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O TEMPO DO CONCEITO Paulo Eduardo Arantes — L’ORDRE DU TEMPS — Essai sur le probléme du temps chez Hegel, tese de doutoramento. “Quem uma vez adoeceu de hegelismo [...] nunca mais fica comple- tamente curado” assim Nietszche diagnostica em efigie (na figura de David Strauss, 1.4 Extemporanea) o intelectual de seu tempo: mas bem poderiamos reconhecer nas linhas mestras do nosso (a época das ciéncias humanas e do discurso estrutural) esse mesmo convalescente renitente. Em todo caso, € com toda certeza que o estado dessas ciéncias e da filosofia hoje parece recomendar cada vez mais vivamente 0 empenho na pesquisa e na reflexio sobre o le- gado hegeliano, quando mais nao fosse, como tentativa de diagnosticar o mal pela raiz. E bastaria isso, sem divida, para que um novo estudo sobre Hegel, ainda mais quando vem recomendado pelas evidentes qualidades inte- lectuais do seu autor, fosse sempre bem-vindo. Mas qual o interesse especi- fico de uma monografia sobre o tempo em Hegel? De antemio, € suficiente referir trés ordens de questées em que esse interesse se destaca da maneira mais imediata e que, por si sés, dio a medida da complexidade do proble- ma. Em primeiro lugar, ainda no plano externo, a questéo de interpretagao de Hegel pela posteridade tardia, que se apressa em relegar (sem deixar, de algum modo, de re-legar) o chamado “dogmatismo hegeliano” para o cam- po da metafisica abstrata, em nome de um “retorno ao Concreto” sob ins- piragéo de Feuerbach — e isto justamente por encontrar em Hegel uma de- finigfo linear e quantitativa do tempo, que redundaria na supressio da “His- téria”. Mas, mesmo se as anilises da Ciéncia da Légica (e mesmo da Enci- clopédia) situam o tempo como uma instancia da categoria da quantidade, justificando, por um lado, essa leitura que vé no tempo hegeliano um todo continuo e homogéneo (a exemplo do tempo aristotélico ou do da Estética transcendental), resta saber 0 que, por outro lado, permite a Hegel dar ao tempo um carter especulativo, reconhecendo nele a negatividade que é pré- pria do Conceito. Seria tao simples descartar-se de Hegel fazendo dele mais um cultor metafisico da a-historicidade? Isso conduz & segunda questdo, ja interna, de saber como Hegel elaborou a tradig&o, particularmente do idea- lismo pés-kantiano, para poder fazer do tempo, até ent&o o termo que apaga a contradigéo (haja vista a formulago do principio de contradigio — “uma coisa néo pode ser e nao ser ao mesmo tempo” — que contrabandeia, nessa alusio ao tempo, a indicagZo de uma reconciliagdo possivel na sucessdo), 0 — 138 — proprio lugar onde explode a contradigfio: o instante-limite que traz sua ne- gagdo em si mesmo, e jd a negagio dessa negagiio. Essa originalidade de He- gel, que consiste, afinal, em ver no tempo a estrutura do Préprio conceito, traz a possibilidade da leitura oposta 4 mencionada acima: longe de se con- fundir com a tradigio metafisica, seria Hegel entio o primeiro a dar ao tem- um estatuto propriamente filos6fico, & histéria uma cidadania especulativa? & neste ponto que se insere a terceira ordem de questées, j4 no plano sistemati- co: 0 itinerario da dialética, que consiste no trabalho do Espirito em fazer o em-si aceder ao para-si, nao passa justamente pelo tempo, nao h& um circulo especulativo a ser percorrido para que o resultado, enfim, se torne idéntico ao comego? Mas este seria, ent&o, o paradoxo do sistema hegeliano: como o fi- lésofo que introduz a histéria em filosofia é também 0 filésofo do “fim da histéria”? Ou, melhor: 0 que deve ser 0 tempo para que, colocado no cora- sao da dialética, seja ao mesmo tempo negado com o vigor dos textos como © do § 258 da Enciclopédia — que afirma a eternidade do Conceito — ou como tantos outros, que fazem coincidir 0 advento do Saber absoluto com o fim da_histéria. Eis, sumariamente, algumas das questdes com as quais um estudo sobre o tempo em Hegel teria de se defrontar e eis, portanto, o quadro onde situar agora o presente trabalho. Questdes relevantes, das quais o autor, embora nao as alegue explicitamente no nivel do projeto, tem consciéncia; para as- segurar-se disso, basta observar 0 quanto ganham em clareza através do seu ensaio, ou simplesmente a resolugéo e paciéncia com que a teoria hegeliana do tempo € perseguida em todos os seus meandros. Trezentas paginas de andlises densas e precisas, completadas por mais de uma centena de paginas de notas, sio o resultado desse certame com os textos. Duas