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Cidade e Cidadania

Introdução
Em seu Registro de uma vivência, Lúcio Costa define a cidade como sendo “a expressão
palpável da necessidade humana de contato, comunicação, organização e troca, - numa determinada
circunstância físico-social e num contexto histórico.”1
Na acepção simples da palavra, cidadão refere-se ao morador, ao habitante da cidade. Numa
versão mais erudita o conceito abrange a idéia de direitos civis e políticos que o cidadão exerce face a
um Estado ou cidade-estado, como foi o caso dos cidadãos livres da “polis” grega. Nesta mesma
episteme, chamou-se de cidadania a qualidade ou a condição de ser cidadão/cidadã face a um corpo
social organizado.
Cidade, cidadão, cidadania têm o mesmo radical latino civitas, o lugar em que os homens
vivem em conglomerados urbanos tendo certos direitos e deveres, mutuamente respeitados. Na
Antigüidade clássica, o conceito de cidadão tinha como foco principal o direito de participação
política nos negócios da polis. Era o que Benjamin Constant chamava de “liberdade antiga”. No século
19 o foco passou a ser a proteção dos indivíduos contra poder arbitrário do Estado, e com isso os
direitos civis passaram a predominar sobre os direitos políticos – era a “liberdade moderna”, também
segundo Constant. Em seu sentido integral, que é o vigente hoje, a cidadania inclui os dois focos, o
democrático e o liberal , a auto-determinação exercida na polis pelo povo soberano, e as disposições
que garantem a segurança e a integridade dos indivíduos. A cidadania é por um lado a capacidade de
intervir no Estado e por outro lado o poder de exigir do Estado o respeito e a plena concretização dos
direitos individuais.
Como veremos a seguir, os três conceitos sofrem interpretações semânticas através dos
tempos e nem sempre são aceitos em outras culturas, em que a vida urbana não desempenhou ou
desempenha papel relevante, inclusive preenchendo funções diferentes das que valorizamos hoje.
Ainda é preciso lembrar que entre os diferentes teóricos da cidade, há divergências
fundamentais no que concerne ao “estatuto de cidade” e ao papel atribuído a essa instituição social.
Para a maioria, uma cidade somente começa a existir atingindo uma densidade demográfica de pelo
menos 15 a 20mil habitantes. Para alguns, uma cidade somente merece este nome se ela se destacar de
uma simples comunidade, apresentando além de um certo grau de organização econômica, uma
organização política e legislação própria (como definiu o sociólogo alemão Max Weber). Para outros,
somente estaremos diante de uma verdadeira cidade se ela for mais que um mero assentamento,
possuindo um mercado de troca de bens, uma estrutura político–jurídica competente e uma vida
cultural própria (como defendeu Vilhém Flusser, o filósofo tcheco que viveu mais de 30 anos no
Brasil). Finalmente, no caso dos defensores da globalização econômica, uma cidade somente se
qualifica enquanto tal se dispuser da infra-estrutura informacional (telefone fixo e celular, fax, conexão
internética, TV comum, a cabo e via satélite, sistema moderno de transportes aéreos, ferroviários,
automobilísticos), hotéis modernos com todo o conforto, serviços de todos os tipos, especialmente
bancários, pessoal qualificado para viabilizar as grandes transações financeiras com fluxos e
aplicações de capital, típicos para a sociedade informacional (Manuel Castells) contemporânea. Entre
outras “facilities”, a moderna cidade global precisa ter restaurantes e boutiques sofisticadas, energia
suficiente que permita a conexão 24 horas com todos os mercados e bolsas de valores do mundo, em
suma, conforto para os grandes manipuladores da economia e da finança. A salubridade da economia,
entre outras qualidades e instalações, obviamente faz parte das diferentes exigências que uma cidade
global precisa atender para pertencer ao rol seleto das cidades “que contam” e nas quais os destinos do
mundo globalizado se decidem (como lembra Saskia Sassen, a economista de origem holandesa que
vive e trabalha na Harvard University/USA).
Na análise que se segue, focalizarei a tipologia das cidades de Max Weber, desenvolvida no
segundo volume de sua obra prima Economia e Sociedade contrapondo-a à tipologia que podemos
extrarir de dois livros importantes de Sasskia Sassen,voltados para a questão urbana. Trata-se
especialmente de Global Cities: N.York, London, Tokio (1991) e Cities in a World Economy (1994).
Procurarei identificar de que maneira as várias “gerações de direitos humanos”2, estão sendo
contempladas em um e outro tipo de cidade, facilitando ou dificultando o exercício da cidadania de

1
Lúcio Costa, Lúcio Costa: Registros de uma vivência. Rio: Relume Dumará, 1998, p.277
2
Cf. Apresentadas por Sergio Paulo Rouanet em sua Conferência “Iluminismo e Direitos Humanos
Hoje”, que abriu este Seminário sobre “Direitos Humanos e Cidadania”.

