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OPINIÃO OPINION

Reforma /Psiquiátrica

Novos Sujeitos, Novos Direitos: O Debate em Torno da


Reforma Psiquiátrica
New Subjects; New Rights: The Debate About the Psychiatric in Brazil

Paulo Amarante1

AMARANTE, P. New Subjects; New Rights: The Debate About the Psychiatric in Brazil. Cad.
Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 491-494, Jul/Sep, 1995.
The author analysis and talks about the discution of the process of Brazilian Psichiatric
Reform and Paulo Delgado’s legislation, which proposes new technologies in mental health
care that substitutes the psychiatric hospital. To the author, the concept of
de-institutionalization in opposition to desospitalization, defines better the ethics aspects in
mental health care.
Key words: Mental Health; De-Institutionalization; Psychiatric Reform; Mental Illness

Castel relata que Jules Falret, encarregado bilidade de gozar da Razão plena e, portanto, da
pela Sociedade Médico-Psicológica de Paris de liberdade de escolha. Liberdade de escolha era o
visitar a aldeia belga de Gheel, onde alienados pré-requisito da cidadania. E se não era livre não
trabalhavam e habitavam em harmoniosa convi- poderia ser cidadão. Ao asilo alienista era devo-
vência com os camponeses, declarou na reunião tada a tarefa de isolar os alienados do meio ao
de 30 de dezembro de 1861: “ Fica-se verdadei- qual se atribuía a causalidade da alienação para,
ramente estupefato e assustado quando se vê por meio do tratamento moral, restituir-lhes a
os camponeses deixarem circular livremente os Razão, portanto, a Liberdade.
alienados no seio de suas famílias, de suas fi- No contexto da Revolução Francesa, com o
lhas e das crianças, confiar-lhes armas e ferra-
lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, o
mentas. (...) O sentimento que predomina em
alienismo veio sugerir uma possível solução para
Gheel (...) é a confiança, na verdade exagerada,
a condição civil e política dos alienados que não
nos alienados e em seu caráter inofensivo” (Cas-
poderiam gozar igualmente dos direitos de cida-
tel, 1978: 254). Mas, anteriormente, o próprio Pi-
nel já afirmava: “Em geral é tão agradável, para dania mas que, também, para não contradizer aque-
um doente, estar no seio da família e aí receber les mesmos lemas, não poderiam ser simplesmen-
os cuidados e as consolações de uma amizade te excluídos. O asilo tornou-se então o espaço da
tenra e indulgente, que enuncio penosamente cura da Razão e da Liberdade, da condição precí-
uma verdade triste, mas constatada pela experi- pua do alienado tornar-se sujeito de direito.
ência repetida, qual seja, a absoluta necessida- A repercussão que teve a Revolução France-
de de confiar os alienados a mãos estrangeiras e sa para a nova ordem mundial fez com que estes
de isolá-los de seus parentes” (Castel, 1978: 86). princípios alienistas fossem adotados na maior
A doença mental, objeto construído há du- parte do mundo ocidental. O asilo psiquiátrico
zentos anos, implicava o pressuposto de erro da tornou-se assim o imperativo para todos aque-
Razão. Assim, o alienado não tinha a possi- les considerados loucos, despossuídos da Ra-
zão, delirantes, alucinados. O asilo, lugar da li-
beração dos alienados, transformou-se no maior
a mais violento espaço da exclusão, de sonega-
1
Núcleo de Estudos Político-Sociais em Saúde, ção e mortificação das subjetividades.
Departamento de Administração em Saúde Pública, Escola
Nacional de Saúde Pública/Fiocruz. Rua Leopoldo
“História da Loucura na Idade Clássica”, de
Bulhões, 1480, Rio de Janeiro, RJ, 21041-210, Brasil. Michel Foucault, como se sabe, foi fundamental

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 491-494, jul/set, 1995 491
Amarante, P.

