Você está na página 1de 50

Ser-com

Clínica fenomenológica e existencial


2º semestre – 2018
Uma maçã no escuro
Por que teria uma pessoa que
decidir cada dia e cada noite?
Que liberdade era essa que
aquela mulher não pedira
sequer?
E como se já não tivesse com
tanto esforço escolhido, de novo
e de novo tinha que escolher;
como se já não tivesse escolhido.
Uma maçã no escuro
Silenciou, um pouco tonta.
Um cobiçoso amor pela sua
própria história a tomara.
Ali estava ela naquele momento
de pé – rica, tonta, pesada,
ganhando ali mesmo, enquanto
falara, um passado de que
jamais suspeitara.
Uma maçã no escuro
“Mas eu tenho ainda todo um
passado para trás!”, gritou-se
subitamente em arrebatamento
de surpresa.
Pois só ao contar é que ela se
lembrara...
Como se somente agora
soubesse que também isso era
vida sua, ah.
Uma maçã no escuro
A mulher então se perguntou
absorta se não haveria mil
outras coisas que lhe tinham
acontecido...
E das quais ela simplesmente
ainda não sabia.
Uma maçã no escuro
Perguntou-se, com a gravidade
de uma descoberta, se ela na
verdade não tinha escolhido
viver de alguns fatos passados,
quando poderia viver de outros
que tinham igualmente
acontecido – e tinha direito a
eles – assim como neste instante
ela estava vivendo do rapaz da
fogueira.
Exercício
* Como o trecho de Clarice Lispector se relaciona ao
conceito que estudamos, de “nadificação”?
* Como o movimento de nadificação pode estar
presente na relação clínica, na experiência de
psicoterapia?
Como vimos, para a realidade
humana, ser é escolher-se.
Agimos como somos, e nossos atos
contribuem para fazer-nos.
Escolher-nos é nadificar-nos, ou seja,
fazer com que um futuro venha a nos
anunciar o que somos, conferindo um
sentido ao nosso passado (p. 574).
* Cada um de nós vive numa casa que tem
aspectos jamais observados por nós, embora
estímulos vindos desses aspectos atinjam
nossos olhos talvez milhares de vezes.
* Nem tudo o que acontece é uma
experiência.
* Assim é a nossa relação com o nosso
próprio passado.
* Aquilo que não tem função, não tem
realidade.
* O passado não é significativo por
ter sido significativo no tempo que
se deu
* Naquele tempo, talvez, podia não
ter significado algum
* O passado é significativo porque é
significativo agora
* O passado significativo é o passado
presente
* O futuro nunca se origina de uma
subjetividade puramente individual.
* Todos nós sabemos que os outros
são capazes de dar um rumo
diferente para nossas vidas.
Uma maçã no escuro
Fui até onde pude.
Mas como é que não compreendi
que aquilo que não alcanço em
mim... Já são os outros?
Os outros, que são o nosso mais
profundo mergulho!
“É inverno. A noite está caindo e eu
me levanto para acender a luz.
Olhando para fora, vejo que
começou a nevar. Tudo está coberto
pela neve brilhante, que está caindo
silenciosamente do céu encoberto.
A gente caminha sem ruído ao
longo da minha janela. Ouço alguém
sacudir a neve dos seus pés”.
“Esfrego as mãos e aguardo a noite
com satisfação, pois, faz alguns dias,
telefonei a um amigo convidando-o a
vir ter comigo esta noite. Dentro de
uma hora estará batendo à minha
porta”.
“A neve lá fora parece que dará à sua
visita um caráter ainda mais
agradável. Ontem comprei uma boa
garrafa de vinho, que coloquei a
distância apropriada do fogo”.
“Sento-me à mesa para responder
algumas cartas. Meia hora mais tarde, toca
o telefone. É o meu amigo, a dizer que não
poderá vir. Trocamos algumas palavras e
marcamos novo encontro para outro dia.
Quando torno a colocar o fone no gancho,
o silêncio do meu quarto ficou mais
profundo. As próximas horas se parecem
mais longas e mais vazias. Coloco mais
uma acha de lenha no fogo e volto à minha
escrivaninha. Dentro de alguns momentos
estou absorto num livro. O tempo passa
lentamente”.
“Ao levantar os olhos por um momento,
para refletir sobre um trecho pouco claro,
a garrafa, perto do fogo, chama a minha
atenção. Percebo mais urna vez que o meu
amigo não virá e volto à minha leitura”.
“O que estava vendo então não era a
garrafa verde, com o rótulo branco, a
cápsula de chumbo e mais detalhes; o que
estava vendo realmente era, pois bem,
alguma coisa como o desapontamento
causado pelo fato de que meu amigo não
viria ou pela solidão da minha noite”.
“É claro que eu via a garrafa com o rótulo
branco, a cápsula etc. etc. mas o fato de
ver essas coisas significava que eu ‘pulava’
por cima do objeto ‘garrafa’, para ‘cair’
sobre o valor que essa garrafa tinha
adquirido para mim esta noite”.
“Esta sala onde espero o dono da
casa revela-me, em sua totalidade, o
corpo de seu proprietário: essa
poltrona é a poltrona onde ele se
senta, essa mesa é a mesa na qual
ele escreve, esta janela é por onde
entra a luz por onde entra a luz que
ilumina os objetos que vê”.
Sem você meu rádio fica mudo
Minha TV fica sem cor
Meu violão fica sem som
Sem você meu corpo não reflete mais no espelho
Minha casa cai
Sem você eu perco o chão...
(Luka – Porta aberta – 01:06).
Ainda tem o seu perfume
Pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara?
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Na cinza das horas...
(Adriana Calcanhoto – Vambora – 01:20)
Nos seus livros, nos seus discos
Vou entrar na sua roupa
E onde você menos esperar
Embaixo da cama
Nos carros passando
No verde da grama
Na chuva chegando
Eu vou voltar

