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A linguagem e a morte de Agamben - Resenha

O homem figura como o mortal e o falante, mas como


interrogar o homem livre, mantendo-o livre ao mesmo
tempo da morte e da linguagem? A faculdade da
morte e da linguagem pode permanecer impensada? A
partir daí percebe-se que há um lugar da negatividade
e o nexo entre a morte e a linguagem abrem a sua
morada fundada na negatividade. Ressalta-se que a
voz e a gramática são estruturas da negatividade,
assim como a ética e a lógica são inseparáveis e
repousam no único fundamento do negativo. O
fundamento é compreendido no sentido de ser aquilo
que vai ao fundo: o ser é o in-fundado, como
fundamento negativo. O advento do niilismo
desvenda-se quando a metafísica cai na ética, num
declínio reconhecido como o advento do fundamento
negativo: ‘morada habitual do homem’.

É notório o modo pelo qual, em um ponto crucial de


Sein und Zeit (Ser e Tempo), Heidegger situa a
relação do Dasein com a sua morte. O Dasein é um
ser-para-o-fim, para a morte e sempre em relação
com ela: experiência da morte como certa
antecipação de sua possibilidade. Como possibilidade
a ‘antecipação da morte’ é testemunhada na sua
experiência da consciência e da culpa. O caráter
negativo do apelo (Ruff) da consciência não diz nada
e fala em silêncio. Assim, desvelar a culpa neste
‘lugar silencioso’ revela uma negatividade própria ao
Dasein. Afinal, no culpado está implícito caráter do
Não (Nicht). A idéia formal existencial do ‘culpado’
determina-se por ser-fundamento, para um ser que se
determinou por meio de um Não, ou seja, ser de uma
negatividade. A negatividade (Nichtigkeit) não
significa de modo algum não estar presente ou não
consistir, mas significa um Não que constitui este ser
do Dasein, o seu ser-lançado. O Dasein é determinado
como um poder ser, que pertence a si mesmo,
embora não como se tivesse dado a si mesmo a
própria posse. Sendo fundamento, ou seja, existindo
como lançado, o Dasein fica constantemente atrás de
suas próprias possibilidades. O cuidado – o ser do
Dasein – significa como projeto lançado: o (negativo)
ser-fundamentado de uma negatividade. Será a partir
desta experiência de uma negatividade que se revela
constitutiva do Dasein, na experiência da morte,
como sua possibilidade mais próxima, que Heidegger
passa a se interrogar sobre o problema da origem
ontológica (ontologische Ursprung) da negatividade.
Logo, Dasein significa ser-o-Da. Aceitar a tradução
atualmente difusa de Dasein como Ser-aí, permite-nos
então entender esta expressão como ‘ser-o-aí’. Se ser
o próprio Da (o próprio aí) é o que caracteriza o
Dasein (o Ser-aí), isto significa que, então,
justamente no ponto em que a possibilidade de ser o
Da [de estar em casa no próprio lugar] é assumida,
através da experiência da morte, da maneira mais
autêntica, o Da se revela como o lugar a partir do
qual ameaça uma negatividade radical. Portanto, a
negatividade provém, ao Dasein, de seu próprio Da.
Mas, perguntemo-nos agora, existe, acaso, uma
analogia entre a experiência da morte que, em Sein
und Zeit, revela ao Ser-aí a possibilidade autêntica de
ser o seu aí, o seu aqui, e a experiência do ‘apreender
o Isto’ que, no início da Fenomenologia, garante que
o discurso hegeliano comece do nada?

