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SCOTT e LYMANN-Accounts PDF
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e tempos em tempos, os sociólogos bem poderiam
suspender suas investigações por um instante para
se perguntar se as pesquisas que desenvolvem real-
mente contribuem de algum modo para o questionamento
fundamental da sociologia, a questão hobbesiana: como a
sociedade é possível? Tentativas de respostas poderiam mes-
mo servir para unificar uma disciplina que pode até não ter
esquecido ainda seus fundadores, mas, apesar disso, pode ter
esquecido por que foi fundada.
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Nosso objetivo aqui não é revisar as muitas respostas
à questão hobbesiana1, mas, em vez disso, indicar que uma
resposta a esse problema macrossociológico pode ser ex-
plorada de modo profícuo na análise dos mais sutis rituais
interpessoais e da própria matéria-prima da qual é com-
1 Para uma análise e uma
apresentação hoje clássica posta a maior parte desses rituais, a fala.
da questão hobbesiana, ver Acreditamos que a fala seja o material fundamental das re-
Parsons (1949, pp. 89-94)
lações humanas. E que, embora os sociólogos não tenham ne-
2 Ver, por exemplo, Soskin
e John (1963, pp. 228-282).
gligenciado o tema por completo2, uma sociologia da fala ainda
Material muito sugestivo e não foi desenvolvida apropriadamente. Nossa preocupação
bibliografia completa são
encontrados em Hertzler
aqui é com uma determinada característica da fala: a habilidade
(1965). para manter de pé as vigas da sociação rompida, para estabe-
3 Um account mantém fa- lecer pontes entre o prometido e o executado, para consertar o
miliaridade com o compo- que está quebrado e trazer de volta quem está longe.
nente verbal de um “moti-
vo”, no sentido weberiano Essa característica da fala envolve dar e receber o que
do termo. Weber (1947,
pp. 98-99) define motivo
vamos chamar de accounts (o ato de dar satisfação, a presta-
como “um complexo de ção de contas).
significados subjetivos que
parece ao próprio ator ou
Um account é um dispositivo linguístico empregado sem-
ao observador uma susten- pre que se sujeita uma ação a uma indagação valorativa3. Tais
tação adequada à conduta
em questão”. Seguindo a
dispositivos formam um elemento crucial na ordem social, vis-
definição de Weber, e com to que, construindo pontes sobre o vão entre a ação e a expecta-
base na psicologia social de
George Herbert Mead e no
tiva4, evitam o surgimento de conflitos. Além disso, os accounts
trabalho de Kenneth Burke, são “situados” de acordo com os status dos interactantes, e são
C. Wright Mills (1940, pp.
904-913) foi um dos pri-
padronizados dentro das culturas, de modo que certos accounts
meiros a empregar a no- são estabilizados pela terminologia e habitualmente esperados
ção de accounts. A filosofia
britânica contemporânea,
quando a atividade extrapola o domínio das expectativas.
seguindo as indicações de Entendemos por account, portanto, uma afirmação feita
Ludwig Wittgenstein, (apa-
rentemente) desenvolveu
por um ator social para explicar um comportamento impre-
de modo independente visto ou impróprio – seja este comportamento seu ou de outra
a ideia de um “vocabulá-
rio de motivos”. Um caso pessoa, quer o motivo imediato para a afirmação parta do pró-
exemplar é Peter (1958). prio ator ou de alguém mais5. As pessoas não requisitam um
4 A questão é bem ilustra- account quando estão ligadas à rotina, a um comportamento de
da por Toby (1952, pp. 323-
327).
senso comum em um determinado meio cultural que o reco-
nhece como tal. Assim, na sociedade americana, normalmen-
5 Assim, incluímos no con-
ceito de account as explica- te não se pergunta por que pessoas casadas mantêm relações
ções não verbais, mas ain- sexuais, ou por que elas sustentam casa e filhos, embora esta
da assim linguísticas, que
surgem na “mente” de um última pergunta possa muito bem ser feita se tal comporta-
ator quando ele questiona
seu próprio comportamen-
mento ocorre entre os Naires do Malabar (GOODE, 1963, pp.
to. No entanto, nosso foco 254-256). Essas perguntas não são feitas porque as respostas
são os accounts vocalizados
e especialmente os que são
são determinadas de antemão em nossa cultura e são indica-
dados face a face. das pela própria linguagem. Aprendemos que o significado de
Tipos de accounts
E ele quase me fez acreditar que era mesmo tinta vermelha! Não é
que eu esteja com ciúmes. Entendo que um homem nunca fique
satisfeito com uma mulher só, mas o que eu não posso aguentar é
que me façam de idiota. 12 De acordo com outro
estudioso da vida ítalo-
americana, membros dessa
Homossexuais também dão satisfação sobre seu de- subcultura que moram no
gueto acreditam que “para
sejo sexual desviante invocando o princípio da natureza ter saúde, um homem
biológica básica. Como um homossexual coloca (WEST- precisa fazer sexo a deter-
minado intervalo” (FOOTE
WOOD, 1960, p.46): WHYTE, 1943, p. 26)
Ela me meteu em encrenca com meu pai, mentindo sobre mim. Ela
disse que tentei derrubá-la com a bicicleta, e tudo o que fiz foi ficar
dando voltas espiando.
Por causa de Antonia, comecei a ficar longe de casa. Esta foi uma
das principais razões que me fizeram entrar pra vadiagem e pro-
curar problemas.
Eu fazia parte de um círculo gay bastante sofisticado na universidade. 18 O triste conto envolve
o modelo mais dramático
Era gay no sentido de que nós todos éramos muito afetados, com do processo geral de re-
“meu querido” no começo de cada frase, mas praticamente não havia construção de biografia
pessoal por meio do qual
sexo, e, no meu caso, não havia nenhum mesmo. A mudança acon- – por exemplo – um ma-
teceu quando eu fui a uma festa e flertei com um oficial da Marinha rido pode apresentar um
account por seu divórcio re-
Mercante, que me levou a sério e me trancou num quarto. Ali estava construindo a história dos
eu, o grande sofisticado que, na hora H, estava super cru, comple- eventos anteriores em uma
escala ascendente que cul-
tamente inexperiente. Tenho que confessar que aquele marinheiro mina na separação final. A
me causou um choque e tanto. Não posso dizer que tenha gostado ideia de uma reconstrução
de biografia é um tema re-
muito, mas, logo depois, comecei a cair na cama com qualquer um. corrente na obra de Alfred
Schutz. Ver, dele, Schutz
(1962). Um breve e claro
Finalmente, podemos mencionar um tipo particularmen- resumo da contribuição de
te moderno de justificação, a autorrealização. Entrevistando Schutz sobre reconstrução
de biografia pode ser en-
usuários de LSD e homossexuais em um distrito de São Fran- contrado em Berger (1963,
cisco, ficamos perplexos com a importância da realização pes- pp. 54-65). Valendo-se do
trabalho de Schutz, Gar-
soal como base para as atividades relacionadas. Como relata finkel (1962, pp. 689-712)
um acid head (Entrevista gravada. Maio, 1967): detalha o conceito de re-
construção de biografia em
uma série de experimentos
O único propósito de tomar a coisa é o autodesenvolvimen- sobre “leitura retrospectiva”
da ação social. O uso empí-
to. O ácido expande a consciência. Meus olhos já viram a rico do conceito de leitura
glória – você pode dizer o mesmo? Nunca soube da minha retrospectiva da ação é be-
lamente ilustrado por Kit-
capacidade até ter viagens de ácido. suse (1964, pp. 87-102).
Conclusão