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Rizoma - Uma introdução aos Mil Platôs de Deleuze e Guattari

Cleber Araújo Cabral1


Diogo Corgosinho Borges2

Resumo:

Nosso objetivo é fazer uma apresentação à proposta de pensamento expresso na obra


Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Este texto
busca, inicialmente, apresentar uma proposição sintética do conceito "rizoma", tal como
proposto pelos autores referidos acima. Após a exposição do conceito, apresentaremos
algumas perspectivas de análise da situação contemporânea a partir desse conceito e da
rede conceitual deleuze-guattariana.

Palavras-Chave: rizoma, sistemas centrados e a-centrados, cartografia, inconsciente.

Introdução

Em Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia a dupla formada pelo filósofo


Gilles Deleuze e pelo psicanalista Félix Guattari 3 busca fazer uma crítica ao mesmo
tempo histórica e ontológica da psicanálise, passando pelo pensamento de Marx e
Nietzsche. Tal como aludem os autores no prefácio à edição italiana do volume da obra
Mil Platôs “O Anti-Édipo tinha uma ambição kantiana: era preciso tentar uma espécie
de crítica da razão pura no nível do inconsciente." (DELEUZE e GUATARRI, 2004:
06). Para melhor compreendermos a proposta-trajeto iniciada em Anti-Édipo, faz-se
conveniente relembrarmos seus três temas fundamentais, que seriam:

1- Substituição da idéia do inconsciente enquanto teatro pela idéia de


inconsciente como usina (questão de produção de inconsciente e não de
representação de conteúdos do inconsciente).
2- O delírio é histórico-mundial, não familiar: deliram-se raças, tribos,
culturas, organizações, posições sociais, etc.
3- Existe uma história universal, que não é a da necessidade, e sim da
contingência (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 07).

Já na seqüência de Anti-Édipo, os Mil Platôs, a preocupação apresentada pelos


autores é de outra ordem: A construção de conceitos capazes de pensar a
contemporaneidade importa mais que fazer uma crítica da mesma. "O projeto é

1
Estudante de graduação do curso de Letras (bacharelado em Português) da UFMG.
2
Estudante de graduação do curso de História (bacharelado/licenciatura) da PUC-MG.
3
Doravante, iremos nos referir aos autores utilizando-nos da abreviatura D&G (Deleuze & Guattari).
construtivista" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 08), dizem os autores.

O Anti-Édipo foi um livro escrito no calor dos eventos do Maio de 68, e escrito
para aqueles que estavam fartos da psicanálise: "Sonhávamos em acabar com Édipo"
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 07), mas as reações ao Maio de 68 e o desenrolar da
história mostraram o quanto Édipo4 era forte e ainda dominava – e, como um olhar mais
cuidadoso pode observar, ainda domina certa parcela considerável do pensamento
psicanalítico contemporâneo. Era preciso tentar algo novo, e o que se propõe com os
“platôs” é justamente esta tentativa, a de constituir um pensamento que se efetue através
do "múltiplo" – e não a partir de uma lógica binária, dualista, do tipo “um-dois”,
“sujeito-objeto”, que se efetue por dicotomia, tal como vemos na psicanálise, na
lingüística e na informática –, de modo a construir uma teoria das multiplicidades que
fosse imanente, que colocasse propostas concretas de pensamento ao invés de
simplesmente se limitar à crítica da psicanálise.

O primeiro conceito criado para propor esta teoria das multiplicidades é o


conceito de "rizoma". Veremos ao longo dos platôs como o conceito de rizoma funciona
perfeitamente como o ponto de partida para se pensar as multiplicidades por elas
mesmas, visto que o fundamento do rizoma é a própria multiplicidade. Vejamos a
definição dada pela botânica:

Em botânica, chama-se rizoma a um tipo de caule que algumas plantas verdes


possuem, que cresce horizontalmente, muitas vezes subterrâneo, mas
podendo também ter porções aéreas. O caule do lírio e da bananeira são
totalmente subterrâneos, mas certos fetos desenvolvem rizomas parcialmente
aéreos. Certos rizomas, como em várias de capim (gramíneas), servem como
órgãos de reprodução vegetativa ou assexuada, desenvolvendo raízes e caules
aéreos nos seus nós. Noutros casos, o rizoma pode servir como órgão de
reserva de energia, na forma de , tornando-se tuberoso, mas com uma
estrutura diferente de um tubérculo.5