. 1
seus moradores. Se Weber valorizou, ao lado da função econômica, a dimensão política e jurídica para
caracterizar a cidade e os cidadãos, Saskia Sassen volta a sua atenção para os processos econômicos
da globalização. No modelo de Weber a cidade constitui o quadro de referência dentro do qual uma
nova estrutura de poder emerge, em que os direitos humanos de primeira geração, os assim chamados
direitos naturais e imprescritíveis do homem (o direito à liberdade, à propriedade, à segurança e o
direito de resistência à opressão) são conquistados; no modelo de Sassen, a cidade é um simples
instrumento de obtenção e expansão do lucro de um macro-poder constituído, no qual esses direitos
naturais já foram rotinizados e os direitos políticos (de votar e ser votado) e sociais (direito à educação,
ao trabalho, à moradia, à expressão de opinião e crítica) somente existem, de fato, para uma elite
minoritária de selecionados. Para a grande maioria dos excluídos esses direitos ainda não estão
concretizados.
Nas reflexões que se seguem, pergunto: Como a questão dos direitos e da cidadania é
resolvida em um e outro modelo ? Qual o papel desempenhado pela cidade (ou tipo de cidadade) para
preservar e melhorar os direitos civis, políticos e sociais, conquistados nos últimos séculos ? E qual dos
dois se aproxima mais da Carta dos Direitos Humanos nas Cidades, elaborada no, início deste ano de
2002 no II Foro Social Mundial de Porto Alegre?

A Cidade enquanto “Poder Ilegítimo”

Max Weber (1864-192) desenvolveu sua teoria da origem das cidades da Europa central no
contexto de sua sociologia da dominação. Em sua explicação sui generis, essas cidades teriam sido o
resultado de um movimento de cidadãos que se opunham ao poder feudal das aristocracias rurais.
Mesmo antes da Revolução Francesa (1789) e da industrialização na Europa, esses cidadãos se
sublevaram contra o poder hegemônico, desconsiderando o poder baseado na linhagem do sangue e na
propriedade rural. Graças à produção de riqueza nas guildas, corporações, associações profissionais,
ligas e companhias comerciais, criou-se nas cidades da Europa central um poder alternativo
econômico, baseado na solidariedade dos membros de associações profissionais, na igualdade dos
cidadãos perante a lei, na segurança interna, desenvolvida e respeitada intra muros. Como esse novo
poder urbano não tinha a legitimidade do sangue, da tradição, da riqueza herdada dos pais, ele foi se
impondo como contra-poder ao regime feudal em vigor, adquirindo autoconfiança e coesão social. Por
desrespeitar hierarquias de poder aristocráticas e defender a propriedade privada de cada cidadão, este
novo poder urbano foi caracterizado por Weber como sendo um poder “ilegítimo”. Sem explicitá-lo,
Weber retoma assim uma idéia bíblica tematizada logo duas vezes no Genese do Velho Testamento.
Nos dois casos, os homens cometem uma transgressão quando tomam a iniciativa de construir uma
cidade. No caso de Babel, Deus se opõem à construção da torre e semeia a discórdia entre os homens,
confundindo suas línguas e inviabilizando esse projeto; no segundo caso, Caim funda uma cidade,
enquanto Abel permanece nômade. Como sabemos, Deus prefere aceitar a dádiva de Abel, rejeitando a
de Caim, que irritado, mata seu irmão e para não ser morto pelos pares, perambulando pelo mundo,
pede a Deus permanecer em sua cidade. Nos dois casos, fica claro que a fundação da cidade é o
resultado de uma sublevação dos homens contra a vontade de Deus, pois unidos, solidários, intra
muros, os homens se tornam fortes e se “arrogam a ser Deus”.
Na análise de Weber, que tematiza a passagem do regime feudal/agrário para o regime
burgues/urbano, também ocorre uma subversão e graças a ela, algo novo emerge. Reunidos em
associações profissionais (guildas, corporações, ligas) que se davam suas próprias leis de
funcionamento e financiavam com seus próprios recursos sua defesa em casos de ataques externos, os
cidadãos da cidade pré-industrial formavam o chão sobre o qual viria emergir a sociedade burguesa, a
Revolução Francesa e, finalmente, o Estado Nacional.
A cidade ocidental da qual nos fala Weber foi o berço da idéia republicana e da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão (de 26/8/1789), incorporada pela primeira vez na Constituição
Francesa de 3/9/1791 e reeditada no período imediatamente posterior à II Guerra Mundial, em
27/10/1946.3 Essa lei por sua vez deu origem à Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada
por praticamente todas as Nações do mundo que integram a ONU (Organização das Nações Unidas, em
1948. A partir dessa data, os direitos humanos sairam do abrigo das cidades e de Nações individuais e
singulares, para virem a ser um tema geral e universal da humanidade contemporânea.
Portanto, foram as cidades da Europa central que deram origem aos Direitos Humanos,
formulados pelos enciclopedistas e filósofos europeus no século VXVIII e aperfeiçoados nos séculos

3
Vide Les Constituitions de France depuis 1789. Presenté para Jacques Godechot, Paris: Garnier
Flammarion, 1979
2)Brownlie, Ian. Basic Documentos on Human Rights. Oxford: Claredon Press, 1981

. 2
subseqüentes. Se dermos crédito á lenda de Wilhelm Tell, às Confissões de Rousseau e aos Romances
de Pestalozzi (todos de cunho pedagógico), as cidades suiças já punham em prática o exercício da
cidadania de seus moradores, dando forma material e exemplo de democracia para as gerações
modernas bem antes das mudanças estruturais pelas quais passaria a Europa no século 19 e 20. Não é
por mero acaso que Jean Jacques Rousseau, natural da cidade suiça de Genebra, formulasse o
Contrato Social e o Emilio, dois tratados utópicos (ambos publicados pela primeira vez em 1767) para
reestruturar a sociedade aristocrática francesa sob novos padrões e reeducar os seus membros para uma
vida mais justa, igualitária e fraternal. Deste modo, o filósofo genebrino lança um programa político e
social que revolucionaria os séculos subseqüentes. Mais tarde, Hugo resumiria essa tendência nos
Miseráveis, referindo-se às revoltas parisienses e lutas de barricadas entre 1832 e 1848 em Paris:
“C’est la faute à Rousseau, c’est la faute à Voltaire...”.

