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Sobre o campo da Alimentação e Nutrição

ARTIGO ARTICLE
na perspectiva das teorias compreensivas

The field of Food and Nutrition


from the perspective of comprehensive theories

Maria do Carmo Soares de Freitas 1


Maria Cecília de Souza Minayo 2
Gardênia Abreu Vieira Fontes 3

Abstract The present article is a brief reflection Resumo Trata-se de uma breve reflexão sobre o
on the field of Food and Nutrition as it intercon- campo da alimentação e nutrição, aproximando-
nects with the humanities. Relevant theorists’ o das disciplinas das ciências humanas. Toma-se
thinking as well as the experience of the authors como referência o pensamento de alguns teóricos e
were used as references. The main purpose is to a vivência dos próprios autores. O objetivo princi-
stimulate the discussion on the food-and-nutri- pal é motivar a discussão sobre este tema da ali-
tion issue, taking into account the complexities mentação e nutrição considerando a complexida-
involved in the relations between food consump- de das relações que envolvem o comer e a dietética,
tion and dietetics. Also it is expected to motivate além de tentar estimular a reflexão da prática do
nutritionists to reflect upon their professional profissional nutricionista. Justifica-se a importân-
practice. Incorporating the use of hermeneutics cia metodológica de incorporar o uso da herme-
for the comprehension of the subject is justified in nêutica para a compreensão dessa temática. Refle-
terms of its methodological significance. The im- te-se a importância de agir em relação à orienta-
portance of taking action in guiding food con- ção alimentar associando o saber técnico desse cam-
sumption through the association of the techni- po com as perspectivas das teorias compreensivas.
cal knowledge of the field with various perspec- Palavras-chave Campo da alimentação e nutri-
tives of comprehensive theories is also discussed. ção, Teorias compreensivas em nutrição, Aborda-
Key words Field of Food and Nutrition, Com- gem interpretativa
prehensive theory in Nutrition. Interpretative
1
Departamento de Ciência
approach
da Nutrição, Escola de
Nutrição, Universidade
Federal da Bahia. Rua
Araújo Pinho 32, Canela.
40000-000 Salvador BA.
carmofreitas@uol.com.br
2
Centro Latino-Americano
de Estudos sobre Violência
e Saúde Jorge Careli, Escola
Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca, Fundação
Oswaldo Cruz.
3
Departamento de Nutrição,
Universidade Federal da
Bahia.
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Freitas MCS et al.

