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Anais do V Congresso da ANPTECRE

“Religião, Direitos Humanos e Laicidade”


ISSN:2175-9685

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Creative Commons

CULTURAS E ATEÍSMOS CONTEMPORÂNEOS

Clóvis Ecco
Doutor em Ciências da Religião - PUC Goiás
clóvisecco@uol.com.br
ST 08 – ESPIRITUALIDADE E RELIGIÕES NA CONTEMPORANEIDADE: DIÁLOGOS E INTERLOCUÇÕES

Resumo: A comunicação tem como objetivo apresentar um projeto de pesquisa em andamento,


sobre as bases históricas e culturais do ateísmo e suas relações com as concepções de
sagrado, com as visões de mundo e com a hierarquização social no contexto da Sociedade
Ocidental Moderna. Trabalha-se com a hipótese que a cultura e os avanços tecnológicos e
científicos contribuíram de forma significativa com o secularismo moderno, nomeadamente,
definindo-se como ateísmo, numa perspectiva de autores que propõem uma espiritualidade sem
deus, entretanto, preservando os princípios éticos do judaísmo e do cristianismo. No entanto,
deduz-se que as teodiceias tradicionais ainda continuam como base das crenças das pessoas.
Verificar-se-á tal assertiva através de pesquisa de campo por meio de entrevistas
semiestruturadas, que está sendo realizado com jovens acadêmicos de cinco cursos da PUC
Goiás, em 2015. Espera-se como resultado parcial da investigação, um número significativo de
Acadêmicos que afirmam crer em Deus e pautar suas vidas por valores e ensinamentos
religiosos. Entende-se que há ainda certa pertinência das teodiceias enquanto respostas às
necessidades cotidianas de tal parcela da população. A pesquisa encontra-se ainda em fase de
construção do embasamento teórico e formulação do questionário.

Palavras Chave: Ateísmo, Religião ; Cultura.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST0804


1. INTRODUÇÃO

O trabalho tem como objetivo investigar as bases históricas e culturais do


ateísmo e suas relações com as concepções de sagrado, com as visões de mundo e
com a hierarquização social no contexto da sociedade ocidental moderna.
Trata-se de analisar o contexto no qual se dá um forte questionamento às
hierarquias eclesiais, até então com significativo poder referente às outras dimensões
da sociedade. Com isso entende-se que o espírito moderno/racional se define antes de
tudo, pela autonomia da “verdade”. Desta forma, trabalharemos com a hipótese que a
cultura e os avanços tecnológicos e científicos contribuíram de forma significativa com o
secularismo moderno, nomeadamente, definindo-se como ateísmo ou humanismo
moderno.
2. ATEÍSMOS CONTEMPORÂNEOS
A pesquisa terá como parâmetro de investigação a análise de autores como:
Michel Onfray, André Comte-Sponville e Max Weber. Autores como Michel Onfray e
Comte Sponville são considerados hoje, pela crítica, os mais exímios representantes do
ateísmo Francês Contemporâneo, onde a tradição de negação irreligiosa da noção
monoteísta de Deus iniciada no século XVIII continua até nossos dias.
As propostas dos referidos autores têm diferenças importantes. Onfray (2005)
imputa à religião a maioria dos males enfrentados pela humanidade, recusando-se a
fazer qualquer concessão à tradição monoteísta. Já Comte-Sponville (2013) vê
aspectos positivos na religião no tocante à manutenção da unidade social – parte da
perspectiva da teoria da coesão de Durkheim sobre a comunidade/igreja, e propõe uma
espiritualidade mística ateia. Para Max Weber (2004) – a partir da racionalização da
sociedade moderna, a religião assume a função de uma salvação neste mundo. Por
outro lado, a religião também precisa responder à pergunta fundamental sobre o
sofrimento do inocente. Para o autor (WEBER, 2004), já que Deus (judaico/cristã) é
todo poderoso e benevolente, o crente coloca-se a pergunta: como esse Deus permitiria
o sofrimento do Justo? As religiões justificam o sofrimento do inocente através das
grandes teodiceias (predestinação, dualismo, reencarnação, messianismo) ou mais
apropriadamente, as teologias antropológicas. A partir do pensamento do autor, nos