Voltemos a Max Weber, focalizando agora a sua tipologia das cidades. No decorrer do
desenvolvimento das cidades européias, umas e outras se especializaram em certas funções,
desenvolvendo uma espécie de divisão do trabalho entre si. Certas cidades viraram verdadeiras
“Fürstenstädte”, cidades do Príncipe, como foi o caso de Celle, pequena cidade no norte da Alemanha
que forneceu os Príncipes da dinastia de Hannover, que governou a Inglaterra segundo princípios
constitutucionais, substituindo a tirania absolutista dos Stuarts. Outros exemplos são a cidade de
Potsdam, que sediou a morada dos príncipes e reis de Hohenzollren ou a Weimar do Príncipe Carl
August, na época de Goethe. Posteriormente tais cidades passaram a ser chamadas de cidades sede de
governo, título que hoje pode ser reivindicada por Brasília, a capital brasileira desde 1960. Weber ainda
assinala a existência de cidades-fortalezas, concebidas para abrigar soldados, regimentos inteiros. É o
caso de Theresienstadt, cidade próxima de Praga que abrigou as tropas austríacas nas múltiplas guerras
travadas entre Maria Theresa e Frederico II e outros monarcas europeus. Durante o nazismo esta
pequena cidade foi transformada em campo de concentração, onde eram recolhidos os judeus da
Europa central que depois seriam encaminhados aos campos de extermínio como Auschwitz,
Buchenwald e outros. Um equivalente, próximo à cidade de Berlim é a cidade guarnição de Beskow,
que depois de suas vitórias sobre a Alemanha, Napoleão ocupou com suas tropas. Outras cidades
tornaram-se grandes mercados para a comercialização de mercadorias, daí as cidades comerciais como
Frankfurt/M., cidade natal de Goethe. Outras, tornaram-se grandes portos de exportação e importação,
como as cidades da Liga Hanseática, Hamburgo e Bremen, mas também as cidades portuárias dos
Países Baixos como Amsterdam e Rotterdam. Outro exemplo, no Mediterrâneo, seriam as cidades
italianas de Gênova, Nápoles ou Marselha na França, especializadas no intercâmbio comercial com as
cidades da China e da Índia de onde (desde Marco Polo) vinham tecidos finos, especiarias, jóias, entre
outras. Até hoje, existem nos países de cultura alemã lojas especializadas em “Kolonialwaren”,
produtos vindos de além-mar como o café, chá, temperos exóticos, grãos, etc. Weber não fala das
cidades ibéricas como Porto, Lisboa, Sevilla, Biblao, que desempenharam papel tão importante na
colonização e urbanização da América Latina4.
Com o advento da manufatura e indústria, certas cidades passaram a ser verdadeiras cidades
industriais ou manufatureiras, centros de produção de mercadorias como foi o caso de Londres e
Manchester, na Inglaterra, Colônia, à beira do Reno ou de Berlim, à beira do rio Spree, na Alemanha.
Com a evolução de certas cidades que viriam a ser verdadeiras metrópoles e capitais das Nações que
se constituiam no decorrer do século XIX, certas cidades foram acumulando todas as funções,
anteriormente separadas, como sedes de governo, cidades comerciais, industriais e até mesmo
portuárias, transformando-se ainda em grandes centros culturais. Um bom exemplo é a própria cidade
de Berlim que apesar de não ser originariamente portuária, obteve seu acesso à navegação marítima
graças a uma rede fluvial e lacustre ampla e diferenciada, interconectada por engenhoso sistema de
canais e comportas, que facilitaram o acesso da capital da Alemanha unificada por Bismarck em 1870
ao Atlântico(via o rio Elba) e à Ostsee (Mar do Leste ou Báltico), dando acesso marítimo aos países
escandinavos e à Inglaterra. Berlim ainda transfomou-se na primeira metade do século XX, antes da II
Guerra Mundial no que muitos chamaram de “capital cultural da Europa”, roubando temporáriamente
o título de “capital do século XIX” dado por Walter Benjamin a Paris.
Não cabe aqui desenvolver ainda mais essa tipologia mas sim, perguntar como os cidadãos da
época se organizavam econômica e políticamente para desenvolver os seus direitos cívicos e políticos.
Para assegurar o controle jurídico sobre os integrantes de guildas, corporações, associações, ligas e
companhias e proteger as propriedades, os armazéns, os navios, as manufaturas das cidades da Europa
central, forma necessárias décadas e séculos. Weber deixa claro que a estrutura das “Stadt-Staaten”, ou
seja, das Cidades-Estado como Hamburgo, Hannover, Bremen, Kiel, Lübeck, entre outras,

