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A origem da obra de arte e o mundo da vida

Jasson da Silva Marfins"

o texto aqui estudado, A origem da obra de arte, quer ser um


primeiro contato com o pensamento de Heidegger, pela via da imagem
que a obra de arte produz em cada expectador. Quer desvelar-velando a 'Acadêmico do
origem da obra de a arte e o fim para o qual ela aponta. Buscamos refletir curso de Filoso-
aqui qual a relação entre a obra de arte e o mundo vivido, bem como fia - Unilasalle.
despertar o homem para a necessidade das diversas formas de re-velação
da verdade. Por último, desejamos trazer à vivência do cotidiano, a partir
da arte, deixando transparecer na obra de arte, o velar e o desvelar-
velando-se da verdade que desemboca no mistério.

Palavras-chave: Obra de arte. Caminho. Mundo. Terra. Cotidiano.


Verdade.

The essay studied tiere. the origin of the work of ert. wants to be
the first contact with Heidegger's philosophy and thought, through the
image that the work of art produces in each spectator. It wants to show/
hide the origin of the work of art and the end it aims. The aim is to think
about the relation between the work of art and the world lived, and to
show the necessity of the different forms of truth reve/ations to humans.
Final/y, dai/y life, from ert. brought letting it show through the work of ert;
the show and hide of truth that ends in mystery

Key-words: Work of art; path; wortd; earth; dai/y life; truth.

1 INTRODUÇÃO E CONTEXTO

A origem da obra de arte é um texto de Heidegger, escrito em 1936.


A versão utilizada aqui é uma edição revista pelo autor, para a publicação
em separado da coletânea Caminhos de Floresta. O texto que ora temos
60 Jasson oa Silva Martins

em mãos está acrescido de um Heidegger teve contato com essa


'Aditamento', antes do Epílogo, re- obra e a aprovou.
digido em 1956, de acordo com o
O texto aqui estudado, A ori-
epílogo do editor alemão 1 •
gem da obra de arte, quer ser um
Caminhos de Floresta é uma primeiro contato com o pensamen-
coletânea que reúne, nas palavras to hedeggeriano, pela via da ima-
dos tradutores, um 'conjunto de en- gem que a obra de arte produz em
saios aparentemente disperses". cada expectador. Quer desvelar-
O título desta coletânea foi dado velando, a origem da obra de a arte
pelo próprio autor, quando do en- e o fim para o qual ela aponta. Por
cetamento de uma edição integral último, busca refletir qual a relação
desses textos produzidos entre entre a obra de arte e o mundo vivi-
1935 e 1946. do, bem como despertar o homem
para a necessidade das diversas
O fato de Heidegger ter ado-
formas de re-velação da verdade.
tado 'caminho' como lema para
adjetivar sua produção, ao invés de Este primeiro contato com o
obras, revela uma coerência inter- texto e temática, de caráter prope-
na, no conjunto do seu pensamen- dêutico, visa meditar sobre todas
to. Isso é verificável em alguns títu- estas questões, abrindo-nos ao
los, onde o autor expressamente mundo da obra de arte. Por outro
tematizou o 'caminho' ou o 'estar a lado, é um reconhecido esforço de
caminho'>. Esse tema, a filosofia tomarmos como necessária e in-
com um caminho perene, foi fonte dispensável a tarefa de pensar a fi-
de estudo, pesquisa e defesa, por losofia para além do conceito for-
parte de Otto poggeler. Esse biógra- mal. Certamente a pergunta digna
fo mostra, em seu livro". que o pen- de ser pensada aqui, deriva de
samento de Heidegger é um per- nossas inquietações e dúvidas,
curso, uma via, em oposição a um numa tentativa de meditar sobre a
sistema filosófico completo e auto- obra de arte, seu vínculo com o
explicativo. Segundo Poggeler, real e a manifestação desse real

