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CAMADAS POPULARES
Introdução
Um dos aspectos de grande interesse no âmbito pedagógico e das políticas públicas
de educação tem sido, em nosso país, a questão da formação de leitores e escritores. Muitos
trabalhos (Prado e Condini, 1999. Evangelista et all, 1999) ressaltam a importância destas
competências na construção da cidadania, subjetividade e consciência de si mesmo como
sujeito histórico, capaz não somente de se transformar através da experiência das letras e
das idéias que, em uma sociedade grafocêntrica como a ocidental, circulam e adquirem
legitimidade, principalmente pelos meios impressos, como também de atuar nesta rede
infinita de escritos e discursos, transformando-os e recriando a própria realidade em que
vivemos e que produzimos.
Na realidade de um país como o Brasil, de dimensões continentais, cujas origens
deitam raízes em uma sociedade escravocrata e excludente, a questão da formação de
leitores e escritores constitui-se uma questão, sobretudo, política. Ao analisarmos o
mercado editorial de nosso país, nos deparamos com a triste realidade de uma ultrajante
desigualdade do acesso ao livro: mais de setenta por cento dos livros publicados ao ano são
didáticos, dispomos de 2.008 livrarias, cerca de uma para cada 84,4 mil habitantes - número
que tende a diminuir em função da crise editorial – distribuídas desigualmente pelo
território nacional.
Os números –publicados recentemente no Anuário Editorial do Grupo Editorial Cone
Sul – mostram que os habitantes da região Norte são os que menos têm oportunidade de acesso
aos livros por meio das livrarias. Lá, existe uma para cada 215, 3 mil pessoas.
As regiões Sul e Sudeste lideram o setor de livrarias do país. O Sudeste engloba 56% das
lojas. A média é de uma para cada 64,2 mil pessoas. Já a região Sul é a que possui a menor
média na relação do número de livrarias por habitantes (uma para cada 56,7 mil).
(...) De acordo com a Associação Nacional das Livrarias, cada brasileiro lê, em média,
2,3 livros por ano. (Folha de São Paulo, 2001)
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populares, onde a prática da leitura e da escrita, muitas vezes, não constituem um habitus,
mas é representada como valor simbólico.
Algumas informações sobre as estratégias de interação empírica
Durante o período de um ano e seis meses, participei de vários eventos de RPG,
alguns dos quais organizado pela associação de RPG “Senhores do Caos” de Village
Pavuna e que tiveram lugar no SESC do Engenho de Dentro (ambos, subúrbios do Rio de
Janeiro), com apoio do próprio SESC e da Rádio do Grande Méier. Estas incursões no
campo foram orientadas pelos princípios da observação participante.
Em função da popularização do jogo, a maioria dos entrevistados eram oriundos da
periferia e incluíam-se na faixa etária entre 17 e 25 anos, com raras exceções. Foram ao
todo, 23 entrevistas semi-estruturadas em torno de seis eixos básicos: dados pessoais e
socioculturais, auto-representação dentro do universo de RPG, ingresso no mundo do RPG,
principais características atribuídas à função do mestre, atuação como mestre, histórias de
formação como leitor e escritor e práticas de leitura e de escrita dentro e fora do mundo do
RPG.
Além das entrevistas e das incursões no campo, acompanhei um grupo de jogadores
em seus encontros e jogos, orientando minhas observações para os aspectos relativos às
práticas de leitura e escrita que ali tinham lugar, bem como os ecos das histórias de
trajetórias colhidas em situação de entrevista.
Neste recorte, encontram lugar as histórias contadas pelos mestres entrevistados
sobre os primeiros contatos com a leitura/escrita, os primeiros estímulos, o papel do
ambiente familiar, da escola e do próprio RPG na sua trajetória de formação de
leitor/escritor.