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perguntamos: as teodiceias ainda dão conta de justificar aos grandes desafios da
contemporaneidade? É possível falar da importância do mundo além-material para a
emancipação humana, nos dias de hoje? Como a razão instrumental pode explicar
todos os dramas da vida (doença, sofrimento, morte... )?. Ao abolir qualquer influência
cultural e ideológica das três grandes religiões monoteístas, a sociedade (indivíduo)
teria condições de produzir uma nova ordem ética, onde o corpo tranar-se-ia um espaço
de afirmação, não de negação e pecado?
2. ATEÍSMO COMO NEGAÇÃO DE DEUS

Para o Filósofo Batista Mondin (1997), a palavra ateísmo deriva do grego


atheos e indica, objetivamente, a negação de Deus. Contudo, é somente a partir do
século XIX que o ateísmo se manifesta no Ocidente de forma mais contundente. Ou
seja, passam a ser denominados ateus não só aqueles que põem Deus fora das suas
reflexões filosóficas, mas também todos os que negam abertamente a sua existência.
Ainda para o referido autor, o ateísmo é típico da época moderna, e precisamente
daquele período histórico em que o homem moderno, através de um longo período de
secularização, depois de ter excluído deus de muitas atividades e aspectos da vida
humana, chega afinal à conclusão que Deus não existe, ou melhor, Deus é uma
revelação da natureza humana.
Para Zilles (1991), Feuerbach (1804-1872), na sua principal obra sobre o
ateísmo, a essência do cristianismo, faz uma crítica radical à teologia. Para Feuerbach,
segundo Zilles, não é Deus que se revela, mas o homem que realiza a revelação de si
mesmo. “O conhecimento que o homem tem de Deus é apenas o autoconhecimento do
homem, de sua própria essência” (p. 99).
Ainda neste contexto, afirma Cruz (2010), que o cristianismo perde a posição de
religião absoluta, pois colocam em crise todas as concepções tradicionais relativas à
vida, a morte, a salvação da alma (ressurreição), que tudo estava relacionado a Deus.
Feuerbach reduziu a teologia a uma antropologia ao deslocar a tese hegeliana,
admitindo a unidade entre o finito e o infinito, porém, defende que tal unidade, em vez
de se realizar em Deus ou no absoluto, realiza-se no próprio homem. Ou seja, ao
contrário de Hegel, “põe o infinito no homem e não no absoluto” (ZILLES, 1991, p. 104).

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Para o positivista Augusto Comte (1798-1857), a ciência é tomada como critério
para tornar cada vez mais plausível a negação da existência divina. Comte em 1842 -
publicou seu vasto curso de filosofia positiva, que teve enorme influência em nível
econômico, político e cultural no Ocidente.
Comte parte do princípio que o método das ciências naturais irá propiciar o
conhecimento da verdade. A teoria comtista acredita que a procedência do universo se
deve à matéria por meio de uma evolução, tendo a pessoa humana como essência do
início da verdadeira história, que segundo ele passa pela lei dos três estágios – o
teológico, estágio puramente provisório; metafísico, um estágio intermediário, mas
ainda muito voltado ao metafísico e por último o estágio positivo, momento no qual se
procura uma explicação objetiva das coisas por meio de leis naturais, que são por si
mesmas suficientes para explicar todos os fenômenos (COMTE, 1989, p. 144-165).

