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Gênero, agroecologia e extensão rural: propostas de atuação política e educacional

em escolas técnicas de tradição agrícola


Priscila Pereira1

A presente proposta de comunicação tem como ponto de partida a minha


experiência com extensão e, num sentido particular, extensão rural, no Instituto Federal
de Minas Gerais (IFMG) - Campus Bambuí - e no Instituto Federal do Sul de Minas
(IFSULDEMINAS) - Campus Machado, ambos de forte tradição agrícola e com uma
trajetória institucional bastante parecida2.
No IFMG - Campus Bambuí ajudei na construção de dois projetos de extensão
que surgiram no primeiro semestre de 2018, a saber, “Lugar de mulher é onde ela
quiser” e “Da luta pela terra ao combate para permanecer nela: Diagnóstico
socioespacial e fomento à agricultura familiar, sustentável e à economia solidária no
assentamento Margarida Alves, em Bambuí, MG”. No primeiro deles, minhas
companheiras e eu desenvolvemos ações relacionadas à temática de gênero e
diversidade sexual no Campus Bambuí, como a exibição de cines-debate e a construção
do coletivo feminista “Maria, Maria”. Já no segundo projeto, o objetivo era viabilizar a
produção, circulação e consumo dos alimentos cultivados no assentamento “Margarida
Alves”, localizado no município de Bambuí - MG, a partir de uma rede colaborativa que
envolvesse as famílias assentadas, a prefeitura de Bambuí e o Campus do IFMG. Por
causa desse projeto, tomei contato com temas como agroecologia, economia solidária e
agricultura familiar, o que me trouxe uma nova dimensão sobre a prática da extensão
rural.
Recentemente fui transferida para o IFSULDEMINAS - Campus Machado e
desde então tenho participado das atividades do Núcleo de Estudos em Agroecologia e
Produção Orgânica (NEAPO) da instituição. Deste modo, levando em consideração a
minha experiência anterior e as dificuldades inerentes ao trabalho em instituições com

1
Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)/
priscila.pereira@ifsuldeminas.edu.br .
2
As duas instituições foram criadas a partir da Lei nº 11.892 de 2008, que instituiu a Rede Federal de
Educação Profissional, Científica e Tecnológica e permitiu o surgimento dos IFs. No entanto a história de
ambos institutos é muito anterior a isso. No caso do IFMG Campus Bambuí, sua origem remonta à
criação, nos anos 1950, do Posto Agropecuário na Fazenda Varginha, situada no município de Bambuí,
MG. Com meio século de história, a instituição já foi Escola (1961), Ginásio (1964) e Colégio Agrícola
(1968), Escola Agrotécnica Federal (1979) e Centro Federal de Educação Tecnológica – CEFET (2002),
antes de ser incorporada à Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica em 2008. Já o
IFSULDEMINAS Campus Machado completou no ano passado 60 anos de história, atravessando
distintas etapas desde a sua criação em 1957, de Escola Agrícola à Instituto Federal.
tais características agrárias - onde o conservadorismo e tradicionalismo costumam
tangenciar os mais diversos campos, das relações de gênero à produção de alimentos –,
pensei em unir num único projeto as duas temáticas em questão, a saber, a de gênero e a
da agroecologia. Neste sentido, a presente proposta busca desenvolver ações e promover
reflexões que tenham como foco o protagonismo das mulheres no campo, seja como
trabalhadoras, pesquisadoras, agentes extensionistas e/ou detentoras de saberes
ancestrais que permitem uma melhor integração homem/ natureza. O projeto se
estrutura em torno dos seguintes eixos temáticos: a mulher no campo; empoderamento
de mulheres camponesas; as mulheres e as ciências agrárias; feminismo comunitário;
sustentabilidade e gênero; soberania alimentar, justiça social e gênero; organização
política e resistência das mulheres rurais.
Quando nos debruçamos sobre a história da classe trabalhadora brasileira, vemos
que, no caso das trabalhadoras rurais, foi (e é) árduo o seu caminho para serem
reconhecidas enquanto tais. Embora sua presença seja inconteste nos mais diversos
âmbitos das atividades realizadas no campo, ainda recai sobre elas o peso da
invisibilidade e do não reconhecimento de seu trabalho e capacidade produtiva 3.
Segundo pesquisa realizada em 2009,
No Brasil, quase 15 milhões de mulheres do campo estão privadas do acesso
à cidadania por não terem reconhecida a sua condição de agricultoras
familiares, camponesas ou trabalhadoras rurais. Embora representem 47,8%
da população residente no meio rural, somente 16% são titulares das terras
onde moram (PACHECO: 2009, p. 4).