O conceito desenvolvido por D&G amplia muito esta definição, justamente pelo
fato de que o conceito na botânica não comporta a multiplicidade, se limitando a definir
um tipo específico de caule. Para D&G, este tipo de caule em conjunto com a terra, o ar,
animais, a idéia humana de solo, a árvore, e etc formariam o rizoma, não se limitando
apenas à pura materialidade, mas também à imaterialidade de uma máquina abstrata que
4
O “Édipo” ao qual nos referimos e ao qual aludem os autores é apresentado como um construto, um
dispositivo histórico que estabelece um certo número de relações de poder entre a sociedade e os
indivíduos.
5
Enciclopédia On-line Wikipédia Disponível em <http://www.wikipedia.org/rizoma>. Acessado em
Março, 2005.
o arrasta, sendo, portanto, um conceito ao mesmo tempo ontológico e pragmático de
análise.

Rizoma

Um platô está sempre no meio, nem início nem fim. Um


rizoma é feito de platôs. (DELEUZE e GUATARRI,
2004: 33)

Um rizoma é uma segunda espécie de conjunto de linhas. Um primeiro conjunto


de linhas é aquele no qual uma linha é subordinada ao ponto, à verticalidade e
horizontalidade, que estria o espaço, faz um contorno, submete multiplicidades
variáveis ao Uno, ao Todo de uma dimensão suplementar ou suplementária. As linhas
deste tipo são as linhas molares, e formam sistemas binários, arborescentes, circulares e
segmentários6.

Um rizoma é totalmente diferente deste primeiro tipo de linhas, o rizoma não é


exato, mas um conjunto de elementos vagos, nômades, de maltas e não de classes: "Do
ponto de vista do pathos, é a psicose e sobretudo a esquizofrenia que exprimem estas
multiplicidades." (DELEUZE e GUATARRI, 1997: 221) É oportuno enumerar agora
algumas características aproximativas do rizoma, para, posteriormente pensarmos esse
conceito numa perspectiva mais ampla.

1º e 2º - Princípios de conexão e heterogeneidade

Qualquer ponto de rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo.7
Descentramento do sujeito, negação da genealogia, afirmação de uma heterogênese8 em
oposição à ordem filiativa do modelo de árvore e raiz. O rizoma é distinto disso tudo,
pois não fixa pontos nem ordens - há apenas linhas e trajetos de diversas semióticas,
estados e coisas, e nada remete necessariamente a outra coisa. Para demonstrar estes
princípios, D&G recorrem à ontologia da linguagem, e conseqüentemente à lingüística:

6
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. São Paulo, Ed.
34. 1997. pg. 220.
7
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Pg.15.
8
A heterogênese seria algo como a produção do inusitado em nossas vidas, algo como desfazermo-nos de
um território existencial e criar outros simultaneamente. A heterogênese é um processo similar à noção de
linhas de fuga (outra noção proposta por D&G). Para maiores esclarecimentos ver DELEUZE, Gilles.
GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vols. 1 e 5. Ed 34. 2004
"A árvore lingüística à maneira de Chomsky começa ainda num ponto S9 e procede por
dicotomia" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 15), sendo assim "um marcador de poder
antes de ser marcador sintático". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 15) Tais modelos
não dão conta nem da abstração nem da materialidade da língua,

por não atingir a máquina abstrata que opera a conexão de uma língua com os
conteúdos semânticos e pragmáticos de enunciados, com agenciamentos
coletivos de enunciação, com todo uma micropolítica do campo social.
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 15)

É preciso levar sempre em conta as formas de organizações de poder, pois

não há universalidade da linguagem, mas sim um concurso de dialetos, de


patoás, de gírias, de línguas especiais. (...) A língua é, segundo uma fórmula
de Weinreich, "uma realidade essencialmente heterogênea". Portanto, é
impossível pensar em "uma língua-mãe", mas somente em uma "tomada de
poder por uma língua dominante dentro de uma multiplicidade política”
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 16).

