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Sofia Aboim
É entre o eu e o tu que, aos olhos da consciência humana, se produz Do amor, princípio orientador das relações fa-
a primeira das suas dissensões e a primeira das suas unificações. miliares, dependeriam a reciprocidade e a dádiva,
GEORG SIMMEL, “Fragmento sobre o amor.
Escritos póstumos”, Logos, 1921-1922 organizadas contra a lógica de mercado imperante
na esfera pública e contra os rígidos códigos de
uma família, instituição voltada para a sobrevivência
Os afetos não constituem um tema novo nas
material do grupo, fortemente hierarquizada e
ciências sociais. Teorizado, entre outros, por Simmel
subordinada ao poder inquestionável do patriarca.
(1998 [1895]) ou Goode (1959), o amor ganhou
Mediante a força transformadora do amor, legiti-
protagonismo crescente desde as primeiras décadas
maram-se novas conexões entre instituição e indi-
do século XX. Primeiro, tornou-se central na recons-
víduo, passando a predominar lógicas individuali-
tituição histórica da vida privada, desde que Ariès
zadas que foram minando o holismo das sociedades
(1973 [1960]) ou Shorter (1995 [1975]) elegeram a
tradicionais (Dumont, 1985).1 Neste ponto, Bour-
sentimentalização das relações familiares como uma
dieu (1998) vai ainda mais longe chamando ao amor
das linhas de força da modernidade, frisando a im-
“ilha encantada”, o único momento em que é pos-
portância do romantismo que, florescente no século
sível suspender a dominação masculina. O único
XIX, concedeu destaque aos afetos – entre cônjuges,
momento em que os indivíduos são únicos e iguais,
entre pais e filhos –, legitimando um ideal de família-
rompendo com as forças poderosas do englobamen-
refúgio, íntima e livremente escolhida (Costa, 2005).
to e da subordinação.
Artigo recebido em junho/2007 O amor ganhou, portanto, enorme relevo na
Aprovado em fevereiro/2009 conceitualização da própria individualidade. Na
RBCS Vol. 24 no 70 junho/2009
atualidade, autores diversos como Elias (1993 valorização da individualidade (Giddens, 1996; Beck
[1939]), Beck e Beck-Gernsheim (1995), Giddens e Beck-Gernsheim, 2002). Na modernidade avan-
(1996) ou Luhmann (1991) têm focado o seu papel çada, os ideais românticos seriam estreitos para conter
estruturante nos processos de individualização ca- a busca de auto-realização afetiva e a vida familiar
racterísticos da modernidade. O sentimento amo- individualizar-se-ia ainda mais, impondo novos de-
roso é, assim, um dos pilares da individualização. safios às lógicas holistas tradicionais (Dumont, 1985;
Primeiro, desafiou a instituição, constituindo uma Velho, (2002 [1986]); Vaitsman, 1994). Já não seria
força subversiva e ameaçadora da fundação matri- o duo conjugal a quebrar amarras com a comuni-
monial, subordinada aos interesses da reprodução dade e o parentesco, nuclearizando-se, mas o indi-
familiar e social — no amor-cortês, ou mais tarde, víduo a enfrentar as tensões entre a busca de liber-
no amor-paixão nascente na França do século XVIII, dade individual e as gratificações amorosas de uma
os afetos ficavam afinal à margem da aliança matri- vida a dois.
monial (Solé, 1976; Gucht, 1994; Chaumier, 1999; Com efeito, o amor tem ganho popularidade
Luhmann, 1991). O amor-paixão, que Stendhal na sociologia da conjugalidade e da família, consti-
(1999 [1822]) tão bem descreveu como oposto à tuindo, desde há muito, um tópico recorrente na
razão, aos interesses exteriores, à integração do in- análise das mudanças na vida privada (Singly, 1996;
divíduo na sociedade, e a instituição eram forças Edgar e Glezer, 1994; Velho, (2002 [1986]); Vai-
antagônicas, que o romantismo veio posteriormente tsman, 1994; Salem, 1989; Dauster, 1984; Aboim,
reconciliar, trazendo o amor para dentro do casa- 2006; Torres, 2000). A passagem tendencial de
mento e elegendo-o como único critério legítimo modelos institucionalistas, arredados dos senti-
na formação e na manutenção do casal. mentos, para a família moderna, teorizada desde
Apesar de se assemelharem na reivindicação de Durkeim (1975 [1895]) a Parsons (1955), conta uma
liberdade amorosa e na valorização da singularida- história feita de afetos. Antes de mais nada, a famí-
de do outro, o amor-paixão, ao contrário do român- lia é moderna porque afetiva. O casal parsoniano
tico, caracteriza-se pelo erotismo forte, pelo encan- (Parsons e Bales, 1955) estereotípico encontrava-se
tamento fugaz, alheio a rotinas e deveres, pelo caráter unido pelo amor romântico entre duas naturezas
invasivo e intensamente fusional, quase aprisiona- distintas e complementares: a masculina e a femini-
dor. É por estas razões que a paixão aparece como na. Sentimentos e diferenciação de gênero eram per-
tumultuosa e contrária à ordem social. Já o amor feitamente solidários, promovendo a dependência
romântico, na interpretação de Giddens (1996), teve e a fusionalidade e assim adaptando o casal às exi-
importante papel na organização da sociedade do gências do sistema social, industrializado e urbani-
século XIX. Apesar de cultivar a liberdade indivi- zado. No entanto, desde cedo, se complexificou este
