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O ESPAÇO DOS SERES IMAGINÁRIOS

Vinícius Edilberto Prinstrop*


Orientadora: Profª Drª Rita Lenira de Freitas Bittencourt**

RESUMO: Este artigo desenvolve uma discussão acerca da construção do espaço na obra O livro dos seres
imaginários, de Jorge Luís Borges e Margarita Guerrero. Na primeira parte serão analisadas as
representações de animais e seres imaginários no decorrer dos tempos, desde os bestiários da antiguidade ( A
História dos animais, de Aristóteles), passando pelos bestiários medievais (El fisiólogo, bestiário medieval de
autor anônimo), até os modernos bestiários de Jorge Luís Borges (O livro dos seres imaginários, Manual de
Zoologia fantástica). Na segunda parte serão discutidas algumas concepções de espaço e suas representações
na obra O Livro dos seres imaginários, a partir do texto O Espaço Literário e Expansões, de Luis Alberto
Brandão. Esse texto propõe quatro diferentes modos de abordagem do espaço na literatura, a partir dos
estudos literários ocidentais do século XX: representação do espaço; espaço como forma de estruturação
textual; espaço como focalização; e espaço da linguagem. Cada uma dessas modalidades espaciais será
explorada por Borges e Guerrero, nas páginas do Livro dos seres imaginários, conforme a abordagem que
quero propor neste artigo.
PALAVRAS-CHAVE: O livro dos seres imaginários, Jorge Luis Borges, bestiários.

ABSTRACT: This article develops an argument about the construction of space in O livro dos seres
imaginários, written by Jorge Luís Borges and Margarita Guerrero. The first part will analyze the
representations of animals and imaginary beings throughout the ages, from ancient bestiaries (A história dos
animais, de Aristóteles), through the medieval bestiary (El fisiologista, anonymaous author), to modern
bestiaries of Jorge Luis Borges (O livro dos seres imaginários, Manual de zoologia fantástica). The second
part will discuss some conceptions of space and its representations in O livro dos seres imaginários, from the
text O Espaço Literário e Expansões, by Luis Alberto Brandão. This paper proposes four different ways to
approach space in literature, from literary studies of twentieth century: representation of space, space as a
form of textual structure, space and focus, space and language. Each of these spatial arrangements will be
explored by Borges and Guerrero, in the pages of O livro dos seres imaginários, as the approach that I
propose in this article.
KEYWORDS: O livro dos seres imaginários, Jorge Luis Borges, bestiaries.

1 Primeira metáfora

A relação dos homens com os animais teria dado origem ao que distinguiu uns
e outros: a capacidade de simbolizar. A partir do animal o homem toma consciência de seu
lugar isolado na natureza. Essa hipótese de que a representação dos animais teria sido a
metáfora fundadora da linguagem é apresentada por Rebeca Yellin:

*
Graduado em Letras e aluno de Mestrado em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. E-mail: viniedil@yahoo.com.br
**
Doutora em Literatura e professora do curso de letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-
mail: rita. lenira@ufrgs.br
A ideia de que a relação entre homem e animal é do tipo metafórica foi nas
últimas décadas crescentemente desenvolvida e apoiada por historiadores da arte,
arqueólogos, antropólogos sociais, sociólogos e filósofos. Alguns sustentam,
inclusive, que o animal foi a primeira metáfora do homem, e que, como se isto
fosse pouco, essa primeira imagem foi provavelmente pintada com sangue
animal. É uma hipótese sumamente potente porque liga o problema da
representação do animal com o momento da ficção fundacional do humano – o
da aquisição da linguagem, ou seja, da capacidade de metaforizar. A humanidade
se inaugura no preciso instante em que se abre um espaço – metafórico – a
respeito do animal. (YELIN, 2008, p. 103)

A partir dessa relação ancestral entre homens e animais é que pretendo nortear
este artigo. A forma através da qual os homens representaram os animais no decorrer dos
séculos teve muitas variações, e o gênero bestiário é o meio no qual estão impressas essas
variações. Observando os diferentes formatos que tiveram os bestiários, e as mudanças que
foram ocorrendo no corpo dos seres das suas páginas, é possível que imaginemos algo a
respeito da relação tão antiga e tão profunda que temos com os animais, nossos próximos
tão distantes.
Para tal, convém que saibamos algo sobre as formas mais tradicionais que os
bestiários assumiram ao longo de sua história. Nos bestiários mais antigos, desde a A
História dos animais, de Aristóteles1, e a História Natural, de Plínio, o Velho2, ou nos
bestiários medievais3, já numa primeira vista, há uma questão que parece ser muito cara ao
formato: a classificação e a catalogação de animais. Maria Esther Maciel, uma das
principais pesquisadoras do país nas áreas de zooliteratura e zoopoética, na obra Poéticas
do Inclassificável, observa que “(...) onde falha a classificação advém a imaginação. Na
falta de critérios para se definir com precisão um objeto estranho, há que se inventar novas
formas – sejam elas metafóricas ou não – para que ele possa ser descrito e especificado”
(MACIEL, 2008, p. 158). Essa observação nos dá um bom indício de algo que parece
constitutivo da composição de um bestiário: a invenção de novas formas de classificação.
Por que invenção? Por que não trabalhar com as categorias já existentes? Isso nos leva a
outra característica fundamental dos bestiários, que é a simultaneidade de formas
conhecidas e desconhecidas, ou em outras palavras, os animais que existem numa realidade
palpável (a “zoologia dos homens”, nas palavras de Borges) dividem as páginas dos