De modo que "a unidade de uma língua é sempre inseparável da construção de


uma unidade política". (GUATARRI, 1988: 25) A língua se forma e se estabiliza em
torno de uma comunidade, de uma coletividade, espalhando-se como uma mancha de
óleo, "evolui ao longo das linhas de uma estrada de ferro". (DELEUZE e GUATARRI,
2004: 16) Uma prática analítica do tipo rizoma procura analisar a linguagem efetuando
um descentramento sobre outras dimensões e outros registros, pois a análise lingüística
que se fecha sobre a própria linguagem só o faz "em uma função de impotência".
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 16) Isto equivale a dizer que estaríamos, neste caso,
subordinando linguagem à linguagem apenas, definindo-a ao mesmo tempo como ponto
central e elemento local. Uma analítica rizomática, ao contrário, procurar “estabelecer
conexões transversais entre os estratos e os níveis, sem centrá-los ou cercá-lo, mas
atravessando-os, conectando-os”. (GUATARRI e ROLNIK, 1986: 322)

3º - Princípio de multiplicidade

Pensar o múltiplo efetivamente como substantivo, pois é aí que ele não tem mais
nenhuma relação com o uno como sujeito ou objeto, como realidade natural e
espiritual, como imagem e mundo, pois a multiplicidade não constitui sujeito e muito
9
“S” aqui se refere à sentença como axioma central de um diagrama em forma arborescente que procede
sua analítica pela hierarquização sucessiva de elementos locais que remontam a tal axioma. Tal descrição
é espelhada na proposta apresentada pela gramática gerativa de Noam Chomsky de análise dos elementos
sintáticos constituintes de uma competência lingüística supostamente comum a todos os seres humanos.
menos objeto, mas apenas determinações, grandezas e dimensões, "que não podem
crescer sem que se mude de natureza". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 16) As
multiplicidades se definem pelo fora, pelas linhas que compõe um rizoma, linha abstrata
e linha de fuga. O plano de consistência (ou plano de imanência) é o fora de todas as
multiplicidades, e nele a linha de fuga marca ao mesmo tempo "um número de
dimensões finitas que a multiplicidade preenche", assim como "a impossibilidade de
toda dimensão suplementar" e também a "possibilidade e a necessidade de achatar
todas estas multiplicidades sobre um mesmo plano de consistência ou exterioridade".
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 17)

Uma boa maneira de compreender esta idéia de multiplicidade é olhando uma


marionete, os fios e o manipulador: os fios de uma marionete constituem a
multiplicidade, nem o que controla, nem o boneco controlado com as cordas, mas as
próprias cordas, que comunicam uma parte à outra. São as linhas de um ponto ao outro
que importam, não os pontos em si. Um outro exemplo de multiplicidade evocado por
D&G é a escrita de Kleist, um "encadeamento quebradiço de afetos e velocidades
variáveis", onde numa mesma página se expõe toda a exterioridade: "Acontecimentos
vividos, determinações históricas, conceitos pensados, indivíduos, grupos e formações
sociais". D&G opõem esta escrita rizomática, composta em platôs “(...)que se
desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto de culminância ou em direção a
uma finalidade exterior” (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 33) ao livro clássico,
romântico, sendo este definido e constituído pela interioridade de um sujeito ou
substância. O livro-máquina de guerra contra o livro-aparelho de Estado: Kleist versus
Goethe, Nietzsche versus Kant, multiplicidade versus unidade.

4º - Princípio de ruptura a-signficante:

Um rizoma pode ser rompido e quebrado em algum lugar qualquer, mas também
retoma segundo uma de suas linhas ou segundo outras linhas.

