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DA PLURALIDADE DOS AFETOS

Trajetórias e orientações amorosas


nas conjugalidades contemporâneas

Sofia Aboim

É entre o eu e o tu que, aos olhos da consciência humana, se produz Do amor, princípio orientador das relações fa-
a primeira das suas dissensões e a primeira das suas unificações. miliares, dependeriam a reciprocidade e a dádiva,
GEORG SIMMEL, “Fragmento sobre o amor.
Escritos póstumos”, Logos, 1921-1922 organizadas contra a lógica de mercado imperante
na esfera pública e contra os rígidos códigos de
uma família, instituição voltada para a sobrevivência
Os afetos não constituem um tema novo nas
material do grupo, fortemente hierarquizada e
ciências sociais. Teorizado, entre outros, por Simmel
subordinada ao poder inquestionável do patriarca.
(1998 [1895]) ou Goode (1959), o amor ganhou
Mediante a força transformadora do amor, legiti-
protagonismo crescente desde as primeiras décadas
maram-se novas conexões entre instituição e indi-
do século XX. Primeiro, tornou-se central na recons-
víduo, passando a predominar lógicas individuali-
tituição histórica da vida privada, desde que Ariès
zadas que foram minando o holismo das sociedades
(1973 [1960]) ou Shorter (1995 [1975]) elegeram a
tradicionais (Dumont, 1985).1 Neste ponto, Bour-
sentimentalização das relações familiares como uma
dieu (1998) vai ainda mais longe chamando ao amor
das linhas de força da modernidade, frisando a im-
“ilha encantada”, o único momento em que é pos-
portância do romantismo que, florescente no século
sível suspender a dominação masculina. O único
XIX, concedeu destaque aos afetos – entre cônjuges,
momento em que os indivíduos são únicos e iguais,
entre pais e filhos –, legitimando um ideal de família-
rompendo com as forças poderosas do englobamen-
refúgio, íntima e livremente escolhida (Costa, 2005).
to e da subordinação.
Artigo recebido em junho/2007 O amor ganhou, portanto, enorme relevo na
Aprovado em fevereiro/2009 conceitualização da própria individualidade. Na
RBCS Vol. 24 no 70 junho/2009

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atualidade, autores diversos como Elias (1993 valorização da individualidade (Giddens, 1996; Beck
[1939]), Beck e Beck-Gernsheim (1995), Giddens e Beck-Gernsheim, 2002). Na modernidade avan-
(1996) ou Luhmann (1991) têm focado o seu papel çada, os ideais românticos seriam estreitos para conter
estruturante nos processos de individualização ca- a busca de auto-realização afetiva e a vida familiar
racterísticos da modernidade. O sentimento amo- individualizar-se-ia ainda mais, impondo novos de-
roso é, assim, um dos pilares da individualização. safios às lógicas holistas tradicionais (Dumont, 1985;
Primeiro, desafiou a instituição, constituindo uma Velho, (2002 [1986]); Vaitsman, 1994). Já não seria
força subversiva e ameaçadora da fundação matri- o duo conjugal a quebrar amarras com a comuni-
monial, subordinada aos interesses da reprodução dade e o parentesco, nuclearizando-se, mas o indi-
familiar e social — no amor-cortês, ou mais tarde, víduo a enfrentar as tensões entre a busca de liber-
no amor-paixão nascente na França do século XVIII, dade individual e as gratificações amorosas de uma
os afetos ficavam afinal à margem da aliança matri- vida a dois.
monial (Solé, 1976; Gucht, 1994; Chaumier, 1999; Com efeito, o amor tem ganho popularidade
Luhmann, 1991). O amor-paixão, que Stendhal na sociologia da conjugalidade e da família, consti-
(1999 [1822]) tão bem descreveu como oposto à tuindo, desde há muito, um tópico recorrente na
razão, aos interesses exteriores, à integração do in- análise das mudanças na vida privada (Singly, 1996;
divíduo na sociedade, e a instituição eram forças Edgar e Glezer, 1994; Velho, (2002 [1986]); Vai-
antagônicas, que o romantismo veio posteriormente tsman, 1994; Salem, 1989; Dauster, 1984; Aboim,
reconciliar, trazendo o amor para dentro do casa- 2006; Torres, 2000). A passagem tendencial de
mento e elegendo-o como único critério legítimo modelos institucionalistas, arredados dos senti-
na formação e na manutenção do casal. mentos, para a família moderna, teorizada desde
Apesar de se assemelharem na reivindicação de Durkeim (1975 [1895]) a Parsons (1955), conta uma
liberdade amorosa e na valorização da singularida- história feita de afetos. Antes de mais nada, a famí-
de do outro, o amor-paixão, ao contrário do român- lia é moderna porque afetiva. O casal parsoniano
tico, caracteriza-se pelo erotismo forte, pelo encan- (Parsons e Bales, 1955) estereotípico encontrava-se
tamento fugaz, alheio a rotinas e deveres, pelo caráter unido pelo amor romântico entre duas naturezas
invasivo e intensamente fusional, quase aprisiona- distintas e complementares: a masculina e a femini-
dor. É por estas razões que a paixão aparece como na. Sentimentos e diferenciação de gênero eram per-
tumultuosa e contrária à ordem social. Já o amor feitamente solidários, promovendo a dependência
romântico, na interpretação de Giddens (1996), teve e a fusionalidade e assim adaptando o casal às exi-
importante papel na organização da sociedade do gências do sistema social, industrializado e urbani-
século XIX. Apesar de cultivar a liberdade indivi- zado. No entanto, desde cedo, se complexificou este
dual, o amor romântico perdeu as suas qualidades ideal de conjugalidade. Burgess, Locke e Thomes
transgressoras e eróticas (Costa, 2005), para se ade- (1960 [1945]), ao diagnosticarem o declínio da fa-
quar às lógicas sociais da diferenciação de gênero e mília-instituição, introduziram a noção de “compa-
da aliança familiar. Como propõe Chaves (2006, p. nheirismo” para descrever um casal romântico e
835), este amor é um “amor romântico domestica- dependente, mas também negocial e tendencialmen-
do”, diferente do original, inicialmente mais selva- te paritário. Mais recentemente, Roussel (1991) su-
gem e erotizado. geriu a idéia de “família-clube” como ex-libris do
No entanto, dominante durante a primeira casal associativo moderno, ultrapassando-se, em lar-
modernidade ou modernidade organizada (Wag- ga medida, o companheirismo fusional que Bur-
ner, 2001), período marcado pela industrialização e gess, Locke e Thomes haviam proposto. Similar-
urbanização emergentes no século XIX, o ideal de mente, Théry (2000) faz referência à passagem do
casal romântico, legitimado por um amor domesti- “casal cadeia”, institucionalista e subordinado à re-
cado e sexualmente diferenciado, enfrentaria agora produção social, ao “casal duo”, afetivo, igualitário
os desafios impostos pela crescente igualdade de e autônomo. Singly (2000) diz que os indivíduos
gênero, a visão dinâmica e erotizada da relação e a querem ser “livres em conjunto” (libres ensemble),

