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III

FOTOGRAFIA:
MEDIAÇÃO, TÉCNICA E NARRAÇÃO

1. O presente do futuro

O fotógrafo Laslo Moholy-Nagy escreveu certa vez


que "os analfabetos do futuro serão aqueles que não sou-
berem falar através da fotografia ~ Acontece que o futuro
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chegou. Hoje é a informática, a linguagem do computa-


dor, que é relacionada ao analfabetismo. Não interessa
discutir assertivas passadas, mas sim prosseguir na dis-
cussão da importância e do peso da fotografia nas suas
mais variadas áreas de aplicação, sempre com atenção
voltada para as possibilidades de articulação da antropo-
logia com a fotografia.
Quando se diz que o futuro chegou, não é para agra-
dar aos pós-modernos que logo encontrariam alguma ca-
( tegoria para enquadrar tal afirmação. É importante "via-
\
1 jar" no presente. As conjecturas sobre o futuro só interes-
1
sam quando nelas se pode encontrar uma forma de valo-
rizar esse presente. Se é verdade que o passado seduz os
historiadores, ta,mbém é verdade que o presente é maté-
ria de sedução de antropólogos e fotógrafos. Seguramente
o futuro sempre será assunto para os ficcionistas e alguns
sociólogos.
,·r
Luiz Eduardo Kobinson Achutti Fotoetnografia

Presentemente interessa-me discutir as implicações dade fotográfica. O ato de fotografar implica uma série de
que a possibilidade da digitalização das imagens acarreta escolhas sucessivas que vão desde tipos de filme, tipos de
à fotografia enquanto linguagem, enquanto meio de co- luz, lente, velocidade, diafragma, até a mais óbvia de to-
municação, enquanto possibilidade de construção narra- das as escolhas, o objeto a ser fotografado e o seu enqua-
tiva, sobretudo de uma narrativa que possa convergir para dramento. Estas escolhas vão determinar o caráter e a
uma informação cultural. Os grandes momentos de rup- qualidade da fotografia, vão determinar o seu conteúdo,
tura/ renovação estética se dão, muitas vezes, a partir de sua maior ou menor objetividade. A nova era que se abre,
inovações tecnológicas. Foi o que ocorreu com o surgi- a era da manipulação das imagens, está determinando o
mento da fotografia que levou, como foi mencionado, a fim de um mito: da fotografia como espelho ou como pro-
uma reeducação do olhar e a um conseqüente novo gosto va de verdade7 como reprodução de realidade.
estético que influenciou todas as áreas do pensamento, O historiador e pesquisador Boris Kossoy, em pales-
das artes plásticas e das ciências. tra realizada em Porto Alegre (199 3), defendeu a idéia de
O equivalente contemporâneo da fotografia é acha- que uma fotografia não é uma cópia da realidade mas uma
mada linguagem binária, a computação.Já é bastante evi- realidade de segundo nível, uma recriação da realidade
dente que o computador veio alterar toda a nossa vida. que leva a um terceiro nível, aquele criado na mente de
Interessa analisar essas alterações que já se pronunciam quem observa a fotografia.
no campo da fotografia e suas conseqüências. Estamos di- Machado (1994), ao abordar as transformações pe-
ante de mais um processo de reeducação do olhar. las quais a fotografia está passando, constata o fato de já
Maciços investimentos têm sido feitos visando ao se ter atingido uma alta sofisticação tecnológica que pro-
aprimoramento da utilização do computador na forma de picia a interferência, a manipulação de uma determinada
multimídia, mais especificamente visando aperfeiçoar as imagem, sem que seja possível notar que tal fato ocorreu.
condições de captação, intervenção e reprodução da ima- O autor anuncia a redefinição do papel da fotografia - a
gem estática. Investimentos também são feitos procuran- sua emancipação como linguagem nessa virada de sécu-
do integrar a imagem em movimento ao som. Se a edição lo.
de textos e a comunicação através deles já é coisa dopas- Desde o inicio da fotografia produziram-se interfe-
sado recente da computação, a generalizada manipula- rências no seu conteúdo através da fotomontagem, utili-
ção digital das imagens é seu futuro anunciado. zando-se o método de colagem e da ampliação de mais de
O a~vento da imagem digitalizada, isto é, a.possibi- um negativo no mesmo papel. Uma das mais célebres fo-
lidade de t'raduzir uma imagem físico-química numa ca- tomontagens foi a fotografia intitulada Two Ways of Life
deia de impulsos eletrônicos de comportamento binário, de Oscar Gustave Rejlander, feita em 1857 a partir de 30
veio redefinir o papel atribuído à fotografia. A ela foi atri- negativos, fotografia que foi comprada pela rainha Victó-
buído, de&de seu início, o compromisso de ser o espelho ria. 33 Rejlander; influenciado pela pintura, buscava fugir
da realidade, prova material da verdade. Muitos estudio- das criticas que julgavam que a fotografia era uma arte
sos têm defendido a idéia da impossibilidade da objetivi- menor por estar presa a elementos da realidade.

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Anos mais tarde recorreu-se à fotomontagem para e vigilante. A informação "superhighway" nos trará uma
crescente enchente de informações visuais em forma digital,
atender interesses políticos, via de regra fazendo sumir, nós teremos que ter um grande cuidado de separar os fatos
numa fotografia de grupo, algum personagem que tivesse das ficções e falsificações. (Mitchell, 1994:49)
caído em descrédito por motivos ideol<jgicos, nã~ interes-
sando na versão do poder a memória de sua participação Observa-se na abordagem de Mitchell uma excessi-
histórica. Todas as técnicas de manipulação utilizadas até va preocupação com o advento da possibilidade de mani-
há poucos anos tinham uma evidente limitação, o exame pulação das imagens. Isso só pode ser explicado por uma
mais acurado com o auxílio de um microscópio era sufi- também excessiva crença na objetividade da fotografia,
ciente para se detectar tratar-se de uma montagem. Hoje como se a fotografia não tivesse sempre existido em fun-
consegue-se de forma imperceptível alterar as cores, apro- ção das perspectivas pessoais de quem a pratica. O ato de
ximar distâncias e pessoas e, se for o caso, pode-se dimi- fotografar, desde a primeira fotografia feita da janela do
nuir algum nariz muito grande, eliminar rugas e até ar- quarto de Nicéphore Niépce em 182 7, sempre implicou a
redondar as formas de um corpo. Pode-se colocar lado a decisão de um determinado recorte da realidade presen-
lado duas pessoas que nunca se viram. te.
Estaremos cada vez mais defrontados com uma "tor- Picasso saudou o surgimento da fotografia como
rente" de imagens fotográficas feitas sem filmes, sem luz, emancipadora da pintura ao livrá-la de seu compromisso
sem câmara, sem fotógrafo e sem referente. Mitchell com a literatura e com o tema. Inspirando-se em Picasso e
(1994) procura discutir em que circunstâncias uma ima- aproximando-se do já citado Machado ( 1994), se pode-
gem pode ser crível. A luz da tecnologia digital, o autor ria dizer que a digitalização da imagem fotográfica veio
encara como comprometida a chamada evidência foto- emancipar a fotografia. A fotografia poderá finalmente ins-
gráfica. Ele procura mostrar os passos através dos quais crever-se como arte ou como uma forma especial de dis-
se procede na técnica de manipulação de imagem por com- curso. Seguindo o autor, pode-se passar a pensar a práti-
putador. Mitchell aponta caminhos para se tentar desco- ca fotográfica como produção do visíve.4 como discurso
brir quando uma imagem é "verdadeira" e quando ela é visua.4 como mediação. Fotografia como "texto ~ Há exa-
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"manipulada". Seu texto termina na forma de alerta: tamente dez anos este autor já sistematizava seus questio-
namentos quanto à objetividade fotográfica ao publicar
Fotografias apareceram como confiáveis artigos seu livro chamado A Ilusão Especular, no qual procurava
manu(aturados, rapidamente distinguíveis de outras formas apontar todos o procedimentos da pura técnica fotográfi-
descrihvas. Elas eram geralmente vistas como tendo sido
ca como indícios de que a fotografia era uma maneira de
geradas casualmente, verdadeiras descrições das coisas do
mundo real, diferente das tradicionais imagens feitas abordar e não espelhar o real.
tradicionalmente à mão, as quais pareciam notoriamente e Segundo Machado:
imprecisas construções humanas. O surgimento da imagem
digital tem irrevogavelmente subvertido estas certezas, levando- A tela de baixa resolução e sem profundidade da imagem
nos todos à adotar uma postura interpretativa mais cautelosa eletrônica fragmenta e emoldura de forma implacável o espaço

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visível, torna sensível a textura granulosa do mosaico contrário das ciências exatas, as ciências sociais têm re-
videográfico e se oferece a todas as interferências e sistências à utilização da fotografia como forma de coleta
manipulações. Mais que isso: a imagem eletrônica se mostra de dados. Talvez o fato da imagem ser considerada como
ao espectador não mais como um atestado da existência prévia
das coisas visíveis, mas explicitamente como uma produção
muito próxima da experiência estética e t?astante impreg-
do visível, como um efeito de mediação. A imagem se oferece nada de subjetividade seja a explicação da existência das
agora como um "texto" para ser decifrado ou "lido" pelo poucas reflexões teóricas e epistemológicas capazes de dar
espectador e não mais como paisagem a ser contemplada. (... ) fundamentação metodológica à prática da fotografia.
o mito da objetividade e da veracidade de imagem fotográfica O autor afirma que, fora os já antigos e consagrados
desaparecerá da ideologia coletiva e será substituído pela idéia
muito mais saudável da imagem como construção e como
trabalhos de Bateson (1942) e Collier (1967), o desco-
discurso visual (Machado, 1994:15). nhecimento etnológico da fotografia é surpreendente, tan-
to mais quanto se puder constatar as semelhanças episte-
Tudo está a indicar que vivemos a época da descons- mológicas existentes entre ambas: 1) a valorização da
trução do que se entende por linguagem fotográfica, um posição do sujeito observador etnólogo e/ ou fotógrafo cujo
momento de redefinição do papel da fotografia na cha- conhecimento que poderá produzir dependerá de sua in-
mada era moderna. Esse é o momento ideal para a busca serção no grupo estudado; 2) ambas têm o foco de seus
das formas de uma positiva articulação do discurso foto- interesses voltado para as atividades artísticas como fonte
gráfico com o discurso antropológico. O homem, suas for- de conhecimento; 3) a atenção aos detalhes empíricos da
mas de organização e de simbolização, sempre estiveram vida cotidiana que não estão imediatamente aparentes e
no foco do fazer antropológico e do fazer fotográfico. A devem ser buscados por trás das aparências (cf. Piette,
aproximação da antropologia com a fotografia poderá 1992:129/131).
potencializar e, ao mesmo tempo, tornar mais acessível e Além das aproximações, Piette aponta algumas van-
menos árido o discurso antropológico. Quanto à fotogra- tagens na utilização da fotografia, como o fato dela de-
fia, uma vez liberta dos grilhões que a prendiam à reali- pender de uma decisão mais direta sem condições de ser
dade, ela melhor poderá desempenhar o papel de estam- refeita ao gosto de seu autor, ao contrário do que pode
par interpretações de nexos simbólicos e sociais. ocorrer com o texto ou com o desenho. Outro fator que o
Não interessa ao presente trabalho a já consagrada autor julga importante é a capacidade que a fotografia
forma de utilização da fotografia como ilustração, como tem de captar elementos que não estão disponíveis imedi-
material dd,adorno de dissertações e de trabalhos-de pes- atamente no contexto de uma entrevista, ou como ele
quisa. Interessa sistematizar as potencialidades da foto- mesmo afirma:
grafia enquanto técnica de pesquisa e, principalmente, en-
quanto possibilidade de construção de uma forma narra- Todos os elementos secundários ou marginais (gestos,
tiva eficaz. , objetos ou pessoas exteriores a ação principal) indicam ao
pesquisador um conjunto de não ditos ( ... ) (Piette, 1992:
Piette (1992) procura os pontos de aproximação da
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fotografia com a antropologia. O autor constata que, ao