1
ARISTÓTELES. História dos animais. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de
Lisboa/Impensa Nacional/Casa da Moeda, 2006. Uma longa catalogação, em 30 volumes, que se propunha
descrever todos os animais do mundo conhecido.
2
PLINY THE ELDER. Natural History. Disponível em:
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Plin.+Nat.+8.32&redirect=true . Último acesso em: 9
ago. 2012.
3
Como o El Fisiologo (EL FISIÓLOGO. Bestiario medieval. Barcelona: Obelisco, 2000.)
bestiários com seres fantásticos, conhecidos somente através de sonhos, de relatos alheios,
ou da própria literatura (a zoologia de Deus, segundo Borges). Ainda que os bestiários
antigos, como os de Aristóteles e os de Plínio, o Velho, tivessem a pretensão de ser
descrições fiéis do mundo empírico, invariavelmente abrigavam verbetes que descreviam
os seres mais insólitos, como se vê neste trecho de A História dos Animais:

Houve já pescadores, gente com experiência, que disseram ter visto no mar
animais parecidos com tacos de madeira, negros, arredondados e de uma
grossura uniforme; outros parecidos com escudos, de cor avermelhada e com
barbatanas numerosas; outros ainda, pela forma e pelo tamanho, idênticos a um
órgão sexual masculino, salvo que, em vez de testículos, apresentam duas
barbatanas. Dizem os pescadores que este último veio uma vez agarrado a uma
cana com muitos anzóis. (ARISTOTELES, 2006, P. 184)

Escolhi esse relato específico por ser uma “história de pescador”, como se
costuma dizer menos formalmente. Consta que, para Aristóteles realizar sua façanha de
catalogar exaustivamente os animais do mundo conhecido, ele tratou com Alexandre, o
Grande, para que convocasse sábios em cada território remoto onde estivesse, nas suas
viagens de conquistas longínquas, para que esses sábios escrevessem relatos acerca da
flora e fauna locais e enviassem mensageiros à Atenas, para levarem boas novas do
Imperador ao povo, e descrições inéditas ao sábio grego. Não se estranha que os
pescadores tenham uma imaginação além do que o vulgo seja capaz de compreender, ainda
mais numa época em que as terras desconhecidas eram, de fato, desconhecidas, e em que a
ciência ainda não ditava os dogmas a respeito do que existe e do que não existe, do que é
possível e do que não é. Assim, mesmo que Aristóteles tenha pretendido catalogar os
animais reais, e não os fantásticos, sua metodologia envolvia coletar dados “de ouvido”,
numa época em que a má reputação dos pescadores ainda não era conhecida, e a palavra
dos sábios de quaisquer lugares era digna de fé.
Já os bestiários europeus da Idade Média devem ter diluído ainda mais os
limites que separavam a realidade e a fantasia, por força da superstição quase que
institucionalizada pela igreja católica. As gárgulas, os demônios, os dragões, as feras
formadas por partes de diferentes animais, as bestas, o diabo, as bruxas; tudo estava
demasiado próximo do povo na arquitetura das catedrais, nos vitrais, nos sermões, nas
masmorras e nas fogueiras. No imaginário medieval, e não só nos bestiários (que, é claro,
são parte da materialidade desse imaginário), os dragões provavelmente brigavam com os
urubus, as damas-do-pé-de-cabra espreitavam os homens pecadores, e as sereias os
pescadores. Nesse contexto, mesmo que uma obra se propusesse fiel ao mundo objetivo,
ela necessariamente carregaria um pouco do mundo mágico onde foi parida.
Isso em mente, tem-se que a convivência de seres reais e seres imaginários é
um elemento característico do gênero bestiário. Se me excedo na generalização, pelo
menos se trata de uma tradição de muita força e muito frequente.
Agora pensemos um pouco nas diferentes formas dessa convivência ao longo
do tempo. Na antiguidade e na idade média os animais feitos de carne e osso e os feitos de
sonho, ou de pesadelo, dividiam as mesmas páginas por uma questão primordialmente de
método. Talvez pareça anacrônico fazer essa consideração, pois a ideia de método como a
entendemos hoje é demasiado recente para ser referida na composição dos antigos
bestiários (o método da metodologia), mas quero tomá-la num sentido mais genérico, no
sentido de “como fazer um bestiário”. Pois bem, na antiguidade a separação entre a
fantasia dos pescadores e a realidade objetiva de Aristóteles era impossibilitada por não
haver maneiras efetivas de “provar” a existência ou a inexistência das criaturas bizarras
descritas por sábios do outro lado do mundo, a partir de relatos de pescadores. Era
necessário dar fé ao relato que chegava dos confins do oriente ou esquecê-lo, mas
esquecendo-o não se cumpria o propósito da História dos Animais, isto é, descrever todos
os animais do mundo. No fim das contas, por ironia, Aristóteles (ainda que não tenha
cumprido plenamente seu exaustivo propósito), ainda acrescentou mais algumas criaturas
fantásticas ao mundo da imaginação. Já na idade média os bestiários cumpriam uma certa
função institucional de intimidar o povo com imagens assustadoras, de apresentar as bestas
mais quiméricas como verdadeiras, como manifestações do diabo (que certamente existia
na idade média), como algozes eternos dos pecadores. A convivência entre bestas
fantásticas e animais de carne e osso, portanto, deveria dar mais credibilidade às primeiras.
Os modernos bestiários, de forma geral4, utilizam a tradicional tentativa de
catalogar exaustivamente como recurso por essência literário, muitas vezes através de uma
postura irônica diante da tentativa de separar em categorias ou espécies um conjunto de
seres, reais ou imaginários. Tanto a tradição, no sentido do formato que foram adquirindo
os bestiários através dos tempos, quanto a repetida utilização de muitos dos verbetes, são
utilizadas por Jorge Luís Borges para indicar os abismais espaços que separam uma
suposta realidade objetiva de sua representação através de palavras. É aqui que parece

