analisando-os sob o prisma do marxismo, yisto como método critico e niio mais como ontologia. E nesta época que escreve alguns de seus melhores en- saios, todos publicados em alemfo na Zeitschrift fiir Sozialforschung.* Nos artigos da revista, entre varios te- mas abordados, Marcuse defende uma “organizagiio racional da sociedade”, que s6 poderd concretizar-se por meio da “pré- tica transformadora” (Schriften 3: 66). Essa sociedade organizada racionalmente seria em primeiro lugar uma sociedade igualitéria econémica, polftica e cultu- ralmente: a distribuigio dos bens materi- ais seria feita segundo as necessidades da coletividade, a sociedade seria autoplanejada ¢ nfo entregue “ao acaso da concorréncia nem 4 necessidade cega de relages econ6micas reificadas”, nao haveria separagio entre trabalhadores & meios de produgio, o trabalho seria “um meio para a vida” ao invés de a vida estar “a servigo do trabalho”, os valores cultu- rais no constituindo privilégio nem ob- jeto de “lazer”, mas estando realmente ligados a existéncia coletiva (idem,: 72). Ou seja, Marcuse ndo s6 propde uma so- ciedade socialista, como continua apos- tando no desenvolvimento das forgas produtivas ¢ na conscigncia do proleta- riado, mesmo que a unidade entre teoria € pritica s6 venha a dar-se no futuro, em virtude da derrota conjuntural da classe operdria pelo fascismo. De 1942 (dezembro) a 1951, por ra- zBes econdmicas (0 IPS nfo podia conti- nuar a subvencioné-Io), Marcuse foi obri- gado a trabalhar para o governo america- no, primeiro para Office of War Infor- mation, em seguida para o Office of Strategic Services (OSS) (maio de 1943 a setembro de 1945) e, finalmente, quando © OSS foi dissolvido, passou para o De- partamento de Estado, tornando-se che- fe do bureau centro-europeu. A produ- iio de Marcuse desse perfodo s6 agora se tornou conhecida com a publicagio do livro Tecnologia, guerra e fascismo (a sair em breve pela Editora Unesp), com textos inéditos dos anos 40, encontrados no Arquivo Marcuse em Frankfurt. Esses textos — anflises do fascismo alemao e da forma como domina o individuo do ponto de vista psicolégico, politico, eco- nOmico cultural, além de propostas de contrapropaganda eficiente a ser utiliza- da pelos aliados; projetos (em comum com Franz Neumann) para uma obra so- bre a teoria da mudanga social, abarean- do desde a filosofia antiga até o marxis- ‘mo; andlise da literatura surrealista fran- cesa como forma de oposigiio & socieda- de existente; 33 teses (1947) sobre a si- tuagio politica da época que antecipam 1. Estes ensaios estao publicados em Cultura e sociedade. Sao Paulo, Paz e Terra, 1997, v.1, 1998, v. 2. CRITICA MARXISTA © 159

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