O papel do ambiente familiar na formação do leitor
Muitos dos entrevistados, em um primeiro momento, negaram o papel da escola na
sua formação como leitores e escritores. Muitos negam também o papel da família,
afirmando que teriam se formado sozinhos, que o gosto pela leitura é uma espécie de dom,
ou simplesmente que sempre gostaram de ler independente de estímulos externos, naquilo
que Bourdieu (1996) chama de mito do “gênio criador incriado” que acredita nada dever de
sua habilidade às condições sociais em que esteve e está imerso.
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Segundo Britto (1999: 77), “os discursos ‘oficiais’ reforçam a idéia de que ler é uma
questão de hábito ou gosto que se adquire por vontade individual, independente dos
vínculos sociais estabelecidos pelo sujeito”. Partindo, porém, de reflexões de autores como
Chartier e Bourdieu (1996) que consideram a leitura como uma prática cultural
indissociável das relações sociais, entendemos o papel do ambiente familiar na formação
dos entrevistados como leitores.
Muitas vezes, através dos depoimentos dos entrevistados, percebemos que, em
alguns casos, a leitura não chega a ser um habitus socializado no núcleo familiar, mas a
influência do valor simbólico e social da leitura traduzido em estratégias e esforços
familiares na aquisição desta competência são muito evidentes.
Carlos Flávio1 relata que sua mãe o obrigava a ler para que ele “melhorasse,
trabalhasse a leitura em si”, mas ele não gostava e lembra-se ainda hoje do livro que a mãe
o obrigava a ler, O Planeta Proibido, "um livro infantil, cheio de figura, só que eu achei a
história muito boba (...) eu lia, só que eu não compreendia o que tava lendo. (...) Hoje em
dia, minha mãe odeia que eu leia, não sei o que foi".
Esse tipo de relato é recorrente. Parece que as famílias em geral, têm a consciência
de que ler é importante. A leitura é em geral, um valor familiar, disponha ou não essa
família do hábito da leitura, tenha ou não livros em casa. No caso de Carlos Flávio, sua mãe
não costuma ler, “não tem tempo, não gosta, sei lá”, diz ele. Apesar de não dispor do
habitus da leitura, achava importante que o filho lesse, ou pelo menos, "trabalhasse a leitura
em si", ou seja, fosse tecnicamente capaz de ler. Paradoxalmente, o hábito da leitura
adquirido por Carlos Flávio não é apreciado. O desenvolvimento da leitura como prática
cultural, em alguns casos de famílias das camadas populares ameaça as relações internas de
poder. Chartier (1991) descreve, de maneira excepcional, a resistência das camadas
operárias da França no Renascimento à cultura escrita. Ao se apropriar da leitura, Carlos se
afasta das tradições culturais de sua família, circulando com facilidade por campus
inacessíveis à sua família. Na época da pesquisa, Carlos fazia faculdade de Letras na UFRJ
e preparava-se para se mudar da casa de seus pais, em Piedade, onde nascera.
Apesar de seu projeto individual (Velho,1994) que ampliou sua mobilidade além
dos limites sociais de origem, Carlos admite a influência de uma prima mais velha com
1
Ao final do texto, em anexo, encontram-se dados pessoais dos entrevistados.
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quem tinha uma boa relação afetiva e que costumava ler para ele na casa da avó. Quanto
aos livros infantis aos quais teve acesso na infância, no entanto, guarda alguns
ressentimentos:
Livro de colégio, eu não gostava de ler, coleção Vaga-lume... eu tenho ódio de tudo isso,
tenho raiva... Mas por exemplo, nunca li Pequeno Príncipe, Monteiro Lobato, nada... Agora que
eu descobri o livro infantil, que eu peguei o texto original de Peter Pan e vi como é
maravilhoso...
Para Álvaro foi a mãe quem mais o incentivou a ler. Apesar de ler pouco porque
tinha três filhos e não lhe restava muito tempo, Álvaro se lembra de vê-la lendo, “e mais do
que isso, quer dizer, ela dava um apoio porque a gente não tinha lá muito recurso, mas
quando era alguma coisa que eu e meus irmãos quiséssemos ler, ela fazia um esforço
enorme pra conseguir.”