4
Além do Livro dos Seres Imaginários e do Manual de Zoologia Fantástica, de Jorge Luís Borges e
Margarita Guerrero, os principais bestiários modernos utilizados nas análises deste artigo são Manual de
Zoofilia, Jardim Zoológico e Mar Paraguayo, do paranaense Wilson Bueno, e Húmus, de Paulo Bullar.
fazer mais sentido a reflexão de Maria Esther Maciel, de que “onde falha a classificação
advém a imaginação.” Numa certa leitura do Livro dos Seres Imaginários e do Manual de
Zoologia Fantástica - que é a leitura que proponho neste artigo - cada verbete
acompanhado de um pequeno texto parece ocupar-se, sobretudo, com os limites que
separam as coisas, seja o limite empírico que faz de cada ser um ser único, o limite criado
pelas palavras que permite que nos comuniquemos, o limite das palavras em representar a
realidade, ou o limite do universo que um texto é capaz de criar.

2 Os diversos limites

Para melhor identificarmos e analisarmos os diversos limites explorados nos


bestiários que acabo de citar, cabe que situemos as diferentes categorias de espaço
utilizadas nos textos literários, e que analisemos a especificidade destes espaços no gênero
Bestiário.
O primeiro modo de abordagem do espaço na literatura, Representação do
Espaço (BRANDÃO, 2007, p. 208), é aquele que se ocupa com representação de um
espaço físico, fictício ou não, através do texto literário. Nesta abordagem o que há de
peculiar é que o espaço é uma categoria existente no universo extratextual, ou seja, trata-se
de um espaço mimético, conforme uma perspectiva mais tradicional da literatura. O
espaço habitado pela maioria dos animais dos bestiários são aqueles em que o caráter
desconhecido e exótico são os aspectos mais marcantes, segundo a perspectiva do mundo
ocidental. Portanto estes animais geralmente habitam os “confins da Etiópia”5, “as regiões
ultraterrenas”6, os desertos7. Essa tradição é certamente herdada dos antigos relatos de
viajantes que, por instinto de aventura, curiosidade, ou cumprindo algum desígnio real,
perambulavam pelas regiões mais distantes e desconhecidas atrás de experiências inéditas
que pudessem impressionar seus conterrâneos, atrás de relatos do que havia de fantástico
nessas terras distantes. Cabe assinalar que o caráter fantástico de muitas das criaturas dos
bestiários, para os antigos, não era algo que se opunha a uma realidade plenamente
conhecida, como supomos que seja nos dias de hoje. Os confins da terra abrigavam as
criaturas mais estranhas, como um asno de três patas com chifres de ouro 8, a quimera com