(Capital Inicial – Eu vou estar – 01:50)


* Qual é a relação entre as coisas
que vemos e as pessoas com
quem vivemos?
“O córrego, a casa, o céu, a árvore, a cadeira, os
móveis e o fogão, tudo muda; mas nada muda
sem razão ou sentido.
Os objetos mudam em certas ocasiões
especiais.
Quando alguém chega ou parte.
Um olhar, uma palavra ou um gesto podem
abrilhantar uma coisa ou torná-la sombria.
A pessoa que está conosco não é outro
indivíduo isolado, próximo a nós, que lança
palavras em nosso ouvido mas permanece
estranho aos objetos em nossa volta”.
O olhar

 Como é olhar para algo?


 Como é olhar para alguém?
 Como é olhar para alguém que nos olha?
O olhar

 Como eu quero ser olhada(o)?


 Quando me olho no espelho, o que vejo?
 Quando outra pessoa me olha, o que vê em mim?
 Como me sinto quando outra pessoa me olha?
O Outro

 A outra pessoa não sou eu


 Como me sinto diante de alguém que não sou eu?
 Como é imaginar que alguém se vê também como um
eu, um eu que não sou eu?
 Como é, para a outra pessoa, que eu seja um outro
eu?
 Quem sou eu para alguém que não sou eu?
A liberdade do outro revela-se a mim através
da inquietante indeterminação de ser que sou
para ele.
Este ser não é meu possível.
É o limite de minha liberdade, seu reverso.
Não ao modo do “era” ou do “ter-de-ser”.
Basta que o outro me olhe para que eu seja o
que eu sou.
Porque é para e por uma liberdade, e somente
por ela e para ela, que meus possíveis podem
ser limitados e determinados.
O outro

 O outro é aquele que me capta de uma certa maneira


que me escapa
 O outro me capta de um modo que desconheço, que
não controlo, mas que, ainda assim, sou eu
 O olhar do outro me captura, me aliena
 O olhar do outro me determina
Imagine

 Imagine que você chega em uma sala, com outras


duas pessoas.
 Vocês ficarão juntas nessa sala por muito tempo,
talvez por anos.
 É uma sala em que não é possível sair.
 É uma sala em que não anoitece.
 É uma sala em que não é possível apagar a luz.
 É uma sala em que não há espelho.
 Ao entrarem nessa sala, vocês deixam de ter
pálpebras.
Entre quatro paredes

 Intersubjetividade
 Ser-com
 Ser-para-o-outro
 Relações concretas
Entre quatro paredes

