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Ficha de leitura

O conceito de Bronze Atlântico na Península Ibérica

Ana Bettencourt

Síntese

Dada a ausência de contextos de habitat e funerários, as propostas sobre o Bronze


Atlântico centram-se essencialmente na tipologia e propõem visões diacrónicas e
evolucionistas do fenómeno.

De uma maneira geral, a maioria dos autores considera o Bronze Atlântico como um
fenómeno do final da Idade do Bronze e circunscrito ao Norte, Noroeste, Centro-Oeste e
Sudoeste. O conceito de Bronze Atlântico tem funcionado como uma identidade
cronotipológica e cronotecnológica com produções metalúrgicas de produção
preferencialmente atlântica (sem excluir influências mediterrânicas e continentais). Para
além das semelhanças artefactuais, estas regiões estariam ligadas pela posição oceânica,
pela riqueza em jazidas minerais, pela ausência de povoados e de contextos funerários.

Bronze Atlântico como identidade cultural

A partir do conceito histórico-culturalista proposto por Gordon Childe (associações de objetos


tipo como sepulturas, habitats, depósitos e objetos materiais que se repetem e se associam
numa determinada área), a autora refere que a uniformidade baseada num conjunto de
artefactos metálicos com um “certo ar de família” não é indicador suficiente para se propor
uma uniformidade cultural (nem étnica) para o Bronze Atlântico. Pelo contrário, os dados que
indicam a existência de grupos particularizados e com tradições distintas. A proposta de
Bettencourt (à semelhança da de outros autores) é a de uma identidade cronotipológica,
cronotecnológica e de filiação comum na área atlântica.

Bronze Atlântico como uma identidade cronotecnológica e cronotipológica face às


descobertas mais recentes.

A partir de datações calibradas, a autora apresenta vários quadros a partir dos quais faz alguns
comentários:

Muitos dos objetos que caracterizam a Idade do Bronze serem anteriores ao século X a.C.
O período de maior dinamismo e diversidade metalúrgica, situado, por grande parte dos
autores poderá não corresponder à realidade uma vez que período “áureo” parece ter ocorrido
entre os século XIII e o século X a.C., ou se quisermos, no último quartel do II milénio a.C. o
que não parece relacionar-se diretamente com a colonização fenícia, como também tem sido
sugerido.

Introdução de objetos de ferro em contextos dos finais da Idade do Bronze. Os dados indiciam
o seu aparecimento em momentos anteriores ao século X a.C., no Centro-Oeste no primeiro
quartel do I milénio a.C. no Noroeste.

Muito recentemente, objetos de ferro do depósito de Villena e do povoado de Peña Negra, no


Sudeste, foram considerados anteriores à colonização fenícia peninsular (Ruiz-Gálvez Priego,
1995a) que parece ter-se verificado no Sul da Espanha no século IX a.C., e no Algarve e
estuário do Tejo nos finais do século IX, inícios do VIII a.C.

A autora admite que existem muitas dificuldades em verificar arqueologicamente a validade


das periodizações para o Bronze Atlântico peninsular a partir das datações de 14C. Considera
as periodizações demasiado rígidas para as amplitudes cronológicas fornecidas pelas
calibrações. Conclui que não é viável defender uma identidade cronotipológica para o Bronze
Atlântico.

Relação tecnologia/cronologia

Mais uma vez e a partir das datações absolutas, a autora refere que embora seja usual dizer
que os finais da Idade do Bronze Atlântico se caracterizam por ligas ternárias, os dados
indicam que elas seriam essencialmente binárias para o Sudoeste, o Noroeste e o Centro-Oeste
peninsulares até ao século X/IX a. C. A autora questiona-nos se deveremos considerar a
combinação ternária como um indicador de diacronia e evolução tecnológica ou como uma
particularidade regional. Usa o exemplo do Noroeste (com combinações binárias e ternárias
para as mesmas datações) para questionar ainda se a utilização de duas ou três ligas de metais
responderiam apenas a opções funcionais aplicadas a objetos específicos.