5
BORGES, 1989, p. 10.
6
BORGES, 1989, p. 64
7
BORGES, 1989, p. 41
8
BORGES, 1989, p. 23
cabeça de leão, ventre de cabra e cauda de serpente 9, ou o único animal que escapou ao
dilúvio sem ser recolhido por Noé - a Peluda de La Ferté-Bernard - um animal do tamanho
de um touro, com cabeça de serpente, corpo esférico coberto de pelo verde e armado de
ferrões cuja picada era mortal10. Nos antigos bestiários, ao lado dessa fauna insólita, fruto
da imaginação dos homens, estavam os animais mais corriqueiros: o cavalo, o cão
doméstico, a serpente, a raposa e o coelho. Tal disposição revela o quanto estavam
emaranhados no imaginário antigo a fantasia e a realidade. O relato que Jorge Luís Borges
faz destes animais geralmente toma os relatos anteriores como referência, ainda que lhes dê
uma abordagem bastante peculiar. Nos verbetes de Borges são frequentemente citados A
História dos Animais, de Aristóteles, e A História Natural, de Plínio, o Velho.
Temos então que os elementos essenciais da estruturação destes espaços onde
vivem os animais dos bestiários são:
- a distância geográfica que impossibilita uma separação nítida entre o real e o
fantástico, pois sendo distante e desconhecido, não se pode afirmar nada com certeza
acerca de sua natureza. O fantástico permanece fantástico enquanto é desconhecido, e o
desconhecido é sempre do outro lado do mundo, sempre no oriente, nos confins, nos
sótãos, nos desertos, nos abismos, embaixo da terra. Sempre escondido ou inacessível;
- o caráter fantástico que têm os animais desconhecidos, geralmente isolados da
convivência dos homens e conhecidos somente através do relato dos viajantes e
pescadores, é também o caráter dos espaços onde vivem, ainda que haja uma diferença
fundamental nos bestiários modernos: os animais são, em muitos casos, representantes
únicos do que costumamos chamar espécie. Melhor dizendo: entre a maioria dos seres dos
bestiários não há uma espécie, mas um único indivíduo que, por sua aura lendária, pode ter
existido em diferentes tempos, lugares e, o mais notável, diferentes formas. Já o espaço não
tem este traço individual tão saliente, pois desertos, florestas e abismos, por mais exóticos,
são antes espécies de espaços do que espaços únicos.
Outro modo de abordagem do espaço, Estruturação Espacial (BRANDÃO,
2007, p. 209), diz respeito aos procedimentos utilizados para gerar o efeito de
simultaneidade temporal. Esta abordagem realiza-se segundo procedimentos formais na
elaboração do texto literário, e não em descrições de um espaço físico supostamente
exterior ao texto. Luiz Alberto Brandão diz:

9
BORGES, 1989, p. 111
10
BORGES, 1989, p. 167
A vigência da noção de espacialidade vincula-se, nesse contexto, à suspensão ou
à retirada da primazia de noções associadas à temporalidade, sobretudo as
referentes à natureza consecutiva (e tida, por isso, como contínua, linear,
progressiva) da linguagem verbal. (BRANDÃO. 2007, p. 209)

Nos verbetes do Livro dos seres imaginários, o efeito de simultaneidade


temporal está marcado nas diferentes formas que se sobrepõem num único corpo; os seres
imaginários de Borges, devido às inúmeras descrições que tiveram no decorrer dos séculos,
acumulam-nas todas, impedindo que eles possuam forma estável, que possam ser imagens
nítidas, e não só palavras. Neste procedimento de Borges há algo de irônico em relação ao
caráter linear da escrita e ao caráter simultâneo do espaço, pois se entendermos que o efeito
de simultaneidade é mais facilmente gerado por uma imagem situada no espaço (já que
qualquer imagem que se pretenda representação de algum objeto do mundo físico terá,
necessariamente, todos seus elementos dispostos de forma simultânea) do que pela escrita
(linear), acabamos surpreendidos que com os seres imaginários de Borges aconteça
justamente o contrário: é difícil de imaginar o desenho ou a gravura de um ser que acumule
formas ancestrais, muitas vezes essencialmente distintas entre si, reunidas em uma única
forma. Os seres imaginários são feitos – mais do que de fragmentos de vários animais – de
pedaços improváveis, de trechos de processos, de transformações em pleno curso, via
linguagem. A imagem representa a versão final de algo, e já não é possível aprisionar estes
contemporâneos seres numa imagem que lhes seja jaula. A imagem que representasse os
seres imaginários de hoje teria de ser algo próximo da imagem surrealista ou da
expressionista, ou seja, teria de lidar com a matéria do sonho em movimento.
Cito abaixo parte do verbete O Basilisco, para ilustrar esta simultaneidade de
formas que têm muitos dos seres imaginários de Borges:

