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A vila encarniçada - 01/03/2018 09:51 / 1

Uma pequena vila encarniçada, poeirenta e descuidada; quase uma cova de


defuntos vivos.
Ali se estapeiam e se embebedam por boa parte do tempo, e logo se espreguiçam e
descansam para voltarem a se estapear e se embebedar.
São nove às casinholas que formam esta vila, sendo moradores cerca de trinta
pessoas. Algumas que não vale a escrita e uma meia dúzia que caracteriza bem esta
vila como encarniçada.
Uma destas casinholas alimenta os vícios inerentes, funcionando de dia como bar e
a noite como centro espirita. Bebem de dia desiludidos e a noite abençoados.
Niroca vende cachaça, e sua especialidade é empurrar a maldita pinga envelhecida
com uma cobra assentada no fundo da garrafa; o que gera rebuliço entre os bêbados e
desenganados. À noite, ela veste-se de branco e o saravá come solto no fundo do
quintal.
Seu marido Eugênio bebe junto dos fregueses e dança junto da roda, e sua
serventia para por aí.
Quem também se veste de branco é Pedro Pina, ex-crente, dispensado da igreja na
mesma época que seu ex-patrão lhe concedeu as contas. Dança na roda por pura
birra.
Bernardete é ex-mulher de Pedro Pina, atual mulher de Assis, o “Pastor Impostor”,
como o chamam na vila.
Zé Papelão, um xucro de boa essência, ganhou apelido por conta dum episódio
num discurso político feito na vila para compra de votos, que com receio de perder o
prestígio e as promessas, não abandonou o palanque nem em suas extremas
necessidades.
Não podemos desprezar Nandinha, a filha de Niroca e Eugênio. Boa moça para
todo rapaz. Toda noite, enquanto alguns dançam na roda do saravá, ela que não se
encaixa, roda entre os rapazes nos cafundós da vila.
Certa vez, enquanto Niroca despojava Pedro Pina aos tabefes, por conta de uma
dívida custosa, Nandinha, morrendo de pena do corno, se fez de complacente e
acompanhou-o até sua casinhola. Lá, onde além da geladeira restava a cama, fez sarar
toda dor dos tapas e a lembrança dos trocados.
Como se não lhe bastasse os olhos azuis e as pernas torneadas, seus lábios frescos,
quase sempre entreabertos, e seu busto recheado davam claras evidências de intenso
prazer.
Pedro Pina, após a caridade de Nandinha, apaixonou-se. Às lembranças de
Bernardete rolando na cama de Assis já não lhe incomodavam.
Nandinha não correspondia a paixão de Pedro Pina, pois não lhe faltava
pretendentes, e o que ela queria dos rapazes não era paixão. Como diziam as más-
línguas: gostava de levar fumo.
Já Bernardete, que, de tão descarada corneou Pedro Pina, dando mais que o dízimo
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ao pastor, soube da paixão do ex-marido e esbravejou ao modo feminino. Sem bastar


os xingamentos e difamação, pelos cabelos arrastou Nandinha pela vila, até onde
encontrou Niroca e relatou a transa. Um furdúncio estava armado.
Niroca, de tão desconsolada e descontrolada, estapeou ambas, e depois foi papear
a seu modo com Pedro Pina, que parou no hospital.
Assis, quando soube do caso, esbravejou com Bernardete por conta do ciúme que
esta sentiu do ex-marido, e levando pelo lado profissional, aumentou o valor do
dízimo da cachorra, alegando que sem o aumento Deus não a perdoaria.
Num outro dia, na ausência de Niroca, Eugênio se embriagava sossegadamente
quando chegou Zé Papelão.
— Tem aí um refresco?
Eugênio serviu Zé, e papearam.
— Como está a menina? Pina, o que diz?
— Quer casar.
— Diacho… E a menina?
— Disse que não casa nem morta.
— Pior… Logo a barriga começa a ganhar tento.
— Ela diz que o pai não é Pedro Pina.
— Como assim? Se não é de Pina…
— Diz que é filho de Deus. Acho que não sabe de quem é.
— Diacho… Certeza Eugênio?
— É o que ela diz.
— Danou-se.
— O que te aporrinha?
— Eugênio, escuta só, em nome de nossa amizade, se for meu, me proponho a
casar.
— Você também?
— Poucas vezes.