Na Grã-Bretanha e na fachada atlântica da França as combinações dos bronzes são


fundamentalmente ternárias já antes do Bronze Final (anteriores a 900 a.C.) enquanto no
Centro-Oeste e Sudoeste da PI as realidades são distintas, o que afasta estas duas regiões
atlânticas de ateliers atlânticos sincrónicos.
Filiação geográfica

A investigação tem defendido que a metalurgia peninsular se filiava em protótipos atlânticos


oriundos da Grã-Bretanha, Irlanda e Bretanha Francesa e que a inclusão da PI se ligaria a uma
intensa rede socioeconómica de relações e interações suprarregionais ou a fatores
migracionistas. Este pressuposto – considera a autora – atualmente não é nada consensual uma
vez que se tem acentuado o peso das importações e filiações mediterrânicas e da Europa
central e nórdica nas produções peninsulares. É, portanto, necessário redimensionar a
dimensão das afinidades entre as diferentes regiões e, simultaneamente, rever o peso do
contributo das produções endógenas na Idade do Bronze local.

A autora defende que a situação geográfica e a riqueza mineira da PI poderão ter feito desta
região um ponto de encontro de variadíssimas influências e contribuído para uma grande
vitalidade e originalidade dos ateliers ibéricos desde – pelo menos – a 2ª metade do 2º milénio
a.C.

A importância dos contextos regionais e artefactuais face à lógica dos vários modelos
interpretativos

A autora termina com algumas conclusões sobre a generalização do conceito de Bronze


Atlântico:

É usual encontrarmos objetos metálicos em contextos distintos: aparecem em povoados


diversificados, em santuários (?), em grutas, em túmulos, em depósitos (fluviais e terrestres),
nas estelas do Sudoeste e Centro-Oeste ou nas estátuas-menires do Noroeste e, como tal, esta
variedade precisa de uma polissemia de interpretações e não a criação de significados
uniformizantes.

A pretensa unidade sócio-simbólica da metalurgia deve ser completada com uma investigação
regional e microrregional que parta de trabalhos de escavação e leituras renovadas sobre os
materiais já existentes.

Mapas de distribuição de objetos são – para a autora – mapas de recuperação de objetos que
revelam contextos opacos, incomparáveis e desadequados para se fazerem leituras
generalizantes de ordem social, simbólica ou ritual.
Historiografia

O artigo discorre sobre o historial (e evolução) da utilização do conceito de Bronze Atlântico


na PI a partir da caracterização das perspetivas teóricas e dos atuais dados.

O Conceito de Bronze Atlântico foi criado por Santa Ollala (1938-1941) com base em
critérios tipológicos associados à produção metalúrgica e às filiações extra-peninsulares. Este
autor divide a Península em dois grandes períodos:

O Bronze Mediterrânico de influências orientais (primeiro momento)

Cultura material: machados de talão com dois anéis; machados de aletas; punhais e espadas
de nervura central.

Bronze Atlântico, de influências nórdicas (segundo momento)

Cultura material: machados de alvado; foices; pontas de lança; navalhas de barbear; espadas
e pinhais em língua de carpa.

Numa perspetiva evolucionista linear, o Bronze Atlântico corresponderia ao Bronze III (1200
a 900 a.C.) e ao Bronze IV (900 a 650 a.C.) da PI.

As mudanças entre o Bronze Mediterrânico e o Bronze Atlântico foram explicadas (de acordo
com uma visão difusionista) pelas vagas migratórias oriundas da Europa central.