1 Epílogo publicado em 6 de setembro de 1977, em HERRMANN, F.-W. von. Epílogo


do editor alemão. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1998. p. 445-446.
2 Idem, Prólogo à edição portuguesa, VIII.
3 São exemplos que reforçam essa tendência, os títulos: 'A caminho da linguagem' de
1959; 'Meu caminho para a fenomenologia' de 1963.
4 POGGELER, Otto. A via do Pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Piaget, 2001.
p. 16. "A via que Heidegger percorre torna-se assim, pelo seu lado, um sinal itinerário
na via que cada um por si mesmo deverá percorrer".
A da obra de arte e o mundo da vida 61

pela obra de arte, como um modo do longínquo. Ao contrário, origem


privilegiado de fazer filosofia. Por aqui é compreendida como funda-
último, desejamos trazer a vivência mento, aquilo que fornece às coi-
do cotidiano, a partir da arte, dei- sas sua identidade. A unidade es-
xando transparecer na obra de sencial que está na base de sua
arte, o velar e o des-velar da ver- existência.
dade, do mistério.
Nas palavras do próprio
Heidegger:
2 ORIGEM E FIM DA OBRA DE
'Origem' significa aqui aquilo a partir
ARTE
do qual e pelo qual algo é aquilo
que é e como é. Aquilo que é, (sen-
Afirmamos que a obra de arte
do) como é, chamamos a sua essên-
é um modo privilegiado de revelar cia. A origem de algo é a proveniên-
o cotidiano. Daí a necessidade de . cia da sua essência. A pergunta pela
perguntar pela origem. Qual a ori- origem da obra de arte pergunta pela
proveniência da sua essência.
gem da obra de arte? Afinal, a ori- (HEIDEGGER, 1998, p. 7)
gem está no artista, na obra ou na
arte? Ou, para fazer uma pergunta Assim fica assegurado o prin-
heideggeriana, o que está em obra cípio de identidade da origem da
na obra de arte?" coisa, com a coisa mesma, em. si
mesma. Quando dizemos, por
Para aproximar nossa refle- exemplo, que a porta da sala de
xão sobre a origem da obra de arte, aula é a origem da porta, constitui-
ou seja, para inquirir sobre o que se como o é. Essa cópula 'é', cons-
acontece na obra, um caminho fun- titui a sua origem e a diferencia de
damental baseia-se na pergunta todas as outras coisas, tornando-
pela origem. Ao indagar pela obra, a porta. Assim, a cópula 'é' asse-
em verdade, buscamos a sua ori- gura por ela a identidade da coisa
gem. Em outras palavras, perguntar consigo mesma". (HEIDEGGER,
pela origem é o perguntar por aquilo
1979, p. 180> Essa unidade que
que dá garantia à obra, na sua exis-
revela à coisa sua força própria é
tência enquanto tal.
denominada por Heidegger de es-
Origem aqui é entendida, não sência. A essência é o instante que
como ponto de partida, como iní- inaugura a abertura da realidade e
cio que permanece em um passa- que a permeia.

5 HEIDEGGER, Martin. 1998. p. 31. "O que é que acontece aqui? O que é que, na
obra, está em obra?".
6 "Com este 'é', o princípio diz como todo e qualquer ente é, a saber: ele mesmo
consigo mesmo o mesmo".
62 Jasson da Silva Martins

Mas, onde esta origem se tor- mem e não mais a origem que pro-
na visível? A origem só se mostra jeta e governa a realidade. Esse
nas coisas. Embora o fundamento 'desvio de rota' mostra que foi
total que permite essa revelação abandonada a experiência grega
nos escape, sua presença se faz vi- de pensar a essência como origem.
sível. Aqui Heidegger faz uma dife-
Nesse sentido, podemos in-
renciação. Ele conceitua o sentido
teligir que a essência da obra de
grego de origem, diferentemente do
arte, pensada originalmente, se
sentido latino de substância.
mostra no ser obra da obra. Como
Sobre isso Heidegger expres- se efetiva isso? Tal efetivação se dá
sa a seguinte idéia: através do movimento pelo qual a
A tradução dos nomes gregos para obra se torna obra de arte. A arte é
a língua latina não é, de modo ne- a origem da obra e do artista. Por
nhum, um acontecimento sem con- meio da arte, obra e artista afirmam
seqüências, como ainda nos nossos
sua existência. Assim sendo, é pela
dias se julga ser L..l O pensamento
romano toma posse das palavras gre- arte que artista e obra tornam-se
gas sem uma experiência igualmen- possíveis. É pela arte que emergem
te originária que corresponda àquilo o artista e a obra. Ela traça, então, o
que elas dizem, sem a palavra gre-
ga. (HEIDEGGER, 1998, p. 15-6)
vínculo entre artista e obra. Só na
presença da arte é que a obra se
A partir dessa tradução do manifesta e em sua presença o ar-
termo grego pelo termo latino, se- tista cria.
gundo Heidegger, perdeu-se o sen-
tido, o modo originário de compre- Pelo caminho percorrido até
ender qreqo? . Passou-se, a partir de aqui, através da pergunta pela ori-
então, a compreender substância gem da obra de arte, desde sua
como algo velado por detrás das essência, chegamos à arte. Fica cla-
aparências. A tarefa da filosofia, ro, a essa altura da nossa reflexão,
dentro dessa compreensão, seria o paradoxo: se a arte só se mani-
atingir a substância. O filósofo al- festa na obra, a obra de arte é o
cançaria o auge da sua existência espaço onde se dá a efetivação da
encontrando o substrato sobre o arte. Instaura-se aqui um círculo: de
qual repousa toda a realidade. um lado parte-se da obra e chega-
A essência, assim, se torna o obje- se à arte, de outro, indaga-se a arte
tivo, a meta a ser atingida pelo ho- e volta-se para a obra.