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utilizando o termo “dupla vida” para se referir ao denota a intensa participação masculina na gesta-
paradoxo do individualismo contemporâneo: os ção, de acordo com três princípios éticos: psicolo-
indivíduos querem ter ao mesmo tempo uma vida gicidade, igualdade e mudança. Como afirma a
conjugal, da qual depende sobremaneira a constru- autora, o “casal grávido” converte-se em recurso
ção das identidades, e uma vida pessoal. No mes- de aproximação para especular sobre uma ética
mo sentido, mas refletindo agora sobre o lado fundada na configuração individualista-igualitária”
amoroso da vida a dois (Chaumier, 1999), sugere (Idem, p. 1)
que a fusão afetiva, para ele associada ao amor ro- Em Portugal, os resultados têm apontado no
mântico, seria paulatinamente substituída por uma mesmo sentido, vinculando os ideais de casal asso-
espécie de “fissão” estruturada pela autonomia in- ciativo, centrado na autonomia pessoal, às classes
dividual. Neste plano, Giddens (1996) propõe a favorecidas, por contraponto às lógicas de aliança
noção de “amor confluente” (igualitário, negocia- que perduram com mais vigor em meios popula-
do, centrado na satisfação mútua, não estritamente res (Aboim, 2006; Torres, 2000). No entanto, a co-
heterossexual), como modelo substituto de um lagem entre individualismo e classe social tem sido
amor romântico interpelado pela mudança. relativamente desconstruída, mostrando a plurali-
Pesquisas em Portugal ou no Brasil têm igual- dade emergente nas sociedades contemporâneas.
mente desvendado os caminhos complexos da Num artigo publicado em 1997 sobre mulheres de
mudança e as desiguais distribuições dos valores baixa renda na periferia do Rio de Janeiro, Vaitsman
“individualistas” em sociedades onde tradição e deixa bem claros os limites das dicotomias igualda-
modernidade se justapõem permanentemente, per- de/hierarquia ou tradicional/moderno, ao mostrar
mitindo, como afirma Domingues (2002, p. 67), a adesão de mulheres de camadas populares a cer-
uma maior plasticidade das identidades. No Brasil, tas formas de individualismo. O projeto de vida,
destaca-se a extensa produção sobre as camadas mais orientado para a luta pessoal travada para as-
médias urbanas, tidas como protagonistas das rup- segurar o bem-estar dos filhos do que para uma
turas com os valores e as práticas tradicionais, ho- identidade institucionalista e centrada no casamen-
listas e hierarquizantes na linguagem dumontiana. A to, assim o comprova. Durham (1997) havia já ela-
igualdade e o individualismo modernos teriam mais borado, a este propósito, uma crítica importante,
expressão entre estes grupos, favorecendo o flo- alertando contra a linearização da associação entre
rescimento de “novas formas de casal e de famí- igualitarismo/individualismo e classes médias e en-
lia”, baseadas na autonomia e na auto-realização. tre holismo/hierarquia e classes populares. A mesma
Gilberto Velho (2002 [1986]) analisa a problemá- linha de raciocínio aplica-se à realidade portuguesa,
tica do casamento e da aliança na sociedade carioca onde igualmente se descobrem sinais importantes
dos anos de 1980 observando como a busca de si de autonomia e busca afetiva entre indivíduos de
mesmo e a psicologização do self tornaram-se dis- meios menos qualificados acadêmica e profissio-
cursivamente vitais, o que justifica, acima da con- nalmente (Aboim, 2006). Cada vez mais, se oscila
tinuidade do grupo, opções de vida individuais, entre a unicidade do laço afetivo e a proteção de
rupturas e recomposições. Essas mudanças nos pa- parcelas da sua própria individualidade, engendrando
drões de casamento e de família em segmentos de processos de fragmentação da identidade.
classe média urbana são, em grande medida, pro- Com efeito, a análise da conjugalidade estabe-
duto da transformação da situação das mulheres lece estreita cumplicidade com o entendimento das
(Vaitsman, 1994) que, ao desafiarem o seu velho formas de amor conjugal. Como diz Luhmann
lugar no interior do espaço privado, permitiram (1991), analisando de modo sistêmico os processos
novos quadros de flexibilidade e pluralidade. O ex- que tornaram a paixão e depois o romantismo códi-
libris desse movimento é retratado por Salem (1989) gos semânticos socialmente partilhados, o sentimen-
na sua pesquisa sobre o “casal grávido”, uma for- to amoroso moderno, que é uma conseqüência da
ma extrema de casal igualitário, centrado em si individualização social, deu ao conjugal imensa im-
mesmo e empenhado em tudo partilhar, como portância. Entretanto, o incremento da autonomia

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individual e do ideal de relação permanentemente refugiaria no âmago da vida privada. Similarmente,


amorosa tornam o casal romântico mais difícil de Kellerhals et al. (1982, p. 33) apontam que “é como
concretizar. O “amor confluente”, de que nos fala ‘oportunidade de sociabilidade’, contra a fragmen-
Giddens (1996), trata disso mesmo, procurando diag- tação da pessoa, que se constitui o casal contempo-
nosticar as dinâmicas afetivas contemporâneas, re- râneo”. Por seu turno, Berger e Kellner (1975 [1962])
lações entre parceiros iguais, que investem na advogam que o casamento de amor serve como pro-
transparência relacional e nas recompensas sexuais, teção contra a anomia, oferecendo ao indivíduo a
enquanto tal empreendimento for satisfatório para coesão necessária para que ele possa dar sentido
cada um deles. Perenidade e fidelidade são ques- à sua existência. Todavia, a força individualizante
tionáveis, desde que negociadas entre parceiros au- do amor pode, por vezes, ser excessiva, gerando
tônomos. A articulação entre aliança e sentimento, paradoxos e tensões, gerando as “tiranias da intimi-
característica do romantismo, cede lugar à eclosão dade”, para usar a expressão que Sennett (1986
da paixão erótica entre iguais permitida pela indi- [1974]) aplicou ao movimento de progressiva psi-
vidualização contemporânea. Em Sociedade e subje- cologização da vida pública.
tividade (2002 [1986]), Gilberto Velho aborda a rela- Fala-se crescentemente, portanto, dos parado-
ção entre afetos e individualização, focando a xos das conjugalidades contemporâneas, divididas
importância da paixão, inesperada e fluida, tão elo- entre um ideal romântico de fusão afetiva perma-
giada entre as camadas médias da sociedade cario- nente que, mesmo transformado, perdura, e o inves-
ca dos anos de 1980, como símbolo do individua- timento na individualidade e na satisfação erotizada,
lismo contemporâneo. mas transitória, da paixão amorosa. Féres-Carneiro
(1998, p. 384) chama-lhe “o difícil convívio da indi-
vidualidade com a conjugalidade”. Para Simmel
Entre eu e nós: paradoxos das conjugalidades (2004 [1921-1922]), as tensões imanentes ao ideal
contemporâneas contemporâneo de casamento decorrem da sua
natureza hiperafetiva: o desejo pelo outro é de tal
A importância do amor no fluir das relações modo absoluto que é capaz de originar uma sensa-
sociais, na conquista de igualdade de gênero e na ção de vazio, de esgotamento. A descontinuidade
construção de si tem sido sobejamente sublinhada entre o plano dos afetos, objeto de tão elevadas
por vários autores e em diversos contextos. Ao amor expectativas, e o mundo das rotinas cotidianas po-
é concedida, no entanto, uma qualidade dual: ele dem gerar fragmentação e mesmo sofrimento (Ve-
singulariza, apresentando-se simultaneamente como lho, 2002 [1986]; Vaitsman, 1994). Além disso, a
possibilidade redentora em face do lado negro da oscilação entre o desejo de fusão e a ênfase no eu
individualização. Essa capacidade unificadora é fri- constitui uma dinâmica complexa. Como nota Sa-
sada por muitos autores. Para Luhmann (1991), a lem (1989), o “dois em um” do casal igualitário vai
manutenção da identidade individual depende de cedendo às demandas da individualidade, superada
instâncias particulares que a confirmem e a apóiem. a fase de apaixonamento intenso. Nesse sentido, o
Ora, numa sociedade altamente diferenciada, o amor aumento do divórcio e da recomposição conjugal
transformou-se no único meio de comunicação entre retratariam precisamente a contestação da perenida-
a individualidade e um “mundo próximo”. Tam- de do casamento, mas mostrando, simultaneamen-
bém para Simmel (2004 [1921-1922]), o amor pos- te, a crescente importância do bem-estar individual
suía essa capacidade de suportar a fragmentação e da paixão erótica na relação a dois. Não é afinal o
do eu, ao mesmo tempo em que retirava o indiví- enorme investimento num casamento de amor li-
duo de um todo indistinto, dando-lhe um caráter vre de constrangimentos institucionais que o expõe
único. Do amor depende, como notam Singly (1996) tão e cada vez mais freqüentemente à dissolução?
ou Kaufmann (1999), a afirmação de uma identi- Se o amor romântico vinculava-se a um casal
dade individual que, ante a pluralização e a impes- fusional e funcional (ao modo parsoniano), sexual-
soalidade dos círculos da vida pública, cada vez se mente diferenciado e estático na percepção da di-