 Ausência de espelhos, de noite, de pálpebras:


confrontação pura com o outro, sem saber o que o
outro vê
 Sou minhas ações... É possível modificar-se... É
possível nadificar-se...
 Enquanto estivermos vivos(as).
 O outro como um espelho infernal
Tradução: “Nós podemos
permanentemente fazer e refazer a nós
mesmos(as) pelas nossas ações, e então
nos tornamos o que nossas ações nos
definem enquanto seres.
Mas quando morremos, o jogo acaba, e
nós estamos inteiramente dependentes
do que as outras pessoas pensam de
nós.
E as pessoas nos julgarão somente pelo
que nós fizemos”
Tradução: “Todos(as) nós
lembramos de situações em
que fizemos o que era possível
para tentar fazer com que
alguém tomasse decisão por
nós.
Apenas um ser que tem medo
da liberdade, e da
responsabilidade que a
liberdade traz consigo,
buscaria se comportar dessa
forma”.
Tradução: “Apenas um ser que
era livre e que sabia que era
livre, sairia de seu caminho,
como todos(as) nós às vezes
fazemos, para fingir que não
foi livre”
Má-fé
* A má-fé não é uma mentira cínica ou uma
enganação oportunista
* A má-fé é a tentativa de fugir do que não se
pode fugir
Má-fé
 Para Sartre, mostramos má-fé sempre que nos representamos
como resultados passivos dos fatos ocorridos ou mesmo de
motivações ocultas que escapam ao nosso controle
Vivemos em má-fé a maior parte do tempo, porque é assim que a
vida é vivível
 Em grande parte, a má-fé é inofensiva, mas pode ter consequências
graves
Na medida em que apreender o sentido da
campainha do despertador já é ficar de pé a
seu chamado, tal apreensão me protege
contra a angustiante intuição de que sou eu –
e mais ninguém – quem confere ao
despertador seu poder de exigir meu
despertar.
Da mesma forma, o que se poderia chamar de
moralidade cotidiana exclui a angústia ética.
Há angústia ética quando me considero em
minha relação original com os valores (p. 83).
Alteridade

 A liberdade do outro revela-se a mim através da


inquietante indeterminação de ser que sou para ele.
Alteridade

 Não posso prever que efeitos terão meus gestos e


atitudes
 O sentido de minhas expressões sempre me escapa
 Não há como saber o que exprimo para o outro
 Minha linguagem é, então, um fenômeno sempre
incompleto.
Alteridade

 O outro é um sistema conexo de experiências fora de


alcance.
“É apenas enquanto estrangeiro,
enquanto livre, que o outro se desvela
como outro; e amá-lo autenticamente
é amá-lo em sua alteridade e nesta
liberdade por meio da qual ele escapa”
(Simone de Beauvoir, p. 49)
“O outro não me pede nada; ele não é
um vazio que eu teria que preencher,
não posso descobrir nele nenhuma
justificação pronta de mim mesma”
(Simone de Beauvoir, p. 49)
Então, quando o amado, por sua vez, irá
converter-se em amante?
A resposta é simples: quando projeta ser
amado.
Se o amor tem por ideal a apropriação do
outro enquanto outro, ou seja, enquanto
subjetividade olhadora, este ideal só poder
ser projetado a partir de meu encontro com o
outro sujeito, e não com o outro-objeto.
Sendo assim, novamente o amado só irá
transformar-se em amante caso projete ser
amado, ou seja, se o que deseja conquistar
não for um corpo, mas sim a subjetividade do
outro enquanto tal.
Com efeito, o único meio que pode conceber
para realizar esta apropriação é o de fazer-se
amar.
Assim, no casal amoroso, cada qual quer ser o
objeto para o qual a liberdade do outro se
aliena em uma intuição original; mas esta
intuição, que seria o amor propriamente dito,
não passa de um ideal contraditório.
Cada um quer que o outro o ame, sem dar-se
conta de que amar é querer ser amado e que,
desse modo, querendo que o outro o ame,
quer apenas que o outro queira que ele o ame.
Alteridade

 O amado é o olhar.
O seu olhar lá fora,
O seu olhar no céu
O seu olhar demora
O seu olhar no meu...
O seu olhar seu olhar, melhora, melhora o meu...

(Tribalistas – O seu olhar)

Você também pode gostar