___ o Que é isto - A filosofia? In: . 1979. p. 14. Heidegger mostra como
o pensamento moderno está distante do pensamento originário, e o fato de hoje
falarmos em filosofia ocidental, deve-se ao fato de que a 'filosofia é grega',
primeiramente.
A da obra de arte e o mundo da vida 63

Para superar esse paradoxo, tendimento da obra, é preciso an-


é necessário mergulharmos no in- tes pôr-nos no horizonte do seu
terior dessas questões. Para que caminho, ou seja, embrenhar-nos
isso fique patente, é preciso con- na via de acesso pela qual ela se
quistar o movimento do círculo, mostra.
que aqui se estabeleceu, ou seja, a
Diante dessa constatação, a
relação entre obra e arte, de forma
primeira indagação que deve ser
a continuar o caminho para a obra.
feita é a seguinte: através do que a
Daqui surge a necessidade de in-
obra se patenteia para nós? Aqui
vestigarmos o que a obra nos reve-
se abre a porta para o encontro da
la a partir da origem e qual o víncu-
coisa com a realidade, pela realida-
lo entre a essência da obra e a rea-
de. Ou seja, é no movimento de vir-
lidade.
à-luz, de existir, ao qual todos per-
tencemos, que a arte se manifesta.
3 A OBRA DE ARTE FUNDA O
Cabe-nos, então, a tarefa de bus-
MUNDO, CRIANDO A TERRA
car a compreensão da obra a par-
O que nos conduziu até aqui tir de suas relações com a realida-
foi a interrogação pela origem da de. Nesta tarefa, poderemos fazer
obra. Esse caminho foi percorrido a vivência da sua essência, enquan-
no intuito de encontrar a sua essên- to se patenteia na realidade.
cia, ou seja, o que garante à obra a O caminho que percorremos,
sua existência enquanto tal. Através a partir da pergunta pela origem da
dela, chegamos à arte. Logo a arte obra, agora se converteu na indaga-
se mostrou como núcleo originário ção pelo aparecer da obra na reali-
da obra. Ambas mantêm entre si dade. Sabendo que a obra se insere
um vínculo fundamental, mas esse no âmbito do real, funda-se nele,
vínculo por si só não nos permite perguntemos primeiramente o que
sua compreensão. ela expõe no seu aparecer. O que
A fenomenologia, enquanto os quadros, a poesia, a escultura,
método, acredita que o fenômeno, as obras literárias, enquanto obras
ao se apresentar à consciência, traz de arte, querem mostrar? De que é
em si mesmo a sua explicação". constituído o seu interior, para que
Nesse sentido, para buscar um en- os designemos por obras?