Muitos entrevistados atribuem seu gosto pela leitura ao ambiente familiar e
relembram-se de situações em que seus pais liam histórias para eles como momentos
extremamente lúdicos:
Meu pai lia para mim, geralmente ou fim de semana ou assim à noite. Ah! Ele lia muito
pra mim também um volume que é Lendas, Histórias de Tia Anastácia e Contos de Dona Benta
que eram história curtinhas e tinha muitas lendas indígenas e fábulas com temas brasileiros. Ele
lia ao mesmo tempo as fábulas de La Fontain e Monteiro Lobato. A gente deitava na cama dele
sábado à tarde e ele dizia: “Ah! Vou ler pra vocês aquela história do macaco!”. Aí, lia a história
do macaco, a gente ria e tal... Porque essas histórias são super legais que têm umas
musiquinhas, aí ele fazia as musiquinhas e tal... ele contava a história de uma forma mais
alegre. (José Carlos)
Na conversa que tive com um grupo de entrevistados, temos relações familiares bem
diferentes e o contar histórias também aparece:
- Na tua casa tinha alguém que gostava de escrever ou de contava histórias ?
- Os meus pais odeiam isso.
- Meus pais não gostam de poesia.
- Minha mãe adora ler e adora poesia.
- Minha mãe adora ler, mas ela é assim; me incentiva a ler, incentiva toda a família a ler,
mas ela nunca contou história, nunca ficou horas contando histórias.
- E quando você não sabia ler?
- Quando eu não sabia ler, eu não lia.
- Ninguém contava?
- Minha mãe contava história para mim na hora de dormir... Ela me ninava mais... Sabe
por quê? Minha mãe contava que eu tinha medo do escuro.
Quando eu não sabia ler, eu não lia... Será possível começar a ler, sem o auxílio de
um adulto? Qual o papel do adulto na construção da competência narrativa e da aquisição
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da leitura? Vargas (1993) acredita que a interação e a troca entre adulto e criança podem ser
vistas como o principal elemento para a construção conjunta do discurso narrativo. O
adulto, “aquele que sabe”, tem um papel, segundo a autora, de “iluminador de caminhos”,
ou propiciador de desenvolvimento, recapitulando e pontuando durante a leitura.
No caso de Rui, a referência que traz de algum adulto contando-lhe histórias está
ligada à educação sexual para crianças. Nesta interação, nos parece que o objetivo do adulto
concentra-se em informar e não propriamente desenvolver a leitura:
Era uma coisa meio ridícula, era um livro chamado De Onde Viemos, o único que eu me
lembro mesmo dela (minha mãe) ter lido para mim e para minha irmã. Era um livro direcionado
para crianças mesmo, mas sobre sexo. Eu me lembro que na época, achei bastante engraçado.
Me lembro também que meu pai não estava por perto, era só ela, minha irmã e eu.
Sobre os hábitos familiares de leitura, Washington disse que a mãe ganhava muitos
livros de uma amiga, e que por isso, havia muitos livros em casa, mas não tinha o hábito de
comprar livros que talvez fossem mais de seu agrado. A formação do leitor não implica
apenas em capacitar alguém a decodificar grafemas, mas principalmente oferecer a
oportunidade de incorporar o habitus do jogo da leitura, desde sua aquisição até o seu
manuseio, passando também pelo uso e comentários de seu conteúdo, e tudo mais desta
complexa prática humana, que é uma prática sobretudo cultural. Washington, por exemplo,
não teve a oportunidade de aprender a comprar livros. Os livros de que dispunha eram
livros “ganhados”, livros não desejados: "Enciclopédias - ele dizia com desprezo - essas
coisas".
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No caso de Jorceley, além dos pais favorecerem o consumo de livros, havia “umas
tias professoras”:
É na minha casa tinha algumas tias professoras e elas tinham o costume de todos
aniversários dar coleções de livros. A primeira que eu ganhei foi Monteiro Lobato... era uma
coleção de 12 livros de Monteiro Lobato, eu adorava ler aquilo. Eu devia ter uns 7, 8 anos...