Além da dificuldade do acesso à terra, essas mulheres também sofrem restrições


de acesso aos recursos produtivos, direitos previdenciários e participação política. Tais
dificuldades podem ser relacionadas tanto à hegemonia do modelo capitalista de
produção no campo quanto à opressão patriarcal vivida por elas. No quadro das
desigualdades delineado pelo patriarcado, os papeis de gênero acabam marcando
profundamente a trajetória dessas mulheres camponesas, que se veem às voltas com
problemas tais como: limitação do acesso direto à renda, dificuldade para alcançar a
autonomia econômica, mudanças climáticas, violência nas suas mais variadas tipologias
(da física à patrimonial), insegurança alimentar e desvalorização de seu trabalho. Todas
3
“A invisibilidade do trabalho das mulheres na agricultura familiar está vinculada às formas como se
organiza a divisão sexual do trabalho e de poder nessa forma de produção, em que a chefa familiar e da
unidade produtiva é socialmente outorgada ao homem. Embora a mulher trabalhe efetivamente no
conjunto de atividades da agricultura familiar: preparo do solo, plantio, colheita, criação de animais, entre
outras (incluindo a transformação de produtos e o artesanato), somente são reconhecidas, porém com
status inferior, aquelas atividades consideradas extensão do seu papel de esposa e mãe (preparo dos
alimentos, cuidados com os filhos, etc.)”. (SILIPRANDI: 2009, p. 143)
essas questões acabam dificultando seu auto-reconhecimento como sujeitos políticos, a
conscientização sobre a importância do que fazem e a própria cidadania no campo.
Vejamos um exemplo de como as desigualdades de gênero impedem a visibilidade do
trabalho e dos direitos das mulheres rurais.
Maria Ignez Paulilo estudou o trabalho das mulheres em cinco regiões do
país e percebeu que a distinção entre trabalho leve feito pelas mulheres não
se devia a uma qualidade do esforço despendido, mas ao sexo de quem o
executava, de tal modo que qualquer trabalho era considerado leve se feito
por mulheres, por mais exaustivo, desgastante e prejudicial à saúde que fosse
(...). O mesmo fenômeno ocorre com a divisão entre trabalho doméstico e
trabalho produtivo. É doméstico se é atribuição da mulher, como quando ela
cuida da horta e das galinhas sozinha. Já se ela vai para o trabalho na roça
com o marido, é trabalho produtivo, qualquer que seja o destino do que for
colhido – para vender ou para comer. (PACHECO: 2009, p. 5).

Diante do exposto, o encontro entre feminismo e agroecologia pode ser encarado


como um caminho possível para a emancipação da mulher no campo, dado seu
potencial crítico e transformador. A participação de mulheres em experiências
agroecológicas pode resultar não apenas em mudanças nos ecossistemas e sistemas
produtivos, mas na criação de redes de solidariedade voltadas para a autogestão,
organização e ampliação dos espaços de atuação das mulheres. Também pode permitir o
surgimento de novas subjetividades, conscientes de seu saber/poder de transformação
social. “Ao mesmo tempo em que introduzem mudanças nos sistemas de produção, as
mulheres vão experimentando transformações em sua vida cotidiana que as levam ao
questionamento do modelo agrícola e social, consagrando-se como sujeitos políticos”
(PACHECO: 2009, p. 4). Em suma,
A partir do envolvimento em movimentos sociais as mulheres se sentem
fortalecidas e começam a produzir seus processos de reação à submissão,
passam a reconhecer que possuem um determinado capital específico
suficiente para formar um grupo de produção, ter uma renda. Depois de
experimentar uma atividade produtiva rentável, as mulheres não são as
mesmas, já não se sentem tão prisioneiras, estão mais abertas às
multiplicidades do mundo, sonham com liberdade e, assim, contagiam outras
mulheres, afetando e sendo afetadas por esses desejos (SALES: 2007, p.
442).

É óbvio que um trabalho de extensão rural que tenha como objetivo o


empoderamento de mulheres camponesas terá que lidar com as desigualdades de gênero
também presentes no mundo acadêmico e científico, sobretudo naquele vinculado às
Ciências Agrárias. É sabido que em instituições com forte tradição agrícola como é o
caso do IFMG - Campus Bambuí - e o IFSULMDEMINAS - Campus Machado -, as
profissionais das Ciências Agrárias costumam ter dificuldade de serem reconhecidas
entre seus pares devido ao machismo estrutural que marca a tod@s nós. Dessa forma,
todos os sujeitos envolvidos em experiências agroecológicas que trabalham a temática
dentro de uma perspectiva de gênero terão que estar abertos à autorreflexão constante,
ao exercício da autocrítica e à conformação de novas formas de relação com @ outr@
que visem à construção de sociedades mais democráticas e sustentáveis. Também
devem revisar constantemente suas práticas político-educativas, tendo em vista que
qualquer experiência de extensão rural realizada dentro de uma perspectiva
comunicativa implica educar e educar-se, apenas para utilizar uma expressão de Paulo
Freire (FREIRE: 2015, p. 24).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. Tradução de Christina Baum.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
BUTLER, Judith. “Problema de los géneros, teoría feminista y discurso psicoanalítico”.
In: NICHOLSON, J. Linda (Org.). Feminismo/posmodernismo. Buenos Aires:
Feminaria Editora, 1992.
CÔRREA NETO, N. E.; MESSERSCHMIDT, N.M., STEENBOCK, W; MONNERAT,
P. F. Agroflorestando o mundo de facão a trator. Gerando práxis agroflorestal em rede
(que já une mais de mil famílias campesinas e assentadas). Barra do Turvo: Associação
de Agricultores Agroflorestais de Barra do Turvo e Adrianópolis, 2016.
FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? 17. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
PACHECO, Maria Emília Lisboa. “Os caminhos das mudanças na construção da
Agroecologia pelas mulheres In: Agriculturas, v. 6, nº. 4, dezembro de 2009.
SALES, Celecina de Maria Veras. “Mulheres rurais: tecendo novas relações e
reconhecendo direitos” In: Estudos Feministas, Florianópolis, 15(2): 240, maio-
agosto/2007.
SILIPRANDI, Emma. “Um olhar ecofeminista sobre as lutas por sustentabilidade no
mundo rural” In: PETERSEN, PAULO (org.) Apoios: Agricultura familiar camponesa
na construção do futuro. Rio de Janeiro: AS-PTA, 2009.
SILVA, José Graziano. O que é Questão Agrária. São Paulo: Brasiliense, 1981.
TIBURI, Márcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro:
Rosa dos Ventos, 2018.

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