dual, o amor romântico perdeu as suas qualidades ideal de conjugalidade. Burgess, Locke e Thomes
transgressoras e eróticas (Costa, 2005), para se ade- (1960 [1945]), ao diagnosticarem o declínio da fa-
quar às lógicas sociais da diferenciação de gênero e mília-instituição, introduziram a noção de “compa-
da aliança familiar. Como propõe Chaves (2006, p. nheirismo” para descrever um casal romântico e
835), este amor é um “amor romântico domestica- dependente, mas também negocial e tendencialmen-
do”, diferente do original, inicialmente mais selva- te paritário. Mais recentemente, Roussel (1991) su-
gem e erotizado. geriu a idéia de “família-clube” como ex-libris do
No entanto, dominante durante a primeira casal associativo moderno, ultrapassando-se, em lar-
modernidade ou modernidade organizada (Wag- ga medida, o companheirismo fusional que Bur-
ner, 2001), período marcado pela industrialização e gess, Locke e Thomes haviam proposto. Similar-
urbanização emergentes no século XIX, o ideal de mente, Théry (2000) faz referência à passagem do
casal romântico, legitimado por um amor domesti- “casal cadeia”, institucionalista e subordinado à re-
cado e sexualmente diferenciado, enfrentaria agora produção social, ao “casal duo”, afetivo, igualitário
os desafios impostos pela crescente igualdade de e autônomo. Singly (2000) diz que os indivíduos
gênero, a visão dinâmica e erotizada da relação e a querem ser “livres em conjunto” (libres ensemble),
utilizando o termo “dupla vida” para se referir ao denota a intensa participação masculina na gesta-
paradoxo do individualismo contemporâneo: os ção, de acordo com três princípios éticos: psicolo-
indivíduos querem ter ao mesmo tempo uma vida gicidade, igualdade e mudança. Como afirma a
conjugal, da qual depende sobremaneira a constru- autora, o “casal grávido” converte-se em recurso
ção das identidades, e uma vida pessoal. No mes- de aproximação para especular sobre uma ética
mo sentido, mas refletindo agora sobre o lado fundada na configuração individualista-igualitária”
amoroso da vida a dois (Chaumier, 1999), sugere (Idem, p. 1)
que a fusão afetiva, para ele associada ao amor ro- Em Portugal, os resultados têm apontado no
mântico, seria paulatinamente substituída por uma mesmo sentido, vinculando os ideais de casal asso-
espécie de “fissão” estruturada pela autonomia in- ciativo, centrado na autonomia pessoal, às classes
dividual. Neste plano, Giddens (1996) propõe a favorecidas, por contraponto às lógicas de aliança
noção de “amor confluente” (igualitário, negocia- que perduram com mais vigor em meios popula-
do, centrado na satisfação mútua, não estritamente res (Aboim, 2006; Torres, 2000). No entanto, a co-
heterossexual), como modelo substituto de um lagem entre individualismo e classe social tem sido
amor romântico interpelado pela mudança. relativamente desconstruída, mostrando a plurali-
Pesquisas em Portugal ou no Brasil têm igual- dade emergente nas sociedades contemporâneas.
mente desvendado os caminhos complexos da Num artigo publicado em 1997 sobre mulheres de
mudança e as desiguais distribuições dos valores baixa renda na periferia do Rio de Janeiro, Vaitsman
“individualistas” em sociedades onde tradição e deixa bem claros os limites das dicotomias igualda-
modernidade se justapõem permanentemente, per- de/hierarquia ou tradicional/moderno, ao mostrar
mitindo, como afirma Domingues (2002, p. 67), a adesão de mulheres de camadas populares a cer-
uma maior plasticidade das identidades. No Brasil, tas formas de individualismo. O projeto de vida,
destaca-se a extensa produção sobre as camadas mais orientado para a luta pessoal travada para as-
médias urbanas, tidas como protagonistas das rup- segurar o bem-estar dos filhos do que para uma
turas com os valores e as práticas tradicionais, ho- identidade institucionalista e centrada no casamen-
listas e hierarquizantes na linguagem dumontiana. A to, assim o comprova. Durham (1997) havia já ela-
igualdade e o individualismo modernos teriam mais borado, a este propósito, uma crítica importante,
expressão entre estes grupos, favorecendo o flo- alertando contra a linearização da associação entre
rescimento de “novas formas de casal e de famí- igualitarismo/individualismo e classes médias e en-
lia”, baseadas na autonomia e na auto-realização. tre holismo/hierarquia e classes populares. A mesma
Gilberto Velho (2002 [1986]) analisa a problemá- linha de raciocínio aplica-se à realidade portuguesa,
tica do casamento e da aliança na sociedade carioca onde igualmente se descobrem sinais importantes
dos anos de 1980 observando como a busca de si de autonomia e busca afetiva entre indivíduos de
mesmo e a psicologização do self tornaram-se dis- meios menos qualificados acadêmica e profissio-
cursivamente vitais, o que justifica, acima da con- nalmente (Aboim, 2006). Cada vez mais, se oscila
tinuidade do grupo, opções de vida individuais, entre a unicidade do laço afetivo e a proteção de
rupturas e recomposições. Essas mudanças nos pa- parcelas da sua própria individualidade, engendrando
drões de casamento e de família em segmentos de processos de fragmentação da identidade.