Introdução que o processo de fisiologia dos alimentos no


corpo, sendo, portanto, mais ampla do que o
O objetivo deste artigo é demonstrar a possibili- saber técnico de caráter biológico. Esta expres-
dade de diálogo entre o saber técnico e outras são inclui um campo semântico no qual vários
formas de conhecimento que abordam as expe- conceitos se entrecruzam como o de “comer”, o
riências do sujeito no campo da Alimentação e de “dieta”, o de “fome” e o de “política de segu-
Nutrição. Apresenta-se uma alternativa de cons- rança alimentar”, dentre outros. “Comida” é o
trução teórica que pode sugerir a incorporação alimento na expressão da cultura; “dieta” quer
da interdisciplinaridade na reflexão e na prática dizer terapia nutricional, disciplina ou restrição
dos nutricionistas. O processo dessa construção do desejo de comer em consonância com as de-
teórica segue uma sequência reflexiva de emba- mandas do contexto social; “fome” é a grande
samento em categorias, como nutrição, e tam- questão social que precisa sempre ser politizada,
bém filosóficas, antropológicas e sociológicas, do pois tem a ver com a miséria, a pobreza e as de-
ponto de vista compreensivo. sigualdades sociais.
Em geral, os estudos na nutrição expressam A noção de “campo” aqui utilizada se inspira
a hegemonia do paradigma biomédico que, por em Bourdieu5 e corresponde à produção de um
sua vez, se manifesta nas práticas em saúde pre- processo social e de conhecimento integrado por
dominantes. Estas expressam uma visão de mun- saberes, práticas e relações de poder. Nesse senti-
do, na lógica das ciências naturais, o que limita do, o campo da alimentação e nutrição é neces-
epistemologicamente o reconhecimento da tota- sariamente interdisciplinar, pois inclui não ape-
lidade da alimentação como um ato cultural e nas o saber técnico, mas a cultura e todas as rela-
social1,2. Nesse sentido, o caminho restrito ado- ções que permeiam o sentido e as práticas ali-
tado pela área acaba por criar-lhe armadilhas mentares.
teóricas que influenciam a prática profissional.
Algumas reflexões de cunho filosófico e antro-
pológico sobre o ato fisiológico e ao mesmo tem- Breve introdução aos pensamentos
po cultural do comer permitiriam aprofundar que influenciaram os estudos
os estudos no campo da nutrição humana, in- da alimentação e nutrição no Brasil
corporando, na sua área de abrangência, a com-
preensão da linguagem e dos significados atribuí- Com o tecnicismo dominante na área da nutri-
dos pelos sujeitos sobre suas experiências com a ção, observa-se um distanciamento dos temas
alimentação, uma ação humana que é intrinse- da alimentação, da história, da cultura e dos cos-
camente marcada pela natureza e pela cultura. tumes de cada época que sempre influenciaram
Dizendo de outra forma, nada é mais natural os hábitos e as referências alimentares dos povos
que comer e nada é mais cultural que as formas, no mundo e no Brasil. Ao relembrar a Idade
as preferências e os sentidos da alimentação. Média, por exemplo, Le Goff6 ressalta que o com-
Numa visão técnica do tema, o corpo é pen- portamento alimentar na Europa refletia a posi-
sado como um objeto natural e a nutrição como ção do indivíduo na sociedade. Comer em abun-
a ciência que trata de definir uma ração medida dância representava status e força. E os corpos
em quantidades de energia para cada tipo de ali- musculosos simbolizavam o poder de intimida-
mento a ser metabolizado pelo organismo. As- ção dos homens que, dessa forma, assemelha-
sim, a nutrição “naturalista” teria uma dependên- vam-se aos animais ferozes e carnívoros.
cia das variações genéticas oriundas do crescimen- Logo no início da industrialização, os padrões
to demográfico, da adaptação do ser humano aos de alimentação foram modificados para atender
alimentos produzidos e à sua disponibilidade3. a uma nova estética do comer, necessária a asse-
Busca-se, neste artigo, introduzir algumas gurar a subsistência dos trabalhadores e cujas
notas de filosofia, em particular da “hermenêuti- limitações de quantidades eram fixadas pela vi-
ca”, para fundamentar um método compreensi- são disciplinar civilizadora, típica das sociedades
vo e interpretativo das práticas alimentares. Por ocidentais modernas7. Em meados do século XIX,
“hermenêutica” se entende a corrente filosófica na Europa, os estudos de fisiologia se limitavam
que dá ênfase à compreensão da linguagem em a explicar a nutrição a partir do atendimento das
seu contexto no tempo e no espaço, levando-se necessidades orgânicas. O controle do prazer de
em conta o papel dos sujeitos nas práticas histó- comer era representado por uma dietética dis-
rico-sociais4. Nessa perspectiva, entende-se que cursiva e moralizadora com intercessão religio-
a expressão alimentação e nutrição significa mais sa. As ideias que cercavam a necessidade de uma
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alimentação ideal estavam relacionadas ao tipo cundante, que demoliu todas as pontes do entendi-