Todo rizoma compreende linhas de segmentariedade segundo as quais ele é


estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc; mas
também compreende linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem
para. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 18)

Cada vez que há ruptura no rizoma as linhas segmentares explodem numa linha
de fuga, mas estas linhas de fuga são parte do rizoma: as linhas não param de remeter
umas às outras. Traça-se uma linha de fuga quando se faz uma ruptura, mas nela podem
encontrar-se com elementos que reordenam o conjunto e reconstituem o sujeito. "Como
é possível que os movimentos de desterritorialização e os processos de
reterritorialização não fossem relativos, não estivessem em pérpetua ramificação,
presos uns aos outros?"10 (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 18)

A orquídea se desterritorializa, forma uma imagem, um decalque da vespa, e a


vespa se reterritorializa sobre esta imagem, o que, no entanto, é uma
desterritorialização, pois ao se tornar parte do aparelho de reprodução da orquídea ela
também reterritorializa a orquídea ao transpor o pólen. As duas juntas formam um
rizoma. No nível dos estratos: paralelismo, entre dois estados determinados, cuja
organização de um imitou a do outro. Mas trata-se de algo completamente diferente:
Não mais imitação, mas captura, mais valia de código, devir-vespa da orquídea e devir-
orquídea da vespa, cada um assegurando ao outro os movimentos de desterritorialização
e reterritorialização de uma das partes – “dois devires se encadeando e revezando
segundo uma circulação intensidades que empurra a desterritorialização cada vez mais
longe”. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 19) Se introduzirmos mais uma parte no
rizoma vespa-orquídea, levaríamos a outros pontos e processos tal relação: quando um
homem entra neste sistema e introduz, por exemplo, um agrotóxico, ou desmata uma
região. Toda uma reorganização das relações no rizoma. Não havendo mais orquídeas,
as vespas terão de procurar outras flores.

Os esquemas de evolução não se fariam mais segundo modelos de


descendência arborescente (...) mas segundo um rizoma que opera
imediatamente no heterogêneo e salta de uma linha já diferenciada à outra."
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 19)

Nossa evolução e morte se deu mais por gripes, vírus e bactérias polimórficas e
rizomáticas do que por doenças hereditárias.

5º e 6º - Princípio de cartografia e de decalcomania:

"Um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou

10
A propósito da desterritorialização e suas relações com o território, ver também “Conclusão: Regras
concretas e Máquinas Abstratas”, In: Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 5.
gerativo". Toda a lógica dos sistemas arborescentes é uma lógica do decalque e da
reprodução, tanto na lingüística quanto na psicanálise, faz-se um decalque de algo que
já está dado, a partir de “uma estrutura que sobrecodifica ou de um eixo que suporta“.
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 21)

Faz-se um decalque do inconsciente, ou da linguagem, colocando-o segundo


uma ordem de complexos codificados, que cabem ao psicanalista ou lingüista
interpretarem seguindo uma certa lógica que também já está dada: a árvore articula e
hierarquiza os decalques, fazendo destes as folhas da árvores. O rizoma é mapa, e não
decalque. "A orquídea não reproduz o decalque da vespa, ela compõe um mapa com a
vespa no seio de um rizoma". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 22) O mapa é aberto e
desmontável, pode ser conectado em qualquer uma de suas partes ou dimensões, é
reversível e suscetível de receber montagens de qualquer natureza, ser (re)construído
por um indivíduo ou por uma formação social, como obra de arte ou ação política, como
uma meditação. Ele tem entradas múltiplas, “(...)contrariamente ao decalque, que volta
sempre ao mesmo”. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 22)

É preciso, no entanto, não opor os dois sistemas, restaurando assim um dualismo


binário: "É preciso sempre projetar o decalque sobre o mapa". (DELEUZE e
GUATARRI, 2004: 23) O decalque pode estruturar um rizoma, codificá-lo,
“neutralizando assim as multiplicidades segundos eixos de significância e de
subjetivação” (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 23), mas o que o decalque reproduz do
rizoma são apenas os impasses, os bloqueios, seus pontos de estruturação. (DELEUZE e
GUATARRI, 2004: 23)