classe média urbana são, em grande medida, pro- Com efeito, a análise da conjugalidade estabe-
duto da transformação da situação das mulheres lece estreita cumplicidade com o entendimento das
(Vaitsman, 1994) que, ao desafiarem o seu velho formas de amor conjugal. Como diz Luhmann
lugar no interior do espaço privado, permitiram (1991), analisando de modo sistêmico os processos
novos quadros de flexibilidade e pluralidade. O ex- que tornaram a paixão e depois o romantismo códi-
libris desse movimento é retratado por Salem (1989) gos semânticos socialmente partilhados, o sentimen-
na sua pesquisa sobre o “casal grávido”, uma for- to amoroso moderno, que é uma conseqüência da
ma extrema de casal igualitário, centrado em si individualização social, deu ao conjugal imensa im-
mesmo e empenhado em tudo partilhar, como portância. Entretanto, o incremento da autonomia
nâmica relacional (que as histórias românticas do “e amores para enfatizar a sua multiplicidade) ajuda-
foram felizes para sempre” tão bem tipificam), nos a decifrar os códigos relacionais atuais.
novos comportamentos na vida familiar refletem
formas híbridas de combinar amor e conjugalidade,
justapondo, de forma heterogênea, elementos de Uma análise dos discursos femininos
diversas semânticas do amor (Gucht, 1994; Ney- a dois tempos
rand, 2002; Douglas e Atwell, 1988; Velho, 2002
[1986]; Bozon e Heilborn, 1996). Resta saber como Na análise das orientações amorosas demos
estas se entrecruzam na conjugalidade. Em que relevo à semântica utilizada para exprimir os senti-
medida persistem os códigos do romantismo? mentos, focando a variedade terminológica dos
Como se combinam com os ideários reavivados discursos. Paixão, amor, amizade, desejo, companhei-
do amor-paixão, intenso, ausente de cotidiano, efê- rismo são afinal vocábulos empregues de várias
mero? E o amor autônomo, como tipificado na maneiras e em conjugações diferentes. A contagem
“relação pura” de Giddens, em que medida e com e a interpretação das palavras femininas teve como
que especificidades existe entre os casais individua- base um conjunto de perguntas que visavam a recons-
lizados de hoje? Como resistem os afetos conjugais tituir o “trajeto amoroso” das entrevistadas, desde
ao passar do tempo e de que modo se localizam o namoro e o início da vida conjugal até o presente.
em determinados grupos sociais? Perguntamos-lhes o que sentiam pelo cônjuge no
Este conjunto de questões condensa os objeti- passado e quais as transformações ocorridas ao lon-
vos deste artigo. Num contexto de entrecruzamen- go dos anos vividos em comum. Esta metodolo-
to entre romantismo e casal fusional, companhei- gia indutiva permite aferir a enorme diversidade de
rismo e igualdade, paixão amorosa e autonomia interpretações suscitadas pela dimensão afetiva.
individual, procuramos trazer à arena empírica o Como diz Dauster (1984, p. 525), “amores são vi-
debate sobre a sentimentalização da conjugalidade vidos”, propondo que é a partir de relações con-
e a crescente complexidade promovida pelos pro- cretas que os indivíduos criam as noções de amor,
cessos de individualização. De um lado, esperamos tanto do amor cristão como do sexual. Com efei-
descobrir um cenário de pluralidade das semânti- to, a autora, ao analisar os discursos sobre o amor,
cas afetivas2 nas conjugalidades contemporâneas. a amizade, a paixão, entre mulheres e homens de
Analisando discursos femininos,3 recolhidos em 22 camadas médias do Rio de Janeiro, decompôs os
entrevistas em profundidade realizadas com mu- significados plurais associados a estes termos, sali-
lheres entre 30 e 40 anos, vivendo em conjugalida- entando a correlação entre a trajetória de vida e os
dade (casamento ou união consensual, primeiras significados do amor para o indivíduo.
conjugalidades e recasamentos) com filhos em ida- Em concordância com esses postulados analí-
de escolar e residentes na área metropolitana de ticos, identificamos várias orientações amorosas, mas
Lisboa (Portugal),4 tentamos identificar, de modo também diferentes trajetórias sentimentais. Em vez
indutivo, diferentes orientações amorosas. Entre- de um discurso ou percurso hegemônico, são plu-
tanto, cientes de que os afetos se (re)constroem ao rais as formas de representar, de viver e de reinven-
longo do tempo, investigamos as orientações femi- tar ao longo do tempo o amor a dois. Descrevere-
ninas no presente e no início da vida conjugal, ana- mos em seguida as orientações, os trajetos e também
lisando assim o efeito do trajeto sobre os discursos. as tensões associadas a três grandes semânticas: o
De outro lado, procuramos articular afetos e dinâ- amor como paixão, como companheirismo ou
micas conjugais, comparando mulheres pertencen- como sentimento de “alternância”. Observamos
tes a diferentes camadas sociais. Por meio dessa ainda, sempre partindo de exemplos empíricos,
dimensão afetiva retratamos formas plurais de in- como cada uma delas se articula a diferentes con-
dividualização nas sociedades contemporâneas. A cepções do casal mais ou menos centrado na fusão
ênfase nos sutis cruzamentos entre as qualidades de individualidades ou na proteção da autonomia
unificadoras e singularizantes do amor (ou dos pessoal.