4
Vide meu artigo para a coleção sobre História da América Latina, organizada pela UNESCO, vol.VII.

. 3
conseguiram preservar a sua autonomia, face ao Estado-Nação emergente, apelando para os direitos
civis, elaborados e praticados desde o período medieval.
Quem conhece um pouco da história da formação das grandes metrópoles européias ou
acompanhou a grande literatura urbana produzida a partir da Revolução Francesa sabe que apesar da
incorporação dos direitos humanos nas constituições das Nações e das legislações das cidades, estas,
via de regra, não tiveram condições de assegurar a observância desses direitos nos séculos que se
seguiram ao período “heróico” da constituição das cidades no período pré-industrial. A colonização
reintroduziu no segundo e terceiro Mundo o regime de escravidão que durante séculos perpetuou a
falta de liberdade de boa parte da população trabalhadora nas colônias e no próprio continente europeu,
no qual o regime de servidão continuava em vigência, especialmente nas relações de trabalho no
campo. As guerras religiosas (Guerra dos 30 Anos), as guerras napoleônicas e finalmente as duas
grandes guerras mundiais trouxeram devastações jamais vistas das grandes cidades, inviabilizando todo
e qualquer projeto de preservação dos direitos humanos, como sonhados pelos grandes filósofos da
ilustração. E “last but not least”, a industrialização espezinhou os direitos humanos. A lógica de
acumulação de capital que acompanhou o desenvolvimento das cidades européias e implementou nas
fábricas o regime do trabalho “livre”, tinha muito pouco a ver com os direitos civis, a liberdade e o
respeito à dignidade da pessoa humana. Basta mencionar algumas fontes clássicas que desmascaram a
brutalidade das relações sociais e de trabalho que imperavam em todos os centros urbanos da Europa
do século XIX e continuaram em vigor através de todo o século XX: O Capital de Marx, Os
Miseráveis de Victor Hugo e os romances de Charles Dickens (Oliver Twist, Hard Times e tantos
outros) ou de Alfred Döblin (Berlin Alexanderplatz). Todas essas “fontes” acusam a exploração da
força de trabalho do operário, das mulheres e de crianças como Gavroche, Fantine, Oliver Twist. Os
relatos médicos citados por Marx e Engels, em O Capital e as condições da vida da classe trabalhadora
na Inglaterra, deixam claro que a população urbana, absorvida em relações de trabalho na indústria,
estava ameaçada de extinção. As primeiras leis trabalhistas para regulamentar as condições de trabalho
na manufatura e grande indústria não resultaram da caridade mas da racionalidade do sistema
produtivo, que ameaçava a existência de sua própria fonte de renda: a força de trabalho do trabalhador
(mal) assalariado. Como Marx havia deixado claro, a única propriedade do operário, era sua vida e
sua força de trabalho, a qual era obrigado a vender para os empresários, detentores dos meios de
produção. Certos “direitos” como proteção à saúde, direito de educação e formação profissional,
segurança no trabalho, seguro desemprego foram sendo conquistados no dia da luta nas fábricas e
centros de produção de mercadoria, nas Câmara de veredores e nos Parlamentos. Essa regulamentação
dos direitos sociais e políticos deu-se em sua maioria, nas grandes cidades, capitais e metrópoles.
Como ficou bem documentado na obra de Marx & Engels, a realidade material antecedeu a existência
de leis, constituições, direitos adquiridos ou assegurados. Melhor, a consciência da necessidade de
implementar tais leis, que assegurassem os direitos básicos do trabalhador, desenvolveu-se no rastro
dos sofrimento dos cidadãos que habitaram o campo e as cidades européias no século XVIII, XIX e XX
e que se embrenharam em lutas sindicais e políticas, movimentos urbanos e partidarios. Graças a eles
uma realidade nova pode ser vislumbrada e jurídicamente assegurada, mesmo que ainda não esteja de
todo implementada até hoje: Os direitos universais do homem.5 Em uma das formulações mais radicais
do seu “imperativo categórico”, Kant cobrava: “Age de tal forma, que nunca uses , seja na pessoa de
outram, como meio mas somente como fim.”6 Ora, a implementação do modo de produção capitalista
bem como as estruturas de poder que este requeria, não fizeram outra coisa senão transformar a maioria
dos homens em “instrumentos” para a aquisição e amplicação da riqueza de uma minoria. Foi essa a
grande denúncia de Marx e Engels no final do século XIX, convocando a classe operária de todo
mundo a reunir-se e lutar contra as algemas que este regime de produção tinham colocado na categoria
do trabalhador industrial.

Cidades e cidadania na era da globalização econômica7

5
Vide o último Relatório de Amnesty International, publicado em 28 de maio de 2002 em
LondresFrankfurt/M.. Confira também os comentários dos jornais nacionais e internacionais a respeito.
7
Para um mapeamento geral da questão, sugiro a leitura de Liszt Vieira: Os argonautas da cidadania.
A sociedade civil na globalização. Rio-S.Paulo: Record, 2001