Daí, a minha mãe me deu As Mais Belas Histórias da Bíblia que eu li tudo também e daí foi
uma questão de busca pessoal (...). Mas eu acho que essa maior influência veio da parte das
minhas tias que eram professoras e se preocupavam bastante, e começaram a me dar esses
livros infantis...
Segundo Frank, os hábitos familiares influem bastante e diz que na sua formação
como leitor, isso foi o que influenciou mais: “A minha mãe sempre lia, meu pai sempre leu.
Aí eu ficava vendo: ´o que a minha mãe tanto lê?` Eu não gostava do gênero que a minha
gostava, aí eu ia na casa de outras pessoas e via livro e acabava lendo. (...) Ela lia muito
Agatha Christie, um suspense, uma coisa assim mais requintada. E eu já gosto do gênero
Stephen King, coisas assim de ficção, aventura”.
O pai de José Carlos teve um papel importante em sua formação. Quando ainda não
sabia ler, seu pai lia Monteiro Lobato para ele. Depois, José Carlos se lembra com enorme
encanto de leituras compartilhadas entre ele e seu pai. Faziam uma espécie de concurso, o
pai lia à noite e pela manhã dizia em que página já estava. Durante a tarde, depois da
escola, José Carlos se debruçava sobre o livro a fim de ultrapassar o ponto em que seu pai
havia parado. Quando o pai chegava do trabalho, se gabava: “Eu já passei você... depois
daquilo, aconteceu isso e aquilo outro”. No começo, quase sempre era o pai quem estava na
frente, mas José Carlos se empenhava para manter essa troca.
Também na história de Antônio Maurício, o compartilhamento de leituras constituía
um estímulo em sua formação como leitor. Antônio Maurício diz ler bastante. Desde
pequeno, lia todo tipo de revistinha em quadrinhos. Seus pais compravam as revistas: “Meu
pai e minha mãe tinham uma satisfação de comprar isso pra mim”. Antônio Maurício diz
que antigamente seus pais até liam bastante, mas hoje em dia, em função de seus trabalhos,
chegam muito cansados e quase não lhes sobra tempo e energia para ler.
O papel da ambiente escolar
Na fala de alguns entrevistados, parece que os primeiros contatos com os livros
ficam, principalmente, a cargo da escola , embora esta influência seja normalmente negada
no começo da interlocução.
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Um livro infantil que eu gostei muito foi O Veludinho, conhece? (...) Na época eu gostei
bastante. Acho que foi quarta série. Foi a escola que recomendou que você lesse? Foi. É, tem
razão, a escola estimulou sim, não me lembrava desse detalhe, faz tempo. (Rui)
Indagado sobre o papel da escola na formação do gosto que demonstrava ter pela
leitura, Antônio Maurício responde que:
A escola não, mas eu tive várias professoras... principalmente uma professora de
português, que era um doce de pessoa. Ela fazia questão de comprar um monte de livros pra
fazer teste de leitura. (...) Depois, era feita uma votação. Se a leitura fosse legal, o cara ia lá
escolher um livro (...) Então, ficava aquela disputa, a criança chegava em casa e lia o próprio
livro de português, saía lendo até jornal para estimular a leitura, para aprender a ler
direito, para ganhar o melhor livro, chegar lá e escolher. E ela sempre incentivava, ela sempre
falava isso "Você está ganhando livro? Mas eu quero depois que você traga para ler aqui na
sala, eu vou escolher, aleatoriamente, uma página qualquer para você ler."
Chama atenção, em seu enunciado, a concepção que tem sobre esta prática, onde a
leitura de jornal, por exemplo, aparece como algo detestável, feita apenas para estimular
uma leitura que está muito mais associada à capacidade de sonorização sem tropeços do
que ao encontro com os conteúdos do texto lido. Embora tenhamos a tentação imediata de
criticar teoricamente este tipo de atividade pedagógica compensatória e puramente
instrumental em torno da leitura, não podemos deixar de levar em consideração que, na
prática, a ação desta professora parece ter auxiliado mais do que prejudicado a formação da
competência da leitura. Maurício lembra-se dela com grande carinho e acredita que tenha
melhorado muito graças às suas estratégias em sala de aula.