etapas, em que o autor faz frente a seu problema (dirjamos: “o primeiro ¢ 0 segundo tempo”?) repartem o volume em duas partes, que poderfamos chamar, mas por comodidade apenas, “dogmiatica” e “aporéti- ca”. Mas, antes de elogiar a finura do jogo e da marcagéio, importa conhe- cer e avaliar 0 “score”. Na primeira parte, sob 0 titulo: La puissance élémentaire du temps, tra- ta-se de mostrar, com a mimticia requerida pela prépria complexidade da ta- refa, como Hegel di conta da génese conceitual do tempo, em um constante didlogo com a tradigao filos6fica mais préxima, isto é, com Kant e os pds- kantianos, para os quais 0 problema do tempo tem o relevo que se sabe, mas cuja solugio nao convém a Hegel por redundar, como este préprio diz, na- quela “alta opinifio sobre 0 progresso ao infinito” que é, em suma, adesio a ma infinitude — “esse constante sobrevoo do limite, que é a impoténcia de suprimito e a perene recaida nele* (Cf. Légica, A infinitude quantitati- va, Observagio I). Trata-se, pois, retomando as palavras do autor, de re- constituir 0 arcabougo de uma /dgica do tempo, “le premier volet de Ja théo- rie hégélienne du temps” — e, assim, de “mettre A jour les principes qui — 139 — président I’élaboration du concept de la négativité élémentaire du temps” para mostrar, enfim, “au nom de quels impératifs logiques la portée de sa ‘puissance’ se trouve circonscrite”; mas também, e em intima ligagéo com isso, impGe-se o atendimento A tarefa, cuja importincia nao é menor, de dicar, “A cété des points de rupture irréversibles, les prolongements, les re- maniements des thémes hérités de la pensée transcendantale” (Cf. p. 135). Basta acompanhar os titulos dos doze itens que comp6em essa primeira parte para reconhecer a suficiéncia e cuidado com que € desenvolvida essa “reconstituigao histérica”, que vai, desde a retomada da questéo da espacio- temporalidade a partir da filosofia pés-kantiana, até a compreensiio do tem- po como “o grau zero do Conceito”, mas dialeticamente redobrado e cir- cunscrito por este ultimo (em “Le temps et son double”). Cuidado que consiste, justamente, em nao fugir a nenhuma das dificuldades, que nao sao pequenas, e vem culminar na resolugdo de enfrentar até mesmo essa Ultima, ou seja, estabelecer a complexa relac&o entre tempo e Conceito, ou melhor, como esta escrito no texto: de “suivre l'isomorphisme sinueux que Hegel en- tend établir entre le Concept et le Temps” (Cf. p. 296). E isto vem a ca- Thar — o autor bem o sabe — para por em dificuldade as interpretagdes simplistas ou humanistas que fariam da “inquietude” do real, caracteristica do “dinamismo hegeliano”, o simples elogio da “primazia do devir sobre o ser”, como uma “intuig&o que € essencialmente a do homem, e também es- sencialmente a do tempo” (A. Kojéve, citado & p. 163). Citaremos apenas alguns dos resultados importantes que o leitor pode ti- rar dessas analises: fica claro que, se Hegel usa a expressio “momento”, de origem temporal, para designar as etapas do caminhamento dialético, nao se trata de um uso irrefletido ou metaférico da linguagem, mas de uso le- gitimado pela armagio Iégica que define a ambos, uma vez que o tempo é dotado das caracteristicas do limite, da relagdo negativa, do Simples, do Um, do ser-para-si; mas isso nao quer dizer que Hegel tenha, por exemplo, tirado elementos de uma fenomenologia do tempo, agora entendido como pura con- tradig&io, para demonstrar a verdade especulativa da unidade do ser e do ndo- ser: pois, se esta ultima € exemplificada pelo devir, pelo ser-ai, etc., resta a distancia e 0 jogo dialético que ha entre a esséncia e o exemplo. Além dis- so: se ha isomorfismo (correspondéncia das determinagées /dgicas) entre a egoidade (tal como é definida pela filosofia transcendental) e¢ a temporali- dade —e a palavra Urteil (juizo) tem efetivamente para Hegel a conotagao de partilha-origindria (Ur-teil), aplicdvel também A cisio (relagdo auto-ex- clusiva) constitutiva do tempo — esse co-pertencimento nao permite estabe- lecer entre ambos, como faz Fichte, uma relagio de fundagéo, nem eos dis- sociagio ulterior justifica a admissio de uma temporalidade originaria. A eternidade, enfim, atribufda A infinitude do Conceito, por oposico a finitude daquilo que esté submetido ao tempo, mantém sim com a temporalidade uma relagdio de supresséo, mas no sentido da Aufhebung, portanto nao de negagdo simples, mas de negagao dupla, em que se deve levar em conta tam-

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