8 HUSSERL, Edmund. A crise da civilização européia e a filosofia. Porto Alegre: Edipucrs,


1996. p. 35. "A fenomenologia consiste na tentativa de descrever o fundamento da
filosofia na consciência na qual a reflexão emerge da vida irrefletida do começo ao
fim".
64 Jasson da Silva Martins

Será útil pensarmos aqui a Mas o que vemos no quadro


partir de uma obra, para pôr-nos no de Vicent Van Gogh? O que viu
sentido da indagação, propriamen- Van Gogh? Ao mostrar os sapa-
te dita. Já ficou claro para nós que tos da camponesa, o pintor tornou
a obra nos remete a algo, nos ofe- visivel'" o mundo da camponesa.
rece algo. A obra revela a arte e o Os sapatos gastos presentes no
artista. Perguntamos: O que é esse quadro trazem consigo a presen-
algo que se mostra na obra? Esse ça da própria lavoura. Eles eviden-
'algo' é a própria realidade, pois a ciam o peso do trabalho árduo, da
obra se faz como abertura para que manhã que se inicia no caminho
a realidade se evidencie. Esse 'evi- para o campo, do suor da lida, do
denciar', da realidade, ultrapassa o sol quente no verão, do inverno ri-
modo corriqueiro de observar o goroso.
real, como algo parado e estático. Através da pintura, o quadro
Esse evidenciar insere-se no próprio expõe o cotidiano da camponesa.
movimento de acontecer do real. Pelo quadro que exibe apenas um
Heidegger, para mostrar a par de sapatos velhos, conhecemos
obra como abertura para a reali- todo o mundo ao qual ele perten-
dade, se utiliza de um exemplo de ce. O par de sapatos é uma janela,
um quadro de Van Gogh9• O qua- que, enquanto abertura, mostra o
dro de Van Gogh permite ver os que é velado na cotidianidade.
sapatos de uma camponesa 10. Pela obra, tornou-se patente
Esse quadro não é tão somente o o lugar donde ele recebe sua exis-
artefato, ou o adorno que se pen- tência, o mundo da camponesa.
dura na parede 11. No entanto não Mas onde está o caráter de obra
é este modo que nos propomos da obra? O que torna o par de sa-
meditar aqui, ao perguntar o que patos obra é o fato de ele não se
faz a obra ser obra. referir apenas a um objeto indivi-

9 Além do quadro de Van Gogh, Heidegger utiliza um outro exemplo, o do templo


grego, que abordaremos aqui apenas de passagem.
10 SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger. um mestre da Alemanha entre o bem o mal. São
Paulo: Geração, 2000. p. 351. O biógrafo afirma que o quadro "mostra os sapatos
gastos do próprio autor - Van Gogh - (que enganosamente Heidegger toma por
sapatos de um camponês)".
11 Se bem que isso, o fato de estar pendurado na parede, não desmerece nem apaga
seu caráter de obra.
12 SAFRANSKI, Rüdiger. 2000. p. 351. Afirma: "A arte não descreve, mas torna visível.
O que ela desencadeia fecha-se em um mundo próprio que permanece transparente
para o mundo em geral".
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dual. Caso ele aparecesse somen- ser-obra da obra. No entanto, para


te como aquele par de sapatos abordarmos o que o mundo e a
dado, então, o quadro abandona- terra expõem, busquemos qual o
ria o seu caráter de obra, pois não sentido deles na constituição da
apontaria para nada além do uten- obra de arte.
sílio que serve ".
Pela descrição da pintura de
Esta serventia só a campone- Van Gogh, ficou claro que a obra
sa faz dos sapatos, pois: instala um mundo, isto é, ela faz-se
Todas as vezes que a camponesa, como clareira que clareia 14 o ente.
já noite adentro, põe de lado, no seu Clareira, quer dizer abertura aber-
cansaço dorido mas são, os sapatos
ta. Um termo muito caro à filosofia
e, estando ainda escura a madruga-
da, os volta logo a tomar para si, ou grega e de uma importância funda-
quando, nos dias de descanso, pas- mental, dentro do pensamento hei-
sa junto deles, ela sabe tudo isto deggeriano.
sem quaisquer consideração ou ob-
servações. (HEIDEGGER, 1998, p. Resguardado o sentido de
29)
clareira, enquanto espaço de aco-
O par de sapatos só se cons- lhida e apropriação, a interpretação
titui enquanto obra pelo abrir-se da do significado do mundo ganha um
essência do ser-sapato, que reme- novo sentido 15. A partir da clareira,
te ao mundo da camponesa. Essa o mundo deixa de ser um objeto
abertura, na realidade e da realida- que pode ser tomado a priori. Ao
de, que a obra propicia é o lugar contrário, o mundo se realiza so-
próprio da revelação do ente das mente no caminho pelo qual os
coisas. Através da obra, nesse per- entes se desvelam. O mundo se
curso encetado por nós até aqui, constitui somente na ação de tor-
evidencia-se um mundo e o depõe nar visíveis os entes. Nesse sentido,
sobre a terra. a obra consagra um mundo, põe a
Essas duas realidades, mun- tarefa do homem em seu horizon-
do e terra, abrem e resguardam o te, faz o homem defrontar com seu