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nâmica relacional (que as histórias românticas do “e amores para enfatizar a sua multiplicidade) ajuda-
foram felizes para sempre” tão bem tipificam), nos a decifrar os códigos relacionais atuais.
novos comportamentos na vida familiar refletem
formas híbridas de combinar amor e conjugalidade,
justapondo, de forma heterogênea, elementos de Uma análise dos discursos femininos
diversas semânticas do amor (Gucht, 1994; Ney- a dois tempos
rand, 2002; Douglas e Atwell, 1988; Velho, 2002
[1986]; Bozon e Heilborn, 1996). Resta saber como Na análise das orientações amorosas demos
estas se entrecruzam na conjugalidade. Em que relevo à semântica utilizada para exprimir os senti-
medida persistem os códigos do romantismo? mentos, focando a variedade terminológica dos
Como se combinam com os ideários reavivados discursos. Paixão, amor, amizade, desejo, companhei-
do amor-paixão, intenso, ausente de cotidiano, efê- rismo são afinal vocábulos empregues de várias
mero? E o amor autônomo, como tipificado na maneiras e em conjugações diferentes. A contagem
“relação pura” de Giddens, em que medida e com e a interpretação das palavras femininas teve como
que especificidades existe entre os casais individua- base um conjunto de perguntas que visavam a recons-
lizados de hoje? Como resistem os afetos conjugais tituir o “trajeto amoroso” das entrevistadas, desde
ao passar do tempo e de que modo se localizam o namoro e o início da vida conjugal até o presente.
em determinados grupos sociais? Perguntamos-lhes o que sentiam pelo cônjuge no
Este conjunto de questões condensa os objeti- passado e quais as transformações ocorridas ao lon-
vos deste artigo. Num contexto de entrecruzamen- go dos anos vividos em comum. Esta metodolo-
to entre romantismo e casal fusional, companhei- gia indutiva permite aferir a enorme diversidade de
rismo e igualdade, paixão amorosa e autonomia interpretações suscitadas pela dimensão afetiva.
individual, procuramos trazer à arena empírica o Como diz Dauster (1984, p. 525), “amores são vi-
debate sobre a sentimentalização da conjugalidade vidos”, propondo que é a partir de relações con-
e a crescente complexidade promovida pelos pro- cretas que os indivíduos criam as noções de amor,
cessos de individualização. De um lado, esperamos tanto do amor cristão como do sexual. Com efei-
descobrir um cenário de pluralidade das semânti- to, a autora, ao analisar os discursos sobre o amor,
cas afetivas2 nas conjugalidades contemporâneas. a amizade, a paixão, entre mulheres e homens de
Analisando discursos femininos,3 recolhidos em 22 camadas médias do Rio de Janeiro, decompôs os
entrevistas em profundidade realizadas com mu- significados plurais associados a estes termos, sali-
lheres entre 30 e 40 anos, vivendo em conjugalida- entando a correlação entre a trajetória de vida e os
dade (casamento ou união consensual, primeiras significados do amor para o indivíduo.
conjugalidades e recasamentos) com filhos em ida- Em concordância com esses postulados analí-
de escolar e residentes na área metropolitana de ticos, identificamos várias orientações amorosas, mas
Lisboa (Portugal),4 tentamos identificar, de modo também diferentes trajetórias sentimentais. Em vez
indutivo, diferentes orientações amorosas. Entre- de um discurso ou percurso hegemônico, são plu-
tanto, cientes de que os afetos se (re)constroem ao rais as formas de representar, de viver e de reinven-
longo do tempo, investigamos as orientações femi- tar ao longo do tempo o amor a dois. Descrevere-
ninas no presente e no início da vida conjugal, ana- mos em seguida as orientações, os trajetos e também
lisando assim o efeito do trajeto sobre os discursos. as tensões associadas a três grandes semânticas: o
De outro lado, procuramos articular afetos e dinâ- amor como paixão, como companheirismo ou
micas conjugais, comparando mulheres pertencen- como sentimento de “alternância”. Observamos
tes a diferentes camadas sociais. Por meio dessa ainda, sempre partindo de exemplos empíricos,
dimensão afetiva retratamos formas plurais de in- como cada uma delas se articula a diferentes con-
dividualização nas sociedades contemporâneas. A cepções do casal mais ou menos centrado na fusão
ênfase nos sutis cruzamentos entre as qualidades de individualidades ou na proteção da autonomia
unificadoras e singularizantes do amor (ou dos pessoal.

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O amor como paixão: corpo e cotidiano Trata-se de um amor algo falho de cotidiano,
próximo do ideal-tipo de “amor-paixão”. Mas,
Os termos “paixão” ou “estar apaixonado”, contemos um pouco das histórias conjugais destas
traduzindo um dos ideários contemporâneos mais mulheres, recasadas e impelidas pelas circunstâncias
comuns, surgiram muito freqüentemente nas narra- a buscar uma independência pessoal que constitui
tivas femininas, não obstante com sentidos diferen- hoje um elemento essencial das suas identidades.
tes. A pluralidade de significados, por vezes até pa- Alice e Rosa têm em comum a escolaridade
radoxais, da paixão reflete a sua relação complexa secundária, embora com profissões relativamente
com a individualização da vida conjugal. De um bem remuneradas: a primeira trabalha num barco
lado, a paixão exige uma fusionalidade intensa do sueco e a segunda no setor da publicidade. Ambas
casal, de outro, pode fragilizar a aliança e promo- vivem em união consensual, respectivamente pela
ver a busca de si mesmo. segunda e terceira vez, e têm vários filhos (de ante-
riores relações e também da atual). Ambas passa-
ram por várias rupturas e recomposições, conti-
Uma paixão corpórea
nuando a experimentar instabilidade afetiva, em
cenários conjugais atribulados e de grande separa-
Um dos significados emergentes alinha-se de ção cotidiana. Com seus parceiros pouco partilham
perto com a semântica original do amor-paixão, tarefas, responsabilidades, despesas, lazeres. O com-
revelando uma conexão difícil com o mundo das panheiro de Alice (ex-presidiário e ex-toxicômano)
rotinas. O amor como paixão corpórea encontra- está desempregado, vivendo ocupado pelas socia-
se em discursos que, longe do romantismo e da bilidades com seu grupo de amigos; o de Rosa tam-
aliança, elegem o laço existente na relação entre dois bém não tem emprego fixo e passa o tempo em
corpos, valorizando a paixão física intensa. Para Ali- encontros de motards, saindo de casa sem dia para
ce ou Rosa, duas entrevistadas de camadas inter- voltar. São elas a fonte de sustento do lar e dos
médias, a semântica da paixão continua, passados filhos, bem como a figura educadora, em casa. Entre
alguns anos de vida em comum (quatro no caso da o casal, carecido de cotidiano, restam os encontros
primeira, cinco no da segunda), a privilegiar a se- sexuais marcados pela paixão.
xualidade, domínio eleito da proximidade conju- Se pensarmos no amor-paixão como sentimen-
gal. A percepção da mudança afetiva não é, assim, to quase místico e fortemente sexualizado, que exis-
ressaltada, acabando as mulheres por narrar, em tons te contra e fora do cotidiano, encontramos encaixe
místicos, as suas histórias conjugais, vinculando-as à para o discurso destas mulheres. Alice e Rosa expri-
idéia de encontro sexual extraordinário. mem a continuidade inalterada dos encontros apai-
xonados, dizendo “há uma essência comum” e “sou
Sentimento inicial mulher daquele homem”. Embora haja problemas,
“Paixão, pode-se dizer. Estava apaixonada. E e, como diz Rosa, “uma data de coisas a afastar-
depois claro a paixão física. Sempre”. nos”, o sentimento conjugal vai permanecendo com
Transformações ao longo do tempo a mesma incerteza apaixonada do começo da rela-
“Sinto um laço forte... Paixão. Sou mesmo ca- ção, com maior peso da sexualidade do que da alian-
sada com ele [...], embora mantenha a minha ça. Como notou Féres-Carneiro (1998), comparando
individualidade, os meus pequenos quartos se- dez casais em primeira conjugalidade e dez reca-
cretos... enfim, não me entrego assim toda, to- sados das camadas médias cariocas, a exaltação da se-
dinha. Sou mulher daquele homem [...], embo- xualidade é muito mais comum em situações de
ra depois haja uma data de coisas a afastar-nos... recasamento, como as que aqui descrevemos. A re-
O assunto da cama é que é sempre bastante lação conjugal acaba por ser também vivida de for-
animado”. ma mais individualizada e sensível à instabilidade da
ROSA, 39 anos, publicitária, 11º ano, 3ª união paixão. Gilberto Velho encontrou discursos sobre
consensual; duração: 4 anos os imperativos da paixão entre camadas médias