3. ATEÍSMO E A NEGAÇÃO DA RELIGIÃO


Comte ao tornar absoluto o método científico das ciências naturais e aplicar à
humanidade, desemboca, em um humanismo ateu, movimentando o culto antes
prestado a Deus, somente em direção à humanidade (CRUZ, 2010).
Agora, sem dúvida, um dos mitos contemporâneos mais debatidos, segundo
Zilles (1991), está ligado ao nome de Karl Marx (1818-1883). O ateísmo alarga seus
passos, não se limitando apenas a negar a Deus, como haviam feito Feuerbach e
Comte. Objetiva-se excluir de vez da vida da pessoa a influência religiosa. A religião
passa a ser tomada como um instrumento de opressão em poder das classes
dominantes. Porém, “a essência da alienação do homem encontra-se no contexto
econômico, no tipo de relações de produção geradas no mundo capitalista” (ZILLES,
1991, p. 126). Portanto, há duas classes sociais: os proprietários dos meios de
produção (capitalistas) e os não proprietários dos meios de produção (proletariados).
Destruindo essa estrutura econômica também se destrói a religião que é seu produto.
A religião é uma consciência errônea do mundo. Enquanto
protesto contra as situações humanas é protesto ineficiente
porque desvia a atenção deste mundo e de sua transformação
para o outro, para o além. Desta maneira a religião age como
calmante: ‘É ópio do povo’. A religião hipnotiza os homens com

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falsa superação da miséria e assim destrói sua força de revolta
(ZILLES, 1991, p. 127).
Portanto, o conceito de Marx sobre a religião se constrói sobre o conceito de
alienação. Uma vez superada a religião, a pessoa se vê como tal e pode se servir de
seu próprio potencial humano.
Vê-se que a partir de um rápido enfoque tanto materialista quanto filosófico sobre
a religião, o ateísmo filosófico no Ocidente ganha um novo destaque na história do
pensamento filosófico e cultural. De um lado, argumenta-se contra a crença em Deus
por estar para além da possiblidade de interpretação empírica – irracional. Por outro
lado, argumenta-se contra a religião por ser ela fonte de intolerância e um tradicional
apoio aos poderes autoritários ao longo da história humana.
Para Portugal e Costa (2010), Onfray entende que a religião é um atentado
contra a inteligência da pessoa. Ou seja, é um sinal de imaturidade psicológica e uma
falta de coragem das pessoas enfrentarem a realidade. Ao falar do mundo para além do
material, a religião se mostra um obstáculo para a emancipação humana.

Por toda parte, constatei o quando os homens fabulam para evitar


encarar a realidade de frente. A criação de mundos ideais não
seria tão grave se por ela não se pagasse um preço alto: o
esquecimento do real e, portanto, a negligência culpável do único
mundo que há. Quando a crença briga com a imanência, então
ele, o ateísmo, reconcilia com a terra, o outro nome da vida (Apud,
Portugal; Costa, 2010, p. 129).

Para Portugal e Costa (2010), Onfray assume o estilo de Nietzsche ao analisar o


cristianismo, porém, rejeita em sua tese a morte de Deus. Assim afirmam: “uma ficção
não morre” (p. 130). Sua tese vai além do deísmo iluminista ou das concepções
alternativas de Deus. Ele considera que só é possível pensar num ateísmo denominado
pós-moderno e secularizado, desvinculando-o de qualquer tradição religiosa,
especificamente monoteísta. Ou seja, o ateísmo seria a esperança do futuro, a vitória
da filosofia racional contra a religião fabuladora (p. 130).
Na perspectiva de Portugal e Costa (2010), Onfray afirma que vivemos numa era
niilista, entre a cultura judaico-cristã ainda muito presente e a cultura pós-cristã, que se
anuncia modestamente, mas ainda não presente. O caminho para a esperança do
futuro encontra-se na relativização das três grandes religiões monoteístas. Destacam os