13 HEIDEGGER, Martin. 1998. p. 27. "O ser-utensílio do utensílio consiste na sua


serventia" .
14 • 1998. p. 39. "Ao mesmo tempo, clareira aquilo sobre o qual e no qual o

homem funda o seu habitar. Chamamos-lhe terra".


15 HEDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica:mundo, finitude, solidão.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 206. Heidegger afirma o seguinte
sobre o mundo: "O mundo é a totalidade do ente que não é divino e que se encontra
fora do divino 1...1o homem é 1. uma parte do mundo; 2. enquanto esta parte, ele é
ao mesmo tempo senhor e servo do mundo".
66 Jasson da Silva Martins

destino. Esse destino do homem, os sapatos da camponesa no mun-


numa perspectiva husserliana, está do da camponesa. Sendo assim, a
intimamente ligado com o destino obra mostra o trabalho da campo-
da humanidade, na unidade de uma nesa em seu acontecer, junto ao
estrutura espirltual". seu cansaço, ao sol quente, com a
paisagem que a cerca.
Um outro sentido que pode-
mos evidenciar, a partir do nosso Ao erigir-se a obra, onde tudo
percurso, é que a obra de arte o que faz parte do mundo no qual
constrói um mundo. Mas o que ela o par de sapatos da camponesa
evidencia, ao construir um mundo? tem sentido, aparece o seu movi-
Ela mostra ao homem as coisas em mento próprio de vir à luz. Ou seja,
sua gênese própria. Nesse sentido, a obra instala um mundo. No qua-
o mundo oferece ao homem a dro, a tinta torna-se cor, no templo
abertura do ente, tornando-se, as- a pedra se pedrifica, na poesia a
sim, condição de possibilidade de palavra conquista o dizer. Assim o
ser si mesmo, de pôr-se a caminho mundo é aquilo que deixa sobres-
do próprio, da origem. sair a vocação para a qual se desti-
na cada coisa na sua existência.
Nessa perspectiva, as coisas
aparecem desde uma abertura do Para Heidegger, o mundo não
fundamento. O mundo que apare- é objetificável, pois diz ele:
ce no quadro dos sapatos da cam- o mundo é aquilo que é sempre
ponesa é o que os sapatos permi- não-objetivo, de que dependemos
tem ver. Esse ver, não se resume, enquanto as vias do nascimento e
da morte, da bênção e da maldição
no entanto, ao sapato, embora ga-
nos mantiverem enlevados no ser.
ranta a ele seu lugar enquanto tal. Aí onde se jogam as decisões es-
O mundo da lida cotidiana, o tra- senciais de nossa história, onde por
balho na lavoura, o suor do cansa- nós são assumidas ou abandonadas,
onde não são reconhecidas e onde
ço, o caminho para o campo, esse
são de novo questionadas - aí o
é o mundo que os sapatos fazem mundo faz mundo. (HEIDEGGER,
vir à tona. 1998, p. 42)

Esse mundo, o da campone- Assim descobrimos a dire-


sa, não é algo pronto para o qual a ção para onde aponta a obra.
obra aponta, mas é somente com A obra de arte aponta o destino de
o erigir-se dele que a obra faz ver cada coisa, incluindo o destino de