A psicanálise e a lingüística apenas tiraram fotos ou decalques do inconsciente e


da linguagem. É importante tentar uma outra operação, religando os decalques ao mapa,
relacionando árvores e raízes ao rizoma. Estudar o inconsciente seria mostrar como ele
tenta constituir um rizoma, com a casa da família, mas também com a linha de fuga da
rua, mostrar como tais linhas são obstruídas, enraizadas na família, decalcado sobre o
pai e a cama materna. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 24) Podemos entrar no rizoma
até mesmo pelos decalques e árvores-raízes. Há agenciamentos muito diferentes neste
ponto, como mapas-raízes, rizomas-decalques, uma dimensão de raiz pode brotar no
rizoma e inversamente, um rizoma pode surgir na árvore. "Um acontecimento
microscópico estremece o equilíbrio do poder local" (DELEUZE e GUATARRI, 2004:
25): Onze de setembro. A história está repleta de tais acontecimentos.

O próprio pensamento é descentralizado, mesmo tendo um órgão que age como


centralizador. "O pensamento não é arborescente e o cérebro não é uma matéria
enraizada nem ramificada. (...) É mais uma erva que uma árvore". (DELEUZE e
GUATARRI, 2004: 25) É um sistema nervoso, probabilístico e incerto que compõe o
pensamento, não apenas o cerébro: “uncertain nervous system”. (DELEUZE e
GUATARRI, 2004: 25)

Neurólogos e psicofisiólogos distinguem uma memória longa e uma curta, da


ordem de um minuto, e sua diferença não é somente quantitativa. A memória curta é do
tipo rizoma, diagramática, enquanto que a longa é árvore - centralizada. A memória
curta pode ir e voltar em questão de momentos ou minutos, é descontínua, faz rupturas e
opera por descontinuidade. As memórias não se tipos temporais diferentes de apreensão
da mesma coisa, não são as mesmas idéias que apreendem nem a mesma recordação. "A
memória curta compreende o esquecimento como processo", e não se confunde com o
instante mas sim com o rizoma temporal, coletivo e nervoso. A memória longa é a
família, raça, sociedade, civilização, opera por decalque e tradução, mas os dados que
ela traduz continuam "a agir nela, à distância, a contratempo, intempestivamente, não
instantaneamente". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 26)

A psicanálise do “pequeno Hans”11: O que a psicanálise faz é quebrar seu


rizoma, manchar seu mapa, colocando-o em um lugar de onde a saída é bloqueada, "até
que ele deseje sua própria vergonha e culpa, fobia. (...) Deixarão que vocês vivam e
falem, com a condição de impedir qualquer saída". (id. pg. 23) Existem sempre
estruturas de árvores e raízes no rizoma, mas das árvores também brotam os rizomas. A
psicanálise coloca o 'paciente' dentro do sistema centrado na significância a partir do
inconsciente, mas o 'psicanalizado' não se cansa de colocar novamente os rizomas,
quebrando a ordem psicanalítica com linhas de fugas. “A melhor posição para se ouvir
o inconsciente não consiste necessariamente em ficar sentado atrás de um divã.”.
(GUATARRI, 1988:189) O psicanalista vira o ditador, fundando seu poder a partir do
estabelecimento de uma ordem ditatorial do inconsciente concebido como árvore.

11
A “psicanálise do pequeno Hans” trata-se da monografia-príncipe de Freud sobre psicanálise da criança
encontrada na obra Cinco psicanálises.
Vejamos, na Figura 1, a cartografia (mapa) apresentada por Guattari a propósito do caso
Hans12:

Figura 1:

As linhas que constituem o diagrama do “pequeno Hans” seriam:

A – território familiar;
B – território do leito conjugal dos pais;
C – aparência da mãe;
D – objeto do poder fálico;
E – territorialidade maquínica do fantasma inconsciente.

