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— Bom, não é o meu gênero preferido, mas nada contra, sabe? Eu,
particularmente, gosto mais da música da metade do século XX para cá, como... Jimi
Hendrix...
— Rock? Você gosta de rock?
— Não! Quero dizer, não só rock... Sabe, estes últimos oitenta, quase cem
anos, foram um período de muita criatividade, muita inovação, em termos de
música. Muita coisa surgiu, não só... rock. Eu gosto de vários estilos, mas é mais
desse período, mesmo, Susy. Eu sei que você, por ter estudado piano...
— Vou me formar no fim do ano, sabia?
— Pois é. Claro que você, por isso, acabaria gostando mais desse tipo de som,
não é, Susy?
— Ah, não por isso. É que, se você for analisar, a música clássica,
tecnicamente, harmonicamente... ah, não vou entrar no mérito da questão! Você
certamente já deve ter ouvido falar em Beethoven...
— Claro...
— Pois então. Eu sou uma grande admiradora das obras dele. Gosto muito,
mesmo; na minha opinião, nunca houve, e talvez nunca haverá músicos de verdade,
como ele... Tenho quase todas as suas obras em casa, até mesmo algumas músicas
e estudos bem raros, de quando ele ainda era adolescente...
— Puxa...
— Ah, Melissa, a música do século XIX... Um dia, quando você for lá em casa,
eu te mostro alguma coisa...
— Tá , quero ver se eu já peguei a idéia... Você... com certeza tem alguma
coisa da biografia do homem, não?
— Hmm... Tenho! — Susy estava um pouco surpresa, mas ao mesmo tempo
satisfeita, com a possibilidade de Melissa ter entendido qual era seu verdadeiro
projeto... Deixou que ela prosseguisse.
— Tudo bem. Então, ou eu estou muito enganada, ou você vai se basear na
tese do professor Bekker, aquele estudo sobre variáveis de comportamento humano
para algoritmos computacionais, para criar, com o seu programa — disse com ênfase
clara no ―seu‖ — a décima sinfonia de Beethoven, ou coisa parecida, certo?
Susy, boquiaberta, fez que sim com a cabeça. Risadas. Susy pegou seu
sanduíche, enquanto sua prima comprava algumas balas de hortelã, mas não
conseguindo resistir a tentação de desabafar...
— Que loucura, Susy!
— Também acho. Mas vamos ver no que dá...
No outro dia, sábado, as duas estavam no laboratório livre, compenetradas no
trabalho, mas dessa vez para rodar o programa. Melissa já não tinha muito o que
fazer, apenas acompanhava Susy entrar com as supostas variáveis comportamentais
de Beethoven no micro, enquanto ia, simultaneamente, demonstrando seu
―conhecimento de causa‖:
— Ludwig van Beethoven, Melissa, foi, ao menos para mim, o compositor
alemão mais fantástico do mundo. Com certeza, o maior do século XIX. Nasceu em
1170, e viveu apenas 57 anos. Remotas origens flamengas, filho de um músico
boêmio que o quis amestrar, quando criança, para explorá-lo como menino-prodígio.
Ele já demonstrava seu talento nato, desde muito cedo. Depois de uma infância
infeliz, encontrou mecenas artísticos que lhe possibilitaram os estudos em Viena,
onde passou a maior parte de sua vida. Sempre generosamente amparado pela
aristocracia austríaca, diga-se de passagem, apesar de suas maneiras rudes, para a
época, e do seu republicanismo ostensivo. A surdez isolou-o, enfim, totalmente dos
homens, sabia? Mas essa doença, embora a maldição de sua vida, ajudou-o
providencialmente a alcançar as alturas de uma música abstrata, além de toda
beleza sensorial, compreende?
— Você diria que é isso que o fez um gênio... — ―como você o considera? ‖,
completaria Melissa, mas desistiu da idéia — ... sendo surdo, deixaria de ser
influenciado pelos ―modismos‖ da música da época?
— Certamente. Não quero dizer que foi o único motivo, afinal, seu talento foi
inegável, mas esse detalhe colaborou muito para o seu sucesso.
— E é tudo isso que você destrinchou em variáveis comportamentais, que
você está digitando agora?
— Muito mais que isso, Melissa. São tantos detalhes a considerar... Caso você
deseje uma classificação, eu lhe diria que a música de Beethoven está entre o
classicismo e o romantismo. É clássica, quando encarada do ponto de vista do
romantismo alemão do século XIX; mas do ponto de vista do século XVIII e da
mentalidade latina, pode-se dizer que foi romântica. É clássica pelo rigor da forma
musical, e é romântica pela eloqüência torrencial e pela emoção íntima, entende o
que quero dizer? Embora Beethoven não tenha renovado, revolucionariamente, as
formas de seu mestre Haydn, sua música é, absolutamente, pessoal. Uma
manisfestação de um dos mais poderosos temperamentos artísticos de todos os
tempos.
— Você é uma fã de verdade...
Susy continuou, parecendo não dar ouvidos à prima. Digitava agora com
maior rapidez:
— Apesar de lhe ter sido imposta, pelo pai, a aparência de menino-prodígio,
Beethoven não foi, a rigor, precoce. Bom, se tivesse morrido com a idade de
Schubert, mal lhe seria hoje lembrado o nome...
―Assim como o próprio...‖ — pensou, maldosamente, Melissa.
— ... teve evolução difícil, sabe? Percorreu, conforme tese geralmente aceita
por nós hoje...