Ao longo da entrevista, falando sobre suas leituras mais marcantes, lembrou-se de
uma poesia de seu livro didático do “primário”, O Leão Reconhecido, de Bastos Tigre. Ele
amava tanto este poema, que o reproduzia para presentear as pessoas: “Eu vivo tirando
xerox que é para o caso deu perder o original, eu sempre manter viva essa poesia”. Esperou
acabar o ano, tomando todo cuidado com o livro e, então... “eu arranquei aquela folha,
dobrei bem dobrado, guardei bem guardado”. Ao perguntar-lhe por que havia rasgado o
livro, respondeu: “Porque eu sabia que o livro ia acabar indo para o lixo, mas eu falei O
Leão Reconhecido está salvo.”
De um livro didático, cujo destino estava já marcado; o lixo, havia um poema,
apenas um, que merecia ser salvo e que veio a se tornar uma espécie de relíquia, talvez uma
lembrança do tempo de escola. Um único texto no qual talvez se concentre todo o valor
simbólico de um capital cultural ao qual Antônio Maurício foi excluído.
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Eu sempre gostei de ler desde pequeno, mas era sempre porcaria, era sempre coisa que
não tinha nada a ver com cultura, Mônica, essas coisas assim. Uma vez ou outra aparece um
revista do Tio Patinhas explicando um termo complicado que eles usam, isso aí é louvável. Mas
não é nada que se diga: "Oh, é cultura para uma criança." Mas já estimula a ler”. Depois,
comecei a ler esses livros infanto-juvenis qu eu gostava porque as hitórias eram legais e curtas.
Agora, acabei de ler Dunas, emprestado de um colega, que é um livrão.
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A referência aos quadrinhos na formação dos mestres de RPG como leitores não
aparece apenas entre os mais jovens. Álvaro lembra do papel do Saci Pererê na aquisição da
leitura:
Na verdade, eu comecei a ler muito cedo e a minha mãe disse que eu aprendi a ler com
cinco anos, e com oito, eu fazia palavra cruzada. Mas a coisa que eu lembro que mais me
cativava a ler quando eu era criança era o gibi do Saci Pererê, que o Ziraldo fazia na edição
Cruzeiro, que era um grupo de personagens. Eu lia outras coisas, mas o Saci Pererê era especial.
Por quê? Porque todos os personagens do Saci brincavam das mesmas coisas que eu brincava,
aquele mundo eu conhecia muito bem, aquele mundo me fascinava.
As histórias em quadrinhos são apontadas como maravilhoso suporte para quem está
construindo-se leitor, mas apesar do senso comum nos dizer que é uma leitura de massa
para as massas, talvez nos surpreendamos com a dificuldade de seu consumo por grande
parte da população como relata Álvaro sobre experiência na Gibiteca Henfil com escolas
públicas da periferia de São Paulo:
A gibiteca Henfil tem um programa de receber escolas, e eles fazem uma
apresentação antes de receber as crianças pra explicar como é que funciona, etc... um dia, a
Soraia percebeu que ela tava falando um monte de coisa e a meninada tava fazendo aquela cara
de interrogação, aí ela parou e perguntou: Escuta, quem de vocês sabe o que é um gibi? E das
sessenta crianças que tavam lá, nenhuma nunca tinha visto nenhum, da periferia... É
impressionante... Aí ela parou, foi lá no acervo e pegou um monte e deu um pra cada um e
disse: “Olha, leva pra casa, esse gibi é seu”. Quer dizer, o acesso também, pra maioria da
população é muito difícil, tem muita gente que não tem condição.