16 HUSSERL, Edmund. 1996. p. 63. "Nelas atuam os indivíduos dentro de sociedades


múltiplas de diferentes graus de complexidade, em famílias, raças, nações, nas quais
todos parecem estar interior e espiritualmente ligados uns aos outrosL..l na unidade
de uma estrutura espiritual".
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todos os homens. E, ao fazer isso, e a obra de arte? Seguindo o nosso


ela resguarda o seu caráter de obra. percurso, podemos dizer que o fe-
O quadro de Vang Goh deixa a cor char-se da terra é um modo de pro-
colorir, mas a obra não se limita à porcionar um caráter sempre reno-
cor. Igualmente, ela se guarda na vado da obra, fazendo renascer o
terra e aí funda a possibilidade de mundo. A obra de arte, ao produzir
deixar ser, através do mundo. Daí a terra, deixa algo ser para o reco-
resulta que a terra se constitui lhimento de todas as suas possibi-
como plena possibilidade do ente, lidades. Ela, agora na terra, mantém
como lugar do ente na totalidade. o que se presentifica com a própria
Como podemos perceber, a ocultação. Assim sendo, o sol con-
terra resguarda a totalidade do ser- tinua a iluminar, ainda que esse ilu-
obra da obra. Ela se faz como minar não se torne apreensível, pos-
aquele limite que não se ultrapas- to que o iluminar só é possível no
sa, o que não aparece. A terra cons- seu retirar-se à compreensão. As-
titui o mistério do ente na totalida- sim, podemos afirmar que mundo
de que permanece irnperscrutável. e terra se originam, de forma privi-
legiada, na obra de arte.
Podemos ilustrar esse misté-
rio que a terra abriga, com um No fundar mundo e terra, re-
exemplo comum a todos nós, o sol. alizado pela obra, essa faz nascer
Ao observar o sol, sentimos o ca- o combate entre eles. Aí está a es-
sência da obra de arte. Ela 'é' nesse
lor, que ele produz; vemos a clari-
entrave e é nele que a arte vige.
dade que dele emana; sabemos
que ele ilumina. No entanto, o 'ilu- Segundo o próprio autor:
minar' não se faz apreensível. O ilu- o confronto de mundo e terra é um
minar do sol, embora tenhamos a combate. L..l No combate essencial,
experiência do seu calor continua porém, os combatentes elevam-se
um ao outro na auto-afirmação do
impenetrável, continua a repousar
seu estar-a-ser. A auto-afirmação do
num mistério. estar-a-ser não é nunca, contudo, o
obstinar-se numa situação contin-
Esse ato encobridor da terra,
gente, mas sim o entregar-se à ori-
na perspectiva heideggeriana, não ginalidade encoberta da proveniên-
é uma privação. A terra não oculta cia do ser próprio. 1...1A terra não
algo que pode vir a ser desvenda- pode prescindir do aberto do mun-
do. L..l O mundo, por sua vez, não
da, ela deixa o mundo ser median- pode desprender-se da terra.
te o encobrir, no recolhimento. (HEIDEGGER,1998, p. 48-9)

A partir do caminho percorri- Sinteticamente, podemos di-


do até aqui, podemos fazer a se- zer que bordamos o fundamento
guinte pergunta: qual a relação exis- ontológico da obra. Em que consis-
tente entre o recolhimento da terra te esse fundamento? Dissemos
68 Jasson da Silva Martins

também que a obra aponta para mamos no início como origem da


algo, fazendo ver a realidade. Para obra, como essência, é a revela-
isso, utilizamos os exemplos do ção da verdade.
quadro de Van Gogh e do sol. No
A arte pensada a partir de seu
entanto, o sentido da obra, enquan-
fundamento ontológico, no comba-
to abertura e deixar-ser, não ficou
te entre mundo e terra, efetiva-se,
completamente claro. Mas o que
efetivando mundo e terra. Ou seja,
faltou, então? Faltou a nossa refe-
existe um vínculo de interdepen-
rência à verdade. É o que preten- dência entre mundo, terra e obra
demos, com nosso último item. Sur- de arte. Em que sentido, a partir
ge diante de nós a possibilidade de dessa constatação, é possível dizer
estabelecer a relação da obra de que a obra de arte é verdadeira?
arte com o velamento e desvela- Em que medida a obra pode expor
mento da verdade. a verdade?