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individualizadas do Rio de Janeiro dos anos de 1980. ticas seja por vezes relativa), aparece como suporte
No entanto, a semântica da paixão e a individuali- do sentimento: o apoio mútuo é uma condição es-
zação dos projetos de vida podem ser encontradas sencial para alimentar a proximidade e a “paixão”
mesmo em grupos sociais menos qualificados, como entre o casal.
aqui acontece. As trajetórias afetivas instáveis pare-
cem levar à erosão do investimento romântico numa Sentimento inicial
relação cotidiana e durável. Ao mesmo tempo em “Ah, sei lá. Eu acho que era uma doença. O
que as mulheres deixam de ver no homem a figura homem saía à noite, eu parece que já estava cheia
de apoio e sustento da família, guardam (Vaitsman, de saudades mal ele saía ao fim de cinco
1997), ainda assim, elementos de paixão, os únicos minutos”.
que sobrevivem à falta de rotinas. Transformações ao longo do tempo
“Em termos de paixão [...]. Pronto, eu digo
A paixão cotidianizada que o meu dia a dia sem o meu marido não era
nada. É o meu braço direito, sem dúvida. É
Uma segunda orientação amorosa partilha com uma chama sempre acesa. É assim, a confiança
a primeira um discurso presente vinculado aos ter- aumentou imenso, muito mesmo. A total
mos “paixão” ou “chama sempre acesa”, em con- confiança não se adquire num ano de namoro.
tinuidade com o sentimento inicial. Contudo, ao É com o passar dos anos. E para mim, aquela
contrário do anterior, a semântica da paixão serviu chama está sempre acesa”.
para alimentar a proximidade cotidiana no casal. RAQUEL, 36 anos, proprietária de loja de rou-
Trata-se assim de um “amor apaixonado” fusional pas, 6º ano, 1º casamento religioso; duração:
e rotinizado, mais próximo de um romantismo ori- 17 anos
ginal, não domesticado, que valoriza a sexualidade
e, mais do que tudo, a relação a dois. Esta visão aparece nos relatos de mulheres com
Preferimos utilizar a expressão “amor-apaixo- diferentes capitais escolares e profissionais (Raquel
nado”, procurando torná-la alternativa aos ideais- tem apenas o 6º ano do ensino básico, mas é dona
tipos de “amor-paixão” (não cotidiano, fortemente do seu próprio negócio, Rita é licenciada e asses-
sexualizado, possessivo, arrebatador) ou de “amor- sora de edição de uma revista científica), mas que,
romântico domesticado” (fundado sobre a expres- por valorizarem imensamente a dinâmica interna do
sividade feminina, a diferenciação de gênero, a pro- casal, não investem fortemente em projetos pro-
ximidade intuitiva). O amor apaixonado pretende, fissionais autônomos. É interessante que este dis-
enfim, designar começos amorosos sexualizados, curso apaixonado seja comum a mulheres de dife-
mas permanentemente reconstruídos. Afinal, con- rentes camadas sociais. Embora o ímpeto fusional
cluímos, “estar apaixonada” é expressão de signifi- seja mais forte quando a escolaridade feminina é
cados múltiplos, associada a formas diferenciadas mais baixa, o ideário amoroso é relativamente
de conjugalidade. partilhado. Tanto Raquel como Rita casaram cedo
A percepção de se estar apaixonada depois de (respectivamente com 19 e 23 anos) e habitua-
anos vividos em comum alia-se a um “nós conju- ram-se, desde logo, a centrar suas individualidades
gal” alimentado pelas rotinas, as responsabilidades na vida de casal, distanciando-se mesmo, por ra-
domésticas e os filhos. O “apaixonamento” é visto zões de conflito, das famílias de origem. O casal e a
como processo dinâmico, amadurecendo pela ex- família nuclear passaram, assim, a ser a sua grande
tensão da partilha fusional no casal. O estar juntos, ancoragem emocional, porto de abrigo fusional
os ritmos comuns (como o ir dormir ao mesmo para o eu.
tempo), o diálogo e a intimidade ancoram um dis- Compreende-se, portanto, a transversalidade
curso dominado pelos lados emocionais da vida social de um ideário amoroso que articula o lado
em comum. A cooperação instrumental cotidiana, apaixonado à proximidade fusional entre o casal,
também valorizada (ainda que a igualdade nas prá- destacando a partilha íntima, comunicacional e

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sexual, em detrimento de dimensões de aliança e de Os casos descritos a seguir perfilam a passagem


integração do casal no grupo de parentesco ou na de um discurso sobre o apaixonamento para uma
comunidade. Interligam-se referências historicamen- semântica do amor-amizade, traduzindo o que Sa-
te construídas sobre o amor. A harmonia e a sere- lem (1989, p. 10) denominou “impreterível ‘necessi-
nidade do amor romântico domesticado misturam- dade de discriminação’”. Esta mudança-chave pode
se com a sexualização da semântica da paixão, num ser, entretanto, percebida em função de diferentes
quadro repleto de características modernistas. Tal processos subjetivos. Nuns casos, o nascimento dos
como entre casais igualitários descritos por Salem filhos parece ser o fator-chave da mudança senti-
(1989), aqui a fusão intensa do apaixonamento alia- mental (percepção centrada no evoluir da dinâmica
se à busca de igualdade entre cônjuges e ao centra- familiar), noutros, associam-se as transformações
mento no duo conjugal. ao amadurecimento pessoal (percepção autocentra-
da). Vejamos um exemplo da primeira dinâmica,
A efemeridade da paixão: duas trajetórias associada a formas de individualização mais comuns
nas camadas populares (Vaitsman, 1997).
Na reconstrução discursiva feita pelas mulhe- Para Telma, as transformações afetivas vincu-
res, a maioria das conjugalidades inicia-se pelas portas lam-se ao nascimento das duas filhas (hoje com 10
da paixão. Contudo, em muitos casos, a vida em e 16 anos). A partir daí o duo cresceu, impondo a
comum, o nascimento dos filhos e até as mudanças repartição do afeto antes exclusivamente canaliza-
a nível pessoal são fatores enumerados para justifi- do para o casal. Com a passagem de casal para
car uma transformação emocional que, freqüente- família, perde-se em amor-apaixonado, associado
mente, era esperada e considerada “natural”. Várias a uma fase de dedicação exclusiva ao cônjuge, e
mulheres se referem àquilo que para elas é um saber fabrica-se a amizade.
óbvio: os sentimentos mudam com o tempo e com
a convivência a dois. Assim, uma das principais dinâ- Sentimento inicial
micas dos discursos femininos identifica a passagem “Muito amor, não é? Estava apaixonada por
de um amor-apaixonado para um amor-amizade. ele”.
Se as palavras retrospectivamente utilizadas para Transformações ao longo do tempo
qualificar o sentimento inicial pelo cônjuge destacam “Pronto, não posso dizer que é aquela paixão,
os termos “paixão”, “amor”, “estar apaixonada”, aquele fogo como era há 20 anos atrás. É dife-
atualmente as referências relevam o amor-amizade rente. Não sei o que é que acontece com as
e o companheirismo, dando conta do “arrefecimen- outras mulheres mas comigo é assim. Há uma
to” e da transformação da paixão inicial. Luhmann amizade grande depois de tantos anos, e temos
(1991) identifica nesta evolução uma salvaguarda da os nossos filhos, a nossa vida... acho que com o
perenidade do próprio casamento, contra a fragili- nascimento dos filhos as coisas mudam”.
dade do “amor-paixão”, rápido e freqüentemente TELMA, 37 anos, empregada doméstica, 6º ano,
dissolúvel. Na busca de fundamentos sólidos para 1º casamento (coabitação e religioso); duração:
uma relação duradoura, uma solução seria precisa- 19 anos
mente a proposta pela noção de “companheiris-
mo”. Afirma o autor (Idem, p. 203) que “no matri- O amor-amizade constrói uma aliança (Rous-
mônio não se procura um mundo ideal, elevado à sel, 1991) permeada de algum romantismo, mas em
qualidade de irreal e muito menos uma efetivação que as componentes instrumentais e de gênero são
permanente dos sentimentos passionais, mas uma importantes. O projeto familiar, orientado para o
base para compreender e realizar em conjunto tudo futuro dos filhos, existe num quadro de divisão de
aquilo que é importante para a pessoa”. Neste caso, tarefas e de competências: ao marido (operário in-
tal máxima parece aplicável. No entanto, como ve- dustrial) compete, mais do que à mulher, a respon-
remos, a essa dinâmica nem sempre subjazem as sabilidade de prover, e a esta cabem, em contra-
mesmas motivações. partida, responsabilidades acrescidas nas tarefas da