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Penso residir nestes conjuntos de non-dits que a fo- tange a questões acerca das possibilidades da fotografia
tografia é capaz de registrar uma das grandes contribui- como forma narrativa, Collier, autor referencial da an-
ções ao trabalho de pesquisa antropológica. Piette também tropologia visual, apenas tangenciou.
aponta para o fato de o registro fotográfico propiciar um
prolongamento da capacidade de análise do pesquisador
sem ter que estar constantemente retornando a campo. 2. Estética e mensagem
Diversos pesquisadores também utilizaram a foto-
Olhar fotos é sempre olhar para outro lugar; tirar fotos
grafia como forma de desencadear discussões a respeito é ir até um lugar no qual vamos ser olhados. (Canclini, 1985).
dos aspectos fotografados junto aos próprios sujeitos das
fotografias. Esta prática pode levar a descobertas a que as Canclini ( 1985), procurando inventariar as possi-
formas tradicionais de observação não chegariam. bilidades estéticas da fotografia, utiliza-se de estudos so-
Um dos principais referenciais teóricos para todos ciológicos, alguns estudos realizados por Bourdieu, para
que abordam a problemática da antropologia visual é o defender a idéia de que as diferentes práticas fotográficas
trabãlho de Collier Jr. ( 196 7) intitulado: ''Visual Anthro- não estão vinculadas a cada fotógrafo enquanto indiví-
pology, Photography as a Research Method7~ Neste livro, duo isolado dependendo apenas de sua vontade. Essas prá-
o autor procura sistematizar uma série de elementos, téc- ticas são regidas através das convenções que determinado
nicos e teóricos, a respeito das possibilidades da fotogra- grupo social escolhe como forma de construir sua repre-
fia enquanto método de pesquisa antropológica, confor- sentação da realidade, "o que cada grupo social elege para
me o próprio título do livro nos indica. Collier começa fotografar é o que considera digno de ser solenizado 77
fazendo um histórico do surgimento da fotografia e dos (I 985:07). Grande parte das fotografias são dedicadas ao
principais trabalhos na área de documentação fotográfi- registro de situações familiares, registro de festas, casa-
ca nos Estados Unidos, área na qual ele iniciou como fo- mentos, nascimentos, viagens etc; compondo uma "estéti-
tógrafo. Ele afirma que '~ linguagem não-verbal do re- ca conservadora", como meio de eternizar momentos im-
alismo fotográfico é a mais entendida inter e transcultu- portantes e reafirmar a unidade familiar. Canclini ques-
ralmente. Esta fac11idade de reconhecimento é a razão tiona o fato da fotografia estar condenada ao registro do
básica para a câmara ter tal importância antropológica. 77 instantâneo. O mero registro de momentos fugazes, des-
(Collier, 1?73:6) contextualizados, retirados da história, servem como "ope-
O livto de Collier Jr. é importante do ponto-de vista ração ideológica que converte o transitório em essenci-
das orientdções práticas, fruto de sua vivência enquanto al". A incondicional ligação fotografia-instante é uma idéia
fotógrafo, atuando em trabalho de campo, e na posterior de senso comum, há outras possibilidades estéticas além
análise das fotografia obtidas. Já suas orientaçq.es do pon- daquelas de "congelar" momentos importantes.
to de vista,da técnica fotográfica são bastante elementa- , Neste seu inventário das possibilidades estéticas en-
res, provavelmente porque supunha ter como interlocu- 'gendradas pela técnica fotográfica, Canclini ( 1985) aponta
tores antropólogos sem experiência fotográfica. No que para a possibilidade da realização de trabalhos fotográfi-

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cos que busquem registrar a passagem do tempo, seu trans- na perspectiva de trabalho de pesquisa, Canclini inicia
curso e sentido. Ele enfatiza que se procure trabalhar com um importante trabalho de antropologia visual, "Tijua-
a capacidade de síntese que a imagem estática oferece, na7 Ja casa de toda la gente' trabalho concluído no ano de
quando bem utilizada. 1988. (Canclini, 1989).
O autor também sugere as possibilidades de jogo en- O autor afirma ter procurado fazer um texto poli-
tre planos quando um enquadramento é pensado inten- fônico ao apresentar os resultados de uma pesquisa reali-
cionalmente. Ele propõe o rompimento com as estéticas zada sobre as características identitárias e culturais de Ti-
mais normais, propõe que o fotógrafo quebre "a cumpli- juana, cidade situada na fronteira do México com os Es-
cidade da foto com o presente, com o instante, que acaba tados Unidos. Tida por muitos como uma cidade sem iden-
convertendo-a em preservadora do passado", para desta tidade, uma cidade de passagem do pesadelo latino-ame-
forma aproximar a fotografia dos trabalhos de pesquisa. ricano para o paraíso. A partir de entrevistas com pessoas
Uma fotografia que rompa com a estética conservadora e representantes de vários segmentos da sociedade, ele e seu
que seja capaz de registrar, numa imagem estática, capaz grupo de pesquisadores realizaram 4 50 fotografias de
de fazer caber nesta imagem a tensão do conflito. Para vários pontos de Tijuana segundo as sugestões dos entre-
Canclini a fotografia aplicada ao trabalho de pesquisa vistados. Selecionaram 50 fotografias que foram mostra-
encontra uma estética diferente da dita fotografia de sen- das às pessoas com a solicitação para que selecionassem e
so comum, da fotografia feita com a intenção de imortali- comentassem as 1O fotografias mais representativas dos
zar poses fabricadas. O fotógrafo pesquisador constrói uma aspectos culturais da cidade. Anotaram os comentários e
abordagem a partir da realidade. Para tanto, deve ter em destacaram as 14 fotografias sobre as quais havia uma
conta a necessidade do registro do conflito, das tensões coincidência de votos independentemente da posição so-
existentes em determinado contexto social analisado. Tec- cial do votante, fato que sugeria Tijuana possuir uma cer-
nicamente o fotógrafo deverá dominar e ter consciência ta identidade.
da importância do recurso de manipulação da profundi- O resultado da pesquisa foi apresentado na forma
dade de campo. Além do enquadramento, permanente 'ta- de uma exposição de fotografias acompanhada de um li-
refa de inclusão e exclusão de elementos na fotografia, a vro (1989) que reuniu as principais fotografias escolhi-
quantidade de planos em foco e a distância relativa entre das mescladas com a transcrição dos comentários que
eles (esta depende do tipo de lente utilizada, da distancia haviam sido recolhidos. É importante registrar o ponto de
focal da m~sma) são elementos importantes na busca do vista de Canclini que consta na introdução do livro:
registro da~ tensões existentes em determinado contexto.
Mediante a busca do "diálogo" entre planos encontramos Não há uma só realidade, se não tantas quanto são os
a excelência da linguagem fotográfica como mais um meio atores que participamos nela. As ciências sociais desenvolveram
algumas técnicas de investigação e controle da informação para
de construção narrativa.
a
neutralizar parcialidade de cada observador, seja do
No ano de 1985, mesmo ano que apresenta suas po- informante ou do cientista, e levar ao mapeamento da realidade
sições sobre as possibilidades de uma estética fotográfica que se pareça o mais possível ao que efetivamente existe que

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os atores sociais ou os pesquisadores quiseram que esta te que se tenha em mente as especificidades técnicas de
realidade seja. Sem dúvida, essas técnicas - enquete, entrevista, cada imagem, signos de várias ordens. Samain nos faz ver
diário de campo, ordenamento conceitua} da informação - são que quando crianças não possuímos inicialmente nada além
praticadas quase sempre através da linguagem falada, e, do tato, olfato e da capacidade de lidar com as imagens.
sobretudo, escrita. Este trabalho parte da hipótese de que as
representações visuais dão outra classe de informação e Captando-as a retrabalhando-as em nossas mentes. Mais
facili~am modos de identificação, autoconhecimento e tarde vamos ter os meios a partir dos quais se organizarão
interpretação mais diversificados. Não excluem o que se pode nossos pensamentos. Segundo ele é só através da enuncia-
saber e dizer mediante a linguagem oral e escrita - e às vezes ção de nossas percepções que começamos a constituirmo-
não são suficientes para nomeá-los com o mesmo rigor - mas nos como seres pensantes. É provável que com a infância
as fotografias, o cinema, o vídeo, podem dar uma vísão mais
polissêmica, carregada de significados heterogêneos, e também da humanidade tenha se passado o mesmo processo.
mais sintética (Canclini, 1989: 15). Constituídos como seres pensantes nossa principal
forma de interação dá-se pela fala e pela palavra escrita,
A abordagem do trabalho de Canclini e sua equipe pela comunicação verbal. Samain sugere que é por isso
pare~e importante por ser um trabalho de antropologia que temos o costume de nos referirmos sobre as imagens
visual diferenci,ádo. Neste trabalho, a fotografia não tem lançando mão de expressões do mundo da comunicação
apenas importância na fase do levantamento de dados, mas verbal. Como se tivéssemos sido "desalfabetizados" de
participa de forma decisiva no discurso, na apresentação nossa capacidade de lidar com as imag~µs. Estamos sem-
dos mesmos. pre falando de linguagem fotográfica, gramática video-
Vive-se um importante-período para o alargamento gráfica, retórica da imagem, etc. Ele sugere que se deve
das possibilidades de realização de trabalhos em antro- considerar a existência de um pensamento visual com sua
pologia visual com a utilização da fotografia. 34 Com o ad- especificidade poética de especial eficiência. E, inspirado
vento da computação gráfica, a fotografia entra num his- em Roland Barthes, afirma que se trate a fotografia como
tórico momento de redefinição. Redefinir-se-ão também portadora de uma mensagem visual que pode muito bem
os conceitos que se têm sobre ela. A fotografia deverá dei- ser vivenciada, lida e compartilhada como forma de aju-
xar de ser uma técnica de capturar evidênc~as, para vir a dar o homem a falar do homem. 35
ser um meio sedutor de discorrer sobre convencimentos
antropológicos.
Busc~do para a questão um ângulo mais essencial
3. Fotoetnografia: A profundidade de campcr6 no
do que estéfico, encontramos Samain ( 1994) procurando trabalho de campo, e outras questões de ordem técnica,
pensar a fotografia enquanto mensagem. Conforme Sama- na perspectiva de uma narrativa etnográfica
in, a fotografia é a mãe das técnicas modernas de criação É importante examinar algumas questões de ordem
de imagens a partir da realidade. Depois dela vieram o Ci-
técnica sobre o fazer fotográfico. Questões que possam
nema, o vídeo e, modernamente, a imagem digital que che-
somar-se a outras iniciativas de construção de uma an-
ga para povoar os computadores. Para Samain é importan-
tropologia visual que use como recurso a fotografia.