4 A VERDADE E A OBRA DE ARTE A verdade aparece aqui no


sentido da essência, como foi pen-
A pergunta pela origem nos sada pelos gregos, ou seja, como
levou à essência da obra de arte. Alethéia 17. A verdade do ente sur-
Perscrutando a essência, descobri- ge, então, como a essência do ser,
mos o vínculo entre obra de arte, o onde aquele 'é' o sustenta. A ver-
artista e a arte propriamente dita. dade se constitui como núcleo es-
Depois mostramos onde a obra de sencial a partir do qual o ente é. Po-
arte tem sua origem e qual seu ob- demos dizer que na verdade se de-
jetivo. Agora, nesse item, queremos termina a possibilidade do real.
meditar sobre a relação existente
Ao dispor-se no aberto, a
entre a obra de arte e a verdade.
obra de arte faz ver a sua origem, a
Pelo caminho percorrido até essência do seu próprio existir. Em
aqui, ficou patente que a arte se outras palavras, a obra deixa 'ver' a
constitui como um modo privilegi- origem. Nesse processo, o proces-
ado onde a verdade surge. Pode- so de tornar visível a origem, a obra
ríamos dizer que a verdade toma torna patente o ente enquanto mis-
a arte como meio de instauração tério. Ou seja, ao mesmo tempo em
de si mesma. Logo, aquilo que to- que a obra assume a tarefa de de-

17 INWOOD. Michael. Dicionário Heideçqer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 4-


5. "Alethéia é o termo grego para 'verdade, veracidade, honestidade, sinceridade.
1...1Atingimos a 'essência do aberto', por duas direções: pela 'reflexão sobre o
fundamento da possibilidade da correção (adaequatioi' e pela 'reminiscência do
começo tatetheia:'.
A da obra de arte e o mundo da vida 69

socultação, ela promove a oculta- Aqui é preciso que fique cla-


ção, o encobrimento do ente na to- ro que a ocultação do ente não é
talidade. Assim ficou evidente, nes- uma falta ou uma impossibilidade.
se sentido, que a verdade se mos- Pelo contrário, é nesse processo de
tra como a exposição do ente no ocultação que está a efetivação da
aberto, através do seu velamento e verdade. O encoberto não se faz
desvelamento. como falso, e sim como aquilo que
se realiza ao modo do mistério.
Mas o que é o desvelamen-
Todo o movimento do real está
to? Sabemos que o ente na sua to-
desde o início lançado nessa dupla
talidade é ser e, como tal, só se tor-
possibilidade do ente.
na visível através de uma forma de-
terminada. Então podemos reco- O percurso palmilhado até
nhecer que o velamento do ente é aqui permite compreender que o
um modo de ser da verdade. homem está desde sempre dentro
desse movimento de ocultação e
Ouçamos o que Heidegger
desocultação da verdade. A pró-
nos diz, ao caracterizar o encobri-
pria existência humana está vinca-
mento da verdade:
da nessa relação. A tarefa do ho-
A essência da verdade como Ale-
mem, nesse sentido, é assumir a
théia permanece impensada no pen-
sar dos gregos e, como maior razão, verdade do ente, é compreender o
na filosofia ulterior. O não-estar-en- mistério como possibilidade neces-
coberto é para o pensamento o que sária, aceitando-o como caminho
de mais encoberto há no aí-ser (Da-
para a ação de ser.
sein) grego. mas, ao mesmo tempo,
é aquilo que determina, desde cedo, Dessa forma, a essência do
todo o estar-presente daquilo que
está presente. (HEIDEGGER, 1998,
ente advém na clareira, como mis-
p.50) tério. Ora velando-se, ora desvelan-
do-se. Neste jogo está a possibili-
Sabendo que o ente só é ente
dade de acessar o ente, pois nele
na medida em que se expõe na cla-
não há escassez ou privação, ape-
reira, o que está em jogo nesse pro-
nas manifestação da verdade.
cesso de ocultação-desocultação?
O que vigora, nesse processo? Esse Assim, na clareira, dá-se o
processo, que está na essência da aparecimento. O aparecimento é a
verdade, consiste, num só tempo, manifestação da realidade. Nesse
em recusa e vigor. Recusa de um aparecer, o ente mostra-se como
aparecimento total, a priori e apre- ente que advém da clareira. Daí a
ensível e vigor como mistério. No estranheza, ao assumir o nosso
recolhimento, residência do recusar destino enquanto possibilidade no
e vigorar reside toda sua possibili- encoberto. Por isso, o espanto ante
dade do ser que se reconhece no a verdade. Por isso, o silêncio dian-
recolhimento. te do mistério.

