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Perspectivas Da Alimentação e Nutrição PDF
Perspectivas Da Alimentação e Nutrição PDF
ARTIGO ARTICLE
na perspectiva das teorias compreensivas
Abstract The present article is a brief reflection Resumo Trata-se de uma breve reflexão sobre o
on the field of Food and Nutrition as it intercon- campo da alimentação e nutrição, aproximando-
nects with the humanities. Relevant theorists’ o das disciplinas das ciências humanas. Toma-se
thinking as well as the experience of the authors como referência o pensamento de alguns teóricos e
were used as references. The main purpose is to a vivência dos próprios autores. O objetivo princi-
stimulate the discussion on the food-and-nutri- pal é motivar a discussão sobre este tema da ali-
tion issue, taking into account the complexities mentação e nutrição considerando a complexida-
involved in the relations between food consump- de das relações que envolvem o comer e a dietética,
tion and dietetics. Also it is expected to motivate além de tentar estimular a reflexão da prática do
nutritionists to reflect upon their professional profissional nutricionista. Justifica-se a importân-
practice. Incorporating the use of hermeneutics cia metodológica de incorporar o uso da herme-
for the comprehension of the subject is justified in nêutica para a compreensão dessa temática. Refle-
terms of its methodological significance. The im- te-se a importância de agir em relação à orienta-
portance of taking action in guiding food con- ção alimentar associando o saber técnico desse cam-
sumption through the association of the techni- po com as perspectivas das teorias compreensivas.
cal knowledge of the field with various perspec- Palavras-chave Campo da alimentação e nutri-
tives of comprehensive theories is also discussed. ção, Teorias compreensivas em nutrição, Aborda-
Key words Field of Food and Nutrition, Com- gem interpretativa
prehensive theory in Nutrition. Interpretative
1
Departamento de Ciência
approach
da Nutrição, Escola de
Nutrição, Universidade
Federal da Bahia. Rua
Araújo Pinho 32, Canela.
40000-000 Salvador BA.
carmofreitas@uol.com.br
2
Centro Latino-Americano
de Estudos sobre Violência
e Saúde Jorge Careli, Escola
Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca, Fundação
Oswaldo Cruz.
3
Departamento de Nutrição,
Universidade Federal da
Bahia.
32
Freitas MCS et al.
meio aos antropólogos, destaca-se Lévi-Strauss21, ceitos que, frequentemente, têm significados di-
que ao estudar a alimentação observou uma es- ferentes e precisam ser consensualizados, a de-
treita relação entre natureza e cultura, elementos pender da área em que foram desenvolvidos e da
estes mediados pela cozinha. O comestível ou não história de sua constituição25,26,28-31.
comestível são interpretações de mitos que en- Para se compreenderem os significados rela-
volvem o comer como parte de um sistema de cionados a enfermidades originárias a excessos
relações sobre os conceitos de “bem” e “mal” na ou deficiências de nutrientes, por exemplo, atri-
alimentação. Em geral, as pesquisas de antropo- buídos pelos sujeitos, é imprescindível se obser-
logia da alimentação no Brasil têm pouco a ver var a diversidade sociocultural alimentar, a ofer-
com a nutrição propriamente dita, ainda que se- ta de alimentos, a influência da mídia sobre as
jam relevantes para uma correspondência social dietas e a política de segurança alimentar, além
e antropológica com o campo teórico e a práxis das abordagens técnico-científicas sobre o valor
do nutricionista. A exemplo será, então, confor- nutricional dos alimentos. No entanto, no meio
me Gadamer4 e Geertz22, que a sensibilidade e o acadêmico existe uma tensão permanente entre a
esforço intelectual dos sujeitos (nutricionistas) valorização do saber da área de nutrição e o me-
produzirão conteúdos aprofundados como re- nosprezo pelas práticas alimentares do povo,
quer a hermenêutica. quase sempre tidas como pouco racionais ou fru-
A pouca referência sobre alimentação e cul- tos da ignorância. Tal tensão se mostra pelo re-
tura na formação do nutricionista pode lembrar ceio, em geral, que os estudiosos têm em se apro-
um episódio ocorrido recentemente na cidade do ximarem do senso comum, um receio que faz
Salvador (BA), quando uma nutricionista reti- parte da lógica racionalista em que o campo da
rou o feijão do almoço dos pacientes de um hos- alimentação e nutrição tem seus pilares funda-
pital público, numa terça feira, dia de Ogum. Esse dos. Por sua vez, dadas as dificuldades da práxis
ato deixou a comunidade de mais de mil pessoas interdisciplinar, sobretudo em comunidades ét-
indignada pela ausência do “alimento do Orixá nicas, seria necessária a realização de mais estu-
Ogum”, santidade de cura e de vigília do corpo dos qualitativos ou antropológicos da alimenta-
no Candomblé, reverenciado neste dia da sema- ção, nutrição e cultura, e se obter um nível míni-
na. O resultado dessa ação chama a atenção para mo de compreensão sobre o empírico.