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DA PLURALIDADE DOS AFETOS 115

casa e na educação dos filhos. A solidez da “grande maior autonomia. Como ela própria refere “[...]
amizade” fabrica um laço de complementaridade, antes andávamos muito mais atrelados um ao ou-
cujo centro são, acima de tudo, os filhos. tro e isso não era muito positivo”.
Todavia, a percepção do evoluir do sentimen- Marido e mulher tiveram de se tornar mais
to pode vincular-se a uma outra ordem de razões, companheiros, mais cooperantes, para que ela ti-
agora colocando o ônus no amadurecimento pes- vesse a possibilidade de voltar a estudar no perío-
soal, processo autocentrado e sem conotação com do noturno, conciliando esta nova atividade com as
acontecimentos exteriores. Entre as camadas médias, responsabilidades da vida familiar. Provavelmente,
os discursos tendem a quedar-se por forte psicologi- a dinâmica de desenvolvimento pessoal aqui salien-
zação, como foi notado, no caso brasileiro, por di- tada não é alheia à valorização de um sentimento
versos autores (Velho, 2002 [1986]); Vaitsman, 1994; de companheirismo conjugal, fabricado após o pe-
Salem, 1989). É pelo menos esta a lógica enunciada ríodo de começo apaixonado, lógica e necessaria-
por Alexandra, mulher com escolaridade elevada, mente mais fusional. Com o tempo, a descoberta
em fase de investimento profissional e pessoal: progressiva da autonomia acompanhou as transfor-
mações afetivas, passando-se da indiferenciação
Sentimento inicial apaixonada à individualização simétrica entre o casal.
“Acho que casei muito apaixonada”. Esta passagem, nem sempre fácil, está clara-
Transformações ao longo do tempo mente documentada no trabalho de Salem (1989).
“Hoje é mais uma grande amizade. Acho que é Mas outros autores enunciaram processos simila-
uma coisa diferente. Muito mais forte. Chora- res, assinalando os perigos das “tiranias da intimi-
se muito menos. De início é tudo um grande dade”, e da fusão entre ego e alter (Simmel, 2004
drama, chora-se muito e agora não. O compa- [1921-1922]), para a autonomia pessoal (Sennett,
nheirismo é fundamental. [...] Houve mudan- 1986 [1974]). Nos processos descritos, fica expres-
ças. Houve, nós também mudamos, já não so- sa a natureza dual da paixão: a singularidade da indi-
mos as mesmas pessoas. Amadurecemos, acho!” vidualidade é obtida pela alteridade liberta de cons-
ALEXANDRA, 37 anos, dona de boutique e estu- trangimentos que a paixão simboliza, mas a
dante, licenciatura incompleta, 1º casamento re- permanência do estado de paixão acaba por cons-
ligioso; duração: 12 anos tituir entrave a projetos pessoais e investimentos na
vida pública, podendo transformar-se em fonte de
No companheirismo do presente conjugal re- conflito e tensão na relação conjugal. Esses perigos
flete-se o investimento em si, uma progressiva dose foram assinalados pelo próprio Freud (1971
de autonomia pessoal. A quebra da paixão fusional [1929]), ao ressaltar que a paixão dilui as fronteiras
permite individualização pessoal, dando agora espa- entre ego e objeto, dando a impressão de se ser um
ço ao desafio de construir “uma unidade com dois” só. Ora, para o autor, a vida psíquica deverá aliar a
(Salem, 1989, p. 10). Quando casou, Alexandra ti- capacidade de fusão e a de diferenciação. Sem este
nha concluído um bacharelato em administração e último processo, perder-se-ia a noção de si mesmo.
marketing e começou a trabalhar com o marido num Embora no anterior exemplo tenhamos docu-
negócio de revenda de roupa. Quando nasceram mentado processos de rotinização do apaixonamento
os filhos (dois gêmeos atualmente com 5 anos), em conformidade com ideais românticos não do-
Alexandra deixou de trabalhar para prestar assis- mesticados, assim evidenciando a independência do
tência aos bebês; passado três anos resolveu mon- nós-casal em face de lógicas institucionalistas tradi-
tar um negócio só seu e, simultaneamente, voltar a cionais, a maioria das trajetórias afetivas femininas
estudar. Na dinâmica familiar, este processo de rein- vem encaixar-se na dinâmica agora descrita. Tanto
vestimento profissional e acadêmico refletiu a tran- em camadas populares como nas médias, assisti-
sição de uma fase orientada pela fusão conjugal (que mos a formas de diferenciação do eu que com-
dominava também na esfera sentimental, mais apai- põem um retrato matizado dos processos de indi-
xonada e “dramática” do que hoje) para uma de vidualização nas sociedades contemporâneas.

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Amor romântico, aliança e companheirismo Alguns traços característicos do ideal de amor


romântico encontram-se presentes: a idealização
Em contraste com a semântica da paixão, os mística da união e do parceiro, a ausência de percep-
discursos sobre o amor, o companheirismo, a ami- ção de mudanças, a visão da relação centrada numa
zade encerram visões românticas do casal que, em- proximidade apriorística (a cumplicidade advém de
bora diversas, são geralmente promotoras de lógi- uma semelhança de alma), o relevo dado à comple-
cas pouco individualistas, cimentando ideais de mentaridade de gênero. Mas trata-se de um roman-
complementaridade, aliança e projeto familiar for- tismo claramente domesticado por papéis de gêne-
te mesmo entre mulheres de camadas médias urba- ro diferenciados. A imagem de mulher-mãe, pouco
nas. O trajeto amoroso, menos subordinado aos sexualizada e portadora de capacidades expressivas
códigos da paixão, sofre também menos o efeito relevantes é salientada, opondo-se-lhe a imagem
do tempo, na forma como é relembrado. masculina de proteção, segurança, sustento. Matilde
coloca esta questão de modo explícito ao referir-se
Um amor romântico domesticado ao marido como sendo um segundo filho de quem
tem de cuidar.
Uma dessas orientações exalta a natureza inde- A história de Matilde é ilustrativa. Começou a
finida amor e, ao contrário da maioria, as altera- namorar com o marido muito nova (com 12 ou
ções construídas pelo tempo não são assinaladas. O 13 anos), tendo vindo a casar-se com 17 anos, de
caráter subjetivamente estático dos sentimentos pelo modo a anular a distância geográfica que os sepa-
cônjuge corporifica-se num forte romantismo, des- rava: Matilde era filha de emigrantes na França e
crito de forma quase mística (o marido é a alma ele vivia em Portugal. Apoiada no que achava ser o
gêmea). Quem o diz são mulheres católicas pratican- seu destino, e na liberdade que o amor legitima,
tes, com poucas qualificações acadêmicas, casadas contrariou os pais, deixou de estudar e casou-se
na Igreja pela primeira e única vez. Mulheres para apressadamente com o marido, operário de pro-
quem a perenidade do casamento é um valor sacra- fissão. A partir daí começaram, como Matilde sa-
mental, a diferenciação de gênero algo naturalizado lienta, a viver um para o outro quase que exclusiva-
e a dimensão erótico-sexual secundária quando com- mente, ocupando-se ela das tarefas do lar, só
parada com a natureza espiritualizada da relação. nascendo o único filho do casal passados dez anos
de tentativas fracassadas. Crescimento conjunto é a
Sentimento inicial expressão que ela própria utiliza, referindo-se sem-
“Somos parecidos em tudo. Portanto, quando pre que ambos são tão parecidos que nem preci-
eu o conheci, acho que pareceu-me que encon- sam de falar para se compreenderem. Uma união
trei a minha alma gêmea... Há qualquer coisa, precoce associada a uma visão romântica do ca-
não estou a falar de paixão, nem de amor... é samento, que Matilde apóia grandemente na sua for-
algo mais que nos une e não sei explicar o que te religiosidade católica, favoreceu uma integra-
é, mas sei que existe qualquer coisa. Temos uma ção conjugal de ma-triz fusional, em que até hoje
grande ligação em tudo, exatamente”. não houve espaço para mudanças. Para Matilde, tudo
Transformações ao longo do tempo permanece igual aos primeiros tempos, não tendo
“Não, para mim penso que não houve mudan- havido sequer grandes alterações após o nascimen-
ças... entre marido e mulher há uma grande cum- to do seu primeiro e único filho: se algumas rotinas
plicidade. É que tudo o que se passa, conto- foram alteradas no que respeita a saídas e lazeres, o
lhe...e ele também. Que seja bom, que seja mau... relacionamento entre o casal permaneceu, no es-
há um grande diálogo entre nós e para mim, sencial, o mesmo. Neste caso, a orientação ro-
faz de conta que ele é... não tenho um filho, mântica, domesticada, apóia-se na diferenciação de
penso que tenho dois!” gênero e em dimensões de aliança, afastando-se de
MATILDE, 38 anos, vendedora de publicidade, valores de igualdade, realização pessoal e reflexivi-
11º ano, 1º casamento religioso: 21 anos dade relacional.