de atividade física (trabalho) e ao comportamen- mento intersubjetivo, e para o qual, em seu isola-
to social religioso8. mento monológico, todos os outros sujeitos só po-
Nessa racionalidade, a nutrição se desenvolve dem ser alcançados na qualidade de objetos de uma
na mesma lógica da medicina, e esta numa histó- observação impassível.
ria que vem desde o século XVII, segundo Luz9. As ideias positivistas na nutrição reprodu-
No final do século XIX, explicitamente a nutrição zem a ilusão objetivista da ciência e concebem
passou a fazer parte do pensamento médico, com um modelo teórico-prático centrado na atenção
o cuidado dietético e a alimentação “ideal” relaci- à doença (nem é ao sujeito doente!). Reduzem a
onada à prevenção ou ao tratamento de enfermi- alimentação humana a uma necessidade física da
dades crônicas tais como obesidade, desnutrição, ingestão de elementos bioquímicos (como se tra-
diabetes, hipertensão, hipovitaminoses e outras. tasse de uma ração animal). No campo teórico
O alimento ficou restrito a ser coadjuvante do da alimentação e nutrição, em conclusão, existe
tratamento médico e as práticas técnico-científi- um ponto cego que distancia os nutricionistas
cas foram submetidas ao discurso clínico sobre (desde sua formação) das questões alimentares
enfermidades, sem levar em conta a experiência reais das pessoas e do ato humano de se alimen-
do sujeito. A dietética hospitalar – que se desen- tar, ato este saturado de sentido e que vai muito
volveu com os cuidados das enfermeiras e das além da proposta de prevenção de doenças.
religiosas dos hospitais e das Santas Casas de Para compreender os discursos normativos
Misericórdia – foi fortemente influenciada pela da área, Vasconcelos16 analisou os Arquivos Bra-
teoria miasmático-bacteriológica e apoiada por sileiros de Nutrição no período de 1944 a 1968. O
ideias positivistas, a propósito da determinação autor observou que o enfoque científico tradicio-
das doenças por sentidos exteriores. Como exem- nal da nutrição repousa, desde sua origem, so-
plo, se poderia engordar com os cheiros10. bre a composição química, o valor nutricional
Nesse ambiente de explicações e de usos, a de alimentos, o consumo e o estado nutricional
alimentação ficou subordinada às questões bio- da população brasileira16.
lógicas, o que em essência coloca-se num primei- Na produção do conhecimento, por mais de
ro plano da condição animal do ser humano11. cinquenta anos o campo teórico da alimentação
Em consequência, as análises sobre os sentidos e nutrição, em consonância com o pensamento
da alimentação e do comer foram sendo deslo- positivista, influenciou a prática de nutricionis-
cadas para outras disciplinas, como a história7 e tas e ainda o faz. Hegemonicamente foi inspira-
a antropologia12, e para as artes, como a pintura do por pesquisas clínicas de ordem experimen-
e o cinema. São ainda raros os estudos que se tal, laboratorial, epidemiológica e por investiga-
envolveram na compreensão dos significados dos ções de tecnologia de alimentos, ou seja, um cam-
problemas da alimentação, da fome e do cuida- po visivelmente na área das ciências naturais.
do alimentar dos indivíduos13. Bosi17 dá uma bela contribuição sobre o as-
Menendéz14 entende que o modelo biomédi- sunto ao trazer a importância da construção da
co assinala a evolução da enfermidade e não a identidade e a profissionalização dos nutricio-
história do padecimento. A nutrição reproduz nistas, em que conhecimento e prática implicam-
este modelo quando não valoriza as condições se como um processo do exercício concreto e da
sócio-históricas e culturais que envolvem os te- percepção desses profissionais no campo da ali-
mas da alimentação, os processos simbólicos e mentação e nutrição.
emocionais que medeiam tanto a doença como o Conclui-se que há poucas linhas de pesqui-
tratamento dietético. sas sobre o campo da alimentação e cultura no
Do ponto de vista teórico filosófico, a nutri- Brasil. Isto demonstra escassas construções teó-
ção aderiu ao modo positivista de pensar, de pes- ricas sobre os vínculos entre alimentação, nutri-
quisar e de atuar. O positivismo como método ção e os contextos históricos, culturais e socioe-
explicativo da realidade trabalha com o controle conômicos. Por exemplo, não têm sido prioriza-
e a verificação de dados que possam ser compro- dos estudos históricos nacionais sobre as condi-
vados e ignora (porque não lhe interessa) vozes e ções de saúde e alimentação dos escravos no Brasil
nomes, como muito bem enuncia Habermas15: Colônia, sobre a influência da religião afro-bra-
O olhar objetivante e examinador que tudo con- sileira na nutrição e as tradições alimentares dos
trola e penetra adquire uma força estruturante; é o povos indígenas. Aliás, é a antropologia que tem
olhar do sujeito racional, que perdeu todos os vín- ensaiado alguns movimentos nesse sentido, so-
culos meramente intuitivos com seu mundo cir- bretudo a partir do final dos anos 7018-20. Em