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Sendo a fotografia um permanente ato de recortar e vas técnicas de registro de dados e de descrição dos mes-
enquadrar elementos da realidade num plano - duas di- mos. Essas técnicas são mais ou menos específicas e im-
mensões - se faz necessário um domínio técnico específi- portantes conforme o tipo de dado que é buscado.
co que venha explicitar os recortes desejados. Esse domí- No que tange à difusão dos resultados, sabemos que
nio técnico aliado ao olhar treinado do antropólogo pode as formas verbais de expressão (falada e escrita) são as
levar à construção de um trabalho fotoetnográfico que mais aceitas e preponderantes nas construções das nar-
venha ser relevante, não só como mais uma das técnicas rativas etnográficas desde sempre. São conhecidas as ra-
de pesquisa de campo, mas também como uma outra for- zões que ainda conferem supremacia ao texto e à fala:
ma narrativa, que somada ao texto etnográfico, venha hábito, preconceitos, dificuldades econômicas e falta de
enriquecer e dar mais profundidade à difusão dos resul- domínio de outras técnicas. Não se trata aqui de buscar
tados obtidos. · alternativas ao texto escrito ou de acirrar os ânimos, nem
de propor o "duelo" imagem versus texto. Trata-se de re-
3.1 A Antropologia forçar que, mesmo sendo fundamental o verbo, o conví-
vio deste com outras formas de construção narrativa virá
O empreendimento etnográfico consiste em um es- enriquecer as enunciações antropológicas.
forço de análise e interpretação na busca do recorrente que
delineará como singular a cultura de um determinado grupo
3.2 A Fotografia
social. Esta tarefa de inventariante das práticas, crenças e
valores alheios - tarefa da antropologia - implica o reco- A linguagem fotográfica para constituir-se em um
nhecimento e aceitação da diferença, o que coloca o antro- meio eficiente de registrar e difundir imagens está condi-
pólogo no "trampolim" do estranhamento. Ponto de parti- cionada pelo nível de informação, capacidade de olhar e
da para um "mergulho" que lhe fará saber diferenciar o habilidade técnica de quem a utiliza.
aparente, o cotidiano banal, do arraigado e tradicional, na No universo da antropologia, é mais conhecida e me-
perspectiva de uma interpretação cultural. nos polêmica a utilização da fotografia como técnica de
A interpretação antropológica que parte da coleta pesquisa aplicada ao trabalho de campo. A fotografia pode
de dados no trabalho de campo, completa-se com a difu- ser uma excelente auxiliar do caderno de notas para a
são dos re~ultados no meio acadêmico, ou para um públi- feitura de croquis que registrem a ocupação do espaço.
co mais a~plo. · Ela é também importante para o registro dos elementos
Na fase de trabalho de campo, o pesquisador pode da cultura material e padrão tecnológico de determinada
lançar mão de várias técnicas de pesquisa, o que virá a comunidade. A fotografia, que pode ajudar como motiva-
enriquecer e dar mais profundidade ao estudo etnográfi- dora numa situ~ção de entrevista quando mostrada ao
co. Há tempo que, junto ao tradicional caderno de notas, entrevistado, ajuda também a documentar, talvez em me-
foram incorporados o gravador, as câmeras de fotografia, nos tempo, detalhes de rituais ou da cultura material -
cinema e vídeo como instrumentos que engendraram no- adereços, principais características da indumentária, ins-
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trumentos de trabalho, etc. Ela também pode servir como maioria destas decisões devem ser tomadas no campo, no
evocadora de inspiradas conclusões quando o pesquisa- ato de fotografar. É difícil consertar uma fotografia que
dor já não mais estiver no campo. 37 Tudo isso é sabido e tenha sido malfeita, ao contrário do que ocorre com o ca-
aceito desde os Argonautas do Pacífico Ocidental de Ma- derno de notas: mesmo que nele venham a constar anota-
linowski, como bem registrou Samain (199 5). ções precárias quanto ao estilo narrativo, ele poderá con-
Por outro lado, a utilização da fotografia como meio tinuar a ser a fonte originadora de um texto de qualidade.
de difusão de imagens - e as conseqüentes iniciativas de Em um texto etnográfico de qualidade deverão estar
construções narrativas através dela - é bem mais proble- transcritos, de forma clara, os recortes e os encadeamentos
mática, pouco discutida e, ainda menos, praticada no meio específicos ao trabalho de análise e interpretação antropo-
antropológico. Uma volta às questões técnicas do fazer lógicos. Personagens, etapas descritivas, seqüência de acon-
fotográfico pode contribuir para o incremento do empre- tecimentos e detalhes, não deverão estar embaralhados ou
go da fotografia, desta vez não apenas como mero instru- valorizados equivocadamente, sob pena de inv;iabilizarem
mento de pesquisa. Se o domínio técnico é importante para uma boa compreensão das proposições pretendidas. Alme-
a utilização da fotografia enquanto instrumento de pes- ja-se uma espécie de eficácia do texto, o que muitas vezes
quisa, para possíveis construções narrativas esse domínio demanda o aprendizado de toda uma vida acadêmica.
é fundamental. Da mesma forma, a ideal utilização da chamada lin-
guagem fotográfica, na sua especificidade própria, pressu-
põe uma permanente condição de explicitar o recorte de-
3.3 Texto e Fotografia - texto etnográfico e fotoetnografia sejado, seja através da utilização de lentes e aberturas de-
Para escrever um texto é preciso não só ter clareza terminadas, seja mediante a decisão de fazer aproximações
quanto ao que se quer dizer, mas também deve-se saber e afastamentos, dependendo do caso específico. A fotogra-
construí-lo de forma clara, condição de um bom domínio fia, com sua fixidez intrínseca, está permanentemente a
exigir, daquele que a utiliza, um bom domínio do jogo en-
das técnicas do texto etnográfico. Com a fotografia ocorre
tre os vários planos que podem nela estar contidos.
a mesma coisa. Como bem assinalou Guran (1994), o que
Em uma foto - que sempre é um ato de arbitrar um
se quer das fotografias, sejam elas jornalísticas ou antro-
recorte - os planos podem "conversar". O que está explíci-
pológicas,_ é que sejam eficazes, que sejam imagens que
to no primeiro plano "dialoga", pode precisar da partici-
tenham 4> máximo de eficácia quanto à transmissão da
informaç~o (Guran, 1994:99). 38 -
pação complementar do que está no último plano, por exem-
plo. Para isso quem fotografa deve poder trabalhar os pla-
Em uma fotografia estão implicados o domínio téc-
nos. Deve poder destacar um plano dos demais, aproximá-
nico e a decisão quanto ao tipo de filme, tipo de câmera,
los uns dos outros achatando a cena, ou aproximar o pri-
característica da lente, quantidade e qualidade da luz, en-
meiro deixando ·um segundo plano mais afastado apenas
quadram'ento, forma de revelação e ampliação, etc. Para
como um "pano de fundo", por exemplo. Joga-se com a
uma fotografia, esteja ela voltada à reportagem, seja ela
focalização seletiva, uma velocidade do obturador neces-
utilizada como instrumento de pesquisa ou de difusão, a

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sária, a lente correta com uma abertura específica, tudo critiva. Sem comprometer o viés antropológico, quem fo-
isso em função de uma determinada profundidade de cam- tografa tem que dar conta de bem administrar os recur-
po, para um enquadramento desejado. A profundidade de sos que a abordagem fotográfica propicia, não só no sen-
campo corresponde à quantidade de planos que estarão em tido da mera transcrição visual dos dados de campo, mas
foco em uma fotografia. Quanto maior for a profundidade também no sentido da construção de uma narrativa visu-
de campo, mais planos e maior número de elementos em al que seja eficaz e contenha informações interpretativas
foco. Consegue-se isso somente mediante a utilização de acerca de uma determinada realidade. 40 Para tanto é no
um diafragma bem fechado. Dadas determinadas condi- trabalho de campo que os recortes tem que ser bem deci-
ções de luminosidade, através deste procedimento (fechar didos e realizados. Todas as intenções visuais do antropó-
bem a lente), pode-se obter, por exemplo, uma fotografia logo devem ser resolvidas de forma a originar fotografias
com foco total desde um rosto que esteja a meio metro do que ofereçam uma "leitura" tão clara quanto for possível.
fotógrafo, passando por uma casa a dez metros, até um mor- Ainda mais, cada fotografia deverá ter alguma importân-
ro a mil metros. Por outro lado, o fato de se trabalhar com cia quando "lida" individualmente e, ao mesmo tempo,
um diafragma bem aberto, leva a uma fotografia que terá deverá servir como parte integrante de uma seqüência de
foco apenas no plano decidido pelo fotógrafo, via de regra fotografias que no seu conjunto possam vir a compor uma
o plano que se quer destacar. Também o tipo de lente a ser das formas de antropologicamente narrar o que é singu-
utilizada interfere na questão da profundidade de campo. lar. A fotoetnografia, como mais um meio de "facetar",
Uma lente de tipo grande angular tem como uma de suas vem juntar-se ao esforço da "lapidaria" antropológica que,
características ser uma lente que oferece mais profundida- ao penetrar no bruto, busca desvelar o precioso.
de de campo do que uma lente teleobjetiva.
Com algum equipamento, leituras técnicas e pou-
3.4 Técnica e Procedimentos Fotográficos no Campo
cos meses de prática, o pesquisador interessado poderá
adquirir intimidade com os procedimentos. Para todas Pretende-se enumerar algumas questões de ordem
estas decisões e procedimentos primários, deve-se ter ha- técnica no sentido de contribuir para o trabalho daqueles
bilidade - quando for o caso de se estar interessado em que atuam na perspectiva da consolidação de um fazer
fotografar, digamos assim, vida em movimento 39 - pois é fotoetnográfico:
imperioso ter o cérebro apto a outras tantas tarefas, den-
1
tre as qua~s, a mais difícil e importante de todas: olhar.
Em s6 tratando do trabalho de campo fotoetnográfi- 3.5 Câmaras
co, o olhar treinado do antropólogo deve estar disponibi-
lizado para os necessários períodos de "imersão"; do con- As câmaras fotográficas variam basicamente confor-
trário, a falta de domínio da técnica ou o fetichismo em me o tamanho do fotograma que produzem e o número de
relação aas instrumentos de pesquisa poderão levá-lo à dispositivos de controle que oferecem. Vários formatos de
autoria de um trabalho raso, prejudicando a intenção des- fotogramas, 35 mm, 6 x 6, 6 x 7, 10 x 12, ou até, 18 x 24