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DA PLURALIDADE DOS AFETOS 117

O companheirismo como ética de vida a dois amor-amizade, como dinâmica a cooperação e


como fundamento um projeto de vida comum.
Os relatos mais comuns entre as entrevistadas Projeto de vida que é obviamente um projeto de
estão, todavia, distantes deste romantismo estático. família, desenvolvido num quadro de relações de pa-
Privilegiam uma ética de companheirismo que, em rentesco mais alargadas.
vez de se construir como sentimento dominante no No presente, encontramos sentimentos de com-
rescaldo de uma fase de “apaixonamento”, esteve panheirismo consolidados pela ação de partilhar a
presente desde o início. Nestes casos, normalmente vida de modo fusional, em quadros de relativa igual-
associados a mulheres de camadas médias, escola- dade. Procura-se não a complementaridade, mas a
rizadas e profissionalmente empenhadas, a semân- cooperação entre cônjuges. O próprio liame senti-
tica do amor começa desde logo a construir-se em mental depende dessa cooperação. Foi por meio
torno do sentimento de amizade. dela, e não tanto de arroubos emocionais, que se
produziu a afinização progressiva entre parceiros,
Sentimento inicial unidos pelo projeto comum de construir uma fa-
“[...] éramos muitos amigos, aliás o meu mari- mília. Para Carlota, professora do ensino básico no
do sempre gostou muito de mim desde o iní- colégio de que sua família de origem é proprietária,
cio do liceu, e eu de certa forma estava mais casar e ter filhos é simultaneamente uma função so-
preocupada com outras coisas e sempre andei cial a desempenhar e um “destino espiritual” a cum-
mais fugida e pronto na altura havia uma gran- prir. Todavia, este projeto familialista não é incom-
de amizade e...”. patível com certos valores modernistas. Afinal, uma
Transformações ao longo do tempo relativa igualdade de gênero subjaz à cooperação
“Existe uma grande amizade, existe um grande conjugal. Alguma autonomia pessoal é também va-
carinho, um grande companheirismo, uma gran- lorizada, quebrando o registro fusional, e até insti-
de partilha, pronto, digamos que a amizade tucionalista, com que se descreve a conjugalidade e a
cresceu muito entre nós os dois”. família. Entre mulheres de camadas médias, as di-
CARLOTA, 33 anos, professora e dona colégio, mensões de aliança, aliadas de um romantismo suave
licenciatura, 1º casamento religioso; duração: e domesticado, podem assim ter importância, em-
10 anos bora transformadas por outros valores. Esses pro-
cessos mostram, entretanto, a não linearidade entre
Este companheirismo conjugal liga-se a duas classe social e individualização, evidenciado a com-
idéias. Uma elege a cooperação instrumental (nas plexidade dos ideais de autonomia nas sociedades
tarefas, nas decisões) e expressiva (no diálogo cons- contemporâneas.
tante, no apoio emocional) como componente bási-
ca do casamento. A outra destaca a importância do
projeto familiar comum. Lutar a dois para realizar Uma “lógica de alternância”
determinados objetivos (ter uma casa, ter uma famí-
lia, progredir economicamente, educar os filhos de Nestes últimos discursos existe, como em ou-
determinada forma etc.) é uma das grandes metas tros, a valorização de um amor apaixonado. Contu-
do casamento, sempre uma relação de aliança fami- do, há diferenças importantes. Uma delas reside na
liar. O próprio funcionamento do cotidiano conju- relação entre amor e rotinas. Enquanto o “compa-
gal depende, em última instância, da proximidade nheirismo apaixonado”, retratado anteriormente, se
em matéria de ideais e visões de mundo: pode tra- alimenta do próprio cotidiano, aqui as rotinas cons-
tar-se da partilha de idéias relativas à educação dos tituem uma “ameaça” (pelo menos um entrave) à
filhos, ao bem-estar econômico, a opções sociais e vivência plena de um sentimento apaixonado. Este
políticas ou religiosas. Cooperação, projeto e amizade são, contrasta com a rotina: é difícil ter uma vida profis-
assim, três palavras-chave de uma semântica do sional, realizar-se como pessoa, ser mãe e educado-
companheirismo que privilegia como sentimento o ra, cuidar dos assuntos domésticos e financeiros e,

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ao mesmo tempo, manter-se permanentemente ção conjugal, nas vontades e nas decisões de cada
apaixonada pelo cônjuge. O companheirismo é as- um, na articulação entre tempos e espaços indivi-
sim um sentimento vital para sustentar a coopera- duais e coletivos, no próprio evoluir do lado amo-
ção necessária e desejável, enquanto a paixão se re- roso da conjugalidade. Optamos, assim, por utili-
encontra em certos momentos que continuam a ser zar o termo alternância para designar esta orientação
perseguidos na vida conjugal. em que discursivamente se mistura a semântica do
Entre companheirismo e momentos de paixão, amor-amizade com a do amor-paixão.
essas trajetórias caracterizam-se por uma lógica de O principal “paradoxo” sentido pelas mulhe-
alternância, apresentando-se plenas de desafios: va- res é imposto pela presença de rotinas cotidianas
lorizam-se a individualidade e a realização pessoal, que dificultam a manutenção de uma paixão para a
mas também a família e a maternidade; dá-se rele- qual escasseia o tempo. Entretanto, os sentimentos
vo ao “nós-casal” apaixonado e sexualizado, mas apaixonados são fundamentais para distinguir uma
também à amizade e ao companheirismo. A varie- relação conjugal de uma de amizade: tanto para
dade de termos utilizados para descrever o senti- Adriana como para Carolina é importante um casal
mento inicial (paixão, amizade, amor, desejo) enun- ser mais do que uma união promovida pela amiza-
cia, desde logo, a existência de uma semântica de. Fundar a relação sobre tais pressupostos, exi-
amorosa multifacetada, que assinala, aliás, mais um gentes de cooperação cotidiana, de diálogo, parti-
ponto de diferenciação diante de situações ante- lha e simetria, mas também de momentos de paixão
riormente descritas. e espaço individual, é uma empreitada dinâmica,
No leque de casos pesquisados, esta orientação exigente de uma permanente construção.
afetiva é a mais próxima do ideal-tipo proposto
por Giddens (1996). Para o autor, a relação pura Sentimento inicial
do amor confluente distingue-se do amor românti- “Estava apaixonada. Era um sentimento de
co em vários aspectos: uma visão simétrica do gê- paixão, de amor, de amizade...”.
nero, a noção dinâmica de que o que conta é a re- Transformações ao longo do tempo
lação especial e não a pessoa especial, a valorização “É um clássico dizer que a paixão não dura
da autonomia individual, a noção de contingência sempre! Quando as pessoas já vivem juntas há
e de necessidade permanente de construção, a vi- muito tempo, e nós apesar de tudo já vivemos
são da intimidade sexual como algo que precisa de juntos há muito tempo, obviamente não esta-
ser alimentado. Seria precisamente este tipo de rela- mos tão apaixonados como estávamos aos 18
ção aquele que melhor representaria o “paradoxo anos, aos 20... porque conhecemo-nos muito
da conjugalidade contemporânea” (Neyrand, 2002), bem, enfim, já refreamos os ímpetos iniciais da
ou seja, a divisão entre a fusão amorosa imanente paixão e sobretudo a vida rotineira e mais ou
ao desejo de intimidade, comunicação intensa e menos stressante que vamos levando também
paixão sexual e a autonomia individual valorizada e se encarrega de pôr um certo travão nesse sen-
perseguida pelos parceiros. timento de paixão... Apesar de tudo, acho que
O termo “paradoxo” parece, no entanto, ex- continuamos bastante apaixonados um pelo
cessivo para falar dos dilemas enfrentados pelas outro e que... não com as mesmas característi-
conjugalidades contemporâneas, modernistas e as- cas da paixão inicial... Mas acho que continua-
sociativas, divididas entre o “eu” e o “nós”. Todos mos com uma boa dose de paixão. [...] Ainda
os estilos de conjugalidade comportam tensões e não entramos na fase do “já somos só grandes
dificuldades específicas (Widmer et al., 2003), desde amigos”. Claro que somos grandes amigos, mas
as mais institucionalistas até as mais românticas e acho que continuamos a ser bastante mais do
fusionais. O que importa acima de tudo é o lugar que isso”.
simbolicamente concedido ao conflito no espaço ADRIANA, 37 anos, professora universitária, dou-
da relação. Quanto maior o grau de exigência, au- toramento, 1ª conjugalidade (coabitação e ca-
tonomia e reflexividade, maior a ênfase na negocia- samento civil); duração: 13 anos