No decorrer das eras, o basilisco se modifica, crescendo em fealdade e horror, e


hoje é esquecido. Seu nome significa pequeno rei; para Plínio, o Velho (VIII,
33), o basilisco era uma serpente que tinha na cabeça uma mancha clara em
forma de coroa. A partir da Idade Média, é um galo quadrúpede e coroado, de
plumagem amarela, com grandes asas espinhosas e cauda de serpente que pode
terminar em gancho ou em outra cabeça de galo. A mudança da imagem se
reflete numa mudança de nome; Chaucer, no século XIV, fala de Basilicock.
Uma das gravuras que ilustram a História Natural das Serpentes e Dragões, de
Aldrovandi, lhe atribui penas, e não escamas, e oito patas (BORGES, 1989, p.
40)

Enquanto nos bestiários da Antiguidade e da Idade Média havia animais e


monstros perfeitamente integrados ao conceito ou à imagem que os traduzia, no Livro dos
seres imaginários é tratado com ironia o gesto de classificar os animais e de enjaulá-los
dentro de uma definição ou de uma imagem que lhes garanta uma forma fixa e contornos
bem definidos. Aqui as reflexões de Giorgio Agamben sobre o ser das imagens
(AGAMBEN, 2007) , ou o não ser das imagens, parece relevante. Uma primeira
característica da imagem é sua natureza “de geração contínua e não de substância”
(AGAMBEN. Profanações. p. 52). Tal característica da imagem é ressaltada no Livro dos
seres imaginários e no Manual de zoologia fantástica, cujos verbetes geralmente remetem
há algo que está em processo de transformação, ou melhor seria dizer estado de
transformação, já que a matéria de sua substância é o devir, quase nunca a estagnação. Por
essa razão não é possível que o desenho que acompanha o verbete tenha os contornos
estáveis dos bestiários medievais. A segunda característica da imagem consiste “em não ser
determinável segundo a categoria da quantidade, em não ser propriamente uma imagem ou
uma forma, mas a espécie de uma imagem ou de uma forma” (AGAMBEN, 2007, p. 52).
Um dos sentidos da palavra “espécie”, segundo Agamben, seria a traduzibilidade
característica de uma imagem possível, a espécie como uma imagem genérica reconhecível
por todos, mas incapaz de traduzir o exclusivamente individual daquilo que ela reflete (“A
espécie de cada coisa é sua inteligibilidade, sua visibilidade”). Por outro lado, a espécie é
também o que “deve a qualquer custo ser fixado em uma substância e em uma diferença
específica para que possa constituir uma identidade”. Nos verbetes de Borges quase não há
o agrupamento de um conjunto de animais parecidos dentro do conceito que designa sua
espécie, pois geralmente tais seres são únicos. Esse foi o procedimento dos bestiários mais
antigos e é o procedimento das ciências naturais diante dos animais, e da natureza de forma
geral. Nos bestiários recentes muitas das criaturas são descritas neste sobrepôr-se de
existências e de espaços, e suas formas geralmente são mutantes. O verbete A Bao A Qu,
do Livro dos seres imaginários, é ilustrativo neste aspecto:

Na escada da Torre da Vitória, mora desde o princípio dos tempo o A Bao A Qu,
sensível aos valores das almas humanas. Vive em estado letárgico, no primeiro
degrau, e só goza de vida consciente quando alguém sobe a escada. A vibração
da pessoa que se aproxima lhe infunde vida, e uma luz interior se insinua nele.
Ao mesmo tempo, seu corpo e sua pele quase translúcida começam a se mover.
Quando alguém sobe a escada, o A Bao A Qu põe-se quase nos calcanhares do
visitante e sobe agarrando-se à borda dos degraus curvos e gastos pelos pés de
gerações de peregrinos. Em cada degrau sua cor se intensifica, sua forma se
aperfeiçoa e a luz que irradia é cada vez mais brilhante. Testemunha de sua
sensibilidade é o fato de que só consegue sua forma perfeita no último degrau,
quando o que sobe é um ser evoluído espiritualmente. Não sendo assim, o A Bao
A Qu fica como que paralisado antes de chegar, o corpo incompleto, a cor
indefinida e a luz vacilante. O A Bao A Qu sofre quando não consegue formar-se
totalmente e sua queixa é um rumor apenas perceptível, semelhante ao roçar da
seda. Porém quando o homem ou a mulher que o revivem estão cheios de pureza,
o A Bao A Qu pode chegar ao último degrau, já completamente formado e
irradiando uma viva luz azul. Seu regresso à vida é muito breve, pois ao descer o
peregrino o A Bao A Qu cai rolando até o primeiro degrau, onde, já apagado e
semelhante a uma lâmina de contornos vagos, espera o próximo visitante. Só é
possível vê-lo bem quando chega à metade da escada, onde os prolongamentos
de seu corpo, que como pequenos braços o ajudam a subir, se definem
claramente. Há quem diga que ele vê com todo o corpo e que ao tato lembra a
pele do pêssego.
No curso dos séculos, o A Bao A Qu chegou apenas uma vez à perfeição.
(BORGES, 1989, p. 3 - 4)