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autores que, para Onfray, o indivíduo obteria condições de produzir uma nova ordem
ética, pautada numa moral pós-cristã, onde o corpo humano tornar-se-ia um
instrumento de afirmação e não de pecado, e onde a política poderia ser a construção
da liberdade e não a justificação da tirania.
As religiões monoteístas durante a história passada e recente, segundo Onfray,
na análise de Portugal e Costa (2010) propagam o ódio a tudo aquilo que expresse vida
e prazer. A justificativa estaria numa doutrina que considera a felicidade um estado que
deve apenas ser adquirido no além-mundo, cabendo, portanto, negar a todo o momento
o corpo, as mulheres, a inteligência - possíveis inferências do pecado (p. 131).
Já para Comte-Sponville, na análise de Portugal e Costa (2010), se aceita o
cristianismo, mas não como uma religião, e sim como uma tradição cultural. Comte-
Sponville propõe um ateísmo bem diferente do de Onfray, o que permite uma
comparação durante a investigação desta pesquisa bem instigante e provocadora na
perspectiva da contemporaneidade.
Comte-Sponville se baseia no conceito apresentado por Émile Durkheim nas
formas elementares da vida religiosa (1989). “Religião é, então, definida como um
conjunto de crenças e ritos que fazem referência a uma suposta realidade sagrada
transcendente e que dá unidade a um grupo social, que se torna, assim, uma
comunidade/Igreja” (DURKHEIM, 1989, p. 79). Seguindo a perspectiva de análise,
Comte-Sponville (2013), entende que não há por que aceitar a noção de sagrado
transcendente como realidade substantiva, pois, a natureza imanente é suficiente. No
entanto, é preciso preservar o espírito de fidelidade a uma comunidade social e a
comunhão que é indispensável a qualquer comunidade (p. 133).
A religião foi historicamente capaz de tecer unidade social em torno de valores e
regras morais e culturais, que permitiram aos seres humanos se distinguirem das
demais espécies. Para Comte-Sponville, segundo Portugal e Costa (2010, p. 134), “é
possível a comunhão social e a fidelidade a valores e normas morais e culturais sem
referência a ditas realidades transcendentes, particularmente, sem referência a um
Deus pessoal, tal como postulado pelo monoteísmo”.
Ainda para o autor referido, o monoteísmo tem enorme importância em nossa
civilização, já que liga as pessoas entre si, conseguindo, por efeito, trazer a todos a

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sensação de estarem ao mesmo tempo ligados a Deus. Mas, segundo ele, através da
ciência sabemos que isso não passa de um fenômeno humano, explicados pelas
ciências sociais. Acrescenta ainda Comte-Sponville, o que liga os crentes entre si não é
a verdade em um Deus, pois sua existência ainda se mantém duvidosa, mas sim o fato
de todos serem capazes de comungar da mesma fé: “não há sociedade sem ligação;
não há sociedade sem comunhão. Isso não prova que toda comunhão, nem, portanto,
toda sociedade necessita da crença em um Deus pessoal e criador, nem mesmo de
forças transcendentais e sobrenaturais” (Apud, PORTUGAL E COSTA, 2010, p. 135).
Por outro lado, argumenta Comte-Sponville, há razões positivas para se descrer
no Deus. A primeira segue a perspectiva weberiana – o excesso de mal no mundo e
especialmente o sofrimento do inocente. Não há razão para entender como um Deus
que é bom, poderoso e sábio permitiria o mal. A segunda razão está na mediocridade
do ser humano, algo também facilmente compreensível pelo naturalismo darwinista. Se
formos à imagem e semelhança de Deus, então, os incontáveis defeitos humanos são
boa razão para pensar que Deus perfeito não pode existir. Por outro lado, seria muito
bom que ele existisse, assim satisfariam os nossos desejos, no entanto, isso reafirmaria
ainda mais a nossa projeção num transcendente, numa perspectiva freudiana (p. 136).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entretanto, segundo os autores citados, o fato de não acreditar num
transcendente não abdicaria o ser humano de se viver uma espiritualidade. A
espiritualidade é uma experiência e não uma teoria na qual se crê. Ao contrário daquilo
que se previa sobre o fim da religião nas sociedades secularizadas, vê-se um retorno
da religião à esfera pública e um reforço da crença religiosa em muitas sociedades e
meios culturais irreversivelmente secularizados.
A partir dessas afirmações, fica-nos a pergunta: as teodiceias ainda dão conta
de justificar aos grandes desafios da contemporaneidade? A pertinência das teorias
propostas pelos autores acima será verificada a partir de dados empíricos obtidos junto
aos acadêmicos da PUC Goiás – no ano de 2015/2.

Referenciais

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ADC editora, 2009.
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MONDIM, Batista. Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica. Tradução de José
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