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DA PLURALIDADE DOS AFETOS 119

Outra característica importante reporta-se ao romântico como princípio vívido do casamento.


investimento profissional feminino. Ainda que os Entretanto, atingida por crescentes transformações
encargos domésticos e com os filhos pesem na vida sociais no que respeita à individualização social, ao
das mulheres, a cooperação dos cônjuges, a pre- papel das mulheres e às relações de gênero, a visão
sença de uma empregada doméstica e uma boa base romântica do amor tem incorporado novos ele-
de apoio familiar (nomeadamente nos cuidados às mentos adequados ao aumento da autonomia fe-
crianças) concorrem para facilitar um investimento minina, à maior importância da realização pessoal,
profissional forte, condição essencial de uma valo- ao declínio da perenidade do casamento ou à cres-
rizada autonomia. Autonomia e realização profissio- cente visão da sexualidade como área de eleição
nal são, aliás, elementos dos quais depende a própria para a satisfação pessoal. Produzir-se-ia, assim, o
satisfação conjugal. A preservação da autonomia “amor confluente” de que nos fala Giddens (1996).
não se apresenta contra o sentimento amoroso e a Até que ponto esse retrato é válido para qualificar a
proximidade conjugal, mas como condição neces- realidade evidenciada?
sária para uma conjugalidade feliz. E, uma conjuga- Uma primeira conclusão a assinalar aponta pre-
lidade feliz supõe negociação entre dois “eus”, cada cisamente para a pluralidade de orientações amo-
um com seus gostos e seus projetos. Mais do que rosas na conjugalidade. Longe de haver um trajeto
isso, a relação conjugal depende do delineamento único ou uma semântica absolutamente dominante
de fronteiras, flexíveis mas eficazes, entre o territó- de expressão do sentimento, encontramos formas
rio do eu, do nós-casal, do nós-família. Como refere plurais de construção da afetividade na vida a dois.
Carolina, estar numa relação conjugal implica “Ser Se a constituição do casamento como relação de
feliz sozinha, mas ser feliz a dois, obviamente”. amor adquire características de hegemonia, demons-
Mais do que um simples paradoxo entre auto- trando o impacto dos grandes processos de histó-
nomia individual e fusão amorosa, em torno do ricos de sentimentalização da vida familiar na es-
qual argumentam alguns autores falando da cres- truturação da conjugalidade, é preciso também notar
cente individualização nas sociedades contemporâ- que as várias semânticas do amor (mais românticas,
neas, encontramos aqui uma estrutura tripartida de apaixonadas, amicais ou mesmo aproximadas ao
orientações – a autonomia pessoal, o investimento ideal de “relação pura”) se reatualizam nos discursos
“intimista” na relação de casal, a dinâmica parental individuais de maneiras específicas. Existem, efeti-
mais exigente de horários rígidos e cumprimento vamente, maneiras distintas de incorporação do amor
de tarefas familiares – que se procura conciliar. A romântico, do amor como amizade ou do amor co-
disposição para “separar” as várias instâncias privi- mo paixão, cada orientação reencontrando especi-
legiadas na vida privada (o eu, o casal, a família) ficidades no formato das relações de gênero no
parece, portanto, ser uma demanda vital no discur- casal, na concepção da identidade pessoal e do pro-
so reflexivo destas entrevistadas. jeto de vida, nos valores e na visão global (mais
institucionalista ou relacionalista) da conjugalidade e
da família, bem como no tipo de fusão conjugal e
Conclusões de autonomia individual construídas dia a dia.
Na verdade, perfila-se uma diversidade de se-
Da ênfase indutiva sobre os discursos femini- mânticas que, observada de um ponto de vista mi-
nos resultou a diversidade de categorias emergen- crossociológico, encerra maior complexidade do que
tes da realidade empírica, justificando sua discussão a reconstrução macro-histórica da passagem do
à luz da teorização sobre o amor em ciências sociais. amor-paixão para o amor-romântico, ou do que o
É hoje indiscutível a colagem entre amor e conju- desenvolvimento mais recente do amor-confluente
galidade, historicamente produzida pela domesti- deixam adivinhar. Na expressão do “sentimento
cação da “paixão” erótica ou dos excessos ultra- conjugal” aparecem misturadas diferentes conota-
românticos de veneração espiritual por uma amada ções semânticas (do amor, da amizade, da paixão...),
inatingível, a favor de uma concepção do amor criando margens para variadas configurações. Umas,

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120 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 24 No 70

minoritárias, em que o amor é percebido como Uma outra conclusão importante destaca, no
estático, outras, majoritárias, fundadas na dinâmica sentimento inicial, o uso majoritário de uma semân-
de companheirismo; umas em que o amor é com- tica do amor apaixonado, marcada pela prioridade
plementaridade e aliança entre masculino e femini- dos termos “paixão”, “estar apaixonado”, “atra-
no, outras em que se procura romper com a tradi- ção” etc. O uso dessa terminologia reconstrói o
cional diferenciação de gênero; umas em que se período conjugal inicial como época de fusão for-
procura cooperação amical, outras em que se tenta te, de querer estar com o outro numa altura de re-
manter viva alguma chama de apaixonamento; umas estruturação pessoal, de construção de novas roti-
em que se tende a separar o amor das rotinas (como nas, de novas formas de organização da vida. Uma
na “lógica de alternância”), outras em que se ali- fase de fusão inicial freqüentemente descrita com
menta o amor de rotinas (como as formas de amor recurso às categorias semânticas que o romantismo
sustentadas primordialmente pela amizade). herdou do amor-paixão. Dizer-se apaixonado é
No entanto, uma segunda conclusão importante também dizer-se em “estado de fusão” com o ou-
deve observar o caráter indelével do romantismo tro, associação perfeitamente encaixada no “dever-
como código amoroso do “apaixonamento” na ser” normativo que alia casamento e amor. A fusão
conjugalidade. Trata-se, contudo, de um romantis- instaurada pelo sentimento amoroso dos começos
mo transformado, pois vários fatores indiciam mu- conjugais é freqüentemente um elemento muitíssi-
danças na versão ultra-romântica do amor, que en- mo importante do processo de integração do ca-
contramos, por exemplo no caso de Matilde: um sal, embora sofra as alterações promovidas, no tem-
amor quase místico, subjetivamente estático e har- po, pela necessidade de “diferenciação de si”.
mônico, intuitivo, pouco sexualizado em que se de- Mas também este retrato majoritário do apaixo-
seja uma “fusão de almas” e que apela à diferencia- namento inicial é fraturado por algumas exceções à
ção entre masculino e feminino. No pólo oposto, o regra. Uma delas destaca desde logo o amor-ami-
amor como paixão corpórea, não cotidiana, é tam- zade e o companheirismo, a que não basta o ime-
bém a orientação de uma minoria, associando-se diatismo do amor, proposto pela idealização ro-
normalmente a lógicas de grande separação do ca- mântica, mas fundamentalmente a construção
sal no dia-a-dia. Na verdade, a maioria das mulhe- progressiva da amizade; o efeito repentino da fle-
res valoriza simultaneamente várias dimensões rela- cha de Cupido idealizado pelo romantismo é afinal
cionais: o companheirismo, a cooperação e a busca bastante diferente do sentimento progressivamente
de igualdade, ou pelo menos de entreajuda, aliam- construído que é a amizade. Um outro modelo
se aos lados amorosos da vida a dois. Estes são amoroso segue ainda o que consideramos ser a “ló-
descritos como sensíveis ao tempo e exigentes de gica de alternância”. Ao abrigo da idéia de relação-
um trabalho de permanente edificação, justificando construção, numa incontornável mistura de amor e
a noção de “amor-construção” (Torres, 2000). A de rotinas, de amizade e de paixão, de espaço do
própria sexualidade conjugal é normalmente assi- eu e de espaço do nós, a justaposição de categorias
nalada como mais uma dimensão a alimentar ao semânticas já caracterizava, pelo menos na recons-
longo da relação. trução retrospectiva do sentimento, o casal desde
Apesar de os começos apaixonados serem ma- os primeiros tempos da sua formação.
joritários no leque de situações investigadas, é tam- Fundamentalmente, importa frisar que o amor
bém verdade que as definições do sentimento de é, na maioria dos casos, subjetivamente vivido como
paixão ou daquele que lhe sucede, transformando-o um processo dinâmico, sujeito às mutações trazidas
ou consolidando-o, seguem trajetórias bastante di- pelos anos de vida em comum, ao ritmo da rotini-
versificadas. Na verdade, a comparação entre os zação da conjugalidade. Assim se compreende que
dois discursos (um retrospectivo sobre o início e o o sentimento atual, resultante de um trajeto a dois,
outro sobre a atualidade) mostra talvez os aspectos seja descrito por uma terminologia mais variada e
mais interessantes da associação entre amor e híbrida, enunciando a cumplicidade entre a dimen-
conjugalidade. são afetiva e a dinâmica interna do casal ao longo