. 4
Após a Segunda Guerra Mundial e mais precisamente nas três últimas décadas do século 20
ocorrem transformações importantes no cenário da economia global. Afrouxaram-se os laços íntimos
que ligavam a África e a América Latina ao continente europeu, devido à queda do interesse pelas
matérias primas e mercadorias específicas como café, açúcar, borracha, produtos minerais que outrora
haviam dinamizado o comércio entre o continente europeu e suas colônias. Houve aumento dramático
na importância dos investimentos estrangeiros diretos, com destaque especial nas áreas de serviços. O
papel dos mercados financeiros internacionais assumiu importância crescente. O quadro institucional
decorrente dos arranjos de Bretton Woods (1947/48) desmoronou. Tais realinhamentos acarretaram
uma reestruturação profunda na hierarquia das cidades no mundo inteiro mas também na rede de
cidades dentro de uma Nação. A importância dos Estados Nacionais começou a murchar e certas
cidades, que Saskia Sassen passou a chamar de “global cities” (cidades globais), passaram a adquirir
importância muitas vezes superior a muitos Estados-Nação. Entre essas cidades a autora de Global
Cities (1991)8 cita Londres, Nova York e Tóquio. Além de terem uma longa história como centros de
comércio internacional e transações financeiras, essas cidades assumiram pelo menos quatro novas
formas de funcionamento, hoje em dia extremamente relevantes. (1) Elas passaram a ser centros de
comando na organização da economia mundial, (2) pontos-chave para firmas de serviços
especializados e financeiros, (3) foram esses serviços que susbstituiram a importância das indústrias
manufatureiras como locomotivas dos setores econômicos. As cidades continuam sendo centros de
produção mas (4) destacam-se especialmente por sua produção de inovações (científicas e
tecnológicas), sendo ao mesmo tempo mercados para os produtos e inovações nela criados. (cf. Sassen,
1991, p. ¾).
A própria autora se pergunta, se nessas novas condições a ordem social, econômica, política
teria sido afetada refletindo-se inclusive sobre a configuração das cidades. Concretamente ela indaga
como Paris está reagindo à sua incorporação na economia mundial.
Com a publicação de um segundo livro de Sassen voltado para as cidades9 torna-se possível
extrair de sua obra voltada para a economia urbana uma tipologia que por sua vez pode ser
confrontada com a tipologia Weberiana. Neste confronto, impõem-se novas reflexões sobre os direitos
humanos na cidade moderna e o exercício da cidadania na era que Manuel Castells chamou de “era
informacional”.
A “reestruturação profunda na hierarquia das cidades” no mundo inteiro permite detectar pelo
menos cinco tipos diferentes de cidades contemporâneas 1) as cidades globais, (2) as mega-cidades ou
megalópoles, (3) as metrópoles, (4) cidades periféricas e (5) as cidades dormitório.
As cidades globais fornecem, como já vimos na introdução, a infraestrutura que a economia
mundial necessita para as suas transações. Fazem parte dessa infraestrutura, entre outros, o sistema
bancário, hoteleiro, telecomunicativo, bem como os aeroportos, segurança, bolsas, etc. Precisa ter um
número significativo de pessoas qualificadas e competentes para dar conta de todos os serviços
demandados para a realização das grandes transações econômicas, manipulações das bolsas de valores,
transferências bancárias, entre outras. Como vimos a partir de seu livro de 1991, Saskia Sassen
identifica em Nova York, Londres, Tokyo o tipo ideal dessas cidades. Mas em textos posteriores,
admite que Miami, Los Angeles, Toronto, Sidney, Zurique, Frankfurt/M., também estão se
qualificando para serem cidades globais. Portanto, não é o tamanho em termos de número de habitantes
ou área espacial ocupada que conta; conta sua funcionalidade em termos das manipulações financeiras,
que caracterizam a era da globalização.
Nessas cidades não há necessidade de cidadãos que cumpram deveres e têm direitos civis,
políticos e sociais. Aqui os indivíduos são classificados de acordo com sua utilidade para agilizar as
transferências financeiras, repassar informações, facilitar o ganho e a estabilização dos lucros. Não
cabe neste modelo, a visão do indivíduo com sua dignidade, sua qualidade como ser livre, ser
humano, cidadão. Em lugar de cidadãos, são valorizados os prestadores de serviços. Aqueles agentes
econômicos que se beneficiam desses serviços, não têm nenhuma vinculação com a cidade, pois para
eles as cidades são todas iguais e homogênas, na medida em que atendem aos critérios que as qualifica
como cidades globais. Os hotéis Hilton, Sheraton, Ritz, são padronizados e fornecem todos as mesmas
“facilities”. O mesmo vale para as lojas de grande grifes, que neles se encontram, os restaurantes
famosos, os bancos mundiais, as representações das firmas. Os grandes magnatas, tipo Soror, que
comandam a economia financeira mundial, transitam entre uma e outra cidade global como se fosse
uma única cidade. Pois, no que concerne o décor, a sofisticação e o luxo, os cardápios e programas de

8
Sassen, Saskia. The Global Ctty. New York, London, Tokyo. Princeton/NJ. Princeton University
Press, 1991
9
Sassen, Saskia. Cities in a World Economy. Thousand |Oaks: London-New Delhi, 1994