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meio aos antropólogos, destaca-se Lévi-Strauss21, ceitos que, frequentemente, têm significados di-
que ao estudar a alimentação observou uma es- ferentes e precisam ser consensualizados, a de-
treita relação entre natureza e cultura, elementos pender da área em que foram desenvolvidos e da
estes mediados pela cozinha. O comestível ou não história de sua constituição25,26,28-31.
comestível são interpretações de mitos que en- Para se compreenderem os significados rela-
volvem o comer como parte de um sistema de cionados a enfermidades originárias a excessos
relações sobre os conceitos de “bem” e “mal” na ou deficiências de nutrientes, por exemplo, atri-
alimentação. Em geral, as pesquisas de antropo- buídos pelos sujeitos, é imprescindível se obser-
logia da alimentação no Brasil têm pouco a ver var a diversidade sociocultural alimentar, a ofer-
com a nutrição propriamente dita, ainda que se- ta de alimentos, a influência da mídia sobre as
jam relevantes para uma correspondência social dietas e a política de segurança alimentar, além
e antropológica com o campo teórico e a práxis das abordagens técnico-científicas sobre o valor
do nutricionista. A exemplo será, então, confor- nutricional dos alimentos. No entanto, no meio
me Gadamer4 e Geertz22, que a sensibilidade e o acadêmico existe uma tensão permanente entre a
esforço intelectual dos sujeitos (nutricionistas) valorização do saber da área de nutrição e o me-
produzirão conteúdos aprofundados como re- nosprezo pelas práticas alimentares do povo,
quer a hermenêutica. quase sempre tidas como pouco racionais ou fru-
A pouca referência sobre alimentação e cul- tos da ignorância. Tal tensão se mostra pelo re-
tura na formação do nutricionista pode lembrar ceio, em geral, que os estudiosos têm em se apro-
um episódio ocorrido recentemente na cidade do ximarem do senso comum, um receio que faz
Salvador (BA), quando uma nutricionista reti- parte da lógica racionalista em que o campo da
rou o feijão do almoço dos pacientes de um hos- alimentação e nutrição tem seus pilares funda-
pital público, numa terça feira, dia de Ogum. Esse dos. Por sua vez, dadas as dificuldades da práxis
ato deixou a comunidade de mais de mil pessoas interdisciplinar, sobretudo em comunidades ét-
indignada pela ausência do “alimento do Orixá nicas, seria necessária a realização de mais estu-
Ogum”, santidade de cura e de vigília do corpo dos qualitativos ou antropológicos da alimenta-
no Candomblé, reverenciado neste dia da sema- ção, nutrição e cultura, e se obter um nível míni-
na. O resultado dessa ação chama a atenção para mo de compreensão sobre o empírico.
a desinformação da nutricionista sobre a heran-
ça afro-descendente na dietética baiana23.
Corpo e alimento estão na ideia religiosa da Para uma abordagem “compreensiva”
purificação em várias religiões, com o propósito
de prevenir enfermidades e curas. Na idealidade No início dos anos 2000, cresce o interesse dos
dos sentidos, há símbolos que se referem à qua- nutricionistas pelos conteúdos de antropologia
lidade de uma dietética cultural, fora do campo da alimentação, observados em encontros cien-
biomédico, que mantém restrições tradicionais tíficos com esses profissionais. Assim, novos cur-
como as “quizilas’ – interdições alimentares do rículos passam a incorporar aspectos culturais
Candomblé para prevenir enfermidades do cor- da alimentação em uma abordagem interdisci-
po e da mente24, a carne de porco pelo judaísmo, plinar com as ciências humanas. Além de ser um
entre outros exemplos. fenômeno complexo, é possível que esse interes-
se se fundamente, teoricamente, no fato de a con-
duta alimentar ser interpretada como um texto.
Dificuldades para a aproximação Ou seja: o acesso aos alimentos, as práticas ali-
entre Alimentação e Nutrição mentares, as crenças e os habitus são textualizá-
veis como inscrições significativas da cultura e
Pensar o campo da Alimentação e Nutrição como podem ser interpretados22, pois o indivíduo ne-
interdisciplinar é esbarrar num conjunto de obs- cessita de símbolos para entender sua realidade
táculos semelhantes aos descritos por vários au- social, seu sustento material, sentir-se num mun-
tores em outras situações em se que se busca a do comum e se reconhecer como sujeito na cons-
inter-relação entre ciências sociais e biomedici- trução de sua própria realidade. Ainda que se
na25-28. Não são obstáculos triviais aqueles que se preservem características individuais num tem-
encontram em tentativas de fazer convergir frag- po e num espaço dado, o hábito alimentar terá
mentos de disciplinas, mudar a mentalidade uni- sempre um sentido. O habitus5 alimentar cor-
direcional dos professores, pesquisadores e pro- responde à adoção de um tipo de prática que
fissionais e provocar um diálogo entre con- tem a ver com costumes estabelecidos tradicio-
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nalmente e que atravessam gerações, com as pos- vou-se uma expressiva redução de produtos da
