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resposta 1975

uma vez, uma mulher me disse que saudade são dois tempos vivendo juntos no mesmo
espaço. não foi bem assim que ela disse, mas foi assim que meu cérebro processou e
está gravado.
foi nisso que eu pensei quando te vi sentado na minha frente, moço. era eu falando de
orixás e incorporação mediúnica e você falando da beleza que era a disposição dos
nossos órgãos, meio receoso de elevar o cérebro à categoria de órgão mais importante
do corpo humano, porém sem sucesso, seus olhos em frenesi enquanto você dizia coisas
sobre neurônios encapados pela bainha de mielina pra que o impulso elétrico pudesse
percorrer seu caminho sem se perder. eu falando de criação e você de ciência. lembro de
maysa.
“não, não, não, não faça isso, científico é uma coisa programada, criação é uma coisa
que nasce, nasce com a gente, nasce com as nossas dores, nasce com as nossas
neuroses, com os nossos sorrisos, não, não, não, não... criação é uma coisa muito
importante, o científico também é, só que o cientifico é cientifico, né? ou não?"
você, o cérebro. eu, a memória. meu maior medo é o esquecimento. tenho medo de
esquecer, medo quando as pessoas esquecem. não de mim, quanto a isso pouco importa,
mas das coisas. quase sussurro pra te usar como exemplo, me aterroriza a ideia de
esquecer quem você é e porque está aqui. o que mais me aterroriza é ter consciência de
que o esquecimento é necessário. o viver exige o esquecimento tanto quanto estar
presente.
busco algum sinal seu, qualquer um que me garanta que você tem cicatrizes, qualquer
rastro que me leve até algum lugar do seu passado e que te faça me contar uma história
sobre você. algo que se esconde dentro do seu cérebro e te faça chorar, para que eu
tenha um motivo pra levantar dessa cadeira de plástico e te abraçar. eu sei, os corpos
guardam mais coisas que o cérebro, os toques carregam memória. eu lembro da primeira
vez que vi o seu corpo. lembro de como sua samba-canção se expandiu pra abrigar o seu
pau que endurecia. lembro de todas as vezes em que desejei ser um sujeito alhures, toda
santa vez que quis pegar um avião só pra foder com você e voltar pra casa. quando eu te
abraçasse, era isso que queria que você sentisse.
“pra mim tá importando você. você me convidou pra vir aqui. tudo é pessoal. ridícula,
absolutamente ridícula, só não vê quem não quer.”
falávamos de cérebros quando fui embora, meu abraço de despedida não conseguiu
dizer o que só a língua seria capaz.
eu te esperei. te esperei tanto que, quando você veio, já não era mais a hora certa.
em casa, fiquei o resto da noite vendo maysa: estudos. esperava que ao menos o outro
homem em minha cama pudesse se apiedar de alguém tão covarde e fodesse comigo do
mesmo jeito que eu queria foder com você.
eis o paradoxo: o viver também exige lembrar. então eu lembro.
e espero até que os tempos se divorciem e deixem de viver juntos no mesmo espaço.
(raphael m. fortin – 8568551)

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