Observa-se nesse diagrama do inconsciente do “pequeno Hans” como sua libido


foi levada a investir na produção de micropolíticas de existência a partir da análise do
conjunto de suas produções semióticas – tais como o território familiar, a aparência da
12
GUATTARI, Félix. Notas para uma esquizo-análise. In: O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-
análise. Ed. Papirus, 1988. Pg. 169.
mãe. O que a psicanálise de Freud faz é conceber esse inconsciente enquanto estádio
genético estrutural, como estádio-árvore, em suma, procede a uma paradigmatização
sistemática de todos os conteúdos e estratégias enunciativas a partir de referências
abstratas ou estruturais centradas sobre materiais verbais e interpretações semióticas dos
afetos e dos comportamentos. “Você está acuado, você está acuado. Confessa!”
(DELEUZE, 1996:12) A esquizo-análise, enquanto pragmática do inconsciente
maquínico, propõe a construção de uma carta de inconsciente de acordo com cada caso
ou situação, de modo a determinar quais são as principais linhas micropolíticas dos
agenciamentos de enunciação e das formações de poder em seus níveis mais abstratos.

"É curioso como a árvore dominou a realidade ocidental e todo o pensamento


ocidental, da botânica à biologia, a anatomia, mas também gnoseologia, a teologia, a
ontologia, toda a filosofia". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 28-29) Enquanto o
ocidente é a floresta e o campo, o oriente apresenta outra figura, as relações com a
estepe, jardim, deserto e oásis. "Ocidente, agricultura de uma linhagem escolhida com
muitos indivíduos variáveis; Oriente, horticultura de um pequeno número de indivíduos
remetendo a uma grande gama de clones". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 29) A
América inverteu as direções tradicionais do ocidente, colocando seu oriente ao oeste,
"como se a terra tivesse se tornado redonda precisamente na América". (DELEUZE e
GUATARRI, 2004: 30) Bem sabemos que foi ela que conectou uma parte do mundo à
outra, e ela é "(...)ao mesmo tempo árvore e rizoma". (DELEUZE e GUATARRI, 2004:
31) A história da América é aquela em o europeu, branco, macho, dominante, perdeu
sua civilidade na barbárie da conquista do Eldorado, mas também foi onde deixou para
os “novos corpos” ali formados alguns elementos próprios de sua idéia de civilidade,
estado, etc. Desterritorialização, territorialização e reterritorialização. Vejamos um
exemplo dado por Guattari de uma cartografia para um processo histórico, neste caso, a
formação histórica do stalinismo, como apresentada na Figura 213:

Figura 2:

13
GUATTARI, Félix. Notas para uma esquizo-análise. In: O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-
análise. Ed. Papirus, 1988. Pg. 172.
Na figura acima percebemos com mais clareza a combinação das diversas linhas
que compõem o rizoma, que, nesse caso, (as linhas) assumem um caráter molar, de
segmentariedade dura – no caso, um processo de dominação política ditatorial.
Elementos moleculares, como a ruptura leninista e a máquina de seu partido, atuaram
primeiramente em um movimento de dissolução da antiga molaridade aristocrata da
Rússia do início do século passado, para, posteriormente, serem capturados nos
bloqueios efetuados por outras linhas – desencadeadas pela morte de Lênin e pela crise
econômica e social. Neste ponto, uma molecularidade capturada é anulada por
segmentariedades que efetivam o impasse e a levam ao nível molar, instaurando o
regime centralizador de Stalin

Bem sabemos que o capitalismo agiu no fim dos anos 80 como um vetor de
desterritorialização – linha de fuga que explode o rizoma que configurou o comunismo
soviético –, desencadeando toda uma reterritorialização dos agenciamentos, uma
reorganização das linhas. Em Anti-Édipo fica clara este caráter desterritorializante-
reterritorializante do capital, sempre disposto a ir assimilando elementos novos que
podiam fazer parte até mesmo de sua crítica, como por exemplo, nos anos 60, onde:

O capitalismo “endogeneizou” as reinvindicações por autonomia e por


responsabilidade até então consideradas como subversivas, e conseguiu
substituir o controle pelo autocontrole, tornando o trabalho mais atraente
para uma mão de obra jovem e com mais escolaridade que nas décadas
anteriores. (PELBART, 2003: 106)