O amor como paixão: corpo e cotidiano Trata-se de um amor algo falho de cotidiano,
próximo do ideal-tipo de “amor-paixão”. Mas,
Os termos “paixão” ou “estar apaixonado”, contemos um pouco das histórias conjugais destas
traduzindo um dos ideários contemporâneos mais mulheres, recasadas e impelidas pelas circunstâncias
comuns, surgiram muito freqüentemente nas narra- a buscar uma independência pessoal que constitui
tivas femininas, não obstante com sentidos diferen- hoje um elemento essencial das suas identidades.
tes. A pluralidade de significados, por vezes até pa- Alice e Rosa têm em comum a escolaridade
radoxais, da paixão reflete a sua relação complexa secundária, embora com profissões relativamente
com a individualização da vida conjugal. De um bem remuneradas: a primeira trabalha num barco
lado, a paixão exige uma fusionalidade intensa do sueco e a segunda no setor da publicidade. Ambas
casal, de outro, pode fragilizar a aliança e promo- vivem em união consensual, respectivamente pela
ver a busca de si mesmo. segunda e terceira vez, e têm vários filhos (de ante-
riores relações e também da atual). Ambas passa-
ram por várias rupturas e recomposições, conti-
Uma paixão corpórea
nuando a experimentar instabilidade afetiva, em
cenários conjugais atribulados e de grande separa-
Um dos significados emergentes alinha-se de ção cotidiana. Com seus parceiros pouco partilham
perto com a semântica original do amor-paixão, tarefas, responsabilidades, despesas, lazeres. O com-
revelando uma conexão difícil com o mundo das panheiro de Alice (ex-presidiário e ex-toxicômano)
rotinas. O amor como paixão corpórea encontra- está desempregado, vivendo ocupado pelas socia-
se em discursos que, longe do romantismo e da bilidades com seu grupo de amigos; o de Rosa tam-
aliança, elegem o laço existente na relação entre dois bém não tem emprego fixo e passa o tempo em
corpos, valorizando a paixão física intensa. Para Ali- encontros de motards, saindo de casa sem dia para
ce ou Rosa, duas entrevistadas de camadas inter- voltar. São elas a fonte de sustento do lar e dos
médias, a semântica da paixão continua, passados filhos, bem como a figura educadora, em casa. Entre
alguns anos de vida em comum (quatro no caso da o casal, carecido de cotidiano, restam os encontros
primeira, cinco no da segunda), a privilegiar a se- sexuais marcados pela paixão.
xualidade, domínio eleito da proximidade conju- Se pensarmos no amor-paixão como sentimen-
gal. A percepção da mudança afetiva não é, assim, to quase místico e fortemente sexualizado, que exis-
ressaltada, acabando as mulheres por narrar, em tons te contra e fora do cotidiano, encontramos encaixe
místicos, as suas histórias conjugais, vinculando-as à para o discurso destas mulheres. Alice e Rosa expri-
idéia de encontro sexual extraordinário. mem a continuidade inalterada dos encontros apai-
xonados, dizendo “há uma essência comum” e “sou
Sentimento inicial mulher daquele homem”. Embora haja problemas,
“Paixão, pode-se dizer. Estava apaixonada. E e, como diz Rosa, “uma data de coisas a afastar-
depois claro a paixão física. Sempre”. nos”, o sentimento conjugal vai permanecendo com
Transformações ao longo do tempo a mesma incerteza apaixonada do começo da rela-
“Sinto um laço forte... Paixão. Sou mesmo ca- ção, com maior peso da sexualidade do que da alian-
sada com ele [...], embora mantenha a minha ça. Como notou Féres-Carneiro (1998), comparando
individualidade, os meus pequenos quartos se- dez casais em primeira conjugalidade e dez reca-
cretos... enfim, não me entrego assim toda, to- sados das camadas médias cariocas, a exaltação da se-
dinha. Sou mulher daquele homem [...], embo- xualidade é muito mais comum em situações de
ra depois haja uma data de coisas a afastar-nos... recasamento, como as que aqui descrevemos. A re-
O assunto da cama é que é sempre bastante lação conjugal acaba por ser também vivida de for-
animado”. ma mais individualizada e sensível à instabilidade da
ROSA, 39 anos, publicitária, 11º ano, 3ª união paixão. Gilberto Velho encontrou discursos sobre
consensual; duração: 4 anos os imperativos da paixão entre camadas médias
individualizadas do Rio de Janeiro dos anos de 1980. ticas seja por vezes relativa), aparece como suporte
No entanto, a semântica da paixão e a individuali- do sentimento: o apoio mútuo é uma condição es-
zação dos projetos de vida podem ser encontradas sencial para alimentar a proximidade e a “paixão”
mesmo em grupos sociais menos qualificados, como entre o casal.
aqui acontece. As trajetórias afetivas instáveis pare-
cem levar à erosão do investimento romântico numa Sentimento inicial
relação cotidiana e durável. Ao mesmo tempo em “Ah, sei lá. Eu acho que era uma doença. O
que as mulheres deixam de ver no homem a figura homem saía à noite, eu parece que já estava cheia
de apoio e sustento da família, guardam (Vaitsman, de saudades mal ele saía ao fim de cinco
1997), ainda assim, elementos de paixão, os únicos minutos”.
que sobrevivem à falta de rotinas. Transformações ao longo do tempo
“Em termos de paixão [...]. Pronto, eu digo
A paixão cotidianizada que o meu dia a dia sem o meu marido não era
nada. É o meu braço direito, sem dúvida. É
Uma segunda orientação amorosa partilha com uma chama sempre acesa. É assim, a confiança
a primeira um discurso presente vinculado aos ter- aumentou imenso, muito mesmo. A total
mos “paixão” ou “chama sempre acesa”, em con- confiança não se adquire num ano de namoro.
