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Carlo Broschi (Stefano Dionisi) é um jovem de invulgar talento vocal que, na tradição barroca italiana, é

castrado para manter o timbre espectro tonal da pré-puberdade em idade adulta. Crescendo como
Farinelli, Carlo, juntamente com o irmão e compositor Riccardo (Enrico Lo Verso), cumprem o sonho de
seu falecido pai, de não se separarem. Só que a partir do momento em que o grande compositor George
Friederich Haendel (Jeroen Krabbé) lhes faz ver que a voz de Carlo merece muito mais que a música
medíocre de Riccardo, que os dois irmãos passam a ver no seu laço mais uma prisão que uma relação
salutar.
ANÁLISE:
Em 1994 Gérard Corbiau conduziu uma superprodução europeia sobre a vida do célebre castrato do
século XVIII, Farinelli, um popular cantor castrado, verdadeiro fenómeno em termos de público na sua
época. Com dinheiros franceses, belgas, italianos e alemães, o filme foi filmado numa enorme variedade
de locais, procurando o rigor histórico e grandiosidade de cenários. Não faltam mesmo sequências
filmadas no famoso teatro de Bayreuth (por sinal ainda não construído à época de Farinelli).
Com história e argumento de Gérard e Andrée Corbiau, “Farinelli” é essencialmente uma biografia de
Carlo Broschi (1705-1782), a qual, embora correcta nos momentos chave da sua carreira, é puramente
ficcional no que diz respeito aos aspectos pessoais, e relação com o irmão Riccardo. O filme é
maioritariamente falado em francês (a língua franca na altura), ou em italiano (principalmente nas cenas
passadas em Itália, ou entre os irmãos Broschi).

Sendo uma prática que teve o seu declínio no século XIX, Carlo Broschi foi um dos mais
famosos castrati do século anterior. Estes eram cantores que eram castrados antes de atingir a puberdade,
de modo a conservar o timbre de voz, e ainda dominar uma enorme gama de notas (tanto habitualmente
cantadas por mulheres como por homens). Para além da preservação da laringe pré-adulta, alterações a
nível ósseo, devido à falta de produção de testosterona resultavam ainda num invulgar crescimento, com
reflexos na caixa torácica e capacidade pulmonar, dando-lhes um notável fôlego e poder vocal.
A história de Corbiau gira em torno do pacto entre os irmãos Carlo (Stefano Dionisi) e Riccardo Broschi
(Enrico Lo Verso), que prometeram ao seu pai ficar sempre juntos, e trabalhar sempre em conjunto. Carlo
(o futuro Farinelli) canta a música de Riccardo, e este compõe unicamente para o irmão. A relação é tão
próxima que Corbiau brinca com a ambiguidade sexual dos dois irmãos, e com o modo com ambos
partilham conquistas amorosas, sendo Carlo o motivo da sedução, e Riccardo aquele que finaliza o acto
físico.

Mas cedo se percebe que a voz de Carlo merece muito mais que a música medíocre de Riccardo. Tal
nota-se nos momentos iniciais, na apreciação de Nicola Porpora (Omero Antonutti), e principalmente na
atitude do grande George Friederich Haendel (Jeroen Krabbé) que cedo tenta separar os irmãos, num
confronto que dura quase todo o filme.

Haendel surge aqui quase como um vilão, cujas palavras provocam a dissenção entre os irmãos Broschi.
São conhecidas as suas guerras com Porpora na corte inglesa, já que o seu teatro tinha uma audiência
amiúde abaixo daquela do compositor italiano. O facto de Farinelli ter cantado para Porpora em Londres
reforça a verdade histórica deste aspecto de rivalidade violenta.

É por entre essas fontes de conflito que se define a personalidade de Farinelli. Por um lado está a
castração sexual que o mostra como apenas metade de algo, para sempre dependente de um irmão de
quem se quer livrar, mas de quem precisa de modo quase doentio, sem saber que foi o causador da sua
castração física. Por outro lado está a dependência musical, que o castra, por não poder cantar música
superior.

O tema da castração (sexual, dos sentidos, emocional, da vocação) é transversal a quase todos os
personagens. Riccardo sente que nunca se desenvolveu como autor por estar preso à voz do irmão.
Farinelli sente que nunca atingiu o pico como cantor, por estar preso à música do irmão. E o próprio
Haendel faz o voto de nunca mais compor para voz, como vingança pelo modo como se sente roubado
(castrado?) por Farinelli. Por isso Farinelli encontra compreensão no inválido Benedict (Renaud du
Peloux de Saint Romain), e vive fugazmente em relações com mulheres que não pode satisfazer,
amargurado por, para sempre se sentir apenas como metade de algo. Nas suas palavras: por tanto imitar os
deuses, arroga-se de querer ser homem.

O filme de Corbiau destaca-se ainda pela riqueza dos cenários e pelo detalhe colocado na recriação de
uma época, ela própria (o barroco, momento triunfante do Antigo Regime), feita de excessos e opulência.

De particular interesse é a banda sonora, pois afinal é de música que trata o filme. Composta por peças de
Broschi, Haendel, Porpora, Hasse e Pergolesi, estas retratam a época barroca. Mas é na voz que reside o
interesse. Para se criar o efeito do que seria a voz de um castrado, as peças foram cantadas em separado
pela soprano Ewa Malas-Godlewska e pelo contratenor Derek Lee Ragin, de cujas actuações foram
extraídas as notas necessárias para um resultado compósito, manipulado digitalmente. A perfeição do
resultado final é um dos pontos mais altos do filme, que vale como um retrato de uma época. Vale ainda
pelas questões levantadas do que seria a vida paradoxal de alguém como Farinelli, uma estrela do seu
tempo, visto como um deus, mas ao mesmo tempo limitado a tantos níveis.

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