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RODUÇÃO
NA TRAVESSIA, OS REENCONTROS
COM A ESCOLA RURAL
Portanto, tomarei como porto de partida a minha história de vida e minha a prática
profissional. A educação rural faz parte da minha trajetória de vida. Nasci na zona
rural de Alagoas, onde fui alfabetizada por uma professora “leiga” 1. A escola
funcionava numa pequena casa de pau-a-pique2, coberta com palhas de coqueiro,
onde tinha uma velha mesa para a professora e algumas poucas carteiras para os
alunos. Lá, só funcionava uma sala com alunos da 1ª e 2ª séries. Na escola, não
tinha material escolar — apenas um caderno, um lápis e uma borracha para cada
aluno. Na parede, tinham pendurados um pequeno e velho quadro-negro e uma
palmatória. Foi nessa escola que tive contato com as primeiras letras (A de arubu)
e com a contagem básica. Fui alfabetizada ouvindo duas importantes
recomendações da minha primeira professora:
Medo e insegurança são alguns dos meus sentimentos diante — agora não mais do
caderno que deveria ser economizado — da possibilidade de ressignificar, para
tentar entender, refletir e contribuir de alguma maneira com a discussão sobre o
quadro atual em que se encontra a educação rural.
Nas palavras de Sônia Kramer, “lembrar..., não reviver, mas refazer, reconstruir,
pensar com imagens e idéias de hoje as experiências do passado”. Então, tentarei
neste momento, reconstruir a minha trajetória de vida, como algo que
instrumentaliza minhas reflexões sobre meu tema/estudo atual.
Com oito anos, fui morar em uma pequena cidade próxima ao sítio onde ficava
minha primeira escola. Lá, estudei em uma escola, onde cursei a 3ª séries do
ensino fundamental. Nessa escola, tinha uma cartilha de que me lembro até hoje.
Achava-a bonita com suas letras e imagens coloridas. Lembro que uma das lições
era sobre a escola: havia uma figura que retratava uma escola com crianças
brincando num lindo jardim, com uniformes bonitos, paredes brancas e limpas e
uma grande bandeira hasteada. Tudo era perfeito. Diante daquela imagem,
pensava: “gostaria de estudar numa escola como essa”.
Mas a minha escola era muito simples, não tinha jardim, uniforme, nem bandeira
hasteada. A merenda escolar, quando tinha, sempre nos fazia mal. Lembro-me que
sempre nos era servido leite com chocolate, fruto do convênio MEC/USAID
(essas palavras estavam estampadas nos sacos de chocolate e leite em pó),
alimento não muito adequado para o clima quente do Nordeste, fato ainda hoje
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Algum tempo depois, fui morar numa grande cidade do interior do Nordeste, e lá
fui estudar numa escola maior – o Grupo Escolar. Era mais bonito, mas ainda não
era igual àquela da cartilha. Sentia-me acanhada e tímida diante do tamanho da
escola e do número de alunos e de professores. Achava engraçado a professora
não saber quem eu era, como era meu nome e de quem eu era filha. Sentia-me
estranha, pois a minha primeira professora e as professoras da escola onde tinha
estudado anteriormente sabiam tudo a meu respeito e sobre a minha família.
Saí de Goiás com uma sensação muito estranha que me deixava inquieta. Sentia
que precisava elaborar as questões que trazia do passado, ou ainda, “repensar o
passado, ressignificá-lo, pensar e ressignificar o futuro...” (Kramer, 1997, p. 2).
Ainda em Brasília, em 1990, voltei à academia, na qualidade de estudante do
curso de mestrado. Aquele foi um momento muito especial, pois, além de tornar-
me uma mestranda do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Psicologia-
UnB, iniciava minha trajetória como professora universitária, lecionando
Psicologia nos cursos de formação de professores — licenciaturas — na
Universidade Católica de Brasília. Como professora, encontrei vários alunos que
atuavam como professores na zona rural do Distrito Federal e de Goiás. A partir
dos relatos desses meus alunos, das nossas discussões sobre a educação e a
formação do professor rural e das minhas próprias questões, fiz a escolha do meu
tema de pesquisa, como parte do curso de mestrado: “Um estudo acerca das
representações sociais da Psicologia e do psicólogo escolar por um grupo de
professores rurais do Distrito Federal” (Cavalcante, 1994).
Trazia para esse estudo várias questões: o que mudou em relação à discussão da
formação de professores, como estavam sendo formados os professores rurais do
DF e qual a contribuição da psicologia na formação e na prática deles, entre
outras. Resolvi, então, buscar essas respostas no Instituto de Psicologia e na
Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, a mesma que tinha me
ajudado na formação inicial uma década atrás. Apesar de o discurso ser outro, a
prática continuava a mesma, havia ainda um visível distanciamento entre teoria e
prática. Diante disso, as minhas antigas (velhas) questões relacionadas à educação
rural continuavam atuais e sem respostas.
