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Diário ínfimo 10

Pus toda minha esperança num pedaço de papel e dobrei como quem guardasse
escondido um segredo de ouro, de pedra filosofal, de cristal mágico que se esconde na
infância, no bolso da calça, pra afastar tudo que, desde as primeiras lembranças dos
confrontos naturais de se viver, atemoriza. Não é metáfora, é literal, fiz isso mesmo. Não
tenho nenhum pudor em confessar que truques utilizo para permanecer rija e em pé sobre
mim mesma. Claro que, inicialmente, o ato é apenas simbólico, uma forma quase racional de
se dizer numa brincadeira de faz-de-conta, ou jogo de refazer o desfeito, que o mal será
vencido, que a dificuldade vai passar, que o erro terá conserto, que as secas da alma e do
bolso passarão, que as enchentes das águas e dos venenos dos homens não tardarão, que a
saúde retornará, que a angústia se dissipará, que a fome de tantas coisas se atenuará, que o
incômodo de existir cessará, que a lacuna do amor nunca vivido ou perdido será preenchida,
que as promessas dessa e daquela natureza poderão enfim ser cumpridas, que os filhos não se
afastarão nem se transformarão no exato contrário dos sonhos maternos tão certos de si, que
as desculpas apagarão os insultos justos e injustos desferidos como golpes, que as dores
irretocáveis das perdas serão miraculosamente preenchidas por efeito gratuito e divino, que as
injustiças serão corrigidas com penas que lhe oponham justiça, que a dedicação efetuada e
aviltada pela ingratidão seja paga apenas pela consciência da validade em si do ato de entrega,
que os bens materiais roubados sejam substituídos e os imateriais sejam (a vontade de amar, o
desprendimento de ser companheiro, a vontade de ajudar, a disposição por partilhar)
restituídos por outros de igual ou maior valia, que o terror a tudo que se esconde vivo na
obscuridade dos corações nublados murcharão até seu aniquilamento, que o trono de
majestade do acaso será substituído pelas mãos daquele que detém a vida que voa ao sabor
dos ventos, pipa perdida, fazendo dela sua própria dona e senhora.

Isso é uma oração sem deuses, um recito sagrado sem mito religioso, um canto de
credo sem altar ritual, uma leitura proverbial ou sálmica sem livro áureo, um falar em línguas
sem anjos que balbuciem, fórmula hermética sem seita de iniciação, feitiço sem bruxaria,
encantamento de fada nenhuma. É coisa absolutamente laica, ateia e absolutamente crente
no possível humano. A magia se explica assim: é reforço da crença presente e futura na
probabilidade certa de que não sucumbiremos aos abismos que tão costumeiramente se
apresentam como a superfície da realidade para os que olham a existência mesma e
conseguem enxergar para além dos véus pessoais. O real se dá assim além dos véus: caos e
abismos, mortes e dores, vacuidade e poeira, nada mais que possa ir além do que tudo é dado
a medir, ou seja, nós mesmos. Mas todo simbolismo tem seu preço. Qualquer magia de
esperança pede dois exercícios. O primeiro é o autoengano quando a realidade é
esmagadoramente opressiva e não deixa margens para outra possibilidade senão a do delírio.
E se a alma é frágil, o delírio engendra em loucura, mesmo que ninguém a perceba porque se
disfarça em boa sanidade. Esse modo é o mais comum, fácil e desumano. É a afirmação de que
se habita em abismos e se respira o caos. Diz-se que são os infernos. O segundo é o que anima
a verdadeira magia. Trata-se de uma negociata espertíssima, de acordo ou contrato existencial
e salvacionista. Dependendo de como se vê o credor, que é a vida, negocia-se moratórias e
pagamentos em grandes prestações. Decreta-se falência e volta-se às renegociações. Os males,
perdas, prejuízos, danos e outros revezes são convertidos em argumentos para futuros
ganhos. Negocia-se, racionalmente, a probabilidade inversa que causará o possível bem. Só a
miragem dessa peripécia do acaso, já é suficiente para atenuar os efeitos presentes. O segredo
da magia é a crença na miragem da possibilidade de reversão do passado. É uma mágica de
retradução: o passado é contado com a incorporação de sua negação futura. Só essa vírgula no
texto já produz grande resignificado. No final, em ambos os casos, a negação do real e a
potenciação da imaginação são os meios que produzem o efeito benfazejo, miraculoso
mesmo, de refazer desfazendo. Então, a magia da esperança é puro truque reeditado daquilo
que instintivamente já fazíamos quando bebês: chupar o dedo para substituir o seio faltoso.
Esperança é coisa mágica da imaginação e sobrevivência, até porque, o real sequer tem seios.

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