O ‘mistério eleusiano’, que apareceu em uma poesia,


intitulada Elêusis, que o jovem Hegel dedicou, em
agosto de 1796, ao amigo Hölderling, definindo que
todo mistério tem por objeto um indizível (des
unaussprechlichen Gefühles Tiefe). A profundidade
deste ‘indizível sentimental’ em vão poderia ser
buscada em palavras e entre ‘ressequidos signos’. É
interessante observar que um mistério eleusiano
aparece uma segunda vez na obra de Hegel,
precisamente no início daquela Fenomenologia do
Espírito que constitui a primeira expressão acabada
do seu pensamento, no seu primeiro capítulo
intituado: A certeza sensível, ou o Isto e o querer-
dizer (Die sinnliche Gewissheit oder das Diese und das
Meinen). O mistério eleusiano aparece na
Fenomenologia, mas Hegel tem em mira uma
liquidação da certeza sensível. Esta liquidação é
conduzida mediante uma análise do Isto (das Diese) e
do indicar. Vai ser a ela mesma, a certeza sensível,
que se deve perguntar: o que é o Isto? Se o tomamos
na dupla forma do seu ser, como o Agora e o Aqui. O
Agora é um ter-sido (gewesenes), e esta é a sua
verdade; ele não possui verdade de ser. Contudo, é
verdadeiro isto, que ele foi. Mas aquilo que foi, não é,
de fato, um ser; ele não é, e era com o ser que
estávamos lidando. Logo, mostrar algo, querer captar
o Isto na indicação significa apenas ter a experiência
de que a certeza sensível é, na verdade, um processo
dialético de negação e mediação; que, portanto, a
‘consciência natural’, a qual se desejaria colocar no
início como o absoluto, já é, verdadeiramente,
sempre uma ‘história’. Acontece que a coisa sensível
que pertence à consciência e se quer-dizer (Meinung,
opinião, ponto-de-vista, ‘querer dizer’) é inacessível à
linguagem. Aquilo que é indizível, para a linguagem,
não é nada mais que o querer-dizer, a Meinung que
permanece não-dita necessariamente em todo
dizer, refere-se a esse não-dito, que é um negativo e
um universal.

O iniciado aprende aqui a não dizer aquilo que ‘quer-


dizer’, pois a linguagem conserva o indizível dizendo-
o, colhendo-o na sua negatividade. Se a linguagem
capturou em si o poder do silêncio é porque ela
conserva o indizível nas suas profundezas, o que
poderia ser dito ineffabile fatur, isto é, o discurso
mostra o inefável como é: um nada, nichtigkeit. O
sistema hegeliano parte de um ponto duplo: a um só
tempo, ponto de partida e ponto de chegada.
Apreende-se o Isto se temos o significado deste isto,
que é um não-isto que ele encerra, logo, uma
negatividade essencial. De um lado, o mistério
eleusiano tem como conteúdo a experiência de um
nichtigkeit (um nada), de outro lado, o problema da
indicação e do Isto resulta evidentemente do
surgimento em um ponto decisivo da história da
metafísica. O Isto significa indicação ou a essência
segundo o sujeito, assim Hegel afirma que o limite da
linguagem cai sempre no interior da linguagem, que
está desde sempre contido nela como negativo.
Inicialmente o indizível é a coisa mais concreta,
imediata, genérica e universal, mas é
necessariamente o gênero supremo, além do qual não
é possível definição. Trata-se da cisão aristotélica que
se constitui a partir do núcleo originário de uma
fratura, no plano da linguagem, entre mostrar e dizer,
indicação e significação, que atravessa a história da
metafísica e sem a qual o próprio problema ontológico
permanece informulável.

Alguns gramáticos antigos haviam atribuído a origem


da gramática a Platão e a Aristóteles, com suas
categorias gramaticais e categorias lógicas, reflexão
gramatical e reflexão lógica, que se implicam
mutuamente e são inseparáveis. Se, para Aristóteles,
o nome faz parte do discurso que correspondia às
categorias da substância e da qualidade, o pronome
significa substantiam sine qualitate, pura essência em
si, antes de qualquer determinação qualitativa. A
dimensão de significado do pronome vem a coincidir
com aquela esfera do puro ser que a lógica e a
teologia medieval identificavam como dimensão de
significado dos assim denominados transcendentia:
ens, unum, aliquid, bonum, verum. Estes termos
eram ditos ‘transcendentes’ porque não têm acima de
si nenhum gênero no qual possam ser contidos e a
partir do qual possam ser definidos. O estatuto de
pronome transcendentia é, pois, atribuído ao objeto
na sua universalidade, portanto, o pronome indica
uma essência indeterminada, um puro ser,
determinados pelos atos de efetuação que são a
demonstratio e a relatio. O puro ser, a substantia
indeterminada que ele significa e que é em si
insignificável e indefinível, mas que se torna
significável e definível por meio de um ato de
indicação. Se os pronomes são signos vazios que se
tornam plenos quando um locutor os assume numa
instância de discurso, então os pronomes têm por
objetivo que operar a conversão da linguagem em
discurso e permitir a passagem da língua à fala.