Em 1951 MacWhite restringe o Bronze Atlântico à fachada atlântica da PI incluindo no


conceito apenas o Noroeste e o Sudoeste (toda a zona a Sul do Douro). MacWhite considera
a periodização de Santa Ollala meramente tipológica e sugere a identificação de vários grupos
culturais ou étnicos que devem enquadrar de forma mais concreta e precisa os diferentes
achados. Inscreve assim o Bronze Atlântico numa perspetiva histórico-culturalista. MacWhite
introduz uma fase anterior a esta periodização de Ollala identificando um Bronze II (Proto-
Atlântico) que coloca entre 1700 e 1200 a.C. Encara o fenómeno como estando ligado à via
marítima e rejeita a teoria das migrações como fator de mudança.

Savory (1951, 1974) adota a mesma área de MacWhite para o Bronze Atlântico (valorizando
também a diversidade cultural da PI) e apoia a sua perspetiva na diversidade metalúrgica mas
também na cerâmica, povoamento e mundo funerário. Inscreve o BA numa cronologia situada
entre o séc. VII e o séc III/II a. C. Admite também a existência de um grupo Sudoeste com
influências tanto mediterrânicas como atlânticas. Não exclui os fluxos migratórios (em
pequena escala) e em 1968 considera já o conceito pouco satisfatório face à realidade
arqueológica peninsular.

Almagro-Gorbea (1977 e 1986) defende também “um círculo cultural de origem atlântica”
com cinco áreas distintas e fortes relações metalúrgicas com a fachada costeira atlântica:

 Noroeste com penetrações na Meseta Norte;


 Entre Douro e Tejo com influências na Meseta e Estremadura espanhola;
 Huelva e baixo Guadalquivir;
 Astúrias-Cantábria;
 Sudoeste.

A periodização proposta por Almargo-Gorbea é também evolucionista e linear caracterizados


de acordo com objetos-tipo:

 Bronze Final I (1250-1150 a.C.): espadas de tipo “Ballintoper”, machados


de talão com um anel e pontas de lança;
 Bronze Final II (1100-900 a.C.) fase de plena de incorporação da Península no Bronze
Atlântico: espadas pistiliformes, capacetes, foices de alvado, punhais de tipo “Porto
de Mós”, machados de talão com dois anéis, pontas de lança e a ourivesaria de tipo
“Berzocana”;
 Bronze Final III (900-850 a.C.): caldeiros, fúrculas, espetos, machados de alvado e
cinzéis;
 Bronze Final IV (800-750/700 a.C.): espada de tipo “Vénat” e perduraria até à
introdução do ferro na Andaluzia
 Bronze Final V (700 a.C.) que se restringe ao Noroeste, com uma metalurgia residual:
machados de talão com duplo anel, punhais de antenas e espada de antenas em ferro.

As várias sínteses dos anos 80

P. Kalb (1980a e 1980b) afasta-se dos critérios puramente metalúrgicos e valoriza a


distribuição espacial dos objetos metálicos associando-os às cerâmicas e a jazidas mineiras
de Portugal. Cria três áreas de povoamento economicamente distintas para o Bronze Final:

 Norte e Beiras associadas às jazidas de estanho e com a presença frequente de


machados de talão;
 Centro (Estremadura) sem grandes jazidas metalíferas mas com grande quantidade e
diversidade de objetos em ouro e bronze ligadas às cerâmicas de “tipo Alpiarça”.
Frequência de machados de alvado.
 Sul que se relaciona com o Bronze do Sudoeste criado por Schubart e se associa
diretamente às minas de cobre.

Esta autora chama ainda a atenção para o facto de muitos achados metalúrgicos serem
provenientes de povoados.