tinuidade com o sentimento inicial. Contudo, ao É com o passar dos anos. E para mim, aquela
contrário do anterior, a semântica da paixão serviu chama está sempre acesa”.
para alimentar a proximidade cotidiana no casal. RAQUEL, 36 anos, proprietária de loja de rou-
Trata-se assim de um “amor apaixonado” fusional pas, 6º ano, 1º casamento religioso; duração:
e rotinizado, mais próximo de um romantismo ori- 17 anos
ginal, não domesticado, que valoriza a sexualidade
e, mais do que tudo, a relação a dois. Esta visão aparece nos relatos de mulheres com
Preferimos utilizar a expressão “amor-apaixo- diferentes capitais escolares e profissionais (Raquel
nado”, procurando torná-la alternativa aos ideais- tem apenas o 6º ano do ensino básico, mas é dona
tipos de “amor-paixão” (não cotidiano, fortemente do seu próprio negócio, Rita é licenciada e asses-
sexualizado, possessivo, arrebatador) ou de “amor- sora de edição de uma revista científica), mas que,
romântico domesticado” (fundado sobre a expres- por valorizarem imensamente a dinâmica interna do
sividade feminina, a diferenciação de gênero, a pro- casal, não investem fortemente em projetos pro-
ximidade intuitiva). O amor apaixonado pretende, fissionais autônomos. É interessante que este dis-
enfim, designar começos amorosos sexualizados, curso apaixonado seja comum a mulheres de dife-
mas permanentemente reconstruídos. Afinal, con- rentes camadas sociais. Embora o ímpeto fusional
cluímos, “estar apaixonada” é expressão de signifi- seja mais forte quando a escolaridade feminina é
cados múltiplos, associada a formas diferenciadas mais baixa, o ideário amoroso é relativamente
de conjugalidade. partilhado. Tanto Raquel como Rita casaram cedo
A percepção de se estar apaixonada depois de (respectivamente com 19 e 23 anos) e habitua-
anos vividos em comum alia-se a um “nós conju- ram-se, desde logo, a centrar suas individualidades
gal” alimentado pelas rotinas, as responsabilidades na vida de casal, distanciando-se mesmo, por ra-
domésticas e os filhos. O “apaixonamento” é visto zões de conflito, das famílias de origem. O casal e a
como processo dinâmico, amadurecendo pela ex- família nuclear passaram, assim, a ser a sua grande
tensão da partilha fusional no casal. O estar juntos, ancoragem emocional, porto de abrigo fusional
os ritmos comuns (como o ir dormir ao mesmo para o eu.
tempo), o diálogo e a intimidade ancoram um dis- Compreende-se, portanto, a transversalidade
curso dominado pelos lados emocionais da vida social de um ideário amoroso que articula o lado
em comum. A cooperação instrumental cotidiana, apaixonado à proximidade fusional entre o casal,
também valorizada (ainda que a igualdade nas prá- destacando a partilha íntima, comunicacional e
casa e na educação dos filhos. A solidez da “grande maior autonomia. Como ela própria refere “[...]
amizade” fabrica um laço de complementaridade, antes andávamos muito mais atrelados um ao ou-
cujo centro são, acima de tudo, os filhos. tro e isso não era muito positivo”.
Todavia, a percepção do evoluir do sentimen- Marido e mulher tiveram de se tornar mais
to pode vincular-se a uma outra ordem de razões, companheiros, mais cooperantes, para que ela ti-
agora colocando o ônus no amadurecimento pes- vesse a possibilidade de voltar a estudar no perío-
soal, processo autocentrado e sem conotação com do noturno, conciliando esta nova atividade com as
acontecimentos exteriores. Entre as camadas médias, responsabilidades da vida familiar. Provavelmente,
os discursos tendem a quedar-se por forte psicologi- a dinâmica de desenvolvimento pessoal aqui salien-
zação, como foi notado, no caso brasileiro, por di- tada não é alheia à valorização de um sentimento
versos autores (Velho, 2002 [1986]); Vaitsman, 1994; de companheirismo conjugal, fabricado após o pe-
Salem, 1989). É pelo menos esta a lógica enunciada ríodo de começo apaixonado, lógica e necessaria-
por Alexandra, mulher com escolaridade elevada, mente mais fusional. Com o tempo, a descoberta
em fase de investimento profissional e pessoal: progressiva da autonomia acompanhou as transfor-
mações afetivas, passando-se da indiferenciação
Sentimento inicial apaixonada à individualização simétrica entre o casal.
“Acho que casei muito apaixonada”. Esta passagem, nem sempre fácil, está clara-
Transformações ao longo do tempo mente documentada no trabalho de Salem (1989).