Desenvolvi a pesquisa nas escolas rurais do Distrito Federal, tendo como objetivo
apreender as representações da Psicologia e do psicólogo escolar em um grupo de
professores rurais do Distrito Federal. A questão central desse estudo era
identificar em que medida a Psicologia e o psicólogo escolar contribuíam para a
educação rural.
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Verifiquei que a maioria dos professores rurais que participou daquele estudo era
predominantemente urbana e com nível de escolaridade alto se comparado com as
outras regiões do país, embora os professores viessem enfrentando uma série de
dificuldades na sua prática educativa. Cerca de 70% deles apontaram as questões
relacionadas à sua formação como uma das principais causas dessas dificuldades,
com o seguinte agravante: todos os professores que participaram dessa pesquisa
declararam que não foram formados para trabalhar no contexto da escola rural,
que nunca lhes foi oferecido um curso que tratasse de educação rural (Cavalcante,
1994).
1993). Aos poucos, percebemos que as portas e janelas estavam entreabertas e que
por trás delas existia sempre uma pessoa nos olhando. Só as crianças — sempre
elas — tomavam a iniciativa de nos receber, com seus olhos cheios de
curiosidade, com vontade de falar, tocar, ouvir, enfim, conhecer e se fazer
conhecer. A aproximação aconteceu gradativamente até que as casas e as pessoas
começaram a se abrir para nós.
partir de velhas e novas questões, que não são só minhas, mas de muitos
professores que fizeram parte, de alguma maneira, da minha trajetória, tornando-
se, este, um momento fértil de aprofundamento.
A educação brasileira tem sido objeto de estudo de muitos pesquisadores, nos seus
múltiplos aspectos e diferentes contextos. Contudo, ainda é muito reduzido o
número de estudos que contemplam a educação rural. Segundo André (2000), esse
tema é pouco pesquisado ou, até mesmo, “silenciado” entre os pesquisadores da
educação, evidenciando a necessidade de que esteja mais presente entre os objeto
de estudo dos pesquisadores educacionais. As pesquisas desenvolvidas por Davis
e Gatti (1993) e Alencar (1993), entre outros, vêm corroborar essa afirmação.
Griffiths (1980), fazendo referência aos poucos estudos desenvolvidos na África,
Nigéria, Oriente Médio, Sudeste da Ásia, Caribe e Índia, sobre esse tema, afirma
“... muito pouco se tem escrito sobre o assunto. As pessoas não gostam de
registrar seus fracassos” (p. 42), uma vez que os resultados, em geral, não são
animadores.
a quem ela está sendo oferecida? Enfim, que quadro podemos compor da atual
educação rural de Minas Gerais?
Para tanto, foi necessário fazer algumas escolhas, com o objetivo de buscar
alternativas metodológicas mais adequadas para a aproximação com o objeto de
estudo. A complexidade do tema proposto exigiu cautela na escolha do aporte
teórico e da abordagem metodológica. Segundo Alves (1991), o design e o foco
do estudo não podem ser definidos a priori, pois a realidade é múltipla e
complexa e, portanto, não se pode apreender seu significado se, de modo
arbitrário e precoce, a aprisionarmos em dimensões e categorias.
Para apreender o objeto desta pesquisa, foi realizada uma investigação qualitativa,
como abordagem privilegiada, mas foram também incorporados dados oficiais
sobre a educação rural, obtidos junto aos órgãos que os coletaram, pois, segundo
Lüdke e André (1986), “o papel do pesquisador é, justamente, o de servir como
veículo inteligente e ativo entre o conhecimento acumulado na área e as novas
evidências que serão estabelecidas a partir da pesquisa”(p. 5).
Para coletar os depoimentos dos professores, optou-se por fazer uma entrevista
com perguntas fechadas (para obter dados mais pontuais, como os de identificação
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O interesse fotográfico está voltado para o outro que é distante de nós, esteja ele
longe ou perto, procurando revelar a vida do outro — a realidade revelada. Trazer
para o nosso campo visual a escola rural, “desnaturalizando-a”, como sugere
Gonsalves (2000), pode permitir uma contemplação, a emergência de uma
sensibilidade, já que, em algumas circunstâncias, a imagem pode ser mais forte do
que muitos dos dados quantificados. A possibilidade de visualizar, de ilustrar, de
nomear e descrever, mesmo que não tenha a força de gerar conceitos, permite
destacar a razão interna das coisas. “Imagens são palavras que nos faltaram”
(Manoel de Barros).
A fotografia foi utilizada como uma maneira de expressar a realidade das escolas
visitadas e de descrever aquela realidade com mais precisão, de modo a torná-la
mais concreta para o leitor deste trabalho. “Colocar a imagem diante de nós indica
que um deslocamento nosso foi feito naquela direção, indica que estamos
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