Como mencionamos ao início, o rizoma é uma segunda espécie de conjunto de


linhas de linha. Somos atravessados e constituídos por estas linhas. O rizoma é o
contrário da estrutura, pois enquanto esta se apresenta constituída como um
“(...)conjunto de pontos e posições que opera por correlações binárias entre os pontos e
relações biunívocas entre as posições” (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 32), o rizoma
procede por variação, conquista, captura, é heterogêneo, um mapa “(...)sempre
desmontável, conectável, reversível”. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 33) É uma
produção de inconsciente (individual, dual, coletivo, social), e não uma representação
de conteúdos desprovidos de significância e de subjetivação. Fazer um rizoma é traçar
estas linhas. A esquizo-análise se apresenta como uma tentativa de uma pragmática das
linhas, de produção de rizoma, de seus bloqueios nas raízes, suas rupturas em linhas de
fuga, a transformação das árvores em rizomas subterrâneos – ou aéreos, a aliança entre
o homem e a máquina para constituir outras máquinas que já não são nem um nem
outro, mas elementos constitutivos de uma ontologia maquínica 14 no qual tudo é
coextensivo a tudo.

Considerações finais

O conceito rizoma funciona como a porta de entrada ao pensamento deleuze-


guattariano, porta cujo local de aparição é variável, indeterminado, vagamente dado,
uma porta pela qual entramos e caminhamos a qualquer lugar destes platôs: qualquer
ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. O rizoma "(...) é
feito de direções móveis, sem início nem fim, mas apenas um meio, por onde ele crescre
e transborda, sem remeter a uma unidade ou dela derivar". (PELBART, 2003: 216) O
rizoma não é um sistema hierárquico, é “(...)uma rede maquínica de autômatos finitos
a-centrados” (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 28), não-significante e heterogêneo.
14
Em oposição a ontologia naturalista que opõe homemXmáquina, Deleuze e Guatarri propõem uma
simbiose, uma aliança, uma sinergia entre o homem e a natureza, a natureza e a indústria. Tal ontologia
maquínica é concebida por eles como sendo uma “geo-ontologia” na qual a terra, como a grande
máquina, a “máquina de todas as máquinas”, hibridiza natureza e artifício em mecanosfera.
Não há uma força coordenadora dos movimentos, o rizoma é uma circulação de estados,
uma combinação anômala cujos resultados não podemos prever ou organizar, pois ele
está sempre em um meio. Um conjunto de devires e sempre um intermezzo – tais seriam
as proposições constitutivas de um rizoma, lembrando que o rizoma trata-se de
produção de inconsciente e de novos enunciados e de outros desejos.

No trajeto esboçado ao longo dos cinco volumes de Mil Platôs, podemos


compreender como os conceitos possuem uma conectividade – variável e indeterminada
– sem que haja uma unidade ou um conceito determinante para o funcionamento de tal
rede de conexões conceituais. O rizoma funciona como um princípio cosmológico,
caixa de ferramentas, um sistema aberto.

O rizoma talvez seja o mais deleuziano dos conceitos de "Mil Platôs". É possível
perceber ressonâncias da idéia de diferença tal como Deleuze a coloca: diferença como
pura imanência, não remetendo a nada senão a ela mesma, numa superfície onde tudo se
esvai – plano de consistência ou máquina abstrata15.

Deleuze desenvolve uma concepção inteiramente diferente das idéias e


conceitos, introduzindo a noção de multiplicidade: "As Idéias são multiplicidades; cada
idéia é uma multiplicidade, uma variedade" e considera que:

A multiplicidade não deve designar uma combinação de múltiplo e uno, mas,


pelo contrário, uma organização própria do múltiplo como tal, que de modo
nenhum tem necessidade da unidade para formar um sistema. (DELEUZE,
1988: 303)

Deleuze opõe a um universo extensivo, constituído por coisas e representações,


por identidades e diferenças referidas a uma unidade, um universo intensivo, constituído
por singularidades pré-individuais, espaço de diferenças puras onde a noção de
repetição se liberta da idéia de mesmo, para sempre constituir a pura diferença. Isto que
será ampliado em Mil Platôs, desembocando na idéia do rizoma. É clara a presença do
conceito nietzschiano de vontade de potência, força criativa e intempestiva - imanência
do desejo e da diferença, irrupção da multiplicidade 16. Apenas sob esta concepção