“Hoje é mais uma grande amizade. Acho que é Mas outros autores enunciaram processos simila-
uma coisa diferente. Muito mais forte. Chora- res, assinalando os perigos das “tiranias da intimi-
se muito menos. De início é tudo um grande dade”, e da fusão entre ego e alter (Simmel, 2004
drama, chora-se muito e agora não. O compa- [1921-1922]), para a autonomia pessoal (Sennett,
nheirismo é fundamental. [...] Houve mudan- 1986 [1974]). Nos processos descritos, fica expres-
ças. Houve, nós também mudamos, já não so- sa a natureza dual da paixão: a singularidade da indi-
mos as mesmas pessoas. Amadurecemos, acho!” vidualidade é obtida pela alteridade liberta de cons-
ALEXANDRA, 37 anos, dona de boutique e estu- trangimentos que a paixão simboliza, mas a
dante, licenciatura incompleta, 1º casamento re- permanência do estado de paixão acaba por cons-
ligioso; duração: 12 anos tituir entrave a projetos pessoais e investimentos na
vida pública, podendo transformar-se em fonte de
No companheirismo do presente conjugal re- conflito e tensão na relação conjugal. Esses perigos
flete-se o investimento em si, uma progressiva dose foram assinalados pelo próprio Freud (1971
de autonomia pessoal. A quebra da paixão fusional [1929]), ao ressaltar que a paixão dilui as fronteiras
permite individualização pessoal, dando agora espa- entre ego e objeto, dando a impressão de se ser um
ço ao desafio de construir “uma unidade com dois” só. Ora, para o autor, a vida psíquica deverá aliar a
(Salem, 1989, p. 10). Quando casou, Alexandra ti- capacidade de fusão e a de diferenciação. Sem este
nha concluído um bacharelato em administração e último processo, perder-se-ia a noção de si mesmo.
marketing e começou a trabalhar com o marido num Embora no anterior exemplo tenhamos docu-
negócio de revenda de roupa. Quando nasceram mentado processos de rotinização do apaixonamento
os filhos (dois gêmeos atualmente com 5 anos), em conformidade com ideais românticos não do-
Alexandra deixou de trabalhar para prestar assis- mesticados, assim evidenciando a independência do
tência aos bebês; passado três anos resolveu mon- nós-casal em face de lógicas institucionalistas tradi-
tar um negócio só seu e, simultaneamente, voltar a cionais, a maioria das trajetórias afetivas femininas
estudar. Na dinâmica familiar, este processo de rein- vem encaixar-se na dinâmica agora descrita. Tanto
vestimento profissional e acadêmico refletiu a tran- em camadas populares como nas médias, assisti-
sição de uma fase orientada pela fusão conjugal (que mos a formas de diferenciação do eu que com-
dominava também na esfera sentimental, mais apai- põem um retrato matizado dos processos de indi-
xonada e “dramática” do que hoje) para uma de vidualização nas sociedades contemporâneas.
ao mesmo tempo, manter-se permanentemente ção conjugal, nas vontades e nas decisões de cada
apaixonada pelo cônjuge. O companheirismo é as- um, na articulação entre tempos e espaços indivi-
sim um sentimento vital para sustentar a coopera- duais e coletivos, no próprio evoluir do lado amo-
ção necessária e desejável, enquanto a paixão se re- roso da conjugalidade. Optamos, assim, por utili-
encontra em certos momentos que continuam a ser zar o termo alternância para designar esta orientação
perseguidos na vida conjugal. em que discursivamente se mistura a semântica do
Entre companheirismo e momentos de paixão, amor-amizade com a do amor-paixão.
essas trajetórias caracterizam-se por uma lógica de O principal “paradoxo” sentido pelas mulhe-
alternância, apresentando-se plenas de desafios: va- res é imposto pela presença de rotinas cotidianas
lorizam-se a individualidade e a realização pessoal, que dificultam a manutenção de uma paixão para a
mas também a família e a maternidade; dá-se rele- qual escasseia o tempo. Entretanto, os sentimentos
vo ao “nós-casal” apaixonado e sexualizado, mas apaixonados são fundamentais para distinguir uma
também à amizade e ao companheirismo. A varie- relação conjugal de uma de amizade: tanto para
dade de termos utilizados para descrever o senti- Adriana como para Carolina é importante um casal
mento inicial (paixão, amizade, amor, desejo) enun- ser mais do que uma união promovida pela amiza-
cia, desde logo, a existência de uma semântica de. Fundar a relação sobre tais pressupostos, exi-
amorosa multifacetada, que assinala, aliás, mais um gentes de cooperação cotidiana, de diálogo, parti-
ponto de diferenciação diante de situações ante- lha e simetria, mas também de momentos de paixão
riormente descritas. e espaço individual, é uma empreitada dinâmica,
No leque de casos pesquisados, esta orientação exigente de uma permanente construção.
afetiva é a mais próxima do ideal-tipo proposto
por Giddens (1996). Para o autor, a relação pura Sentimento inicial
do amor confluente distingue-se do amor românti- “Estava apaixonada. Era um sentimento de
co em vários aspectos: uma visão simétrica do gê- paixão, de amor, de amizade...”.
nero, a noção dinâmica de que o que conta é a re- Transformações ao longo do tempo
lação especial e não a pessoa especial, a valorização “É um clássico dizer que a paixão não dura
da autonomia individual, a noção de contingência sempre! Quando as pessoas já vivem juntas há
e de necessidade permanente de construção, a vi- muito tempo, e nós apesar de tudo já vivemos
são da intimidade sexual como algo que precisa de juntos há muito tempo, obviamente não esta-
ser alimentado. Seria precisamente este tipo de rela- mos tão apaixonados como estávamos aos 18
ção aquele que melhor representaria o “paradoxo anos, aos 20... porque conhecemo-nos muito
da conjugalidade contemporânea” (Neyrand, 2002), bem, enfim, já refreamos os ímpetos iniciais da
ou seja, a divisão entre a fusão amorosa imanente paixão e sobretudo a vida rotineira e mais ou
ao desejo de intimidade, comunicação intensa e menos stressante que vamos levando também
paixão sexual e a autonomia individual valorizada e se encarrega de pôr um certo travão nesse sen-
perseguida pelos parceiros. timento de paixão... Apesar de tudo, acho que
O termo “paradoxo” parece, no entanto, ex- continuamos bastante apaixonados um pelo
cessivo para falar dos dilemas enfrentados pelas outro e que... não com as mesmas característi-
conjugalidades contemporâneas, modernistas e as- cas da paixão inicial... Mas acho que continua-
sociativas, divididas entre o “eu” e o “nós”. Todos mos com uma boa dose de paixão. [...] Ainda
os estilos de conjugalidade comportam tensões e não entramos na fase do “já somos só grandes
dificuldades específicas (Widmer et al., 2003), desde amigos”. Claro que somos grandes amigos, mas
as mais institucionalistas até as mais românticas e acho que continuamos a ser bastante mais do
fusionais. O que importa acima de tudo é o lugar que isso”.