O pensamento medieval tomou consciência da


problemática desta passagem entre significar e
mostrar que tem lugar no pronome, mas não a
conseguiu explicar. O entrelaçamento no pensamento
medieval entre reflexão teológica e reflexão
gramatical é muito cerrado, de tal modo que o Deus
dos teólogos é o mesmo Deus dos gramáticos.
Primeiramente ressalta-se que o nome decai de seu
significado e não significa mais nada, transformando-
se em pronome, mas se o pronome, por sua vez, é
predicado de Deus, ‘cai da indicação’. Segue-se que o
nome é formado por um pronome e pelo verbo ser,
que é pensado como o nome ‘absoluto’ de Deus.
Portanto, o que aqui é pensado como suprema
experiência mística do ser e como nome perfeito de
Deus é a experiência de significado do próprio
grámma, da letra como negação da voz: ‘que se
escreve, mas não se lê’. Por sua vez, o nascimento da
moderna ciência da linguagem situou-se no próprio
desenvolvimento da filosofia moderna que, de
Descartes a Kant e até Husserl, não deixou de ser, em
boa parte, uma reflexão sobre o estatuto do pronome
Eu. De todo modo, tanto para Hegel quanto para
Heidegger, a negatividade entra no homem porque o
homem tem por ser este ter-lugar, quer colher o
evento da linguagem, apreendido, em certa medida, a
partir, respectivamente, do Dasein, ‘ser-o-aí’, e no
das Diese nehmen, apreender o Isto. Percebe-se mais
claramente entre os poetas do que entre os linguistas,
que o eu [ou o me/mim] é a palavra associada à voz:
aquele que enuncia, o locutor é, antes da mais nada,
uma voz, e o problema da díxis é o problema da voz e
da sua relação com a linguagem. Este é, pois, o
problema.

A Voz situa-se, em relação ao estilo vocal, numa


dimensão diversa e mais original, a voz constitui a
dimensão ontológica fundamental, ou seja, a
dimensão do significado da voz, mas a voz como pura
intenção de significar (puro querer-dizer), quando
uma coisa se dá à compreensão sem que se produza
um evento determinado de significado. Vox, como
querer-dizer ou intenção de significar sem significado,
decai numa experiência amorosa como vontade de
saber; experiência que mostra que a vox na sua
pureza originária, como querer-dizer é uma palavra
morta. Demarca-se certo flatus vocis, a voz como
intenção de significar e como ‘pura
indicação’(setentia vacum), significado da voz em si,
antes de toda significação. Que o ser (substantiae
universale) seja um flatus vocis não significa que ele
seja um nada, afinal a dimensão do significado do ser
coincide com aquela experiência da voz como pura
indicação e puro querer-dizer. Dado que essa Voz
(escrita em letra maiúscula para distinguir-se da voz
como mero som) tem o estatuto de um não-mais (voz)
e de um não-ainda (significado), ela constitui uma
dimensão negativa. A linguagem tem um lugar no
tempo e na voz, mostrando a instância do discurso, a
Voz abre simultaneamente o ser e o tempo. Tanto em
Hegel como em Heidegger reencontram-se um
pensamento da Voz como articulação negativa
originária.

Hegel seguiu o ‘despedaçar-se’ do espírito e sua


‘ocultação’ na natureza. O nome existe como
linguagem que não se fixa, igualmente cessa, de
imediato, aquilo que é. O despertar do espírito é o
reino dos nomes. A linguagem é a voz da consciência,
pois todo som tem um significado, nela tem um nome,
idealidade de uma coisa existente: o seu imediato
não-existir. Para Hegel a articulação se apresenta
como processo de diferenciação, interrupção e
conservação da voz animal: a voz é ouvido ativo – ele
escreve –, puro si, que se põe como universal, todo
animal tem na morte violenta uma voz, exprime a si
mesmo como si mesmo suprimido. O sistema
hegeliano é considerado em seu caráter
‘antripogenético’, no sentido que mantém o contato
com a morte.