sibilidades reais de aquisição dos alimentos e com cesta básica no início dos anos 2000, como: arroz
uma sociabilidade construída tanto no âmbito (menos 45,6%), feijão (menos 37,3%) e farinha
familiar e comunitário como compartilhada e de mandioca (menos 36,3%). Também mostra-
atualizada pelas outras dimensões da vida social. ram o aumento do consumo de refrigerantes em
Ao alimentar-se de pratos preparados de forma 492% nesse mesmo período33. Apesar dessas ci-
típica, o indivíduo não só dá conta da própria fras, vale citar as mudanças alimentares para os
sobrevivência, mas se sente seguro em suas tra- trabalhadores, propiciadas por unidades de ali-
dições e reconhece sua identidade social. Desta mentação em empresas, ao oferecerem cardápios
forma, o habitus alimentar é um texto sobre a variados de verduras, legumes e frutas.
cultura que se inscreve nos signos do cotidiano. O habitus alimentar trata de uma necessida-
Um exemplo dessa especificidade se encontra de que sempre se renova e aceita novas propos-
num estudo realizado num bairro da periferia de tas, mas sempre mantém suas bases histórico-
Salvador por Freitas27 sobre crenças a respeito culturais. Os novos gostos e as novas estéticas
da dieta das crianças. Nessa comunidade, o alei- são criados pelas necessidades de adaptação do
tamento materno por mais de três meses denota corpo ao mundo moderno e são sugeridos pela
uma condição animal. No imaginário dessa po- indústria alimentícia que não cessa de lançar pro-
pulação investigada, a ingestão de alimentos crus dutos que tentam facilitar a vida doméstica ou
é responsável por sintomas de mal-estar por não substituí-la.
ser considerada própria para o ser humano. Há Além dos exemplos citados neste texto há, sem
ainda um silêncio sobre determinado alimento dúvida, diferentes receituários regionais de uma
considerado necessário, mas ausente pela falta dietética cultural que produz explicações sobre o
de condições de comprá-lo. Esse silêncio está li- regime de práticas alimentares. Na análise das
gado à necessidade de comer insatisfeita, pois a subjetividades dos objetos do campo da alimen-
palavra é assemelhada à própria materialidade tação e nutrição, é importante adotar a perspecti-
do alimento que não se tem. Já a cocção com va compreensiva que enfatiza o processo inter-
associação de sal e alho representa a harmonia pretativo das próprias populações humanas em
do alimento com o corpo e o espírito. relação à comida. Nesse sentido, a dieta do ponto
A partir do exemplo citado, pode-se concluir de vista biomédico é um texto clínico que repre-
que o habitus alimentar pode ser compreendido senta a ordenação de nutrientes, um receituário
através da linguagem, das atitudes e práticas e se cerrado que precisa ser completado com os valo-
traduz em ritos, valores, mitos, crenças e tabus. res culturais do comer34. Com a inclusão do con-
Toda cultura tem sua comida, sua cozinha e base teúdo sociocultural pode-se compreender o cui-
(staple foods); tem ritos de encontro para comer dado na nutrição na perspectiva da promoção da
em que se dá a sociabilidade; valoriza mais uns saúde, pois o sujeito elege e seleciona o alimento a
produtos alimentares que outros; toda cultura partir de um conjunto de sensações como o gosto
desenvolve crenças a respeito do valor dos ali- e o prazer e as regras de sociabilidade. Desta for-
mentos – inclusive a área de nutrição contribui ma, pode-se entender a nutrição como um modo
para isso, variando sua própria opinião sobre pragmático de atenção à sobrevivência, em que o
determinados produtos a partir das novas in- comer aparece como necessidade e desejo, a de-
formações de pesquisas; e toda cultura tem ta- pender das percepções dos sentidos dados pela
bus alimentares. sociabilidade de um dado grupo social e em uma
Historicamente, no Brasil, a mistura de feijão perspectiva temporal35.
com arroz constitui o alimento básico, uma com-
binação reconhecidamente rica em nutrientes e
cujo consumo atinge ainda grande parte da po- A “hermenêutica filosófica” aplicada
pulação. No entanto, observa-se que nas cama- ao campo da alimentação e nutrição
das populares o feijão com arroz, por restrições
econômicas e pelas propagandas da indústria ali- A compreensão e a interpretação interagem para
mentícia (que anuncia e vende outros produtos uma análise dos significados atribuídos pelos
mais baratos), não tem a mesma frequência de atores a um dado fenômeno. Analisam-se senti-
consumo que antes. O Estudo Nacional de Des- dos conferidos a ações sociais dentro de sua rea-
pesa Familiar (Endef)32 e a Pesquisa de Orçamen- lidade, pela valorização da linguagem que expressa
to Familiar (POF)33 mostraram que entre os 28 a relação entre os significados do mundo real e a
anos da realização destas duas pesquisas obser- subjetividade dos atores. A hermenêutica filosó-
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Freitas MCS et al.