simbolicamente concedido ao conflito no espaço ADRIANA, 37 anos, professora universitária, dou-
da relação. Quanto maior o grau de exigência, au- toramento, 1ª conjugalidade (coabitação e ca-
tonomia e reflexividade, maior a ênfase na negocia- samento civil); duração: 13 anos
minoritárias, em que o amor é percebido como Uma outra conclusão importante destaca, no
estático, outras, majoritárias, fundadas na dinâmica sentimento inicial, o uso majoritário de uma semân-
de companheirismo; umas em que o amor é com- tica do amor apaixonado, marcada pela prioridade
plementaridade e aliança entre masculino e femini- dos termos “paixão”, “estar apaixonado”, “atra-
no, outras em que se procura romper com a tradi- ção” etc. O uso dessa terminologia reconstrói o
cional diferenciação de gênero; umas em que se período conjugal inicial como época de fusão for-
procura cooperação amical, outras em que se tenta te, de querer estar com o outro numa altura de re-
manter viva alguma chama de apaixonamento; umas estruturação pessoal, de construção de novas roti-
em que se tende a separar o amor das rotinas (como nas, de novas formas de organização da vida. Uma
na “lógica de alternância”), outras em que se ali- fase de fusão inicial freqüentemente descrita com
menta o amor de rotinas (como as formas de amor recurso às categorias semânticas que o romantismo
sustentadas primordialmente pela amizade). herdou do amor-paixão. Dizer-se apaixonado é
No entanto, uma segunda conclusão importante também dizer-se em “estado de fusão” com o ou-
deve observar o caráter indelével do romantismo tro, associação perfeitamente encaixada no “dever-
como código amoroso do “apaixonamento” na ser” normativo que alia casamento e amor. A fusão
conjugalidade. Trata-se, contudo, de um romantis- instaurada pelo sentimento amoroso dos começos
mo transformado, pois vários fatores indiciam mu- conjugais é freqüentemente um elemento muitíssi-
danças na versão ultra-romântica do amor, que en- mo importante do processo de integração do ca-
contramos, por exemplo no caso de Matilde: um sal, embora sofra as alterações promovidas, no tem-
amor quase místico, subjetivamente estático e har- po, pela necessidade de “diferenciação de si”.
mônico, intuitivo, pouco sexualizado em que se de- Mas também este retrato majoritário do apaixo-
seja uma “fusão de almas” e que apela à diferencia- namento inicial é fraturado por algumas exceções à
ção entre masculino e feminino. No pólo oposto, o regra. Uma delas destaca desde logo o amor-ami-
amor como paixão corpórea, não cotidiana, é tam- zade e o companheirismo, a que não basta o ime-
bém a orientação de uma minoria, associando-se diatismo do amor, proposto pela idealização ro-
normalmente a lógicas de grande separação do ca- mântica, mas fundamentalmente a construção
sal no dia-a-dia. Na verdade, a maioria das mulhe- progressiva da amizade; o efeito repentino da fle-
res valoriza simultaneamente várias dimensões rela- cha de Cupido idealizado pelo romantismo é afinal
cionais: o companheirismo, a cooperação e a busca bastante diferente do sentimento progressivamente
de igualdade, ou pelo menos de entreajuda, aliam- construído que é a amizade. Um outro modelo
se aos lados amorosos da vida a dois. Estes são amoroso segue ainda o que consideramos ser a “ló-
descritos como sensíveis ao tempo e exigentes de gica de alternância”. Ao abrigo da idéia de relação-
um trabalho de permanente edificação, justificando construção, numa incontornável mistura de amor e
a noção de “amor-construção” (Torres, 2000). A de rotinas, de amizade e de paixão, de espaço do
própria sexualidade conjugal é normalmente assi- eu e de espaço do nós, a justaposição de categorias
nalada como mais uma dimensão a alimentar ao semânticas já caracterizava, pelo menos na recons-
longo da relação. trução retrospectiva do sentimento, o casal desde
Apesar de os começos apaixonados serem ma- os primeiros tempos da sua formação.
