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racial
Data: 21/09/2018
Categoria: Mulher Negra
Eu, filha de pai negro e mãe branca, já tive minha própria origem questionada.
Mãe branca de olho claro, irmão, a mesma coisa. Na cabeça deles, claro que
eu só podia ter vindo de outro lugar.
Por que, por sempre ter lido a mim mesma como morena, eu me julgava isenta
de todos os julgamentos e diferenciações advindos do racismo.
Racismo mesmo, sabe? Aquele que a gente aprende na escola, o negro sendo
açoitado e privado do ensino de qualidade, de frequentar espaços públicos. Eu,
filha de juiz, sempre tão bem vista em todo local que me apresentava, jamais
poderia estar sujeita a essas coisas, não é mesmo?
Mas no fundo, eu sabia que não era bem por ai. Eu sofria racismo quando, na
escola, era sempre a menina feia e esquisita sem nem saber o porquê. Quando
tinha que me esforçar duas vezes mais para me sentir bonita, para tentar
parecer com a maioria das meninas da classe, quando eu, ainda pequena usava
as maquiagens da minha mãe para tentar ao máximo disfarçar a cor natural da
minha pele e embranquecer o meu semblante.
Fora que, ao perceber essa diferenciação com o passar do tempo e ousar tentar
uma nova denominação que realmente me desse uma identidade, eu mal
terminava a frase e já era metralhada por uma avalanche de “que negra o que,
você é morena, olha como a sua pele é clara!”. Não contestava, mas
estranhava o fato de que apenas pessoas indiscutivelmente brancas falavam
isso para mim, como que em uma tentativa de amenizar a gravidade do que eu
acabara de dizer. Pessoas que, por mais que não tivessem más intenções, não
sabiam o que era metade de todos os processos de distinção que eu havia
experienciado.
A “morena” que eles tanto amavam falar era, basicamente, a negra aceitável.
É a imagem de que não, não passamos mais por um processo de exclusão
racial sistêmica mas calma lá que não é bagunça.
Deixa a negra entrar mas, primeiro, checa a largura do nariz, a grossura dos
lábios, o tom da pele. A morena é a figura negra que, devido à pacífica
miscigenação do nosso país, se parece mais com a figura dominante tanto
estética quanto intelectualmente. Ela é o resultado de uma tentativa de
embranquecimento fracassada que persiste em carregar seus traços, herança e
sua origem através de sua própria existência.
O que é colorismo?
Para evitar a fadiga, vamos à definição mais apropriada do termo; o
colorismo, termo cunhado na década de oitenta pela escritora e ativista Alice
Walker, abre uma discussão sobre a quantidade de privilégios atribuídos a
uma pessoa negra cuja tonalidade de pele é mais clara em relação ao preto
retinto. Simples, não?
Mas, porque então esse termo ainda enfrenta tamanha resistência no território
brasileiro? Talvez por que aqui a leitura de raça seja estruturada em pilares
diferentes dos que sustentavam a realidade de Alice.
A regra da gota
Bebendo – bastante – da fonte de diversos criadores de conteúdo excepcionais
da web, tais como Soul Vaidosa, Nataly Neri e Spartakus Santiago, introduzo
aqui um conceito de diferenciação dos processos de interpretação racial. Alice
Walker cunhou a definição de colorismo ao nascer e viver em um país, os
Estados Unidos, em que uma única gota de sangue africano
já automaticamente rotulava alguém como negro, o que nos remete à busca
por uma raça pura, tão velada quanto o tal do racismo inexistente hoje em dia.
Isso quer dizer que, em território brasileiro, esta nomenclatura de raça é muito
mais confusa. Lábios carnudos e pele clara me fazem o que? Ou, pele mais
escura de traços finos? Como se encontrar em um cenário tão arbitrário quanto
o nosso?
Pois é.
Esta é a maior questão que assola a identidade de um povo que não é negro
retinto mas, com toda a certeza, também não é o caucasiano inquestionável.
Mas este ponto eu irei explorar um pouco mais adiante. Agora, falemos sobre
privilégios.
Um negro de pele clara recebe sim tratamentos diferenciados. Tem uma voz
mais ativa, uma chance de inserção nos grupos mais restritos da sociedade e,
principalmente na questão estética, são absurdamente beneficiados. Eles são
literalmente a junção dos traços brancos à pele da cor do pecado que é tão
almejada. Que combinação perfeita, não?
Ele ganha salários maiores, ele tem mais oportunidades, ele tem mais chances
de usufruir de benefícios socioeconômicos designados aos brancos mas que,
dado o momento, eles podem abrir uma brecha e deixar uma pessoa de fora
entrar e fazer parte. Fazer parte assim, daquele jeito.Você não é um de nós
mas o aceitamos, sabe?E claro, temos que acenar a cabeça em sinal de
gratidão por tamanha benevolência.
Da semelhança à invisibilidade
Por se parecer mais com o branco, especialmente em um país tão carente de
definições precisas do que é ou não é ser membro de determinada etnia, o
negro de pele clara frequentemente passa por um processo de deslocamento
desde o nascimento. Como exemplifiquei em meus relatos acima, podemos
ouvir e aturar atitudes racistas, mas não somos socialmente negros o suficiente
para delatá-las.
Ele joga vivências dolorosas debaixo do tapete, ele cria nomes e nomes para
uma categorização simplesmente inexistente. Ele pisa e esmigalha a própria
definição de etnia, a qual é pautada pelo conjunto de bagagens socioculturais
para a criação de nomenclaturas de identidade. Ele esquece o seu, o meu, o
nosso passado e ignora o nosso presente para que nossos símbolos de
resistência sejam encaixotados e categorizados como mais um ícone de uma
cultura que não é nossa. Ele cria um nome simplesmente do nada e nos diz
que é belo e que estamos livres para criar a sua história.
Se o preto acha que é pardo, nós cuidamos do preto retinto e, com o negro
embranquecido, nós lidamos depois. Nós continuamos a dizer que fazem parte
do nosso grupo mas nunca os deixamos esquecer quem eles são. Os mestiços,
os mulatos, as crias de cruzamentos do animal de carga com o homem preto.
Enquanto eles acharem que isso é elogio, não teremos nada com o que nos
preocupar.
Fonte: https://www.geledes.org.br/sobre-colorismo-privilegios-e-identidade-
racial/