fica18 “aplicada à alimentação e nutrição” consti- truto. O ato interpretante é tenso, com idas e
tuiria um exercício compreensivo que não des- vindas às narrativas dos sujeitos, para esclarecer
prezasse a dietética preconizada pela biomedici- lacunas, uma palavra interdita, um gesto de si-
na, mas fizesse dela uma análise intertextual em lêncio ao falar de si. Um ato cujas respostas serão
que alimentação e comida entrassem como um sempre insuficientes para a compreensão dos sig-
ato não apenas da natureza, mas da cultura, que nificados que o sujeito pode fazer sobre sua ali-
inclui intersubjetividade, representações dos fe- mentação e nutrição. A interpretação da dieta,
nômenos e compreensão de seus significados por exemplo, adquire semelhanças e diferenças
compartilhados pelos que vivem em semelhan- referentes à vida cotidiana de um mesmo grupo
tes contextos. social. Na tentativa de aprofundar uma fala, há
O que é a hermenêutica e como ela pode aju- fendas que geram a possibilidade de novas leitu-
dar os nutricionistas numa análise que ultrapasse ras textuais. A fenda é um lugar de entrada de
o reducionismo biomédico? Segundo Gadamer4, interpretação entre as linhas narradas37.
hermenêutica é a arte e a ciência da compreensão. A presença do nutricionista que quer com-
Compreender é exercer a capacidade de colocar- preender e interpretar oferece um sentido inter-
se a si mesmo no lugar do outro, indagando algo subjetivo incontestável e necessário ao campo da
além do que já foi dito. E um texto é compreendi- alimentação e nutrição, diferente das práticas tra-
do quando se alcança “o horizonte do perguntar”, dicionais. Ao contrário destas, cria-se um saber
este com respostas possíveis4. Interpretar (expla- compartilhado na relação entre profissional e
nar, aclarar) o sentido é realizar a compreensão, paciente (sujeito implicado). Isto significa que a
propriamente. O resultado de uma interpretação introdução de uma orientação dietética intersub-
de um texto demonstra que houve uma compre- jetiva não se exaure no dualismo entre o bom e o
ensão prévia. Por isso, compreender e interpretar mau comportamento alimentar, ultrapassando
estão completamente “imbricados de modo in- as relações de poder do modelo biomédico tra-
dissolúvel”4. E como nem sempre se consegue ex- dicional, conforme denunciou Foucault38. Como
pressar completamente o que se sente, o recurso exemplo, nesta reflexão, citam-se os casos de re-
da hermenêutica vem revelar, iluminar o signifi- tirada do sal de uma dieta para determinado
cado mais profundo da linguagem sobre o que se paciente, em que é preciso ouvir e dialogar com
compreende para interpretar. Envolvem-se o con- ele sobre o que sente, o que pensa e como inter-
texto e a biografia do intérprete, para aproximar- preta essa mudança de gosto alimentar, pois o
se da realidade dos sujeitos. consumo de sal tem a ver com crenças religiosas
A hermenêutica contemporânea combinada e com sabores que foram cuidadosamente do-
aos estudos de Heidegger36 e Gadamer4 entende a mesticados durante uma vida inteira.
compreensão como parte do contexto e a lin- Assim, a propósito da hermenêutica, as prá-
guagem como a comunicação com o mundo e as ticas e as narrativas culturais sobre alimentação
coisas. A hermenêutica exige intersubjetividade, devem considerar o sentido histórico da questão
reflexão e contextualização sobre a ação huma- que se indaga. Esta espécie de circuito parte da
na, suas necessidades, sua história; elos em que linguagem, da compreensão de seu contexto, para
se relacionam o tempo presente, passado e futu- a interpretação elaborada pelo próprio sujeito.
ro de algo que se examina. O nutricionista ou o pesquisador enriquece sua
O sentido é o tema central da comida. Um práxis social, no processo hermenêutico, ao deci-
objeto empírico relacionado ao comer, como uma frar e analisar a comunicação com os sujeitos.