Aqui também parece haver certa ironia diante das tentativas de aprisionar o
conceito à forma. Na obra de Borges há antes a formulação de um universo próprio,
textual, e os seres têm vida própria dentro desse universo, em que a forma precisa não é
necessária à existência. Só o texto admite a unidade de seres sem forma, ou com forma
indefinível, em constante mudança.
Outro aspecto da composição dos seres imaginários, na obra de Borges, é
aquele em que os processos de representação destes seres revolvem-se simbioticamente
com os processos literários e textuais mais gerais, salientando, em forma de analogias e
metáforas, o quanto a representação de um ser fantástico reflete os mecanismos
fundamentais da representação como um todo, do próprio ato de representar.
Exemplifiquemos.
Luis Alberto Brandão, analisando as abordagens de Frank11 e Poulet12, diz que
o texto literário moderno se caracteriza por seu caráter fragmentado, de séries de elementos
descontínuos, por seu caráter de mosaico. O fluxo temporal que decorre da linguagem
verbal é negado em nome de uma tentativa de apreender todos os tempos num único
momento. Neste sentido, o espaço é sinônimo de simultaneidade, e é o que o texto
moderno pretende abarcar. (BRANDÃO, 2007, p. 210)
A fragmentação do texto literário moderno pode gerar algumas quimeras, por
agrupar o que não parece agrupável e, na descontinuidade da apreensão simultânea do
tempo, dar a luz à formas improváveis e inverossímeis. Vejamos, como exemplo, o
Mirmecoleão, de Borges, possível somente se isento de sua (i)realidade empírica:

Um animal inconcebível é o mirmecoleão, assim definido por Flaubert: ´Leão


por diante, formiga por trás, e com as pudendas ao contrário`. A história desse

11
FRANK. The idea of spatial form.
12
POULET. O espaço proustiano.
monstro é curiosa. Lê-se nas escrituras: ´O Velho leão perece por falta de presa`
(Jó, 4:11). O texto hebraico diz layish por leão; esta palavra anômala parecia
exigir uma tradução que também fosse anômala; os Setenta lembraram um leão
árabe que Eliano e Estrabão chamam myrmex e forjaram a palavras mirmecoleão.
Ao cabo de alguns séculos, esta derivação se perdeu. Myrmex, em grego,
equivale a formiga; das palavras enigméticas ´O Leão formiga perece por falta
de presa` saiu uma fantasia que os bestiários medievais multiplicaram:
O fisiólogo trata do leão-formiga; o pai tem forma de leão, a mãe de formiga; o
pai se alimenta de carne e a mão de ervas. E estes engendram o leão-formiga,
que é a mescla dos dois e que se parece com os dois, porque a parte dianteira é
de leão, a traseira de formiga. Assim constituído não pode comer carne, tal o pai,
nem ervas, tal a mãe; por conseguinte, morre. (BORGES, 1989, p. 123)

A fragmentação, o caráter de mosaico, a série de elementos descontínuos, a


recusa à prevalência temporal da linguagem verbal, enfim, os aspectos que Luiz Alberto
Brandão aponta como fundamentais ao texto literário moderno, parecem ser também os
aspectos do Mirmecoleão, e de muitos outros seres fantásticos na obra de Borges.13
O terceiro modo de abordagem do espaço na literatura, Espaço como
focalização (BRANDÃO, 2007, p. 211), é talvez aquele que melhor identifique a obra de
Borges como singular, distanciando O livro dos seres imaginários e o Manual de zoologia
fantástica dos outros bestiários modernos. Nessa abordagem o que está em questão é a
perspectiva adotada pelo narrador, o lugar de onde ele fala. É neste sentido que considera-
se o narrador como um espaço, pois ele se coloca num determinado lugar, escolhe a
perspectiva mais conveniente para narrar uma experiência. Tal experiência não quer dizer
somente experiência vivida: quer dizer também experiência de configuração de referências,
a maneira particular através da qual o narrador organiza as informações, impressões e
concepções que julga relevantes para criar seu universo textual.
Ao ler-se o Livro dos seres imaginários, um primeiro movimento faz com que
fiquemos impressionados com a erudição espantosa do escritor argentino. “As cartas
edificantes e curiosas que apareceram em Paris durante a primeira metade do século
XVIII” (BORGES, 1989, p. 6), “as páginas piedosas do Zend-Avesta” (BORGES, 1989, p.
9), a “Teogonia de Hesíodo” (BORGES, 1989, p. 21), a enciclopédia “Bundahisn”
(BORGES, 1989, p. 23), uma “”famosa passagem de Heródoto (II, 73)” (BORGES, 1989,
p. 32”, “Tácito e Plínio (Anais, VI, 28)” (BORGES, 1989, p. 33), o “décimo livro dos
purañas, ou tradições, o Garuda-Puraña” (BORGES, 1989, p. 53), “uma tradição recolhida
pelo mitólogo Apolodoro, em seu Biblioteca” (BORGES, 1989, p. 146), “Argonáutica, de