68 69
Luiz Eduardo Robinson Achutti Fotoetnografia

centímetros, foram e podem ser utilizados nos trabalhos de 3.6 Objetivas


campo. Se com negativos grandes (produto das máquinas
de grande formato, como são chamadas), ganha-se na qua- A objetiva mais utilizada num equipamento de
lidade da imagem - na qualidade do grão pelo tamanho do 35mm, a que mais se aproxima do ângulo da visão huma-
negativo - perde-se em agilidade de trabalho e perde-se na, e também a mais luminosa (aquela possibilita foto-
também a condição de fotografar em situações de pouca grafias com menos luz), é a objetiva de distância focal
luminosidade (o que também implica uma menor agilida- 50mm, denominada de lente normal. Esta lente é indis-
de). Na medida em que o interesse não estiver posto nas pensável para se obter fotografias que não sejam distorci-
fotografias que registrem detalhes mínimos (fotos de tex- das (No sentido do foco, das linhas e dos planos. Distor-
turas, linhas muito finas ou detalhes milimétricos), é pre- ções de outra ordem não dependem do tipo de equipa-
ferível a opção por uma câmera 3 5 mm. Além do pesquisa- mento e sim da ética de quem o utiliza). Distância focal é
dor carregar menos peso, poderá ter mais agilidade no re- a distância entre a parte posterior da lente (que fica perto
gistro de cenas dinâmicas e mais facilidade para fazer fo- do corpo da máquina), uma vez focada para o infinito, e o
tografias em ambientes internos caracterizados por uma plano do filme. 41
iluminação débil. A título de exemplificação se poderia lem- As lentes são diferentemente projetadas segundo in-
brar fotografias que buscam uma descrição etnográfica de teresses quanto à capacidade de aproximar a cena a ser
rituais, de danças, de cenas sociabilidade em bares ou ca- fotografada. Lentes de distâncias focais diferentes compor-
sas de jogos, de trabalhos manuais etc. São fotografias que tam-se também de maneiras diferentes quanto à questão
demandam bastante agilidade por parte do pesquisador, da profundidade de campo. Quanto menor for a distância
além do fato de, geralmente, ocorrerem em situações de focal de uma lente, maior será a área que ela abrangerá e
luminosidade limitada. conseqüentemente, de menor tamanho será o registro de
Optando-se pela câmera 35 mm, deve ser dada pri- cada parte componente de seu assunto no negativo. Tam-
oridade àquelas do tipo refiex, nome utilizado para as câ- bém, quanto menor for a distância focal de uma lente, maior
meras que facultam olhar através da objetiva (lente). E será a profundidade de campo a ser alcançada.
possuem objetivas cambiáveis. O fato de se poder olhar Objetivas de distância focal acima de 50mm são cha-
através da lente facilita o enquadramento, a focalização e madas teleobjetivas e abaixo são chamadas grande-angu-
a visualiz,ção da profundidade de campo (quantidade de lares. Se o pesquisador puder dispor de outras lentes além
planos qu~ se tem em foco). É também importante que a da lente normal para o seu trabalho, ele deverá escolher
máquina ~ossua opção de funcionamento manual e não segundo as características do que pretende obter em cam-
apenas automático, pois quem fotografa tem que poder po.
decidir, além do enquadramento e do foco, a velocidade O ato de fotografar implipa uma permanente deci-
do obturador e a abertura da lente, como forma de me- são de inclusão e_ exclusão de elementos da realidade. Neste
lhor fazer as traduções visuais que lhe convier para sua sentido se poderia propor, do ponto de vista fotoetnográ-
pesquisa. fico, que as teleobjetivas são lentes de exclusão. Elas são

70 71
Luiz Eduardo Robinson Achutti Fotoetnografia

propícias para se fazer recortes em meio a situações mui- tivas que podem· ser de 2000 mm, ou das super grande-
to "poluídas," fotograficamente falando. Aquelas cenas que angulares - também conhecidas como objetivas "olho de
contêm muitas pessoas realizando várias ações ao mesmo peixe" - que podem ser de 8, ou mesmo 6 mm.
tempo constituem-se em armadilhas para uma fotografia As super teles necessitam cenas com muita luz, pre-
leiga, pois ao agregar uma infinidade de elementos a uma cisam ser utilizadas fixas num tripé e, no caso de cenas
mesma fotografia, essa poderá mais desinformar do que em movimento, demandam velocidades do obturador
informar. As teleobjetivas ajudam a aproximar determi- muito altas, sob pena das imagens resultarem escuras, tre-
nado elemento de uma cena sem ter que entrar nela, o midas, ou borradas. Além disso, elas comprimem exage-
que evita uma interferência que pode comprometer o tra- radamente os planos, dificultando a percepção das dis-
balho de campo. Ao mesmo tempo em que aproxima, ela tâncias (isto é, aquilo que· está perto e o que está muito
valoriza o plano de interesse do antropólogo, ficando des- longe podem parecer pertencer ao mesmo plano).
focados os demais, bastando para isso trabalhar com o dia- Por sua vez, as super grande-angulares oferecem ân-
fragma da lente bem aberto. Algumas vezes a condição de gulos extremamente abertos e têm como principal fator
aproximar o objeto a ser fotografado pode levar a um limitante o fato de distorcerem as linhas e o tamanho dos
menor constrangimento na investigação etnográfica. ambientes. Uma lente de 6 mm.pode chegar a incluir no
Diferentemente das teleobjetivas, se poderia chamar enquadramento, como primeiro plano, os sapatos do fo-
as lentes grande-angulares de lentes de inclusão. Com elas tógrafo se este for desatento.(O que seria uma virtude se
só é possível o recorte em cenas muito amplas. Elas são utilizada como um recurso digamos, pós moderno, de ob-
ideais quando se quer fazer o registro em áreas grandes servação participante, incluíndo o autor na descrição da
com pouco espaço para o recuo do fotógrafo, pois como cena). Essa objetiva transforma todas as linhas retas em
diz o nome, este tipo de lente capta as luzes de uma cena curvas, e pode deixar um Ford KA do tamanho de uma
num ângulo bastante aberto, que pode ultrapassar os 180°. "limosine". Os extremos, portanto, podem ser úteis para
De uma maneira geral, ao utilizar uma grande-angular o um trabalho de humor fotográfico, dificilmente o serão
pesquisador estará praticamente dentro da cena. Utiliza- para um trabalho antropológico.
da com cautela, pode ser uma boa lente para se fotografar As três objetivas básicas ideais para a realização de
o interior de pequenas casas nas quais não exista a possi- um bom trabalho fotoetnográfico são, além da objetiva
bilidade de recuo para um enquadramento ideal. Elas são normal 50 mm, uma grande-angular de 28mm e uma te-
lentes par~ tomadas de planos gerais, lentes que oferecem leobjetiva de 150 ou 180 mm. 42 A objetiva normal, geral-
profundidade de campo total (é o caso quando se tem, mente a mais luminosa, isto é, com a qual se pode traba-
por exemplo, foco desde 30cm até o infinito). Podem ser lhar com menos quantidade de luz, é a objetiva para a
de muita utilidade no registro de paisagens, rituais, festas média das situações. A grande angular serve para a busca
ou cerimôpias. de planos gerais e a teleobjetiva para recortar, para pin-
As objetivas de distância focal muito longa ou muito çar e dar destaque a algum elemento específico em rneio a
curta são de pouca utilidade. É o caso das super teleobje- uma cena mais ampla.

72 73
Luiz Eduardo .Robinson Achutti Fotoetnografia

Uma objetiva que é também de muita utilidade é a Em se tratando de acessórios, vale ainda comentar
chamada objetiva macrq uma objetiva especial que per- sobre a incongruência da utilização de "flash" eletrôni-
mite fotografias com enquadramentos à curtíssima dis- cos no trabalho de campo. A luz que compõe uma deter-
tância (5cm), sem provocar distorções. Essas objetivas do minada cena é parte fundamental dela. O antropólogo deve
tipo Macro podem ser úteis para o registro de detalhes buscar compreender e registrar essa luz, e não modificar
tais como os de inscrições corporais, tipos de trançados agregando o banal e seguro "flash". Exceção feita no caso
ou malhas, detalhes de pequenas esculturas, ou ainda para da utilização intencional do "flash" como um recurso es-
a reprodução de detalhes de textos, desenhos, insetos, tilístico especial ou quando se estiver defrontado com uma
grãos, etc. situação de luz tão tenue que possa mascarar informa-
ções importantes para a pesquisa.
3. 7 Acessórios
3.8 Filmes
Dentre variadas opções, que vão desde acessórios
pará limpeza das câmeras e objetivas, até malas à prova Há uma infinidade de opções de tipos e marcas de
de água e calor, encontram-se algumas opções de bastan- filmes. Com o tempo cada pesquisador irá encontrar suas
te utilidade: o tripé é um acessório indispensável quando afinidades ou preferências. t importante ressaltar que de
se necessitar trabalhar com velocidades de obturação abai- um modo geral, quanto menos sensível for o filme (ou
xo de 1/30s, para que a fotografia não resulte tremida. 43 negativo), maior será a fidelidade de cores e melhor a de-
Algumas câmeras têm a opção de motores que fazem cor- finição da imagem final. Basicamente, as escolhas devem
rer o negativo automaticamente, o que se constitui num ser feitas em função da qualidade e quantidade de luz que
acessório útil para o registro da seqüência de movimentos se espera encontrar no campo.
em intervalos curtos de tempo, para uma posterior análi- Uma questão que ainda precisa ser discutida é a de-
se. Há também vários tipos de filtros disponíveis, desde cisão entre fotografar em cores ou em preto e branco. Se
filtros de efeitos especiais, completamente dispensáveis em por um lado o trabalho em preto e branco pode ser reve-
se tratando de antropologia visual, até filtros de correção lado e copiado domesticamente, por outro, os serviços de
de temperatura de cor, necessários quando a fidelidade laboratórios comerciais têm preços mais baratos para re-
de reproqúção das cores for uma qu~stão importante. O velar e ampliar fotografias coloridas. Sem pretender es-
filtro pol~izador é um filtro de bastante utilidade, em- gotar a questão, parece ser significativo lembrar que ao se
pregado de modo geral para eliminar reflexos indeseja- optar pela fotografia P&B, se estará abrindo mão de uma
dos, ele é importante também por propiciar, no caso de variável que, muitas vezes, poderá ser importante regis-
fotografias coloridas, uma boa saturação das cores. Este trar: a cor das roupas, casas, objetos, peças de artesanato,
filtro auxilia também na diminuição da bruma e valori- titos, manifestaÇões artísticas, "sorrisos", etc.
zação do céu e nuvens, no caso de fotografias de paisa- Depois de tu.do que foi assinalado como valorização
gens. da técnica, seria imp\Jrtante ainda lembrar que também