―Nós quem?‖ — Melissa quase esboçou um sorriso, não de humor.
— ... três fases distintas: a juvenil, a madura, e uma terceira que eu,
particularmente, acho que não convém designar como estilo de velhice, num artista
que não chegou sequer aos seus sessenta anos. A primeira fase, juvenil, é
caracterizada por estilo patético e tempestuosamente emocional, contemporâneo do
pré-romantismo alemão, como Sturm und Drang, embora ainda persistissem nele a
serenidade mozartiana.
―Só falta ela querer fazer o mesmo com Mozart, agora!‖ — a prima olhou para
o relógio do monitor do LM-0104.
— A segunda fase é a da plena maturidade: clássica nas formas, apesar de
continuar romanticamente individualista o fundo humano...
Melissa já há muito havia parado de prestar atenção no assunto. Apenas não
o demonstrava para não magoar Susy, enquanto tentava lembrar uma música das
preferidas do seu avô: Epic, de uma antiga banda denominada Faith No More. Bem
mais empolgante que a atual onda de músicas que emplacavam os hits das rádios
FM, extremamente açucaradas, na opinião dela.
— A última fase é a da mais profunda interiorização, chegando a expressões
que os contemporâneos só sabiam explicar pela surdez. Eu, quando escuto algumas
peças dessa fase, como Hammerklavier (sonatas para piano op. 106), quase que
consigo perceber suas abstrações sobre-humanas... ah, você precisa escutar,
Melissa... subjetividades excêntricas... é lindo! Bom, terminei...
— Acabou? Todas as variáveis?
— Calma. Agora falta o principal: suas peças. Você pode pegar minha maleta
ali no canto, por favor? Obrigada...
Melissa assobiou, querendo demonstrar surpresa pelo volume de papel das
partituras de Susy. Ligou, então, a unidade LM-0105, e passou a dividir o trabalho
braçal com a prima, scanneando todas aquelas intermináveis peças. Seria
enormemente mais trabalhoso, estava ciente disso, se tivessem que digitar todas as
partituras nos micros... Nesse meio tempo, Melissa puxou a conversa:
— Você já pensou, Susy, se realmente der certo, além de música, criando
obras que os autores ainda teriam a realizar, se continuassem vivos, as demais
aplicações? É... maravilhoso!
— Com certeza. Mas isso depende do resultado que obtivermos aqui...
O verbo flexionado na primeira pessoa do plural agradou Melissa.
— ... pois, daí para a frente, muita coisa poder acontecer. Programando
variáveis comportamentais de personalidades como Shakespeare, Victor Hugo, Edgar
Allan Poe...
— Arthur Clarke, Asimov... — Melissa pensou, em voz alta.
— Que seja. Mas é isso aí: obras post-mortem, via o meu programa...
O retorno à flexão do verbo em primeira pessoa atingiu Melissa novamente...
— ... portanto, trata-se de um teste importantíssimo. Sem falsa modéstia, eu
tenho um ouvido ideal para identificar Beethoven, e a minha avaliação da música-
resultado...
— Você quer dizer a décima sinfonia?
— Hmm, sejamos mais modestas, Melissa. Mas você entendeu porque
começar com a música, não?
— O tratamento matem tico...
— Óbvio. Música é, em última análise, matemática pura, e isso facilitou muito
o meu projeto. No caso de literatura, seria extremamente penoso criar um módulo no
programa para análise sintática, estruturas de coerência, morfologia... um texto,
criado por uma pessoa, é um trabalho muito denso, no ponto de vista computacional.
Claro, isso fatalmente deverá ser feito, será a próxima etapa, dependendo do que
sair do CPU agora...
O processo de scanneamento já havia sido terminado; elas aguardavam a
resposta do computador, que não demorou mais que alguns segundos. A tela do
micro começou a ser preenchida:
PROCESSANDO VARIÁVEIS COMPORTAMENTAIS: L. V. BEETHOVEN
ANÁLISE #1
MELODIA PRINCIPAL ESTRUTURADA E VERIFICADA
VARIAÇÕES NECESSÁRIAS DA ORIGINAL: 1163
— O que significa, Susy?
— Foi um recurso que eu achei interessante implementar. Eu não gostaria que
a música-resultado ficasse parecida com nenhuma das obras scanneadas... Para não
dizerem depois que houve chuncho...
— Certo...
ARRANJOS MUSICAIS COMPLEMENTARES FINALIZADOS
EQUALIZAÇÃO: CLÁSSICA modo II
PEÇA ORQUESTRADA
SALVANDO ARQUIVO-TESTE
PROCESSADO
DESEJA OUVIR A MÚSICA, SUSY?
Susy poderia simplesmente clickar o mouse para responder à CPU, mas
preferiu, como numa espécie de ―ritual‖, pressionar Y no teclado, enquanto não
deixava de fitar a tela do monitor. Melissa pedia silêncio no recinto, e os demais
ocupantes, como se pressentindo o momento talvez histórico, aglomeravam-se,
respeitosamente em silêncio, em torno delas.
Enquanto a melodia era tocada, a reação das pessoas era da mais profunda
admiração, pois sabiam que, pela primeira vez na vida, estavam escutando uma
música criada por um computador. Quase todas estavam literalmente boquiabertas,
poucas deixando de olhar para o monitor, que exibia, simultaneamente, a partitura
daquela música tão singular.