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Eu lia muito enciclopédia... têm umas enciclopédias que têm parte de literatura. Tinha
histórias comuns da Cinderela, Branca de Neve, só que contada totalmente diferente. (...) Foi
uma amiga da minha mãe que me deu de presente. Ela se desfez. Era uma coleção de dezoito
capítulos. Eu era pequena. Eu devia ter uns nove anos. Ela se desfez da coleção. Eram livros
encadernados de 1951, antigão. Eles tinham uma visão... A parte científica é uma porcaria.
Porque é totalmente diferente assim do que foi, depois a ciência evoluiu, está ultrapassada, mas
a parte de contos, de literatura, é muito boa. (Carolina)
Uma enciclopédia que foi ganha de presente porque a amiga da mãe havia se
desfeito dela... A parte científica fora ultrapassada (talvez, por isso, tenha sido repassada),
mas a parte de literatura foi aproveitada. Quando o consumo de livros novos não é possível,
arranjam-se alternativas, e se há o valor da leitura em casa, os leitores se formam lendo
enciclopédia, lendo quadrinhos, lendo livros usados ou emprestados da biblioteca, do
vizinho...
O papel das bibliotecas escolares e públicas
Em ambientes de menor poder aquisitivo, a biblioteca pública constitui uma
alternativa de grande importância, espaço concreto de acesso a livros:
Álvaro, depois de já ter sido fascinado pela leitura através da turma do Saci Pererê,
entrou para o ginásio e descobriu a biblioteca:
Depois, quando eu entrei para o ginásio, a escola que eu entrei tinha uma biblioteca, e aí
eu descobri Monteiro Lobato e li tudo que Monteiro Lobato escreveu para criança, tudo, tudo,
tudo... (...) Essa falta de recurso fez com que procurasse a biblioteca bastante cedo e eu passei a
adolescência lendo tudo na biblioteca.
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Minha mãe gosta bastante de ler. Ela sempre comprava livro usado que a gente não tinha
muito dinheiro, mas comprava. Quando eu passei a infância em São Paulo, a gente tinha uma
biblioteca muito boa perto de casa. Quando a gente foi para o interior, foi um pouco mais
problemático... Em Ibiúna, quando eu mudei para lá, não tinha nem biblioteca ainda, mas fui
aos poucos lendo. Em São Paulo, é bem mais fácil. Comecei a pegar mais swing quando eu
voltei para São Paulo para estudar, e fazer colegial, aí tinha biblioteca para tudo quanto é lado
(Frank)
A relação de dependência, portanto, entre leitura e cidadania, acaba por demarcar uma
exclusão radical. E ao mesmo tempo que exclui o não-leitor, referenda o lugar da escrita como
real espaço do conhecimento (...)
Talvez fosse necessário inverter a proposição tradicionalmente aceita como verdadeira
nos meios relacionados à Educação: não é a descoberta da leitura que conduz o indivíduo ao
exercício da cidadania; mas é a descoberta da cidadania que conduz o indivíduo ao exercício
ativo da leitura. E frisemos, o exercício ativo pressupõe não apenas crítica, mas a capacidade de
se produzir novos textos a partir do primeiro. (1999: 152)
Dos relatos das 23 entrevistas desta pesquisa, não houve qualquer menção a
estímulos e estratégias diretos, no seio familiar, no sentido de desenvolver a prática da
escrita. Indiretamente, temos relatos de atividades familiares de construção de narrativas
orais ficcionais que os informantes sublinham como aspectos influentes na sua formação
como escritores. A categoria “escritor”, no entanto, é dificilmente assumida: “Escrevo
diários, anoto umas idéias, às vezes faço uns contos, mas não sou um escritor...”. Parece
que ser “escritor” está fortemente relacionado à inscrição dos escritos nos meios impressos.
Quanto às práticas escolares, poucos entrevistados recordam-se de atividades escolares que
os teriam estimulado a gostar de escrever.