joritários no leque de situações investigadas, é tam- Fundamentalmente, importa frisar que o amor
bém verdade que as definições do sentimento de é, na maioria dos casos, subjetivamente vivido como
paixão ou daquele que lhe sucede, transformando-o um processo dinâmico, sujeito às mutações trazidas
ou consolidando-o, seguem trajetórias bastante di- pelos anos de vida em comum, ao ritmo da rotini-
versificadas. Na verdade, a comparação entre os zação da conjugalidade. Assim se compreende que
dois discursos (um retrospectivo sobre o início e o o sentimento atual, resultante de um trajeto a dois,
outro sobre a atualidade) mostra talvez os aspectos seja descrito por uma terminologia mais variada e
mais interessantes da associação entre amor e híbrida, enunciando a cumplicidade entre a dimen-
conjugalidade. são afetiva e a dinâmica interna do casal ao longo
do tempo. Assim se compreende a articulação entre sociais, populares e média ou média-alta. Todas as
paixão e fusão conjugal, entre o romantismo domes- mulheres têm um trabalho remunerado mas diferen-
ticado do amor-amizade e o aumento da “inde- tes qualificações profissionais e acadêmicas, oscilando
pendência” feminina; entre um casal fortemente desde o ensino primário até o doutoramento: dezes-
sete mulheres vivem uma primeira conjugalidade, cinco
autônomo e orientações amorosas que abrigam em
tiveram percursos marcados por divórcio e recasamen-
si formas de individualização. De fato, ambas as to, seis vivem em união consensual, sendo as restan-
dimensões, afetos e cotidianos, perfilam um qua- tes oficialmente casadas. Captar situações tão diversas
dro de pluralidade que se apresenta, de um ponto foi, de fato, a nossa principal preocupação, de forma a
de vista microssociológico, mais complexo do que garantir maior riqueza empírica à informação obtida.
aquele que as definições ideal-típicas de “casamen-
to instituição”, “fusão romântica” ou “associação
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2 O uso que fazemos do termo “semântica” referencia pp. 302-323.
diretamente a análise que Luhmann (1991) faz do amor BOURDIEU, P. (1998), La domination masculine. Pa-
como código simbólico socialmente partilhado, ob- ris, Éditions du Seuil.
servando nomeadamente as definições de amor ex- BOZON, M. & HEILBORN, M. L. (1996), “Les
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3 É preciso não esquecer, como sinalizam vários auto- de Janeiro et à Paris”. Terrain, 27: 37-58.
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tudo desenvolvido no feminino. M. (1960 [1945]), The family from institution to com-
4 Nas entrevistas que realizamos entre meados de 2002 panionship. Nova York, American Book.
e início de 2003, privilegiamos uma inquirição biográ- CANCIAN, F. M. (1987), Love in America: gender and
fica, procurando registar o “lado subjetivo” do efeito self-development. Cambridge, Cambridge Univer-
gerado pelo tempo social: pedimos sistematicamente sity Press.
às 22 mulheres entrevistadas para nos relatarem as CHAUMIER, S. (1999), La déliaison amoureuse: de la
suas impressões comparativas sobre o tempo em que fusion romantique au désir d’indépendance. Paris, Ar-
começaram a relação a dois e o momento presente, mand Colin.
tendo encontrado em vários casos uma nítida percep-
CHAVES, J. C. (2006), “Os amores e o ordena-
ção das transformações ocorridas na dinâmica do casal
no espaço entre o início da conjugalidade e o momen-
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to de entrevista. A amostra foi construída segundo o époque”. Análise Social, 180: 827-846.
método bola de neve que nos permitiu encontrar nar- COSTA, S. (2005), “Amores fáceis: romantismo e
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geracionais e de fase familiar, a amostra é socialmente dos, 73: 111-124.
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Num contexto em que a construção do In face of the massive historical trans- Dans un contexte où la construction de
casamento como relação de amor adquire formations occurring in family live, la conjugalité comme relation d’amour
hegemonia nas sociedades contemporâ- which have led conjugal relationships to est devenu presque hégémonique dans
neas, trazemos à arena empírica o debate be constructed upon affection, this article les sociétés contemporaines, on apporte
sobre a sentimentalização da conjugali- aims to debate the relationship between à l’arène empirique le débat sur la senti-
dade e a crescente complexidade promo- historical sentimentalization and the mentalité moderne de la conjugalité et la
vida pelos processos de individualização. growing complexity generated by indi- croissante complexité engendré par les
Analisando discursos de mulheres por- vidualization processes. The analysis of processus d’individualisation. En analy-
tuguesas vivendo em conjugalidade, des- discourses of Portuguese married or coha- sant les discours des femmes portugaises
crevemos a pluralidade das orientações biting women enabled us to describe a vivant en couple, on décrit la pluralité
amorosas nas conjugalidades atuais. Ob- variety of trajectories and orientations des orientations amoureuses dans les
servamos o entrecruzamento entre ro- towards love and intimacy, thus show- conjugalités actuelles. On observe le croi-
mantismo e aliança, companheirismo e ing the plurality of affections in con- sement entre romantisme et alliance,
paixão erótica, autonomia individual e temporary conjugalities. On the other, compagnonnage et passion érotique, auto-
fusão amorosa. Revela-se, assim, um ce- companionship seemed to associate with nomie individuelle et fusion amoureuse.
nário heterogêneo, onde o amor adquire erotic passion. At the same time, highly Ainsi, dans cet article on révèle une réa-
múltiplos significados, percorre diversos individualized women always reveal lité hétérogène, d’autant que l’amour re-
caminhos e se articula a formas de cons- some tension between autonomy and in- couvre des signifiés multiples et parcourre
truir o cotidiano na vida a dois. timate fusion with the partner. Showing chemins diversifiés en s’articulant a des
the linkages between different conjugal formes spécifiques de construire a deux
trajectories and the building up of these la vie quotidienne.
semantics of affection, we disclose a
heterogeneous scenario, where love ac-
quires multiple meanings, follows differ-
ent pathways and is interwoven with the
construction of the couples’ daily life.