para reescrever a história da loucura, da psi- tervenção, pela Prefeitura de Santos, na Casa
quiatria e de toda a forma da sociedade moderna de Saúde Anchieta, de um hospício privado que
em lidar, não apenas com a loucura mas, ainda, contava com mais de 500 internos. Possibili-
com todas as formas de diferenças, desvios e tada pelo processo de municipalização do sis-
divergências sociais e culturais. Muitas obras tema de saúde, a intervenção deu início ao fe-
importantes contribuíram para esta inversão, chamento do hospício e à substituição do
dentre as quais destacam-se as de Rosen, Cas- modelo assistencial, com a criação de Centros
tel, Szazs, Goffman a Burton, para exemplificar de Atenção Psicossocial (que funcionam 24
apenas algumas. No Brasil são de igual impor- horas, atendendo quaisquer situações de crise
tância as obras de Joel Birman, Jurandir Freire psiquiátrica e/ou social relacionada ao estado
Costa a Roberto Machado. mental, inclusive com leitos de suporte para
Em 1978, no contexto da redemocratização, hospedagem em situações mais graves), de pro-
surge, no Rio de Janeiro, o Movimento dos Tra- jetos culturais e artísticos – a exemplo do Pro-
balhadores em Saúde Mental (MTSM), que virá jeto TAMTAM –, de Lares Abrigados para
a tornar-se o ator social estratégico pelas refor- ex-internos ou para novos pacientes que não
mas no campo da saúde mental. O MTSM, num tenham casa ou condições de moradia, e de uma
primeiro momento, organiza um teclado de críti- cooperativa de trabalho que oferece condições
cas ao modelo psiquiátrico clássico, consta- de trabalho para as populações carentes, com
tando-as na prática das instituições psiquiátri- ou sem problema especificamente psiquiátrico.
cas. Procurando entender a função social da Com a repercussão da experiência de San-
psiquiatria e suas instituições, para além de seu tos, o outro fato importante foi o surgimento
papel explicitamente médico-terapêutico, o
do Projeto de Lei Paulo Delgado, que propõe a
MTSM constrói um pensamento crítico no cam-
extinção progressiva do modelo psiquiátrico
po da saúde mental que permite visualizar uma
clássico, com sua substituição por outras moda-
possibilidade de inversão deste modelo a partir
lidades assistenciais e tecnologias de cuidados.
do conceito de desinstitucionalização.
O certo é que este conjunto de fatos e inici-
Em dezembro de 1987, no encontro dos traba-
ativas tem propiciado um importante movi-
lhadores em saúde Mental, em Bauru, surge uma
mento de transformações no campo da Saúde
nova e fundamental estratégia. O movimento
amplia-se no sentido de ultrapassar sua nature- Mental no Brasil. Autor de vários livros em
za exclusivamente técnico-científica, tornando-se psiquiatria e saúde mental, assessor de saúde
um movimento social pelas transformações no mental da Organização Mundial da Saúde
campo da saúde mental. O lema “Por uma Socie- (OMS), Editor da Revista Psiquiatria Públi-
dade Sem Manicômios”, construído neste con- ca, diretor da Rede de Serviços Comunitários
texto, aponta para a necessidade do envolvimen- de Saúde Mental de Madri (onde promove um
to da sociedade na discussão e encaminhamen- importante processo de desinstitucionaliza-
to das questões relacionadas à doença mental e ção), Manuel Desviat é um importante psiquia-
à assistência psiquiátrica. Deste ano até hoje, o tra europeu. Em seu último livro, intitulado “La
Movimento vem organizando inúmeras ativida- Reforma Psiquiátrica”, Desviat dedica um ca-
des culturais, artísticas e científicas nos estados pítulo à reforma psiquiátrica brasileira, que
e nas principais cidades do país, com o objetivo considera um dos mais frutíferos, promisso-
de sensibilizar e envolver novos atores sociais res e vigorosos processos de transformação no
na questão: de lá para cá foram organizadas de- campo da saúde mental e da psiquiatria. Este é
zenas de associações de familiares, voluntários apenas um exemplo do interesse internacional
e usuários de serviços psiquiátricos. Da mesma pelo processo brasileiro.
forma, inúmeras entidades da sociedade civil As portarias 189/91 a 224/92 do Ministério
passaram a incluir o tema em seus debates e pau- da Saúde abriram a possibilidade, até então ine-
tas de atuação. xistente, para que o Sistema único de saúde
Em 1989, dois outros acontecimentos (SUS) possa financiar outros procedimentos as-
marcaram esta trajetória. O primeiro foi a in- sistenciais que não o simples leito/dia ou con-