Assis dizia à Bernardete:


— Tomara que seja de Pina.
Bernardete respondia:
— Se for é bem feito!
Logo que a ausência do pai pesou nas contas de Niroca e Eugênio, Nandinha ficou
contra a parede.
— Menina! Diga logo quem foi!
— Eu já disse! Meu filho é de Deus!
— Se não diz, eu pergunto aos orixás.
Dito e feito. No saravá daquela noite Nandinha foi assunto.
Entre cânticos e rodas, flores e cachaça, meias palavras ao pé do ouvido,
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desembucha:
— Sabe Preto Véio… Aqui nesta casa que também é sua, estamos aporrinhados
com uma coisa… Nandinha… pegou barriga e não diz, ou não sabe quem é o pai.
— Rum, rum… Xíiiii… — E pita seu cachimbo.
— Preto Véio… Precisamos descobrir quem é que vai arcar com a criança.
— Rum, rum… Preto Véio sabe das coisas, mas nem de tudo… Rum, rum… Então
a danadinha subiu no cipó? Rum, rum… — E pita.
— No cipó de um matagal todo — disse indignada.
— Nesse caso, é fazer de conta que um bom moço é que é o pai, sabe? Faça boa
escolha. Entende? Rum, rum… Isso sim… Até a criança nascer, depois pela cara da
criança descobre o pai.
— Está querendo dizer para… Mas e se… Cê sabe bem o que diz?
Niroca sempre segue as recomendações dos orixás.
— Eugênio? Onde está você homem de Deus? Ontem falei com Preto véio a
respeito da menina. Ele me disse para escolher o pai do meu modo de pensar e ver.
— E você acha que a menina vai aceitar? Ela já disse que não casa nem morta.
— Não precisa casar ué! Só precisa de alguém para assumir.
— Só sei de dois maduros, mas são todos uns pé-rapados.
— Alguém tem que custear a brincadeira…

Dito e feito.
— Escuta aqui Zé Papelão! Mais tarde você dê um pulinho lá em minha casa,
precisamos ter uma prosa — disse Niroca em seu tom invocado.
— Pedro Pina? Já voltou do hospital? Mais tarde quero você lá em casa para uma
prosa — escalou o segundo panaca.
Zé Papelão chega assustado, senta, olha, tira o chapéu, meche nos cabelos, enxuga
a testa com um lenço de pano. Pedro Pina pede um copo, mata, homem bom olha
com medo para megera, e senta.
— Vocês dois vão ser pai!
— Como assim nós dois? — Se assustam.
— Enquanto não sabemos quem é, será os dois — Retorce os beiços. — E quando a
criança nascer é só olhar na cara. Se nascer com cara de asno esmigalhado é de Zé
Papelão.
— Diacho.
— Cala-te imbecil! E se for borocoxô, feito meio-homem, é de Pina.
— Poxa… Só ando entristecido, só isso.
Nasce a criança, um menino, olho preto esbugalhado, cabelo de rato, cara de
joelho, chora, grita, mama, dorme, acorda, azul de tão preto, chora de novo, mama…
Veste a roupa que ganhou do pai Papelão, brinca com o chocalho que ganhou do pai
Pina.
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— Niroca… O moleque não parece nada comigo! — Replicam.


— Nandinha minha filha, a criança é tição! Mais puxado para o azul.
— Ué! Minha mãe… Como é que eu poderia adivinhar a cor de Deus?
— O único tição desta vila é Assis! O pastor!
— Mãe! Eu já disse que ele não é o pai! Ele foi somente uma ferramenta que Deus
utilizou! Ou … "pelo menos foi o que ele me disse".

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