'\Y
~.
70 Jasson da Silva Martins

Quem é capaz de compreen- to que permitirá um acesso ao real,


der esse mistério? Será que temos pela via da arte, conclamando a nos-
que invocar o alérn-do-homern'" de sa sensibilidade.
Nietzsche? A quem esse mistério,
Ficou claro que, por ser a arte
o de pensar o ser, convoca? Sabe-
um modo privilegiado de pôr o ho-
mos que entregar-se a essa tarefa
mem em relação com a verdade da
requer esforço. O que fizemos até origem, mostrou-se como impres-
aqui, tateando no escuro esse mis- cindível sua busca e compreensão
tério, não foi nada mais que eviden- no seu acontecer. Acompanhamos
ciar como necessárias a arte e a fi- o combate permanente entre mun-
losofia como modo privilegiado de do e terra, bem como a realidade
aparecimento da verdade, devol- que a arte dispõe. Ao dispor a rea-
vendo ao homem a tarefa de pen- lidade, a arte nos fez meditar so-
sar as coisas dignas de serem pen- bre a nossa origem, pela via do co-
sadas. De voltar às coisas mesmas, tidiano. Mas não foi só isso que des-
ao mundo da vida. Nesse sentido, cobrimos aqui. Tomamos conheci-
colocamos apenas a necessidade mento da clareira como local onde
de desvelar a origem da obra de a verdade do ente se patenteia
arte. No entanto, esse desvelar es- como desocultação e ocultação.
sencial impôs sobre os nossos Essa descoberta nos colocou dian-
ombros o destino de cada um de te do mistério.
nós.
Seguindo o pensamento de
Martin Heidegger, fomos levados
5 CONCLUSÃO
paulatinamente, através da arte, ao
Ao finalizar o percurso que mundo da vida. Ficou claro que
empreendemos até aqui, passamos esse cotidiano, quando transforma-
a fazer um balanço provisório e pro- do, nos revela a arte. A arte, por seu
jetivo do nosso caminhar. O provi- turno, nos devolve ao mundo. É nes-
sório nos remete ao inacabado, ao ta díade, velamento-desvelamento,
não conclusivo, no campo da arte, que formamos o mundo e habita-
bem como de uma filosofia que está mos a Terra. Formar e habitar es-
sempre a caminho. O aspecto pro- tão intimamente ligados a nós - ar-
jetivo, a nosso modo de ver, aponta tistas e filósofos, por excelência -
para frente. É esse segundo aspec- mediatizados pela obra de arte.

18 SAFRASKI, Rüdiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração, 2001.
p. 97. nota 9, "Há uma grande discussão, no âmbito da pesquisa sobre Nietsche no
Brasil, a respeito da tradução de Ubermensch. Atualmente a alternativa se fixou
entre 'além-do-homem' e 'super-hornem".
A da obra de arte e o mundo da vida 71

REFERÊNCIAS

1 HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mun-


do, finitude, solidão. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003.
2 __ A caminho
o da linguagem. Trad. Márcia Sá Cavalcante
Shcuback. Bragança Paulista: Universitária: Vozes, 2003.
3 _. Ensaios e conferências. Trad. de Emmanuel C. Leão, Gilvan Fogel,
Márcia Sá Cavalcante Schcuback. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
4 _. Conferências e escritos filosóficos. Tradução e notas de Ernildo
Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).
5 _, Caminhos de floresta. Coordenação científica da edição e tradução
de Irene Borges-Duarte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998,
6 HUSSERL, Edmund. A crise da civilização européia e a filosofia. Intr.
e trad. Urbano Zilles. Porto Alegre: Edipucrs, 1996.
7 INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Trad. Luísa Buarque de Ho-
landa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
8 POGGELER, Otto. A via do pensamento de Martin Heidegger. Trad.
Jorge Telles de Menezes. Lisboa: Piaget, 2001.
9 SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem
o mal. Trad. de Lya Lett Luft. São Paulo: Geração, 2000.
10 _. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Trad. de Lya LeU Luft. São
Paulo: Geração, 2001.

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