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Reforma Psiquiátrica

sulta ambulatorial. De 1991 até abril de 1995, to epistemológico inscreve-se no contexto do


os leitos psiquiátricos caíram da casa dos 86 primeiro uso da complexidade, tal como propos-
mil para 72 mil. Portanto, uma redução de 14 to por Isabelle Stengers, que está no desafio de
mil leitos, considerando que 30 hospitais pri- resgatar a singularidade da operação que o con-
vados tiveram suas atividades encerradas. No ceito oculta, sem que esse desmascaramento sig-
mesmo período foram criados 2.065 leitos psi- nifique “descobrir” a verdadeira realidade do
quiátricos em hospitais gerais e mais de 100 objeto, mas sim reabrir a possibilidade de sua
núcleos e centros de atenção psicossocial. re-complexificação.
Sabemos que o mundo do confinamento não Carvalhal Ribas costumava dizer que o mal
serviu apenas à ordem política e econômica, que maior da psiquiatria era o doente mental que não
necessitava esquadrinhar o espaço público des- se dobrava ao saber psiquiátrico. Mesmo assim
tinando lugares de inclusão e exclusão social. a psiquiatria não aceita debater seu paradigma.
Serviu também, e nisso o Brasil foi praticamente Um argumento de outra natureza, comumente
inigualável, a uma promissora “indústria da lou- utilizado por estes mesmos setores, é o de que a
cura”, como, com muita propriedade, a denomi- reforma foi tentada e fracassada em outros paí-
nou Carlos Gentile de Mello, consolidada a par- ses. Utilizam como exemplo mais comum a ex-
tir do Plano de Pronta Ação do Ministro Leonel periência dos E.U.A., que é a qual a experiência
Miranda, que operou a maior privatização da brasileira explicita maior distanciamento, por ter
assistência psiquiátrica de que se tem notícia. reduzido o conceito de desinstitucionalização à
Tais empresários resistem às reformas no campo meras medidas de desospitalização, sem a neces-
da saúde mental, mesmo sabendo que poderiam sária construção de uma nova rede de serviços e
participar do novo sistema, uma vez que se pro- cuidados. Em todo o caso, o argumento corres-
pusessem a constituir os novos serviços, embo- ponderia a dizer que, uma vez que ainda se come-
ra não fôsse possível incluí-los, automaticamen-
tem crimes a violências contra negros, mulheres
te, como veremos, no contexto da desinstitucio-
a crianças, a luta contra esta violência não teria
nalização, já que esta não significa apenas a ad-
nem eficácia nem razão de ser. Finalmente, o mo-
ministração de serviços não hospitalares.
delo psiquiátrico clássico favorece ainda o mo-
Alguns destes empresários, movidos pela
delo profissional “liberal”, que reduz a atitude te-
ameaça que representa a reforma psiquiátrica,
rapêutica a sessões individuais, à psicoterapias, à
e não apenas o projeto Paulo Delgado, vêm
administração de fármacos – sem um maior es-
aterrorizando familiares, deturpando os princí-
pios da reforma, dizendo-lhes que o que se forço cotidiano –, ou a uma verdadeira tomada
propõe é o fechamento dos hospícios e a devo- de responsabilidade, como proposto por Giu-
lução dos internos aos familiares ou o aban- seppe Dell’Acqua, isto é, o ocupar-se do doente
dono dos mesmos nas ruas. Tal iniciativa já se em sua experiência-sofrimento.
faz presente na criação de uma entidade de Vimos que não estamos falando de fechar
familiares financiada por estes mesmos em- hospícios (ou hospitais psiquiátricos, se
presários, para oporem-se às reformas. preferirem) e abandonar as pessoas em suas
Outro setor que vem levantando questões con- famílias, muito menos nas ruas. Vimos que não
trárias ao processo da reforma é o acadêmico estamos falando em fechar leitos para reduzir
psiquiátrico clássico. Refutam a idéia de Franco custos, no sentido do neoliberalismo ou no
Basaglia, de que a psiquiatria colocou o doente sentido do enxugamento do Estado (aliás, em
entre parênteses para ocupar-se do estudo da princípio, a rede de novos serviços e cuidados
doença, tendo assim construído um objeto fic- tende a requerer maior investimento não ape-
tício, pois não existe a doença sem o sujeito de nas técnico e social, mas também financeiro).
sua experiência. Seguindo a tradição husserlia- Estamos falando em desinstitucionalização,
na, entende Basaglia que seria necessário pro- que não significa apenas desospitalização, mas
mover uma redução fenomenológica (épochè), desconstrução. Isto é, superação de um mo-
colocando a (doença mental) entre parênteses, delo arcaico centrado no conceito de doença
para poder ocupar-se do doente em sua experi- como falta e erro, centrado no tratamento da
ência concreta de sofrimento. Este procedimen- doença como entidade abstrata. Desinstituci-