13
Como a Anfisbena, “uma serpente com duas cabeças, uma em seu lugar e outra na cauda (...)Sir
Thomas Browne afirmou que não existe animal sem embaixo, em cima, na frente, atrás, direita e esquerda, e
negou que pudesse existir a Anfisbena, em que ambas as extremidades são anteriores” (p. 5), ou a própria
Quimera, “leão pela frente, cabra no meio do corpo e por trás uma serpente” (p. 111)
Apolonio de Rodes” (BORGES, 1989, p. 146), “História das Nações Setentrionais (Roma,
1555), do prelado sueco Olao Magno” e “Livro dos Animais de Al-Jahiz, zoólogo
muçulmano no início do século XI” (BORGES, 1989, p. 150), a “História Natural, de
Plínio”, “A história dos Animais, de Aristóteles”, etc. Tais fontes, que parecem um pouco
duvidosas, são um importante elemento do humor característico de Jorges. A dúvida quanto
à veracidade das palavras do narrador noz faz rir, seja esse narrador um senhor de carne e
osso que não costuma sair de sua biblioteca, seja somente uma construção literária. De
qualquer maneira, esse narrador deve ter contatos espalhados por todo mundo,
encarregados de procurar documentos raros em antigas lendas, mitologias, seitas,
sociedades secretas e religiões. Seu próprio universo pessoal deve ser todo constituído de
palavras, histórias, relatos, e de pouca experiência fora da biblioteca. Tal atitude se parece
algo com aquela dos primeiros a descreverem as criaturas do seu tempo, como Aristóteles,
que obtinha parte das informações contidas em seu A História dos Animais através do
relato de viajantes, pescadores e mercadores14. É certo que, sem a possibilidade de uma
prova empírica daquilo que era relatado pelos viajantes, tomava-se o relato por verdadeiro
e as descrições como supostamente verídicas, apesar de terem muito da fantasia
característica dos pescadores.
A atitude de Borges diverge da de Aristóteles à medida que, no Livro dos seres
imaginários, não há qualquer tipo de compromisso em pretender-se verídico, como está
bastante claro no próprio título da obra. No entanto há um movimento oposto que confere
ao seu texto uma suposta veracidade, já que, para construir cada um dos verbetes, Borges
cita inúmeras fontes, documentos, tratados, diálogos, estudos, etc. Neste pequeno artigo
não foi nem será feita uma análise sobre a veracidade ou não das fontes citadas por Borges,
mas parece muito provável que elas – as fontes verídicas e as imaginárias – convivem em
harmonia segundo a maneira como Borges as configurou, tal como os animais de
Aristóteles.
O quarto modo de compreender o espaço na literatura, Espacialidade da
Linguagem (BRANDÃO, 2007, p. 211), afasta-se completamente da perspectiva
representacional do espaço. Nessa abordagem a própria palavra é tomada como espaço, de
forma que “a estrutura do espaço do texto torna-se um modelo da estrutura do espaço do

14
Segundo Eduardo Jorge de Oliveira. “Esses seres situavam-se nos confins de lugares habitados pela
humanidade. E, pelo intermédio do relato de viajantes, era possível se obter informações sobre tais seres. Não
à toa Aristóteles, em sua História dos animais, obtém parte dos relatos de viajantes, pescadores, enfim,
pessoas que transitavam nesses limites.”
universo e a sintagmática interna dos elementos interiores ao texto, a linguagem de
modelização espacial”15. Um segundo modo de compreender a palavra como espaço
destaca a permanência dos significante, por seu caráter relacional (relações sintagmáticas e
paradigmáticas, verticais e horizontais, portanto espaciais), e a imprecisão dos significados,
sempre etéreos, indefinidos e mutantes.
A palavra, tal como o corpo improvável de um ser feito de inúmeras formas,
carrega em si os significados e usos que teve durante o tempo. Um verbete que registra as
muitas formas assumidas por um ser no decorrer dos séculos é também um estudo
filológico que registra as variantes de significado de um determinado significante. Contar a
história, as histórias, de um ser, é também contar a história daquela palavra em que o ser
está encerrado. O “conteúdo” de um significante é mutável, muito mais mutável que o
próprio significante. Nesse sentido, Roland Barthes trata o significado por “ser mítico”, no
artigo Sémiologie et urbanism, em sintonia com a abordagem que propomos aqui16.

