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17. CRITICA DA VIOLENCIA — CRITICA DO PODER ** A tarefa de uma entica da violéncia* pode ser definida como a apresentagdo de suas relag6es com o direito ¢ a justiga. Pols, qualquer que seja 0 efeito de uma determinada causa, els s6 se transforma em violéncia, no sentido forte da palavra, quando interfere em relagGes éticas. A esfera de tais relagGes € designada pelos conceitos de direito ¢ justiga. Quanto ao primeiro, é evidente que a relagio ele- ‘mentar de toda ordem juridica ¢ a de meios e fins. A violéncia, inicialmente, s6 pode ser procurada na esfera dos meios, nfo na dos fins. Posto isso, temos mais dados para a critica da violéncia* do que talvez pareca. Pois se a violéncia é um meio, pode parecer que jé existe um criterio para sua enti. Tal ertério se impoe com a pergunta, se a violéncia é, em determinados casos, um meio para fins justos ou injustos. Sus critica, portanto, estard implicita num sistema de fins justos. Mas, nfo € bem assim. Pois esse tipo de sistema — supostamente acima de quaisquer daividas — nfo inctuiria um eritério da propria violencia como principio, mas ape- znas um critério para os casos em que ela fosse usada. Ficaria em aberto a pergunta, se a violéncia em si, como principio, é moral, mesmo como meio para fins justos. Para decidir a questdo, € preciso ter um critério mais exato, uma distingdo na esfera dos proprios meios, sem levar em consideragio os fins a que servem. ‘A eliminacio deste tipo de pergunta critica e mais exata caracteriza uma das grandes cortentes da filosofia do direito ~ o direito natural ~e talvez seja sua carec- teristica mais marcante. O direito natural ngo vé problema nenhum no uso de meios violentos para fins justos; esse uso € to natural como o “direito” do ser humano de locomover seu corpo até um detemminado ponto desejado. Segundo essa concepgio (que serviu de base ideol6giea a0 terrorismo na Revolusso Francesa), a violéncia é uum produto da natureza, por assim dizer, uma matéria-prima utiizada sem pro- blemas, a nfo ser que haja abuso da violencia * para fins injustos. Se, de acordo com a teoria politica do dircito natural, todas as pessoas abrem mao de seu poder* em + Walter Benjamin, “Zur Kritik der Gewalt™, in: G.S., Il, pp. 179-203. Trad, Will Bolle 1. Optoi por este tradugdo do original “Zur Kritik der Gewalt”, uma vez que todo 0 ensaio & nsteuido sobre a ambighidade da palawa Gewalt, que pode sgnificar a0 mesmo tempo “Wo: ncia e “poder”. A intencdo de Benjamin € mostrar a origem do direito (edo poder judicié ro) a partir do espcto da Woléncia.Portanto, a seméntica de Gewalr, neste texto, oscila cons tantemente ent ess dois pélos; tive que optar,ca50 por caso 2 “wioléncia” ou “poder” ora 4 tradugfo mais adequada,colocando um astrisco quando as as acepe6es so possieis.(NT.) 160 prol do Estado, isso se faz, porque se pressupte (como mostra explicitamente Spinoza no Tratado teoldgico-politico) que, no fundo, o individuo — antes de firmar esse contrato ditado pela razio — exerce também de jure qualquer tipo de poder que, na realidade, exerce de fato. Tais concepgGes talvez tenham sido revita- lizadas mais tarde pela biologia darwiniana, a qual — além da selegdo natural para a procriagio da espécie — considera; dogmaticamente, apenas a violéncia como meio adequado, primitivo ¢ Gnico, para todos os fins vitais da natureza. A filosofia darwinista popular mostrou freqdentemente que desse dogma da historia natural ‘hd apenas um passo para 0 dogma mais grosseiro da filosofia do direito, segundo o qual todo poder* adequado s6 a fins naturals é, por isso mesmo, também legitimo. A tese, defendids pelo direito natural, do poder* como dado da natureza, se opGe diametralmente 2 concepeio do direito positivo, que considera © poder* como algo que se criou historicamente, Se o direito natural pode avaliar qualquer direito existente apenas pela extica de seus fins, 0 direito positivo pode avaliar qualquer direito que surja apenas pela critica de seus meios. Se a justiga € 0 crité- Flo dos fins, a legitimidade ¢ 0 critério dos meios. No entanto, nfo obstante essa contradi¢fo, ambas as escolas esto de acordo num dogma bésico comum: fins justos podem ser obtidos por melos justos, meios justos podem ser empregados para fins justos. O diteito natural visa, pel justica dos fins, “legitimar” os meios, © diseito positivo visa “garantir” a justiga dos fins pela legitimidade dos meios. A antinomia se revelaria insolivel, se 0 pressuposto dogmatico comum fosse falso, se meios legitimos de um lado ¢ fins justos do outro lado estivessem numa con. tradigfo inconcilidvel. Sua compreensio nZo seria possivel sem sair do circulo, estabelecendo critérios independentes are fins justos e para fins legitimos. Para tal investigagfo, se exclu bém a busca de um critério da jus enguanto a esfera dos fins ¢ com isso tam- esto central passa a ser a da legitimi- dade de determinados meios que constisuem 0 poder". Ela nfo pode ser decidida ppor principios de direito natural, que apenas levariam a uma casuistica sem fim. Poi, se o diteito positivo € cego para o cariter incondicional dos