. 5
televisão dos lugares freqüentados, não há diferença de uma cidade global para a outra. E isso faz parte
da lógica da globalização. Diferenças implicariam em perda de tempo.
As mega-cidades ou megalópoles são cidades definidas pelo número exagerado de
moradores, via de regra acima de 10 milhões de habitantes.10 Elas resultaram de um desenvolvimento
econômico insustentável, que trouxe para as periferias urbans grandes contingentes populacionais de
áreas rurais e de outras cidades, via de regra em decadência, gerando conflitos imprevisíveis nas
últimas duas ou três décadas. Os extremos de pobreza e riqueza são marcantes nessas cidades, o que
aumenta o risco de conflitos e atritos internos incontroláveis, tornando-as inapropriadas para as
grandes transações econômicas e financeiras. Buenos Aires pode ser classificada como megalópole,
bem como São Paulo, Rio de Janeiro, Cidade do México, Caracas, Bogotá, em suma, as grandes
cidades latinoamericanas, mas também africanas como Lagos, e asiáticas como Nova Delhi, Calcutta
ou Kuala Lumpur, que em parte apresentam a estrutura econômica demandada para uma “global city”
mas que devido a suas complicações demográficas, revoltas e conflitos entre grupos rivais (do tráfico
de armas e drogas) como no caso do Rio e de Bogotá, tornam-se cidades violentas, inseguras,
imprevisíveis, inconfiáveis, de “risco”.
O exercício da cidadania nessas cidades complicou-se nos últimos tempos, tornando-se quase
impossível. Em seu livro Cidade partida, Zuenir Ventura relata da dificuldade de fazer valer um
sistema de leis comum a todos os habitantes do Rio.11 Além da divisão da população carioca em ricos e
pobres, tem-se uma cisão nos morros e favelas em que rivalizam pelo menos quatro categorias de
moradores: os bandidos e chefes do narco-tráfico, os crentes e seus pastores, a polícia armada e a
população comum. Os “bandidos” não perfazem mais de 1 % dos moradores mas controlam segundo
normas de honra e lealdade à la Robin Hood o restante dos moradores. Quem adere ao grupo rival, à
polícia corrupta, aos valores de fora da favela, corre risco de vida. Essa categoria dos bandidos ainda
está subdividida em várias facções. Ventura mostra que há diferentes grupos entre os religiosos,
crentes, protestantes, católicos, capazes de mobilizar grandes massas. A cidade do Rio é uma cidade
“partida” com uma vala profunda entre as várias partes, e nenhum denominador comum, necessário
para o exercício da cidadania, está à vista. O valor da vida não existe como não há o respeito à
dignidade humana. Direitos humanos são ignorados e violados por todos. Se não houver um esforço
coletivo de recuperar uma certa unidade, a “cidade partida” passará a ser uma cidade perdida. Este
será o destino triste da maioria das megalópoles, cujos moradores recaem num estado de selvageria e
brutalidade da idade da pedra, com as armas sofisticadas da pós-modernidade. Teremos voltado, como
alerta Ventura, aos tempos dos bárbaros.
As metrópoles são cidades que têm uma longa história e uma tradição de cidadania. Elas até
agora demonstraram a capacidade de se adaptar às novas condições da economia globalizada sem
perder sua especificidade histórica, política, econômica. É o caso de cidades como Londres,
Copenhagen, Paris, Roma, Berlim, Munique, Madrid, Viena, Lisboa, Atenas, Praga, Moscou,
Budapest, entre outras. Trata-se de cidades grandes, muitas delas com mais de dois milhões de
habitantes que no entanto conseguiram integrar suas populações, assegurando-lhes uma qualidade de
vida e um nível civilizatório invejável. Preservam e armazenam grandes tesouros culturais, tornando-se
por isso mesmo cidades com grande atração turística. Conseguem preservar seus “bistrôs” e suas
“brasseries” ao lado dos Mc Donalds e restaurantes “fast food”, seus hotéis tradicionais de bairro ao
lado dos Hiltons e Sheratons, resguardando seus bairros de demolições, apesar das pressões
imobiliárias.
Essas cidades têm uma longa tradição de cidadania, de luta e defesa dos direitos humanos.
Aqueles moradores que em decorrência de guerras, levas de refugiados e migrações intercontinentais
se assentaram na metrópole, aceitam as regras do jogo, obtendo seus direitos e cumprindo seus
deveres, pelo pagamento de impostos e taxas. As metrópoles européias aqui citadas asseguram aos seus
moradores os direitos civis básicos de liberdade,propiredade, segurança, de oposição à tirania, respeito
à dignidade. Mas a exemplo de Paris e Berlim, as metrópoles oferecem a todos seus moradores, além
do direito de livre circulação e expressão, o direito de moradia, acesso à educação, saúde, emprego,
previdência social, etc. Como elas oferecem um alto nível de civilidade e qualidade de vida, há grande
assédio a essas cidades. Por isso, elas se vêem forçadas a controlar as entradas, e examinar
cautelosamente quem tem o direito de nelas se fixar, trabalhar, viver, estudar. Há um controle severo
de fronteiras, que irrita aqueles que vêm de fora e querem se estabelecer nelas.

10
Para um maior aprofundamento do conceito de “megalópole” vide Barbara Freitag: “O mito da
megalópole na literatura brasileira”. Em: Cidade e Literatura, no.132 da Revista Tempo Brasileiro,
janeiro-março de 1998, Rio pp 143-158.
11
Zuenir Ventrua: Cidade Partida, São Paulo: Companhia das Letras, 2001 (10a. Reimpressão),
especialmente Parte II: O Tempo dos Bárbaros. Pp.55-278