Rui-Gálvez Priego (1984) inclui toda a fachada ocidental e Norte da PI num “mundo
atlântico” por não concordar com as expressões “Bronze Atlântico” ou “cultura atlântica”.
Explica assim a uniformidade da metalurgia/ourivesaria dentro das várias regiões que o
conceito abarca. Defende pela primeira vez a origem de contactos atlânticos no Bronze Inicial
com início em 1900/1800 a.C. mas só elabora uma periodização para o Bronze Final
subdividindo-os em três fases:

Bronze Final I (1200-1000 a.C.): machados de rebordo e de talão, sem ou com anéis,

as pontas de lança pequenas de folha arredondada e de tipo “Penha/Rosnoen” e os braceletes


lisos, abertos, de secção circular;

Bronze Final II (1000-900 a.C.): espadas pistiliformes e de tipo “Ballintoper”, dos punhais de
lingueta, das pontas de lança em forma de chama, dos machados de apêndices e de talão, das
navalhas de barbear e dos braceletes lisos, abertos, de secção romboidal ou quadrangular;

Bronze Final IIIa (900-800 a.C.): “horizonte da ria de Huelva”, espadas em língua de carpa e
por todo o conjunto de objetos que compõem o depósito. As ligas seriam binárias.

Bronze Final IIIb (800-700 a.C.): espadas de tipo “Vénat”, dos machados de talão unifaciais,
dos machados de alvado, dos arreios de cavalos, dos espetos articulados, dos caldeiros, das
foices de tipo “Rocanes” e “Castropol”, das fíbulas, das navalhas de barbear, dos alfinetes de
cabeça, dos braceletes decorados com incisões.

A mudança cultural é explicada através do aumento do comércio extra-peninsular, quer com


o atlântico quer com o mediterrânio.

Coffyn (1985) caracteriza o Bronze Atlântico como uma identidade geográfica personalizada
em regiões do extremo ocidental da Europa, com vocação marítima e riqueza em jazidas
minerais, nas quais integra o Noroeste, o Centro-Oeste e o Sudoeste peninsular. Coffyn sugere
que as relações comerciais entre o Atlântico Norte e Ocidental permitiram contactos
tecnológicos e que os grupos cerâmicos, estratégias de povoamento e mundo funerário devem
ser encaradas como complementares e subsidiários das produções metalúrgicas. Coffyn
sugere ainda que o conceito se deve alargar a toda a Idade do Bronze uma vez que existem
evidências de contactos desde 2000 a 1800 a.C. A sua periodização para a PI corresponde às
seguintes fases:

 Bronze Antigo (2000 a 1800 a.C.) com objetos de cobre e de ouro; Bronze Médio, mal
individualizado, com uma produção arcaizante e estagnada;
 Bronze Final I (1200-1050 a.C.): espadas derivadas das do tipo “Rosnoen”, pontas de
lança de alvado longo, machados de talão com ou sem anéis e machados de apêndice
 Bronze Final II (1050-900 a.C.): espadas pistiliformes;
 Bronze Final III (900-700 a.C.) período que caracteriza como um momento de
“europeização” das relações comerciais e culturais: espadas em língua de carpa (raras),
pontas de lança losângicas, as foliáceas e as de folha moldurada, os capacetes de aresta,
os cinzeis de alvado, os machados de talão unifaciais e bifaciais, os machados de
alvado, as foices, as fúrculas, os objetos de enfeite e os punhais de tipo “Porto de Mós”.

Coffyn cria o grupo “Lusitano”, com início na segunda metade do século IX a.C. e apogeu
no século VIII a.C. Localiza-o no Centro-Oeste de Portugal e considera-o um grupo
simultaneamente recetor e produtor de originalidades, assemelhando-o a outros “ateliers”
atlânticos. A zona seria privilegiada geograficamente pela facilidade de ligação com os
mundos atlântico, mediterrânico e, indiretamente, com o continental.

Ruiz-Gálvez Priego (1987) considera agora o Bronze Atlântico como um fenómeno de


introdução recente, só aceitável a partir do Bronze Final. A exceção vai para o Noroeste onde
a metalurgia de carácter atlântico parece verificar-se antes, embora de forma marginal. Discute
e desmonta com mais acuidade do que em 1984, a identidade cultural deste conceito. A autora
é contra a existência de uma “cultura atlântica”, preferindo falar de “culturas ligados ao
comércio atlântico” com uma metalurgia comum.

João Gomes,

11 de novembro de 2018

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