74 75
Luiz Eduardo Kobinson Achutti Fotoetnografia

contam, para uma boa fotografia, a composição equili- ou de dois policiais (um fardado e outro não) com objeti-
brada, o cuidado estético, a inspiração artística e, se pos- vos iguais? Nada disso, era apenas uma propaganda da
sível, a emoção. Pois os bons trabalhos, fotográficos, an- polícia Inglesa "para recrutar não-brancos para os seus
tropológicos, ou ambos ao mesmo tempo, sempre foram efetivos 77 (1995:134). Logo ficamos sabendo que, bem ao
fruto de um emocionado empenho de trazer a lume a cul- gosto de Barthes (1984:21), o anúncio trazia junto uma
tura do outro. legenda, um texto para conotar a fotografia. Para Barthes
a mensagem fotográfica é essencialmente denotativa, men-
4. A Fotografia como narrativa etnográfica sagem sem código, um signo indiciai por excelência. 44
O enfrentamento abrupto, seja com a realidade di-
Quando se propõe a imagem fotográfica como mais retamente, com determinado recorte fotográfico ou com
um meio para descrever ou narrar, logo surge o alerta de um parágrafo aleatoriamente escolhido de um texto ver-
limítes, alerta de que a fotografia é uma obra aberta sujei- bal mais amplo, pode confundir e dar margem à imagina-
ta a múltiplas leituras ou interpretações. ção criadora de um sujeito desavisado, podendo levá-lo à
Ir A própria observação direta da realidade pode levar "vôos" muito distantes da realidade.
um pesquisador a equívocos interpretativos que não o dei- No sentido de Geertz (1989:24), o que se quer da
xarão transcender o aparente imediato. Conforme Geertz antropologia é "o alargamento do universo do discurso
humano ~ Eu acrescentaria o alargamento dos universos
7
(1989:24), para se lograr descrever eventos com "densi-
dade", é necessário encarar a cultura como contexto, con- narrativos e interpretativos.
texto esse que é capaz de atribuir significados. A partir do Com a fotoetnografia pode-se construir textos ima-
autor, eu diria que para olhar diretamente ou fazer ver - géticos a respeito da cultura do outro, fazer construções
fotograficamente - "piscadelas" especiais por exemplo, descritivas e narrativas. Narrativas no sentido amplo, como
deve-se levar em conta o contexto - no sentido mais am- "conjunto organizado de significantes, cujos significados
plo possível. Quem fotografa precisa assimilar as ques- constituem uma história (. ..) que deve se desenrolar no
tões culturais em jogo, assim como aquele que vê as tais tempo (Aumont, 1993:244). Uma narrativa visual que
fotografias precisa recebê-las de forma contextualizada. venha enriquecer, trazer novos ângulos, com "uma outra
Canclini pergunta: ''Quem pode afirmar com segu- grafia 77 (LeaI, 1986:17).
rança7 d{ánte de uma foto de um grupo de so!dados que Obviamente não se vai buscar fotografar cheiros,
correm etnpunhando suas armas, que se trata de um com- verbalizar melodias ou assobiar versos, e muito menos,
bate ou de um treinamento? (1981:16). Godolphim cheirar imagens. Partindo do reconhecimento do limite
(1995) propõe como teste, que se descubra diante de uma da utilização das imagens, intenciona-se buscar as for-
determinada fotografia, a intenção do fotógrafo ao regis- mas pelas quais a sua utilização possa vir a enriquecer o
trar dois ·homens, um homem branco fardado de policial discurso antropológico. Fotografias feitas com o olhar trei-
e o outro negro não fardado, ambos correndo na mesma nado pela antropologia - fruto de uma adequada entrada
direção. Tratar-se-ia de um policial atrás de um bandido no campo e devidamente contextualizadas podem, de for-

76 77
Luiz Eduardo Robinson Achutti Fotoetnografia

ma isolada, se constituir em bons planos descritivos, e agora não só "visitar" textos em bibliotecas, mas também
quando agrupadas em seqüências, podem compor efici- "visitar" museus, galerias de arte, cidades - para ver pin-
entes elaborações narrativas. turas, fotografias, trechos de filmes etc. Cada usuário da
internet, seja ele um particular, uma empresa, uma insti-
tuição cultural ou científica, tem ao seu dispor a possibi-
5. Virtualidade e multimídia
lidade de veicular e enviar informações constituídas por
Pensadores como Barthes que procuraram pensar a imagens, textos, sons e animação dispostos de forma arti-
fotografia, valorizaram-na como a forma mais verossímil culada à semelhança dos já antigos audiovisuais. Esta nova
de "armazenar" imagens do passado, "documentos" ou forma de comunicação se dá através das chamadas Home
indícios de acontecimentos reais. Barthes encontrou como Page, páginas gráficas que os mais diversos usuários do
o universal da fotografia a sua capacidade de evidenciar, mundo inteiro tratam de criar, contendo as informações
''(... ) na fotografia jamais posso negar que ~ coisa esteve que julgam interessantes, para disponibilizar publicamen-
lá ~. (... ) O nome do noema da Fotografia será então: Isso- te através da WWW - World Wide Web.
foi'7(1984:115). 45 · Como metáfora diria que as pessoas já iniciadas na
Hoje se procura pensar a imagem fotográfica como visitação às Home Page vivenciam uma espécie de labi-
veículo, como meio eficaz de ajudar a fluirem idéias, sen- rinto virtual as avessas, pois quando acessadas à internet,
sações, discursos, com os mais diversos propósitos que vão não se encontram perdidas num lugar testando inúmeras
desde a publicidade até a antropologia. possibilidades que lhes faculte a saída. Ao contrário, en-
Logo que se deu a possibilidade da utilização do com- tram num ambiente virtual que oferece listas de endere-
putador pessoal, evidenciou-se que ele, além de agilizar ços para o acesso às mais diversas páginas gráficas que
procedimentos em geral e cálculos matemáticos em par- levam a outras listas que contêm outras páginas. Ao invés
ticular, veio repor a palavra escrita. Nos últimos dez anos da buscarem caminhos que possam levar à saída, buscam
os homens trocaram mais através da escrita do que no caminhos que, a cada passo, levam para mais longe, mer-
tempo áureo da comunicação por cartas, livros ou roman- gulhando cada vez mais numa virtualidade de infinitas
ces. Com os computadores interligados em nível mundial, possibilidades. Não contentes com a possibilidade de mos-
o E-mail- correio eletrônico -veio constituir uma forma trar ao público suas páginas gráficas, alguns usuários da
efetivam~nte global de comunicação, sobretudo no meio internet começam a oferecer, através do acesso aos seus
acadêmidp. 46 endereços eletrônicos, a possibilidade de olhar através de
A comunicação via E-mail, sob a forma de texto es- câmeras de vídeo que, permanentemente ligadas enqua-
crito, começa a expandir-se para a possibilidade de troca drando ângulos de suas cidades, constituem-se nas virtu-
também de imagens transmitidas pela rede de computa- ais saídas de um labirinto sem saída.
dores - a'internet Já estão disponibilizadas, para quem se Deixando um pouco o labirinto virtual da compu-
habilitar, milhares e milhares de imagens que podem ser tação e suas possibilidades de incorporação de imagens, e
acessadas juntamente com textos escritos e sons. Pode-se voltando para fotografia, parece também importante exa-

78 79
Luiz Eduardo Robinson Achutti Fotoetnografia

minar o esforço atual da indústria no sentido da garantia públicos e privados - que convirjam para interpretações
da qualidade da imagem. abrangentes.
De um modo geral os avanços tecnológicos leva- Uma antropologia que lance mão de todos os recur-
ram a uma maior agilidade de trabalho para os fotógra- sos técnicos disponíveis para melhor comunicar e intera-
fos com o aumento da qualidade de suas imagens. A lin- gir, seja quando estiver registrando lá, ou revelando aqui,
guagem fotográfica foi modificando-se à medida que se estará fundando o que se pode chamar uma antrÔpologia
alteraram as técnicas de obtenção da fotografia. A in - em multimídia.
dústria de equipamentos fotográficos coloca toda a tec-
nologia desenvolvida e acumulada até hoje voltada para
o seu maior mercado consumidor que são os fotógrafos
amadores. Eles poderão aproveitar todas as fotografias
"clicadas" com foco e quantidade de exposição corretos.
Câmeras leves, completamente automáticas, com lentes
i!i de-qualidade, com as quais dificilmente se perderá algu-
ma fotografia. Se isso não bastasse, já existem também
filmes chamados "multi-speed", filmes de sensibilidade
variável, que podem ir de 100 até 1000 ISO, por exem-
plo. 47 Restarão como desafios àqueles que fotografam as
questões de domínio da linguagem, quando for o caso de
se buscar fotos informadas que possam também infor-
mar.
A demanda e o livre trânsito das imagens tendem a
aumentar sem limites. Seremos todos, antropólogos ou não,
além de consumidores, também produtores de imagens
de certa qualidade, imagens que irão atender os conteú-
dos que nos forem mais caros para nosso trabalho.
N1sse sentido, nós, antropólogos, brevemente pode-
remos e~tar realizando nossos trabalhos de forma polifô-
nica. Estaremos pesquisando e contando a cultura do ou-
tro utilizando-nos dos recursos de multimídia. Definiti-
vamente várias formas narrativas estarão articuladas para
oferecer inúmeros ângulos - mostrar rostos, ouvir suas
vozes, recolher suas histórias e suas músicas, registrar seus
momentos de trabalho e lazer, inventariar seus espaços

80 81
, /

Prefácio
O QUE VEM A SER PORfANfO UM OIRAR?