A dimensão negativa está presente também na


linguística moderna, no conceito de fonema, deste
ente puramente negativo e insignificante, o qual,
contudo, é precisamente aquilo que abre e torna
possível a significação e o discurso. Como ‘som da
língua’, Jakobson está singularmente próximo da ideia
heideggeriana de uma ‘Voz sem som’ e de um ‘som do
silêncio’ (Sigé, pensamento silencioso). A fonologia,
que se define como a ciência dos sons da língua,
apresenta-se como um par análogo da ontologia, que,
com base nas considerações precedentes, podemos
definir como ‘ciência da voz suprimida, isto é, da
Voz’. Existe no pensamento de Heidegger algo como
um ‘pensamento da Voz’, mas cuja relação essencial
entre linguagem e morte tem, para a metafísica, o
seu lugar na Voz. Ter experiência da morte como
morte significa efetivamente fazer experiência da
supressão da voz e do surgimento, em seu lugar, de
outra Voz, que constitui o originário fundamento
negativo da palavra humana. A Voz, portanto, não diz
nada, não quer-dizer nenhuma proposção significante:
ela indica e quer-dizer o puro ter lugar da linguagem,
é, pois, uma dimensão puramente lógica. A Voz é a
dimensão ética originária, na qual o homem pronuncia
seu sim à linguagem e consente que ela tenha lugar.

Morada habitual e hábito, ou seja, o êthos do homem,


que se encontra para a filosofia, já sempre cindido e
ameaçado por um negativo. Um dos mais antigos
testemunhos no qual a filosofia se põe a pensar o
êthos caracteriza, deste modo, a morada habitual do
homem. O êthos, a morada habitual é, para o homem,
o lugar da cisão – aquilo que ele jamais pode
apreender sem receber daquilo uma laceração e uma
fissura –, o lugar onde jamais pode estar
verdadeiramente desde o início, mas aonde pode
somente no fim regressar. É possível que o ser não
esteja à altura do simples mistério do ter do homem,
da sua habitação assim como do seu hábito? Estar na
linguagem sem ser aí chamado por nenhuma Voz,
simplesmente morrer sem ser chamado pela morte é,
talvez, a experiência mais abissal; mas esta é
precisamente, para o homem, também a experiência
mais habitual, o seu êthos, a sua morada que, na
história da metafísica, já se apresenta sempre
demonicamente cindida em vivente e linguagem,
natureza e cultura, ética e lógica e é, por isso,
atingível, apenas na articulação negativa de uma Voz.
Pensa-se, neste seminário, a Voz a partir de seu
cancelamento, ou melhor, pensa-se a Voz como
jamais sida, no seu lugar, morada sem vontade e sem
Voz, esta morada é o aqui resta a pensar. Trata-se,
em última instância, de um tal ‘fazer interdito’, que
fornece à sociedade e à sua infundada legislação a
ficção de um início: o que é excluído da comunidade
é, na realidade, aquilo sobre o qual se funda a inteira
vida da comunidade e é assumido por ela como um
passado imemorável e, todavia, memorável.

O homem é o animal que possui a linguagem,


enquanto o in-fundado tem fundamento na própria
violência, no próprio fazer: facere sacrum (sacrifício,
‘fazer interdito’, afetado pela sacralidade, sacro,
acessível apenas a certas pessoas e de acordo com
regras determinadas). Noção ambígua esta de sacro,
que significa tanto a lei quanto designa quem a viola.
Que o sacrifício seja um assassínio, isso nós bem
conhecemos, que não seja casual e que por isso
mesmo seja violento: violência esta que em si não
explica nada, todavia, aliás, por sua vez, essa mesma
violência necessita de explicação. A inaturalidade da
violência humana é uma produção histórica do homem
e é implícita na própria concepção da relação entre
natureza e cultura, entre vivente e logos na qual o
homem funda a própria humanidade. Não é próprio ao
homem ser um indizível, que permanece não dito em
toda praxis e em toda palavra humana: ele é antes a
própria praxis social e a própria palavra humana,
tornadas transparentes a si mesmas. Mas a
‘transmissão indizível’ continua a dominar a tradição
da filosofia: em Hegel, como aquele nada, que é
preciso abandonar à violência da história e da
linguagem para dele extrair a aparência do início e do
imediato; em Heidegger, como o sem nome que,
permanecendo não dito em toda palavra e em toda
transmissão, destina o homem à tradição e à
linguagem. É certo que em ambos os casos, o
pensamento se propõe a absolução do homem da
violência do fundamento. Assim como o fundamento
da violência é a violência do fundamento.

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