dieta, uma comida de domingo, os tabus alimen- Em meio às muitas vozes que se expressam
tares, o que engorda e o que emagrece, o que na intersubjetividade inscrevem-se também si-
fortalece e o que enfraquece o corpo etc. são sím- lêncios que precisam ser reconhecidos, pois am-
bolos que compõem uma estrutura de significa- pliam os textos para além da fala. Observou-se,
dos. Da pluralidade textual sobre a comida, a por exemplo, o pavor do termo fome por parte
compreensão, em primeiro lugar, e a interpreta- de muitas famílias num bairro popular de Salva-
ção logo a seguir implicam uma imersão no dor27. Este tabu linguístico é justificado para evi-
mundo do ator e no mundo que o transcende, tar com a palavra a presença do sofrimento que
para dar sentido ao comer e à linguagem que essa sensação provoca. Palavras que sugerem
textualiza esse ato. Interpretar é um vínculo para uma externalidade ou um ente fora do eu, ao
compreender e vice- versa. Parte-se, segundo substituírem a noção de fome, fazem relação com
Schutz35, da versão dos entrevistados sobre os outras expressões que mostram o mal-estar cor-
fatos que narram, o que em si institui um cons- poral pela ausência permanente de alimentos. O
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corpo se arrepia ao ouvir falar fome, produz in- poderiam ser explicados, pelo menos em parte,
sônia por medo de ser tomado por esse fenôme- pela falta do diálogo e de disposição de praticar
no que cheira mal, e ameaça a vida. Será, então, uma comunicação intersubjetiva.
na conversação que se esconde o termo preciso A nutrição normativa é, de fato, uma região
na obscuridade da linguagem em que entendi- fechada aos significados atribuídos pelo sujeito
mentos mútuos entre pesquisadores, profissio- que, independentemente e em sua própria auto-
nais e a população se produzirão. nomia, quer explicar sua comida e interpretar as
relações com a nutrição em seu corpo.
Atualmente, existem alguns estudos signifi-
Considerações finais cativos sobre a cultura alimentar do país, assim
como grupos e linhas de pesquisa sobre o assun-
Neste texto, não se quis desprezar ou colocar em to. No entanto, a maioria deles acontece fora do
segundo plano todo o conhecimento técnico-ci- campo da nutrição e pertencem ao campo da
entífico que compõe hegemonicamente o reper- história e da antropologia. A área de nutrição
tório da nutrição. Mas buscou-se ressaltar uma não os conhece e não se apropria deles.
proposta de proximidade entre teorias e práticas A proposta deste texto é mostrar a possibili-
acadêmicas com o mundo concreto e cotidiano dade de aproximar alimentação e nutrição numa
das pessoas a quem a nutrição pretende servir, abordagem interdisciplinar capaz de não separar
considerando que é preciso ir além do que se fez o técnico e atualmente consagrado cientificamen-
até o momento. É preciso ter métodos para com- te do contexto humano, subjetivo, cultural e his-
preender e interpretar as relações que fazem inte- tórico. Uma abordagem hermenêutica poderia
ragir dieta alimentar e cultura, possibilidades so- oferecer suporte à produção de um conhecimen-
cioeconômicas e dietas socialmente possíveis e ri- to mais complexo – não alheio à área e sim in-
cas, e mudanças que ao mesmo tempo preservem corporado a ela – em que se permitisse ver e cri-
o contexto cultural da comensalidade e acrescen- ticar assuntos da técnica, dialogar com estes vis-
tem a ele propostas novas e substanciais. Muitos à-vis temas da tradição alimentar das comuni-
dos fracassos das práticas agenciadas pela clínica dades e da população brasileira.

Colaboradores

MCS Freitas trabalhou na concepção teórica, ela-


boração e redação final do texto; MCS Minayo e
e GAV Fontes participaram na organização e exe-
cução das oficinas e na revisão bibliográfica do
artigo.
38
Freitas MCS et al.

Referências

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