. 6
As cidades periféricas do modelo de Sassen são as que já tiverm grande importância política
e econômica, ou pelo menos importância maior do que têm hoje. Podemos dar como exemplos as
cidade de Marselha, Glasgow, Manchester, Porto, Sevilla, Bucarest. Trata-se de cidades que já tinham
alcançado altos patamares civilizatórios (econômicos, políticos, culturais) com um grau admirável de
implementação de direitos humanos e cidadania. Contudo, com o seu declínio econômico e perda de
importância política, essas cidades também regridem no campo das conquistas dos direitos humanos e
das práticas de cidadania. Na Inglaterra várias cidades foram “tomadas” por imigrantes do antigo
Commonwealth. Esses imigrantes ajudaram na reconstrução da economia inglesa no pós-guerra,
conquistando, assim, o direito de permanência, moradia, educação, saúde, etc., mas também
importaram os seus conflitos raciais, religiosos, políticos, dificultando um convívio harmonioso e
civilizado entre as várias etnias. É o caso dos indianos siks, budhistas, muçulmanos, paquistaneses que
competem nos diferentes bairros de cidades como Birmingham, Manchester e outras, por postos de
trabalho em ocupações específicas como restaurantes, lavanderias, vendas de especiarias, etc. Na
Alemanha certas cidades e bairros periférios, assistem às chacinas entre coreanos do norte e do sul, de
turcos e curdos, de vietnamitas ou chineses. Os conflitos são maiores naquelas cidades da Alemanha do
Leste como Leipzig, Dresden, Frankfurt an der Oder, onde o desemprego é maior e as rivalidades se
agudizam entre nativos e imigrantes. Este também é o caso de cidades francesas em que africanos e
muçulmanos tomam conta das periferias de cidades, multiplicando-se os pontos de atrito na proporção
direta com o avanço do desemprego. O exercício da cidadania nessas cidades está fortemente
ameaçado.Um indicador indireto foram os resultados da recente eleição para Presidente na França, em
que o candidato Le Pen, da extrema direita, alcançou índices significativos de apoio (perto de 20 % dos
eleitores).
Isso também vale para as cidade satélites ou dormitório. Aqui os moradores não encontram
trabalho e não têm um compromisso com a cidade, pois ela somente serve de dormitório fornecendo no
máximo moradia. As cidades dormitório não têm economia própria nem independência administrativa.
Elas ficam distantes de uma cidade capital, metrópole ou megalópole, em função da qual vivem e da
qual passam a depender. É o caso dos “banlieus” de Paris, de Londres, das cidades ABC de São Paulo
e das cidades satélites de Brasília. A morada mais barata implica para os habitantes dessas cidades
viagens longas para os seus lugares de trabalho. A distância que um funcionário ou trabalhador do
Plano Piloto, que mora na Ceilândia ou em Taguatinga, percorre é na média de 30 a 40 quilômetros.
Este também é o caso do operário de São Paulo, que mora no ABC paulista e muitas vezes trabalha
fora dessas cidades. O conceito de cidade dormitório já exprime claramente a problemática dos
direitos humanos e da cidadania. Atendendo somente um ou dois dos direitos básicos do cidadão, essas
cidades fazem manchete nos jornais pelo alto indice de violência, de greves, problemas de trânsito,
insalubridade, epidemias, poluição, agressão ao meio ambiente, entre outros males das cidades
chamadas “insustentáveis”.

O futuro da cidadania no mundo globalizado

Formalmente, o “direito à moradia” somente passou a figurar em documentos oficiais,


também assinados pelo governo brasileiro, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948 (artigo XXV, item 1). A Constituição brasileira de 1988 incluiu, pela primeira vez, um capítulo
específico para a política urbana. Nos artigos 182 e 183 são apresentados alguns instrumentos para a
“garantia, no âmbito de cada município, do direito à cidade, da defesa da função social da cidade e da
propriedade e da democratização da gestão urbana.” A Constituição exigiu, no entanto, uma legislação
complementar que finalmente foi sancionada pelo Presidente da República em 10 de outubro de 2001
e que ficou conhecida como “Estatuto da Cidade”. Este Estatuto estabelece os parâmetros que devem
orientar a política urbana. Entre as 16 diretrizes constantes do Art. 2. merecem especial destaque as
duas primeiras, pois é nelas que estão consubstanciados os direitos do cidadão, habitante de uma
cidade. Aqui a “grantia do direito a cidades sustentáves” é entendiao como “o direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à ifra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao
trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (I). Pela primeira vez, o Estatuto da Cidade
também reconhece a gestão democrática da cidade como sendo uma diretriz para o desenvolvimento
sustentável das cidades. Essa gestão se daria “por meio da participação da população e de associações