Etienne Samain*

Quando Margaret Mead, em 1973, numa famosa in-


tervenção no IX Congresso do ICAES, sediado em Chicago,
denunciava o "esmagador parti-pris verbal da antropologia"
e a fixação devota - para não dizer fetichista que esta consa-
grava às virtudes interpretativas da escrita - poucos se deram
conta de que, sem querer ressuscitar a querela dos anciãos e
dos modernos, Mead pressentia e intuía que chegava o mo-
mento em que não bastaria 'falar e discursar' em torno do
homem, apenas o 'descrevendo'. Para conhecê-lo, haver-se-
ia de 'mostrá-lo', de 'expô-lo', torná-lo 'visível', sendo a obje-
tividade de tal empreendimento não mais ameaçada por um
'visor' do que pelo 'caderno de campo' do antropólogo. É no
quadro deste debate que se deve situar o estudo que Luiz F.c:luar-
do Achutti consagra ao cotidiano dos moradores da vila Di-
que em Porto Alegre - RS (Brasil).
\
1
1 Sem provocação, o autor desta fotoetnqgrafia levanta
efetivamente a questão das relações, mas também das singu-
laridades do suporte imagético e do suporte escrito na sua
pretensão mútua em conhecer e revelar os homens e as soei-

* Professor do Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto


de Artes da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
Luiz Eduardo Kobinson Achutti

edades. Oferece, desta maneira, ao seu leitor duas aberturas,


duas portas de entrada: este poderá empreender a leitura de
l Fotoetnqgrafia

te", músicas das nossas noites, de nossos esquecimentos, de


nossos abandonos, de nossas distrações, de nossos silêncios,
um texto ou, virando o livro, mergulhar na espessura das ima- de nossos recalques e de nossas omissões. Músicas de nosso
gens. inconsciente, surgidas desta parte encobertada, oculta, en-
Cada um desses registros, é verdade, partem de uma ob- terrada do ser e, no entanto, particularmente viva, presente e
servação, ambos são representações, ambos são interpretações. fecunda. Notas musicais que se sucedem, se condensam numa
Resta que essas observações, essas representações, essas inter- partitura sem fim, arrebentando-nos, como as ondas do mar,
pretações conjugam-se diferentemente em função dos supor- em direção a outros cantos, a outros silêncios. As fotografias
tes utilizados. O suporte imagético não funciona da mesma ma- são viajantes vagueantes que nos cativam, medusas fantas-
neira que o suporte verbal. Cada um deles põe em obra opera- magóricas que nos fascinam. Segredos revelados e mistérios
ções cognitivas e afetivas singulares. do outro, que nos acuam e nos transfiguram intimamente.
* ** Pequena queimadura de luz sobre uma superfície s,en-
Nada mais paradoxal que uma fotografia. Está lá, dian- sível (como uma alma) - os nitratos de prata, pele e película
te de nossos olhos, impassível, fixa, congelada. Múmia ador- ao mesmo tempo - a fotografia é, na sua materialidade, tanto
mecida, entorpecida, enclausurada no seu quadro, fechada, uma ferida como uma cicatriz, uma fenda aberta no tempo,
silenciosa, muda. Ela não fala e nunca falará. Vale, no entan- uma rachadura do espaço, uma marca, um rastro, um indí-
to, por mil palavras, como se costuma dizer. E, de fato, nos cio. Corte e golpe, ela é essa superfície de signos múltiplos e
leva a milhares de discursos sobre ela, dentro dela, atrás dela, complexos, aberta a um passado que já não existe mais e a um
em torno dela. Discursos interiores na maioria dos casos. Dis- futuro que não chegou a ser. As fotografias são tecidos, ma-
cursos do silêncio. Discursos por ela provocados, que surgem lhas de silêncios e de ruídos, os envelopes que guardam nos-
dos fundos da nossa interioridade, da caverna obscura de nosso sos segredos, as pequenas peles, as películas de nossas vivên-
pensamento. Pois, se é verdade que olhamos para ela, tam- cias. As fotografias são memórias e confidências.
bém ela olha para nós, nos aponta, nos questiona, nos pers- Observei e contemplei com todo o meu tempo as foto-
cruta, nos desvenda, nos desnuda. grafias realizadas e organizadas por Achutti. Eu sei que dora-
Cativa que era na sua fixidez material, de repente, essa vante, mesmo cego, poderia entrar na Vtla Dique onde nunca
mesma imageni começa a se decompor, a se dissolver. Como tinha ido. Reconheceria as ruas, as cores das casas de madei-
num caleidoSÇópio em movimento, ela se fragmenta, se des- ra. Reconheceria as rugas da testa desta velha mulher que,
pedaça, se esfacela na imaterialidade de nosso imaginário. Ela com um pão na mão, olharia ainda para mim. Reconheceria o
não é mais uma imagem; tornou-se um bloco de imagens, um cheiro do lixo, o suor do labor, o riso das crianças, o odor
folheado de imagens: imagens-lembranças, soterradas na nossa fresco do creme de barbear sobre o bigode do Senhor Pinhei-
memória, que emergem, ressuscitam, renascem, movem-se, ro. Essas fotografias tornaram-se fragmentos de um discurso
começam a vhtjar. Esta mesma imagem, embora permanecendo amoroso, lugares de um investimento psíquico considerável,
sempre lisa, achatada e silenciosa, vira também música, ou de um prazer e de uma dor.
melhor dizendo, pequenas músicas, ''pequenas músicas da noi- ***

XVIII XIX
~
Luiz Eduardo Robinson Achutti "il Fotoetnqgrafia
~!
Há mais de quinze anos que Roland Barthes entregava- ~,, ingê(nu)o, "não cultural, um tanto selvagem". Precisava re-
"'
se à morte. Até hoje, eu não sabia claramente por que o seu encontrar o grau zero de seu olhar sobre o mundo. Será que
~i
último livro me incomodava tanto na época e porque tinha l' Barthes não tinha suas razões para encarar do ponto de vista
até conseguido me irritar. Por uma misteriosa necessidade,
reli várias vezes A Câmara Clara no decorrer destes últimos
meses. A ternura do olhar humano que atravessa o livro, des-
concerta-me e me "anima", como Barthes sabe repeti-lo,
l
1
;

,,
do observador, o mundo dos homens e dos seus fatos, dos seus
dados e dos seus delírios? "Antropólogo" fora do ninho, Bar-
thes nos alertava e nos convidava a pensar o mundo não ape-
nas a partir desta pretensão à racionalidade pura, não apenas
Í:
quando fala da "Fotografia" com este "F" maiúsculo que deli- ·~ a partir de modelos gerais ou teóricos, não apenas através da
neia o objeto de sua pesquisa. linearidade da escrita e, sim, a redescobri-lo, também, na im-
1i
Deste livro, Barthes dizia, em fevereiro de 1980, numa '1
petuosidade de nossos afetos, no tumulto das imagens e no
entrevista a Angelo Schwarz e Guy Mandery, o seguinte: " Um horizonte de um imaginário social, latente em cada um de
livro modesto ... que vai decepcionar os fotógrafos... (um livro) nós. O trabalho de antropologia visual que Luiz Eduardo
que não é nem uma sociologia, nem uma estética, nem uma Achutti nos oferece, participa desta "aventura" humana que
história da foto. É, antes, uma fenomenologia da fotografia. Tomo Barthes anunciava, desejava e fez. Resta-nos entrar na Câma-
o fenômeno foto na sua novidade absoluta dentro da história ra Clara e, talvez, refletir sobre o que escreve Evgen Bavcar,
do mundo... Em torno de 1822, aparece um novo tipo de ima- fotógrafo esloveno, cego desde os onze anos de idade, no seu
gem, um novo fenômeno icônico, inteira e antropologicamente admirável O Voyeur Absoluto.
novo. É esta novidade que procuro questionar (interrogar) e, "Quando discernia ainda alguns bocados de luzes e
assim, recoloco-me na situação de um homem ingênuo, não de cores, estava feliz porque via ainda: guardo a lembrança
cultural, um tanto selvagem que não cessaria de se admirar muito viva desses momentos de adeuses ao mundo visível.
(espantar?) com a fotografia''. Sem dizê-lo mais claramente, Mas a monocromia invadiu a minha existência e devo fazer
Barthes aludia ao Pensamento Selvagem, que Claude Lévi- um esforço para conservar a paleta das nuanças, para que o
Strauss escrevia em 1962 e onde procurava delinear "dois mundo escape à monotonia e à transparência. Dou cores
modos distintos do pensamento científico... dois níveis estraté- aos objetos e às pessoas que apreendo: conheço uma mulher
gicos, onde a natureza deixa-se atacar pelo conhecimento ci- cuja voz é tão azul que ela consegue colocar o azul sobre um
entífico: (...) O primeiro, aproximadamente ajustado ao da per- dia que eu sei ser cinza do outono. Encontrei um pintor que
cepção e da iqiaginação, e o outro, deslocado como se as rela- tinha uma voz vermelha escura, e o acaso quis que ele gos-
ções n~, objetivo de toda ciência... pudessem ser atin- tasse desta cor, o que me alegrou muito... O que vem a ser
gidas por dois caminhos diferentes: um muito próximo da in- portanto um olhar? É talvez a soma de todos os sonhos de
tuição sensível, o outro mais afastado". que se esquece a parte de pesadelo quando a gente pode se
Ao empreender A Câmara Clara, sua descida no imagi- pôr a olhar diferentemente... ".
nário do signó, Barthes não sonhava. Despedia-se e despia-se
do semiólogo, do autor do Império dos Signos, para colocar-
se novamente na situação e na postura de um homem Campinas, 15 de outubro de 1997

XX XXI
,,

INTRODUÇÃO

A fotografia é um aprendizado de observação paciente, de


elaboração minuciosa de diferentes estratégias de aproximação com
o objeto, de desenvolvimento de uma percepção seletiva, de uma
vigilância constante e de prontidão para captar o acontecimento
no momento do acontecimento. A dupla capacidade da câmara de
subjetivar e objetivar a realidade, a constante consciência de que
se é responsável por este processo, por uma técnica de apreensão
da realidade, de que se é sujeito deste conhecimento, é um
ensinamento epistemológico. (leal, 1986:16)