a desinformação da nutricionista sobre a heran-
ça afro-descendente na dietética baiana23.
Corpo e alimento estão na ideia religiosa da Para uma abordagem “compreensiva”
purificação em várias religiões, com o propósito
de prevenir enfermidades e curas. Na idealidade No início dos anos 2000, cresce o interesse dos
dos sentidos, há símbolos que se referem à qua- nutricionistas pelos conteúdos de antropologia
lidade de uma dietética cultural, fora do campo da alimentação, observados em encontros cien-
biomédico, que mantém restrições tradicionais tíficos com esses profissionais. Assim, novos cur-
como as “quizilas’ – interdições alimentares do rículos passam a incorporar aspectos culturais
Candomblé para prevenir enfermidades do cor- da alimentação em uma abordagem interdisci-
po e da mente24, a carne de porco pelo judaísmo, plinar com as ciências humanas. Além de ser um
entre outros exemplos. fenômeno complexo, é possível que esse interes-
se se fundamente, teoricamente, no fato de a con-
duta alimentar ser interpretada como um texto.
Dificuldades para a aproximação Ou seja: o acesso aos alimentos, as práticas ali-
entre Alimentação e Nutrição mentares, as crenças e os habitus são textualizá-
veis como inscrições significativas da cultura e
Pensar o campo da Alimentação e Nutrição como podem ser interpretados22, pois o indivíduo ne-
interdisciplinar é esbarrar num conjunto de obs- cessita de símbolos para entender sua realidade
táculos semelhantes aos descritos por vários au- social, seu sustento material, sentir-se num mun-
tores em outras situações em se que se busca a do comum e se reconhecer como sujeito na cons-
inter-relação entre ciências sociais e biomedici- trução de sua própria realidade. Ainda que se
na25-28. Não são obstáculos triviais aqueles que se preservem características individuais num tem-
encontram em tentativas de fazer convergir frag- po e num espaço dado, o hábito alimentar terá
mentos de disciplinas, mudar a mentalidade uni- sempre um sentido. O habitus5 alimentar cor-
direcional dos professores, pesquisadores e pro- responde à adoção de um tipo de prática que
fissionais e provocar um diálogo entre con- tem a ver com costumes estabelecidos tradicio-
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fica18 “aplicada à alimentação e nutrição” consti- truto. O ato interpretante é tenso, com idas e
tuiria um exercício compreensivo que não des- vindas às narrativas dos sujeitos, para esclarecer
prezasse a dietética preconizada pela biomedici- lacunas, uma palavra interdita, um gesto de si-
na, mas fizesse dela uma análise intertextual em lêncio ao falar de si. Um ato cujas respostas serão
que alimentação e comida entrassem como um sempre insuficientes para a compreensão dos sig-
ato não apenas da natureza, mas da cultura, que nificados que o sujeito pode fazer sobre sua ali-
inclui intersubjetividade, representações dos fe- mentação e nutrição. A interpretação da dieta,
nômenos e compreensão de seus significados por exemplo, adquire semelhanças e diferenças
compartilhados pelos que vivem em semelhan- referentes à vida cotidiana de um mesmo grupo
tes contextos. social. Na tentativa de aprofundar uma fala, há
O que é a hermenêutica e como ela pode aju- fendas que geram a possibilidade de novas leitu-
dar os nutricionistas numa análise que ultrapasse ras textuais. A fenda é um lugar de entrada de
o reducionismo biomédico? Segundo Gadamer4, interpretação entre as linhas narradas37.
