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Quando penso nas máquinas, na água, nas máquinas de água, surge um desejo um tanto
racional de definir. De dar nomes aos bois. Ou melhor, saber o que cada um dos bois faz,
sua função, para então procurar não confundi-los. Mas, na realidade, o ato de desbravar
conceitos e definições surpreende nas ricas novas possibilidades de relações. Quanto
mais dentro e adentro da coisa em si, mais percebo a teia de coisas entre coisas.
Confuso? É como se ao especificar eu ganhasse uma forma que não hermética mas, pelo
contrário, que possibilitasse a sobre- ou justa- ou contraposição com outra. Como os
triângulos e quadrados de meu Tangram que juntos abdicam suas formas quantas e
infinitas vezes por desenhos sempre novos.
Já a água, escreve o poeta Francis Ponge (P): “É branca e brilhante, informe e fresca,
passiva e obstinada em seu único vício: a gravidade, dispondo de meios excepcionais
para satisfazer esse vício: contornando, transpassando, erodindo, filtrando(...)Poder-se-
ia quase dizer que a água é louca, por causa dessa histérica necessidade de só obedecer à
sua gravidade, que a possui como uma idéia fixa (...)LÍQUIDO é por definição aquilo que
prefere obedecer à gravidade a manter sua forma, aquilo que recusa qualquer forma
para obedecer à sua gravidade.”
Existiria então melhor elemento para ser enganado pela máquina do que a água? Ora,
nossas máquinas hidráulicas contrariam a vontade das águas, quase loucas na entrega
fugaz ao próprio peso, e as eleva. A água brinca com sua forma, desafia-a. E as mecânicas
das máquinas que disfarçam os corpos pesados brincam de volta. Ela, tão obstinada a
obedecer somente à força da gravidade que a carrega, é enganada pelo elevador de
engrenagens que a move. Sempre abaixo: tal parece ser seu lema. Até que a máquina
capaz de iludi-la a leva para cima. Sem ressentimentos torna a cair diante dos meus
olhos, seguindo seu caminho, obedecendo seu peso, aceitando novas formas, vibrando
onde chegar, soando em meus ouvidos. E muitas vezes, como nos conta Gaston
Bachelard, a temos a sorte de a ouvirmos antes de a vermos, murmurando, cascateado,
gorjeando para nós (B).
Mas não sei ao certo se é delicada ou bruta, a água. A mais delicada das brutezas,
poderíamos dizer. Já as máquinas, assim tão brutas com todos suas partes que rangem,
num movimento tantas vezes tão calmo. Quando a correnteza bate forte na grande roda
d’água ela não pensa duas vezes em obedecer. Gira sem cessar, trabalhadora forte de
uma chefe que nem forma tem. Mas depois, a máquina manda de volta e a faz subir, a faz
caminhar. Mesmo então, continuo sem saber ao certo se é a máquina que manda nela, ou
ela que manda na máquina, fingindo obedecer. O que ela obedece mesmo é a si mesma,
dando vez para esse jogo de vai e vem, de pesos e forças.
O seu ritmo segue o rio infinito. As máquinas desequilibram e giram na roda na espiral
que eleva a água, que volta ao mesmo ponto que já não sei. Gira subindo, desce caindo,
hoje e sempre. Olhando, ouvindo, sentindo, giro subindo, desço caindo, sigo, seguindo. E
“a água, assim, é o olhar da terra, seu aparelho de olhar o tempo.” (B) A máquina eleva a
água que é ela mesma a máquina que enche, esvazia, sobe e desce, que cai e corre, corre,
e me mostra o quando e que passa.