Carlos se lembra de um episódio na escola. Quando era adolescente, adorava
escrever histórias em quadrinhos e com 12, 13 anos, começou a escrever seus “primeiros
livrinhos”. Depois, chegou a ganhar um concurso da escola, que parece muito tê-lo
incentivado. Além disso, havia uma professora... “a professora Norma, que criou um coisa
chamada Criação. Toda semana tinha que escrever alguma criação, uma redação de tema
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livre. (...) Isso me estimulou e era uma coisa impressionante porque eu conseguia escrever
vários”.
Também na história de Dudu, aparece o trabalho de iniciativas escolares na
formação da figura do escritor em seu imaginário:
Eu já tinha lido Júlio Verner indiretamente pelo Origenes Lessa numa dessas edições em
que autores brasileiros rescrevem alguns clássicos. E umas das coisas mais legais, uma das
emoções mais fortes que eu tive nessa época, foi quando o Origenes Lessa foi na minha escola,
que pra mim, pô, eu tinha lido todos os livros que tinha da coleção do Origenes Lessa, e de
repente eu via o Origenes Lessa ali: “Pô, caramba! É ele e tal!” Aí fui lá pegar o autógrafo dele.
Fiquei todo emocionado e... eu acho que foi aí que despertou o meu interesse de algum dia vir a
escrever alguma coisa. Que eu vi o escritor, né?
Rui que, apesar de não ousar se considerar um “escritor”, mas que tem uma grande
produção de contos e projetos de livros de RPG na “gaveta”, lembra-se de um episódio que
o teria incentivado a prática da escrita:
Você acha que a escola te ajudou a gostar de escrever? Dava um certo estímulo sim.
Eu me lembro de uma vez quando estava na sexta série. Eu tinha mudado de colégio, a
professora pediu para a turma toda fazer uma redação sobre si mesmo. Eu escrevi uma poesia.
Bom, foi a primeira poesia mesmo que eu escrevi, foi bastante elogiada, a diretora chegou a
falar que eu tinha ido lá para o DEC, como é o nome que se dá? Esqueci o nome agora, enfim,
algo ligado a países pobres... Eu fiquei super empolgado, super feliz, e a partir daí eu comecei a
... Escrever? É. Se bem que, como eu disse, a princípio eu não escrevia porque gostava. Eu me
lembro de uma poesia bem triste, eu escrevia como uma certa forma de escapismo, para expor o
que eu sentia, porque eu não tinha muitos amigos. Aí, depois, acabei pegando o gosto.
Considerações finais
O material das entrevistas aponta para a importância do ambiente familiar na
formação de jovens leitores oriundos das camadas populares. Interessante que, muitas
vezes, essas famílias não dispõem de capital cultural nem do hábito da leitura, no entanto,
reconhecem a competência desta prática como um valor simbólico importante e necessário
para o desenvolvimento de seus filhos em nossa sociedade, fazendo grandes investimentos,
apesar das adversidades que se impõem. A escola pública, apesar de todas as suas
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elas se multipliquem para aqueles que não podem adquirir livros com tanta facilidade
tenham acesso garantido aos mesmos.
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ª
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Anexo:
Álvaro : Tem por volta de 40 anos. Cresceu na periferia de São Paulo. Engenheiro de
computação, paulista. Trabalhou quinze anos em uma compania de computação, além de atuar
como professor de informática. Escreveu durante quatro anos um boletim dedicado aos quadrinhos.
Antônio Maurício: Tem 27 anos, é carioca de Santo Cristo e membro da associação
Senhores do Caos. Sua mãe é dona de casa e o pai trabalha em uma lanchonete. Antônio Maurício
havia abandonado a escola na sexta série do ensino fundamental e recentemente recomeçava a
estudar para, segundo ele, “corrigir a burrice que fiz...”. Neste meio tempo, trabalhou em uma
locadora de vídeo e games, onde se divertia conversando com os clientes sobre os filmes que
assistia.
Arrigo: Não revelou sua idade, mas aparenta ter por volta de 20 anos. Carioca, é um dos
Senhors do Caos. Mora na Pavuna.
Carolina: Carioca de 19 anos, faz o curso de Farmácia na UFF. Mora em Vila da Penha.
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