Quero propor mais um ângulo para o olhar. Acrescen-


tar mais um ângulo à grande tarefa da antropologia que se
quer mergulhada na realidade do outro, buscando interpre-
tar os seus valores e experiências.
Quando se pesquisam pessoas que trabalham com o lixo,
imagina-se, de antemão, a facilidade do estranhamento. Es-
tranhar o lixo é de certa forma natural para as pessoas que
produzem-no cotidianamente, mas que não viabilizam seu
cotidiano através dele. O lixo por si só provoca uma experi-
\'
1
ência de estranhamento radical.
Se o estranhamento era natural, além de necessário num
primeiro momento, vivenciei num segundo momento uma
experiência arrebatadora, apesar do lixo: passei a descons-
truí-lo, enxergando o "meu campo" por suas partes. Comecei
também a enxergar particularidades nas pessoas que com ele
trabalhavam, chegando a considerá-las como estando numa
Luiz Eduardo Kobinson Achutti

situação apenas contingente. Lá no lixo, uma seqüência de


olhares francos, firmes e fortes de mulheres vaidosas que,
apesar do cotidiano escrutínio daquilo que a sociedade rejei-
ta, carregam o mundo em si. Elas têm orgulho, planos, enten-
dimentos, problemas e sonhos.
Ciente de estar de certa maneira ousando, desenvolvo,
em termos de ênfase descritiva, uma forma narrativa - foto- FOTOETNOGRAFIA DA VILA DIQUE
etnografia - de relatar a vivência cultural de um determina-
do grupo. Optei por recolher, à guisa de contextualização
para a narrativa visual que se segue, trechos do meu diário
de campo e depoimentos coletados no trabalho. Permitin-
do-me uma comparação metafórica, diria que estes textos Contextualizando e Legendando:
com "imagens brutas" evocativos da experiência de campo do diário de campo à narrativa visual da Vila Dique
no fazer antropológico, funcionam aqui como uma espécie
de "negativo" do relato etnográfico, mais precisamente, fo- De uma maneira geral, nos trabalhos etnográficos clás-
toetnográfico, que se segue. Como forma de oferecer uma sicos as fotografias têm uma função de registro, uma função
visão de conjunto, na seqüência do sumário, apresento em auxiliar no trabalho de campo.· Evocadora da memória elas
um mosaico de tamanho reduzido todas as fotografias agru- também apoiam a construção do texto. Minha intenção é in-
padas por subcapítulos. verter, fazer com que trechos de meu diário de campo influ-
am na criação e legendem, sirvam de apoio à leitura de meu
texto fotoetnográfico.

~~vai fazer sete anos aqui dentro do galpão. A Dona Ana


Cristina., o Antônio., Dona Matilde., eles que começaram a chamar
nós pra igrtifa pra começar reunião pra fazer o galpão. Ali na
igreja eles fizeram reunião com nós. Nós achamos boa idéia
JXJrque lá antes agente trabalhava no chão., no sol Todo mundo
catava lá. .'\gora não ficamos na chuva nem no sol., começamos
\
1
em cinco mulheres. .'\gora tá cada vez melhorando mais. O ano
passado fui visitar minha gente., aqui tá bom., mas de vez em
quando tem que ir dar uma olhada lá nos que ficaram». (Alma
EYsher, trabalhadora do galpão de coleta de lixo)

Uma tarcle das mais quentes, início de dezembro, tarde


luminosa especial para trabalhos fotográficos. Compro três fil-
mes da marca Agfa e vou mais wna vez a campo. Chego de

XXIV
,,:__
Luiz Eduardo Robinson Achutti Fotoetnografia

carro e, como de costume, procuro estacionar junto à borra- Como sempre, a recepção é muito boa. Meu olhar bus-
charia, um dos poucos lugares com espaço já que a vila se de- ca pela Rose que estava grávida de oito meses na última vez
senha em linha reta junto à avenida Dique. Esta avenida, que em que lá· estive. A Rose é a única trabalhadora negra em
liga a zona norte da cidade à avenida dos Estados, passa nos meio às inúmeras Fischer, com seus cabelos claros e olhos
fundos do Aeroporto Salgado Filho. As casas dos moradores azuis. Ex-agricultoras que agora vêm aumentar o leque de
estendem-se pelo espaço estreito que existe entre a estrada e o etnias que habitam os cinturões de miséria das grandes cida-
valão. Estão de frente para o perigo e o barulho do trânsito de des brasileiras. Entrego a Rose seu retrato feito na última vez,
automóveis e caminhões pesados que transportam produtos que exibindo sua barriga, tendo como "fundo infinito" as tábuas
chegam à Porto Alegre, e de costas para o valão onde jogam do galpão, talvez para ela, também infinito.
seus esgotos. A vila, apesar de ter água encanada (cerca de uma Mais uma vez, procedo ao ritual de entrega de presentes,
torneira por unidade doméstica) e luz elétrica, não possui rede assim como alguns fazem com tribos ainda não acostumadas à
de esgotos, correndo os detritos diretamente para o valão. presença de forasteiros ou pesquisadores. Fotografias são muito
Carrego comigo, além de meu equipamento fotográfi- mais do que espelhos, são espelhos ideais, são espelhos mágicos,
co, algumas das fotografias tiradas da última vez em que lá espelhos que espelham para trás, para um tempo anterior que
estive. Vem à minha lembrança a primeira visita, no princí- já passou. De qualquer forma sinto que ofereço algo em troca
pio do ano de 1992. Fui fotografar as mesmas pessoas sobre do ato de ''roubar-lhes as almas". Uma ''moderna troca de pre-
as quais hoje realizo um trabalho acadêmico de pesquisa. A sentes": a imagem real - matéria prima que me oferecem - pela
primeira vez foi uma incursão por conta de minhas funções imagem fotográfica - a cristalização de um momento com um
de fotojomalista. Fiz uma reportagem para uma revista espe- determinado recorte. Ambos decididos por mim.
cializada de São Paulo, chamada Dirigente Municipal. A re- Chego e, além de atrapalhar o trabalho das caiadoras,
vista havia decidido fazer o relato desta iniciativa que se ins- interfiro em todo o meu campo de pesquisa. Como vou traba-
crevia na pauta dos interesses sobre formas de organização lhar se estão todas a olhar fotografias em vez de selecionar o
popular, além dos aspectos ecológicos em jogo. lixo? Que etnógrafo mais narciso traz para campo elementos
São 4 horas da tarde. Vou direto para o galpão. Encon- que levam-no a fazer parte das cenas a serem fotografadas?
tro as trabalhadoras em seu período de descanso. Ocorre-me Passo a fotografá-las olhando fotografias. A Rose chegou a
que posso estar roubando o pouco tempo de folga que elas desmontar uma moldura para colocar as suas fotos. O qua-
têm. Dou boa\ tarde e logo trato de distribuir algumas das fo- dro foi parar em cima da mesa principal do galpão, perto do
tografias que, \de fato, se constituíram no meu principal ins- lugar onde fazem o repouso e o acerto de contas. Passo tam-
trumento de inserção no seu meio. Sei que conquistei atenção bém a fazer parte do lugar onde fica uma espécie rara de
delas sobre meu trabalho pelo lado do inusitado, e talvez, da santuário polissêmico: máscaras, Cristo, Mickey, cruz, flores,
vaidade. Não é todo dia que chega um sujeito estranho distri- etc. Todos apanhados no lixo, menos minhas fotos.
buindo fotogiafias e trazendo como único custo, uma certa Para não atrapalhar mais o trabalho de coleta, decido
"intromissão" nas questões de identidade do grupo. Penso que visitar seu Pinheiro e dona Leonida, pioneiros na~ A casa
elas neste momento não avaliam esse custo. dos pioneiros fica quase ao lado e eu tenho também "espelhi-

XXVI XXVII
Luiz Eduardo .Kobinson Achutti Fotoetnografia

nhos" para eles. Chego perguntando pelo seu Pinheiro. Estão te reinício dos trabalhos. Uma das mulheres descobre no lixo
sentadas no alpendre Dona Leonida e uma conhecida. Ela me uma boneca bastante inteira, boneca à pilha, destas que fa-
diz que seu marido não está bem, que está de cama devido a lam, choram ou caminham, não sei. Imediatamente tento aju-
um problema no pé. Logo pergunto pela perna que sabia que dar a ver se a boneca funciona e fotografar ao mesmo tempo.
já não estava muito boa, e ela me responde tratar-se de um Sugiro : ''vamos ver o que ela faz ?" Ela vai logo buscar, nos
novo problema. Depois de chamado, chega bem "arrumado", seus guardados, pilhas que lembrara havia recolhido do lixo
com o cabelo bem penteado, mancando mais do que de cos- em outra oportunidade. Tento dividir-me entre ajudar, foto-
tume. Eles são o casal ancestral. Como uma espécie de mito de grafar e consolar, antevendo um provável desapontamento.
origem: no começo era o caos, não havia nada. Vieram para a Nesse momento, eu mais do que ninguém, gostaria que a bo-
Dique que hoje tem umas quarenta farrúlias de parentes mui- neca não fosse apenas uma "safadeza" aplicada pelo mundo
to próximos. Penso ser fundamental uma entrevista, além de do consumo àquelas mulheres que operam num dos seus li-
um retrato exemplar deste casal formado por um homem, mites: o lixo. A boneca deveria agir, dizer algo, mesmo que
com ascendência índia e portuguesa, e uma mulher de as- fosse em inglês. Queria que ela ressuscitasse como uma metá-
cendência alemã. fora de vida, ainda que alimentada por enfraquecidas pilhas
também encontradas no lixo. Enquanto auxilio, sugiro-lhe que
'Wo dia 13 de fevereiro fez dez anos que nós viemos de as pilhas provavelmente devam estar descarregadas, mas que
Irai. Eu, meu marido e uma filha que tem 11 anos. Nós devia pro a boneca parece ter chance de voltar a ''viver'', já que parece
banco, empréstimo pra fazer o plantio do feijão, soja, e milho na
terra do meu~· Aí não deu. Chuvarada, seca, sol mata tudo. ter bom aspecto. Ela aciona o botão "on/off" levando-a ao
Agente tentou dar uma cabeçada, viemos assim, agente morou ouvido dizendo: "a boneca não faz nada". Lembro-me dos
13 dias na Farrapos, em casa alugada, aí a gente comprou aqui filmes onde aparecem tentativas de reànimação boca a boca.
por coincidência, não sabíamos que outros já moravam aqui Sem saber o que fazer, sugiro-lhe que busque auxílio de al-
Eles são Fisher; mas são outros Fisher; acho que tem dois ou três
gum destes curiosos que consertam tudo. A vivência desta me-
tipo de Fishere não são parente. Meu marido trabalhou oito anos
e meio na Ceasa. Eu trabalhava numa fábrica de estojo plástico táfora visual me comove, atrapalho-me um pouco com as fo-
para fita cassete, faz um ano, saí de lá para trabalhar no galpão. tografias. Recomposto, percebo, no segundo plano, Rose com
t melhor porque aqui não tem o patrão, não tem o chefe em seu filho recém nascido no colo.
cima, agente trabalha porlivre e espontânea vontade, tu trabalha
como tu 1quer; não estão em cima. Todo mundo trabalha unido, ~ gente acha bastante coisinha: roupa, calçado, louça.
ninguém, não manda ninguém ali dentro, tem a diretoria, tem A louça vem embrulhada. Tem lençol de cama, tem de tudo.
tudo, até11eu sou da diretoria, que muda de dois em dois anos". Quem acha é dele. E às vezes vêm os cara e também dão coisa
(Malvina Fisher; trabalhadora do galpão de coleta de lixo) pra gente, daí a gente divide. Se sobrar, aquilo vai pro sorteio, a
gente faz um sorteio. Bota o nome de todos que trabalham e dai
Volto para o galpão. A casa do seu Pinheiro é muito agente faz_ um sorteio, pra um não ganhar mais e outro menos,
escura, não foi dessa vez que aproveitei-para fotografar seu então é tudo assim, tudo junto. Até rancho. Minha cunhada
ínterior. Deparei com uma cena muito ínteressante: a chega- achou até um rancho, um rancho inteirinho, inteirinho, dentro
da de mais um caminhão de lixo da prefeitura e o conseqüen- de um saco branco amarrado. Dinheirojá foi achado solto. Esse
relógio aqui eu achei também. fá tinha achado um, l{gOra fui