3 Nome perene

Nota-se, em O livro dos seres imaginários, um aproveitamento de muito do que


já foi dito ou escrito sobre determinado ser, mesmo quando o que foi dito seja parte da
fantasia do texto. A originalidade de Borges deve muito à sua maneira de citar textos
alheios, ou textos inexistentes, de reescrever, de pensar o que é próprio do seu texto a partir
de outros textos.
A tentativa de registrar uma forma sem forma, ou algo em pleno processo de
mutação, ou de atribuir um significado a um significante (o que parece ser o procedimento
essencial na composição de um bestiário), traz à tona essa desmesura que caracteriza a
relação significado / significante. O nome do animal sobrevive aos tempos, ainda que sua
forma varie de acordo com a época em que é descrita.
Ao contrário dos bestiários antigos, em que o animal era representado

15
LOTMAN. A estrutura do texto artístico, p. 360. APUD Brandão. Espaços Literários e suas
expansões, p. 211
16
“Os significados são como seres míticos, de uma extrema imprecisão, e a um certo momento
tornam-se sempre os significantes de outra coisa: os significados passam, os significantes ficam. A procura
pelo significado não pode ser senão um procedimento provisório. O papel do significado, quando se
consegue delimitá-lo, é somente de nos dar uma espécie de testemunho sobre um estado determinado de
distribuição do significante. Além disso, deve-se notar que se atribui uma importância sempre crucial ao
significado vazio, ao lugar vazio do significado. Em outros termos, os elementos são compreendidos como
significantes mais por sua própria posição correlativa do que por seu conteúdo”. BARTHES. Semiologie et
urbanism, p. 443. APUD Brandão. Espaços Literários e suas expansões, p. 213
pretensamente da forma mais fiel possível, ou dos bestiários medievais, em que a metáfora
que o animal trazia consigo, com finalidades morais, o definia em plenos contornos, os
recentes bestiários parecem ser antes um esforço para borrar os contornos do enjaulamento
do ser dentro do nome que lhe deram, e a fluidez que possui nas palavras ditas a seu
respeito é que o faz escorrer para além do nome que tem. A forma fiel da antiguidade dá
lugar à forma impossível, inimaginável. E a metáfora da idade média dá lugar à mutação.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução Selvino José Assman. São Paulo: Boitempo,
2007

ARISTÓTELES. História dos animais. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de


Lisboa/Impensa Nacional/Casa da Moeda, 2006.

BORGES, Jorge Luis. O livro dos seres imaginários. Tradução Carmen Vera Cirne Lima. 6
ed. São Paulo: Globo, 1989.

BORGES, Jorge Luis; GUERRERO, Margarita. Manual de zoología fantástica. México:


Fondo de Cultura Económica, 1984.

BUENO, Wilson. Jardim zoológico. São Paulo: Iluminuras, 1999.

BUENO, Wilson. Mar Paraguayo. São Paulo: Iluminuras, 1992.

BUENO, Wilson. Manual de zoofilia. 2. ed. Paraná: Ed. UEPG, 1997.

BRANDÃO, Luis Alberto. Espaços literários e suas expansões. In: Aletria, v.15, 2007 –
jan-jun.

BULLAR, Paulo. Húmus. Porto Alegre: Livros do Mal, 2003.


DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Tradução Fábio Landa. 2 ed. São Paulo:
Editora Unesp, 2011

EL FISIÓLOGO. Bestiario medieval. Barcelona: Obelisco, 2000.

MACIEL, Maria Esther. Poéticas do inclassificável. Aletria, Belo Horizonte, v. 15, 2008b.

MACIEL, Maria Esther. O animal escrito. São Paulo, Lumme Editor, 2008.

OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. Manuais de Zoologia [manuscrito]: os animais de Jorge


Luis Borges e Wilson Bueno/ Eduardo Jorge de Oliveira. - 2009. Disponível em:
http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/ECAP-
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PLINY THE ELDER. Natural History. Disponível em:


http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Plin.+Nat.+8.32&redirect=true . Último
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YELIN, Julieta. Historia de animales: la fábula y el bestiario en la literatura


latinomaericana de la segunda postguerra. (Tese) – Rosario, Universidad Nacional de
Rosario, 2008.

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