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DA PLURALIDADE DOS AFETOS 121

do tempo. Assim se compreende a articulação entre sociais, populares e média ou média-alta. Todas as
paixão e fusão conjugal, entre o romantismo domes- mulheres têm um trabalho remunerado mas diferen-
ticado do amor-amizade e o aumento da “inde- tes qualificações profissionais e acadêmicas, oscilando
pendência” feminina; entre um casal fortemente desde o ensino primário até o doutoramento: dezes-
sete mulheres vivem uma primeira conjugalidade, cinco
autônomo e orientações amorosas que abrigam em
tiveram percursos marcados por divórcio e recasamen-
si formas de individualização. De fato, ambas as to, seis vivem em união consensual, sendo as restan-
dimensões, afetos e cotidianos, perfilam um qua- tes oficialmente casadas. Captar situações tão diversas
dro de pluralidade que se apresenta, de um ponto foi, de fato, a nossa principal preocupação, de forma a
de vista microssociológico, mais complexo do que garantir maior riqueza empírica à informação obtida.
aquele que as definições ideal-típicas de “casamen-
to instituição”, “fusão romântica” ou “associação
BIBLIOGRAFIA
individualista” propõem teoricamente. Os processos
de individualização operantes nas sociedades atuais
ABOIM, S. (2006), Conjugalidades em mudança: percur-
traduzem assim uma grande complexidade no âm-
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Notas
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2 O uso que fazemos do termo “semântica” referencia pp. 302-323.
diretamente a análise que Luhmann (1991) faz do amor BOURDIEU, P. (1998), La domination masculine. Pa-
como código simbólico socialmente partilhado, ob- ris, Éditions du Seuil.
servando nomeadamente as definições de amor ex- BOZON, M. & HEILBORN, M. L. (1996), “Les
pressas na literatura. caresses et les mots: initiations amoureuses à Rio
3 É preciso não esquecer, como sinalizam vários auto- de Janeiro et à Paris”. Terrain, 27: 37-58.
res (Cancian, 1987), que o amor romântico foi sobre- BURGESS, E. W.; LOCKE, H. J. & THOMES,
tudo desenvolvido no feminino. M. (1960 [1945]), The family from institution to com-
4 Nas entrevistas que realizamos entre meados de 2002 panionship. Nova York, American Book.
e início de 2003, privilegiamos uma inquirição biográ- CANCIAN, F. M. (1987), Love in America: gender and
fica, procurando registar o “lado subjetivo” do efeito self-development. Cambridge, Cambridge Univer-
gerado pelo tempo social: pedimos sistematicamente sity Press.
às 22 mulheres entrevistadas para nos relatarem as CHAUMIER, S. (1999), La déliaison amoureuse: de la
suas impressões comparativas sobre o tempo em que fusion romantique au désir d’indépendance. Paris, Ar-
começaram a relação a dois e o momento presente, mand Colin.
tendo encontrado em vários casos uma nítida percep-
CHAVES, J. C. (2006), “Os amores e o ordena-
ção das transformações ocorridas na dinâmica do casal
no espaço entre o início da conjugalidade e o momen-
mento das práticas amorosas no Brasil da belle
to de entrevista. A amostra foi construída segundo o époque”. Análise Social, 180: 827-846.
método bola de neve que nos permitiu encontrar nar- COSTA, S. (2005), “Amores fáceis: romantismo e
rativas diversificadas. Apesar de uniforme em termos consumo na modernidade tardia”. Novos Estu-
geracionais e de fase familiar, a amostra é socialmente dos, 73: 111-124.
diversificada, abrangendo mulheres de várias camadas DAUSTER, T. (1984), “A invenção do amor: amor,

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122 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 24 No 70

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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 185

DA PLURALIDADE DOS OF PLURALITY AND DE LA PLURALITÉ DES


AFETOS: TRAJETÓRIAS E AFFECTION: TRAJECTORIES OF AFFECTS: TRAJECTOIRES ET
ORIENTAÇÕES AMOROSAS NAS LOVE AND INTIMACY IN ORIENTATIONS AMOUREUSES
CONJUGALIDADES CONTEMPORARY DANS LES CONJUGALITÉS
CONTEMPORÂNEAS PARTNERSHIPS CONTEMPORAINES

Sofia Aboim Sofia Aboim Sofia Aboim

Palavras-chave: Orientações amorosas; Key-words: Affection; Trajectories; Mots-clés: Orientations amoureuses;


Trajetos; Conjugalidade; Individualiza- Conjugality; Individualization; Moder- Trajets; Conjugalité; Individualisation;
ção; Modernidade. nity. Modernité.

Num contexto em que a construção do In face of the massive historical trans- Dans un contexte où la construction de
casamento como relação de amor adquire formations occurring in family live, la conjugalité comme relation d’amour
hegemonia nas sociedades contemporâ- which have led conjugal relationships to est devenu presque hégémonique dans
neas, trazemos à arena empírica o debate be constructed upon affection, this article les sociétés contemporaines, on apporte
sobre a sentimentalização da conjugali- aims to debate the relationship between à l’arène empirique le débat sur la senti-
dade e a crescente complexidade promo- historical sentimentalization and the mentalité moderne de la conjugalité et la
vida pelos processos de individualização. growing complexity generated by indi- croissante complexité engendré par les
Analisando discursos de mulheres por- vidualization processes. The analysis of processus d’individualisation. En analy-
tuguesas vivendo em conjugalidade, des- discourses of Portuguese married or coha- sant les discours des femmes portugaises
crevemos a pluralidade das orientações biting women enabled us to describe a vivant en couple, on décrit la pluralité
amorosas nas conjugalidades atuais. Ob- variety of trajectories and orientations des orientations amoureuses dans les
servamos o entrecruzamento entre ro- towards love and intimacy, thus show- conjugalités actuelles. On observe le croi-
mantismo e aliança, companheirismo e ing the plurality of affections in con- sement entre romantisme et alliance,
paixão erótica, autonomia individual e temporary conjugalities. On the other, compagnonnage et passion érotique, auto-
fusão amorosa. Revela-se, assim, um ce- companionship seemed to associate with nomie individuelle et fusion amoureuse.
nário heterogêneo, onde o amor adquire erotic passion. At the same time, highly Ainsi, dans cet article on révèle une réa-
múltiplos significados, percorre diversos individualized women always reveal lité hétérogène, d’autant que l’amour re-
caminhos e se articula a formas de cons- some tension between autonomy and in- couvre des signifiés multiples et parcourre
truir o cotidiano na vida a dois. timate fusion with the partner. Showing chemins diversifiés en s’articulant a des
the linkages between different conjugal formes spécifiques de construire a deux
trajectories and the building up of these la vie quotidienne.
semantics of affection, we disclose a
heterogeneous scenario, where love ac-
quires multiple meanings, follows differ-
ent pathways and is interwoven with the
construction of the couples’ daily life.

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