hermenêutica é a arte e a ciência da compreensão. A presença do nutricionista que quer com-
Compreender é exercer a capacidade de colocar- preender e interpretar oferece um sentido inter-
se a si mesmo no lugar do outro, indagando algo subjetivo incontestável e necessário ao campo da
além do que já foi dito. E um texto é compreendi- alimentação e nutrição, diferente das práticas tra-
do quando se alcança “o horizonte do perguntar”, dicionais. Ao contrário destas, cria-se um saber
este com respostas possíveis4. Interpretar (expla- compartilhado na relação entre profissional e
nar, aclarar) o sentido é realizar a compreensão, paciente (sujeito implicado). Isto significa que a
propriamente. O resultado de uma interpretação introdução de uma orientação dietética intersub-
de um texto demonstra que houve uma compre- jetiva não se exaure no dualismo entre o bom e o
ensão prévia. Por isso, compreender e interpretar mau comportamento alimentar, ultrapassando
estão completamente “imbricados de modo in- as relações de poder do modelo biomédico tra-
dissolúvel”4. E como nem sempre se consegue ex- dicional, conforme denunciou Foucault38. Como
pressar completamente o que se sente, o recurso exemplo, nesta reflexão, citam-se os casos de re-
da hermenêutica vem revelar, iluminar o signifi- tirada do sal de uma dieta para determinado
cado mais profundo da linguagem sobre o que se paciente, em que é preciso ouvir e dialogar com
compreende para interpretar. Envolvem-se o con- ele sobre o que sente, o que pensa e como inter-
texto e a biografia do intérprete, para aproximar- preta essa mudança de gosto alimentar, pois o
se da realidade dos sujeitos. consumo de sal tem a ver com crenças religiosas
A hermenêutica contemporânea combinada e com sabores que foram cuidadosamente do-
aos estudos de Heidegger36 e Gadamer4 entende a mesticados durante uma vida inteira.
compreensão como parte do contexto e a lin- Assim, a propósito da hermenêutica, as prá-
guagem como a comunicação com o mundo e as ticas e as narrativas culturais sobre alimentação
coisas. A hermenêutica exige intersubjetividade, devem considerar o sentido histórico da questão
reflexão e contextualização sobre a ação huma- que se indaga. Esta espécie de circuito parte da
na, suas necessidades, sua história; elos em que linguagem, da compreensão de seu contexto, para
se relacionam o tempo presente, passado e futu- a interpretação elaborada pelo próprio sujeito.
ro de algo que se examina. O nutricionista ou o pesquisador enriquece sua
O sentido é o tema central da comida. Um práxis social, no processo hermenêutico, ao deci-
objeto empírico relacionado ao comer, como uma frar e analisar a comunicação com os sujeitos.
dieta, uma comida de domingo, os tabus alimen- Em meio às muitas vozes que se expressam
tares, o que engorda e o que emagrece, o que na intersubjetividade inscrevem-se também si-
fortalece e o que enfraquece o corpo etc. são sím- lêncios que precisam ser reconhecidos, pois am-
bolos que compõem uma estrutura de significa- pliam os textos para além da fala. Observou-se,
dos. Da pluralidade textual sobre a comida, a por exemplo, o pavor do termo fome por parte
compreensão, em primeiro lugar, e a interpreta- de muitas famílias num bairro popular de Salva-
ção logo a seguir implicam uma imersão no dor27. Este tabu linguístico é justificado para evi-
mundo do ator e no mundo que o transcende, tar com a palavra a presença do sofrimento que
para dar sentido ao comer e à linguagem que essa sensação provoca. Palavras que sugerem
textualiza esse ato. Interpretar é um vínculo para uma externalidade ou um ente fora do eu, ao
compreender e vice- versa. Parte-se, segundo substituírem a noção de fome, fazem relação com
Schutz35, da versão dos entrevistados sobre os outras expressões que mostram o mal-estar cor-
fatos que narram, o que em si institui um cons- poral pela ausência permanente de alimentos. O
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Colaboradores
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