XXVIII XXIX
Luiz Eduardo Robinson Achutti Fotoetnografia

pra fora e levei pra minha mãe. A gente acha muita coisinha te na vida e no trabalho das mulheres do galpão. Seu Leôncio
que vale a pena né? Tem tudo que eu acho, Já na minha estante, dedica uma hora diária para ajudar a replanejar o trabalho.
tá tudo lá que eu acho, lá em casa'~ (Malvina Fisher, trabalhadora
do galpão de coleta de lixo) Através de sua especialidade de observador/ordenador do tra-
balho alheio, ele concluiu que a meta para o trabalho no gal-
O galpão está sendo melhorado e aumentado. A disposi- pão é de que cada mulher seja capaz de selecionar um cami-
ção do lixo será outra, funcionalmente mais adequada para o nhão de lixo por semana. Elas não têm conseguido atingir
trabalho de separação. As mulheres terão um lugar onde to- esta meta, e Leôncio está empenhado na busca das razões que
mar banho ao final de cada jornada. Em março de 1997 fez determinam o desempenho menor do que o esperado. Ele pro-
oito anos que estão organizadas neste trabalho. Todas as sex- curou ressaltar a importância, do ponto de vista ecológico, do
tas-feiras, a mesma trabalhadora, aquela que melhor sabe fa- trabalho realizado. Disse:...me que as mulheres do galpão de-
zer contas, organiza o pagamento para as demais. O dinheiro veriam ser reconhecidas pela importância do seu trabalho,
fica boa parte da tarde dividido em cima de uma mesa sem fazendo com que uma parte do material não degradável, e
precaução alguma, até que chegue o final da jornada e o con- portanto poluídor, volte ao circuito do consumo'' através do
seqüente pagamento. A responsável disse-me que " no começo processo de reciclagem.
do plano real ficou meio complicado;' mas agora, já acostumada, Internamente a estrutura para receber os sacos de lixo a
estava mais fácil a tarefa de proceder à divisão do dinheiro. ser reciclado funciona como uma espécie de silo. Ou seja, são_
três grandes compartimentos de arame em forma cônica, que
"'Nós trabalhamos todas parelha, é feito o pagamento, são abastecidos pela parte de cima. As trabalhadoras vão reti-
dividimos todos igufl4 temos uma diretoria entre três mulher, rando os sacos um a um, pela parte de baixo, que fica ao nível
tem quem coordena pra reparti o dinheiro, outra pra dividir o da cintura. O lixo vai descendo por gravidade. Cada uma das
dinheiro. A maioria das coisas que temos aqui é tudo na base de
doação. Toda as sextas feiras tem reunião às 4 horas, a gente trabalhadoras tem sua área própria para trabalhar, de onde
coloca todos os problemas, o que acontec4 o que não acontece. vai retirando os sacos. Nela também guarda suas coisas e seus
Agora agente fez umas novasre.gras, por exemplo: se tu chegares achados. O lixo limpo que elas vão separando, colocam em to-
cinco minutos atrasado tu não entra, e desconta um dia». (Rosi néis à espera de duas máquinas de prensagem, no caso dos
Lea4 trabalhadora do galpão de coleta de lixo) plásticos e das latas. Os vidros ficam à espera de compradores
A "Casa das mulheres" é freqüentada por dois traba- que venham buscá-los. O lixo orgânico, que muitas vezes vem
junto com o limpo, é denominado por elas de lixo. Esse lixo é
lhadores homens (jovens que trabalham nas máquinas de
1
colocado no fundo do galpão, num espaço que oferece acesso
prensagem e amarração dos fardos de latas e plásticos). E to-
lateral, ficando à espera de um caminhão que passará para
dos, mulheres e homens, trabalham sob a orientação de um
recolhê-lo.
engenheiro mecânico ligado à igreja próxima, Sr Leôncio Su-
Como área de uso comum, as trabalhadoras possuem
zin. Ele está d,':mdo uma espécie de orientação para que todos
uma cozinha na qual, às quatro horas da tarde, reúnem-se por
alcancem maior eficiência no volume de lixo separado, uma
meia hora para fazer o lanche. Aquelas que µmuem casa na5 prod-
espécie de reengenharia no trabalho de separação do lixo.
midades aproveitam o tempo para lanchar em casa junto dos
Ele está constituindo-se num fator de modificação importan-

xxx XXXI
Luiz Eduardo Robinson Achutti Fotoetnografia

filhos e netos. Muitas ficam se acarinhando com as crianças


que são levadas até o galpão. Juntam-se todos, trabalhadoras e
familia, próximos da cozinha, conversando. As que estão mais
livres aproveitam para organizar, sentadas descansando, os far-
dos de jornais velhos. ***
Decido que é hora de ir embora. Na rua, os desempre-
gados conversam nos botecos e na frente das casas. Na Dique, Rostos especiais sobre um pano de fundo nada especial.
poucas pessoas têm trabalho com vínculo empregatício. As Conversei bastante, ouvi muitas frases, respondi a várias per-
mulheres devido à necessidade de cuidar dos filhos preferem guntas. Quero deixar minha interpretação revelando os ros-
trabalhos eventuais como faxinas. Pego o carro pensando na tos - vitrines do corpo e da alma - dessas pessoas que ora
"alemoada" que é como são chamados os membros do grupo apresento.
familiar ao qual pertencem a maioria das mulheres que tra- Fazendo minha "coleta visual" no lixo, encontrei recor-
balham no galpão. Essas familias possuem costumes diferen- tes, encontrei ângulos, planos e texturas que não eram lixo (ou
ciados determinados por suas vivências anteriores, com as ca- que passaram a não parecer lixo). Em uma viagem estética,
racterísticas culturais que trouxeram da vida de imigrantes encontrei formas, volumes, linhas, texturas e cores que me le-
trabalhadores rurais do Rio Grande do Sul. varam a um segundo estranhamento: desta vez, porém, praze-
roso e único. De maneira aleatória, fiz o registro de encontros
"É que no Iraí a planta não dava mais nada. Nós plantava também aleatórios de formas, seqüências, composições, dese-
e nós ganhava meias. Nós não tinha bo4 nada então, nós tinha nhos, estruturas visuais que me remetiam para fora do lixo.
que pedir os boi emprestado pra limpá a terra. Depois a seca
matou tudo, então nós resolvemo de vender e vir morar pra cá. Como uma espécie bizarra de cal~idoscópio, os sub-produtos
Daí nos começamo a trabalha no aterro, depois a Irmã Cristina do lixo assumiram ordenamentos estéticos agradáveis aos olhos.
eo Irmão Antônio começaram ajuntaragente pra fazer o galpão. Respeitando as palavras, os verbos, parto deles para pro-
A Leonida veio antes pra Diquf? depois nós viemo tentar aqui. por uma ''viagem de revelação" de existências humanas es-
Nós fava em quatro, ~ra tá aumentando cada dia mais. peciais e de formas estéticas também especiais. Quero traba-
Agora, ano novo faz um ano que eu visitei o Iraí, Jogo mais vou
de novo.
lhar com o estoque das experiências visuais de cada observa-
Agente queria que melhorasse o galpão pra que não caia dor. Quero sua alma e sua sensibilidade em ação. Quero pro-
tão!~. Olha lá, as madeira são meio fininha. O dinheiro tem porcionar um ângulo a mais nesta diária tarefa de traduzir
semapas que tá bem, tem semanas que tá pouquinho. Essa pessoas, valores, comportamentos, coisas, arranjos sociais,
semaha ~ra que passou deu bem, deu 55 (Reais) pra cada crenças, ódios, dores e esperanças.
uma. E na outra semana que passou deu só 20 pra cada. Eu
gosto de trabalhar aqui, agente tá no abrigo, agente não molha,
Proponho um hiato de silêncio para que se aguce a per-
não fica no solquenff? eugosto de trabalhar aqui". (Gerda Fishe.r; cepção destes rostos, olhares, formas, texturas, planos, cores e
trabáihadora do galpão) volumes, que forritam também o mundo, pois são manifestações
visíveis das culturas. Um pouco de abordagem visual que venha
enriquecer o verbo e que venha enriquecer também nossos di-

XXXII XXXIII
Luiz Eduardo Robinson Achutti

álogos, nossa maneira de formular conceitos, de perceber e nar-


rar as experiências que não estejam disponíveis às palavras.
A unicidade de um olhar, de um rosto especial que nos
sensibiliza, não se pcxle traduzir em palavras. A unicidade deste
olhar só pcxle ser apreendida como imagem. Imagens que po-
voam o pensamento dos homens, mas que também encontram
lugar num retângulo silencioso chamado fotografia.
A Vila

XXXIV

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