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Amarante, P.

onalização significa tratar o sujeito em sua exis- RESUMO


tência e em relação com suas condições con-
cretas de vida. Isto significa não administrar-lhe AMARANTE, P. Novos Sujeitos, Novos
apenas fármacos ou psicoterapias, mas construir Direitos: O Debate sobre a Reforma
possibilidades. O tratamento deixa de ser a ex- Psiquiátrica no Brasil. Cad. Saúde Públ., Rio
clusão em espaços de violência e mortificação de Janeiro, 11 (3): 491-494, jul/set, 1995.
para tornar-se criação de possibilidades concre- O autor analisa e debate as discussões
tas de sociabilidade a subjetividade. O doente, existentes em tomo do processo da reforma
antes excluído do mundo dos direitos e da cida- psiquiátrica brasileira, assim como em tomo
dania, deve tornar-se um sujeito, e não um obje- do Projeto de Lei Paulo Delgado, que propõe
to do saber psiquiátrico. A desinstitucionaliza- a extinção dos hospitais psiquiátricos e sua
ção é este processo, não apenas técnico, admi- substituição por outras tecnologias de
nistrativo, jurídico, legislativo ou político; é, cuidado em saúde mental. Para o autor a
acima de tudo, um processo ético, de reconhe- questão central está no conceito de
cimento de uma prática que introduz novos su- desinstitucionalização, em oposição ao de
jeitos de direito e novos direitos para os sujei- desospitalização, onde o aspecto da Ética é o
tos. De uma prática que reconhece, inclusive, fundamental a discemir os rumos do projeto
o direito das pessoas mentalmente enfermas em da reforma psiquiátrica.
terem um tratamento efetivo, em receberem um
cuidado verdadeiro, uma terapêutica cidadã, não Palavras-Chave: Saúde Mental; Doença
um cativeiro. Sendo uma questão de base ética, Mental; Desinstitucionalização; Reforma
Psiquiátrica
o futuro da reforma psiquiátrica não está ape-
nas no sucesso terapêutico-assistencial das
novas tecnologias de cuidado ou dos novos ser-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
viços, mas na escolha da sociedade brasileira,
da forma como vai lidar com os seus diferen-
CASTEL, R., 1978. A Ordem Psiquiátrica: A Idade
tes, com suas minorias, com os sujeitos em de Ouro do Alienismo. Rio de Janeiro: Graal.
desvantagem social.

494 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 491-494, jul/set, 1995

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