fins, o direito natural é cego para o condicionamento éos meios. No entanto, a teoria do dieito positivo & aceitével como base hipotética no ponto de partida da investigasdo, uma ‘vex. que estabelece uma distineio bésica quanto aos tipos de poder*, independen- temente dos casos de seu uso, Distingue entre 0 poder* historicamente reconhe- cido, 0 chamado poder* sancionado e 0 néo-sencionado. Se as reflexes seguintes partem dessa distingio, isso naturalmente ndo significa que poderes* existentes sejam classificados em sancionados ou néo-sancionados. Pois numa eriticado poder*, © critério do diteito positive no pode ser aplicado, mas apenas avaliado. Trata-e da seguinte pergunta: que resultado traz para a esséncia do poder* o simples fato de que tal eritério ou diferenca possa the ser aplicado ou, em outras palavras, qual © sentido dessa distingd0? Logo ficard claro que tal distingdo do direito positivo é vlida ¢ perfeitamente fundamentada, ndo podendo ser substituida por nenhuma outra; a0 mesmo tempo se lancaré luz sobre a tinica esfera em que tal distingio pode ser feita. Numa palavra: se 0 critério estabelecido pelo direito positivo para a legitimidade do poder 6 pode ser analisado segundo 0 seu sentido, a esfera do seu uso tem de ser crticada segundo o seu valor. Para tal critica, trata-se de encon- ‘rar uma perspectiva fora do direito positivo, mas também fora do direito natural. 161 Mais adiante veremos em que medida apenas 0 estudo do direito dentro da filo- sofia da hist6ria pode fornecer tal perspectiva. O sentido da distingo do poder* em legitimo ¢ ilegitimo nfo é tao evidente assim, Deve ser recusado terminantemente 0 mal-entendido dos partidérios do di- reito natural de que tal sentido consistiria na distinggo da violéncia* para fins jus- 10s ¢ injustos. Pelo contririo, ficou claro que o direito positivo exige de qualquer poder* uma explicacdo sobre sua origem historica, a qual, sob certas condigdes, recebe sua legitimagfo, sua sangfo, Uma vez que 0 reconhecimento de poderes™ legitimos se manifesta da maneira mais concreta na obediéncia a seus fins, o que corre, em prine(pio, sem resisténcia, pode-se tomar, como base hipotética pare @ classificacdo dos poderes™, a existéncia ou falta de um reconhecimento histérico geral de seus fins. Os fins que carecem desse reconhecimento podem ser chamados fins naturais, os demais, fins juridicos. A fungio diferente do poder, dependendo se serve a fins naturais ou a fins juriicos, pode ser demonstrada da maneira mais didética tomando como base determinadas relagGes juridicas. Por uma questo de maior simplicidade, as observagdes seguintes referemse a relagOes juridicas na Europa atual. No que conceme o individuo enquento sujeito do direito, existe, nesses rele 0es de direito, a tendéncia signficativa de nao se admitirem fins naturais em todos (5 casos em que tais fins pudessem, se fosse 0 caso, ser almejados adequadamente ppelo uso da violéneia. Quer dizer: tal ordem juridica se empenha em estabelecer fins juridicos em todas as dreas, nas quals os fins pudessem ser almejados adequs- damente por individuos pelo uso da violéncia, fins juridioos que epenaso poder* ju- ridico pode realizar dessa maneira. E 0 poder *juridico tende a cercear, através de fins juridicos, os fins naturais — mesmo nas reas nas quais, em princfpio, eles esto livres, dentro de amplos limites, como no caso da educagao —, a partir do mo- mento em que eles so almejados com um excesso de violéncia; haja vista as leis sobre os limites de competEncia de punigGes educativas. Uma maxima geral da leyislago européia atual pode ser formulada nestes ‘termos: todos os fins naturas das pessoas individuals entram em colisfo com fins Jjuridicos, quando perseguidos com maior ou menor violéncia. (A contradicxo do diteito a legitima defesa com esta méxima deve se explicar por si mesma no de- comer das consideragdes seguintes) 0 corolitio desta maxima € que 0 diteito considera 0 poder na mio do individuo um perigo de subverséo da ordem judi- ciéria. Um perigo no sentido de impedir os fins juridicos e a executiva judiciaria? ; pois nesse caso condenar-se-ia nfo simplesmente o poder, mas apenas o poder voltado para fins contrrios & lei, Podersea dizer que um sistema de fins jurdicos ¢ insustentavel quando, em algum lugar, fins naturais ainda podem ser perseguidos pelo meio da violéncia. Mas isso, por enquanto, é um simples dogma, Por outro lado, talvez deva se levar em consideracdo a surpreendente possibilidade de que o interesse do direito em monopolizar o poder diante doindividuo nao se explica pela intengéode ‘garantir os fins juridicos, mas de garantir 0 proprio direito. Possibilidade de que po- der, quando no ests nas maos do respectivo direlto, o ameaca, nao pelos fins que possa almejar, mas pela sua propria existéncia fora da algada do direlto. De modo ‘mais dréstico, a mesma suposigéo pode ser sugerida pela reflexdo, quantas vezes 2 figurado “grande” bandido ngo suscita a secreta admirago do povo, por mais epug nantes que tenham sido seus fins. Iso é possivel nfo por causa de seus feitos, mas 162

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