15
Para maiores esclarecimentos acerca das noções de “máquina abstrata” e de plano de consistência, ver
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. Pgs. 87 e 88. Ver
também GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Pgs. 320 e 321.
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A respeito do conceito de nietzschiano de vontade de potência e sua utilização por Deleuze, ver o texto
“Mistério de Ariadne segundo Nietzsche”, in DELEUZE, Gilles, Crítica e Clínica. Ed. 34. Para uma
concepção cosmológica de vontade de potência, ver o trabalho de Scarlet Marton: Nietzsche: Das forças
cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: Ed. Ufmg, 2000.
cosmológica de vontade de potência subordinada à intempestividade que a diferença
pode afirmar-se sem as negatividades de uma outra identidade, conseqüentemente, é
apenas sobre ela que o rizoma pode ser caracterizado. O rizoma funciona apenas quando
desistimos das oposições binárias, e funciona como a grande cosmologia que atravessa
todos os Platôs – no rizoma entraímos e saímos em qualquer lugar.

É importante colocar agora as questões: “É possível uma analítica rizomática?”.


E conseqüentemente: “Como e onde podemos fazê-la?” Esperamos que nosso texto
tenha apontado algumas diretrizes gerais para a investigação em vários níveis e áreas do
conhecimento, seja ele histórico, sociológico, psicológico, político, etc. O rizoma pode
perfeitamente funcionar como um princípio geral para o norteamento de análises em
grupos, indivíduos, sociedades e culturas. Podemos pensá-lo como uma metodologia,
um questionamento que pode atuar tanto em níveis materiais como os imaterais
(pensando-se os enunciados enquanto “materialidades do imaterial”), pois é um
conceito ontológico e pragmático: De que linhas isto é feito? Como são elas? Onde
formam sistemas arborescentes, centrados, mas, onde estão suas fugas, impasses,
bloqueios, explosões e rupturas?

Vários estudos podem expandir essas questões, colocando outras igualmente.


Várias cartografias são possíveis, mas não as “montaremos” agora. Nosso objetivo com
o presente texto é de apenas apresentar uma proposição-introdução sintética ao
pensamento deleuze-guattariano, através do conceito de rizoma. Pode-se ver bons
resultados da aplicação dos conceitos deleuze-guattarianos nos trabalhos do italiano
Antonio Negri, do brasileiro Peter Pál-Pelbart, do americano Michael Hardt, não
esquecendo do impacto (e diálogo) que a filosofia deleuziana teve na obra e no
pensamento de Michel Foucault e de vários outros pelo mundo.

Para lembrar Nietzsche, em seu prólogo para "Além do bem de do mal": O arco
ficou tenso e as flechas foram lançadas, cabe a nós agarrá-las e atirá-las para novos
rumo, para alvos ainda mais distantes. (NIETZSCHE, 1992: 06) O presente trabalho se
constitui como um esforço para propiciar novas tentativas de se pensar velhos temas,
como a condição humana, a economia, a subjetividade, a política, e a sociedade. Temas
velhos, mas sempre atuais – talvez até mesmo inatuais e extemporâneos – e passíveis de
constantes reconstruções, revezamentos e modificações – tal como o rizoma.
Referências bibliográficas:

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

_______________. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. - Rio de Janeiro: Ed. 34,
1996.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. I.
São Paulo, Ed. 34. 2004.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.
V. São Paulo, Ed. 34. 1997.

GUATTARI, Félix. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análise. Campinas,


Papirus. 1988

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis,


Ed. Vozes. 1986.

PELBART, Peter Pál. Vida capital: Ensaios de biopolítica. São Paulo, Iluminuras. 2003.

* Este artigo foi publicado na Revista Critério (www.revista.criterio.nom.br), vol. 1, n.


4, 2005.

CABRAL, Cléber; BORGES, Diogo. Rizoma: uma introdução aos Mil Platôs de
Deleuze e Guattari. Revista Critério, Disponível em:
<http://www.revista.criterio.nom.br/artigo-rizoma-mil-platos-deleuze-guattari-diogo-
borges-cleber-cabral.htm>.

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