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representativas dos vários segmentos da comunidade, na formulação, execução e acompanhamento de
planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.”(II) 12
O novo Estatuto de Cidade regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição de 1988. Tendo-
se em vista a legislação até então vigente, podem ser consideradas novidades: a introdução do IPTU
progressivo no tempo, mecanismos especiais de desapropriação, reforço do direito ao usocapião,
individual e coletivo, o estudo do impacto de vizinhança, entre outras inovações. Em um dos capítulos
(III) fala-se até mesmo de justiça social e do desenvolvimento de atividades econômicas. No capítulo
referente à gestão orçamentária participativa (IV) pode-se ler: “Os organismos gestores das regiões
metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa participação das
populações e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir
o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania.” (destaque meu, B.F.)
Deste modo, a lei brasileira põe no papel direitos e deveres que segundo Weber já eram
assegurados na fundação das cidades pré-industriais da Europa central e praticados nessas cidades até
mesmo antes da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e da Declaração Universal
dos Direitos Humanos (1948). E, conforme vimos para as “metrópoles modernas”, como apresentadas
por Saskia Sassen, continuaram em vigor até os dias de hoje nesse tipo de cidade.
Não há duvidas de que o novo Estatuto da Cidade que entrou em vigor no Brasil há menos de
um ano ainda não teve a possibilidade de se concretizar. Mas há sérias dúvidas, do ponto de vista
sociológico, de que tal estatuto “pegue” como Lei e que os diferentes parágrafos funcionem
efetivamente como diretrizes capazes de reorientar a explosão urbana desvairada, incontrolada e
insustentável que a realidade social criou no Brasil. Não estou com isso querendo dizer que o Estatuto
da Cidade não seja um instrumento valiosíssimo para redirecionar a política urbana do país. Mas é
verdade que o Estatuo veio tarde e contém poucas diretrizes capazes de reverter os males da
urbanização descontrolada que já deixaram seqüelas irreversíveis nos diferentes tecidos urbanos e no
meio-ambiente. Lembremos simplesmente as agressões causadas a este último. A falta de sanenamento
básico das redes de esgoto (não tratadas) já poluiram rios, lagos e mares a um ponto que exigiria
medidas urgentes, em todos os níveis administrativos, para a sua recuperação. Tais medidas são
caríssimas e seu financiamento não está previsto no Estatuto da Cidade.
Há, contudo, sinais de otimismo, que se manifestam na Carta dos Direitos Humanos nas
Cidades, elaborada durante o II Foro Social Internacional de Porto Alegre, no primeiro semestre do
ano 2002. Terminarei a minha exposição sobre Cidade e Cidadania, resumindo aqui alguns dos
parágrafos, lembrados pelos integrantes do foro em Porto Alegre.13 A diferença da Carta de Porto
Alegre para o Estatuto da Cidade é pequena. Trata-se, nos dois casos, de “boas intenções”, postas no
papel e voltadas para o insolúvel problema de nossas cidades, de sua insustentabilidade, de sua falta de
hospitalidade (Mitcherlich). Mas no primeiro caso, trata-se de um documento elaborado pelo poder
instituionalizado (Câmara, Senado, Presidência) que precisou de mais de uma década para ser
elaborado e finalmente sancionado. No caso da Carta, trata-se de um documento espontâneo que
resultou da tomada de consciência por parte dos cidadãos individuais, de várias partes do mundo, sobre
a necessidade de salvar não somente as cidades, mas sim os direitos humanos dos cidadãos que
habitam essas cidades. E isso, independentemente de sua etnia, religião, sexo, idade, convicção política
ou partidária, independentemente de seu grau de riqueza ou pobreza. Aqui encontramos o gancho com
as reflexões desenvolvidas no contexto da tipologia das cidades de Saskia Sassen: é preciso assegurar
os direitos humanos em TODAS as cidades e não somente tornar funcionais as cidades que,
negligenciando os interesses de seus habitantes comuns, somente procuram atender aos interesses do
capital financeiro internacional, como é o caso das “global cities”.
A Carta dos Direitos Humanos das Cidades de 2002 pode ser considerada como sendo a forma
mais elaborada e sofisticada dos direitos universais do homem e do cidadão no contexto urbano. Ela é
dividida em 6 Partes (Disposições Gerais (I), Direitos Civís e Políticos da Cidadania Local(II), Direitos
Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (III), Direitos relativos à Administração Democrática
Local (IV), Mecanismos de Garantia dos Direitos Humanos de Proximidade (V) e Disposições finais
(VI)), constando de 23 artigos subdivididos em vários parágrafos.
As signatárias da Carta são cidades, que estiverem de acordo com os compromissos
relacionados no texto. “As cidades signatárias reconhecem o caráter imperativo dos direitos nela

12
Câmara dos Deputados (org.) Estatuto da Cidade. Guia para implementação pelos municípios e
cidadãos. Produão CAICA Polis, Brasília, 2001; vide ainda Estatuto da Cidade: Lei n. 10.257, de 10 de
julho de 2001, que estabelece diretrizes gerais da política urbana. Brasília : Câmara dos Deputados,
Coordenação de publicações., 2001, p. 3
13
cf. “Forum Social Mundial de Porto Alegre” cujo programa geral, resoluç~!oes e documentos
básicos pode ser acessado pelo site: < http://www.forumsocialmundial.org.br/por/index>

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enunciados”e se “comprometem a criar uma Comissão encarregada de estabelecer a cada dois anos
uma avaliação da aplicação dos direitos reconhecidos pela presente Carta e fazê-la pública.” Entre os
principais direitos, a Carta defende os direitos à cidade, à não discriminação, à proteção dos cidadãos
mais vulneráveis, à cooperação solidária, à liberdade e integridade, à participação política, à
associação , de reunião e manifestação, à informação, à educação, ao trabalho, à cultura e ao lazer, à
moradia (art. XIV), à saúde, ao meio ambiente, à livre circulação na cidade, entre outros direitos
individuais e coletivos. Trata-se, pois, por enquanto, de direitos reunidos em um documento, em uma
Carta de intenções que em muitos pontos tem o respaldo da lei (Estatuto da Cidade). A cidadania exige
contudo, como vimos já na introdução, o exercício e a prática desses direitos por parte dos cidadãos,
enquanto moradores da cidade.
Quando isso ocorrer, teremos realmente uma unidad inseparável entre Cidade e Cidadania.
Até lá, um longo percurso de educação e convivialidade urbaqna terá de ser percorrido.

Brasíliaq, 31 de maio de 2002 Barbara Freitag

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