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ÍNDICE PAG

1º Capitulo Anjos da infância 6


2º Capitulo Revolução 12
3º Capitulo A verdade dói 17
4º Capitulo O tio Vito vem salvar-nos 22
5º Capitulo O sacrifício dos inocentes 27
6º Capitulo A recruta 35
7º Capitulo Crianças soldado 42
8º Capitulo Peões de um jogo de xadrez 47
9º Capitulo O fim da esperança 55
10º Capitulo Chefe de combate 64
11º Capitulo Um momento de felicidade 70
12º Capitulo A primeira baixa 78
13º Capitulo A capacidade de amar 87
14º Capitulo Os soldados da paz vêm aí 97
15º Capitulo A fuga 104
16º Capitulo Planeando o ataque 110
17º Capitulo Os efeitos da loucura 115
18º Capitulo Em busca do Juizo perdido 120
19º Capitulo A restauração da igreja 124
20º Capitulo Os cavaleiros do apocalipse 132
21º Capitulo Monstros 142
22º Capitulo As dores do parto 150
23º Capitulo Damiem tem que passar 158

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A DIVISÃO
DOS
INTANTARIOS
GUILHERME LOBO

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1º CAPITULO
ANJO DA INFANCIA

Meu anjo.
Meu anjo negro, o seu sorriso é como o Sol brilhante do meio
dia; o coração do tamanho do mundo, tão cheio de amor que
transborda.
+Dá-me um pouco desse amor, não quero ficar sozinha.
+ Toma o meu coração Aky, toma o meu amor, toma a minha
vida e faz do meu coração amor vida, do teu coração amor vida.
Tão nova, nova demais para ser um anjo.
Consigo vê-la. Meu anjo negro tem dentes, os dentes todos,
limpos, muito brancos: dentes de leite; a cabeça coroada de
trancinhas pequeninas que envolvem um rosto rechonchudo
onde dois olhos reluzem com promessa de esperança.
Meu anjo negro vem do coração de África e carrega com ele
toda a África.
Meu anjo é negro como o carvão, branco santificado imaculado
e puro.
Meu anjo negro tem um vestido cor de rosa cheio de rendinhas e
sapatos a condizer. Meu anjo negro é paz, não sofre não tem
dores; já não chora não reza não chama por mim nas noites
geladas de Quatro e nunca mais, nunca mais...

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Meu anjo negro de Africa, branco, de tranças, de dentes de leite,
meu anjinho pequenino, esta a dormir. Dorme descansado nos
meus braços, minhas lagrimas lavam o sangue do seu rosto.
Já não oiço os tanques e as bombas; as chaminés, o fogo do
inferno está extinto. Ainda estavam ali. Já não os vejo também,
não vejo nada ou oiço, excepto o meu anjo negro de Africa.
Diz-me adeus, vai embora, que será de mim? Não quero estar
sozinha, não vás Luanda, não posso deixar-te ir, como aos
outros!!
O meu anjo branco grande, tão grande a querer alcançar as
estrelas, sentado no trono do Zodíaco, lá no alto envolto por um
manto esvoaçante.
+ Vem á mãe Ana, vem á mãe!
Braços abertos, uma figura sem rosto, apenas aquela sombra.
Sinto uma felicidade indescritível, minha redenção, minha
salvação. Corro para os braços abertos, desejando ser abraçada
por eles, salva, mas quanto mais corro, mais ele se afasta e caiu
em agonia de ser deixada para traz.
+Vem á mãe Ana.
Fica aquela frase solta, eco vazio e a dor, uma espécie de
abandono forçado.
O que aconteceu comigo?
Estão todos mortos, matei-os, tenho mas mãos a mancha do meu
crime e sinto-me leve, aliviada. Sinto-me bem. Finalmente
acabou tudo e para mim também.

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Vejo os anjos do apocalipse, todos eles: a guerra, a fome, a
peste, a morte. Vieram para mim e consigo chorar, finalmente,
já não era sem tempo…

Ouve um tempo em que acreditava na felicidade. Estava a


dormir dentro do sonho do homem. É possível ter momentos,
momentos especiais de intensa felicidade, o momento certo,
aquele momento.
A vida é cheia de momentos...por vezes, segundos de silencio.
Uma mão aconchega o filho na cama, um segundo de
cumplicidade que pára o tempo; o sono chega para ambos,
seguro apenas até á hora do acordar; num Natal a criança recebe
o presente que tanto ambiciono, enfeitiçado pelos anúncios do
telvid, por os amigos terem e ele não e de repente ali está ele nas
suas mãos: - È meu! – O sentido de posse, soprado por um
assalto de egoísmo, natural na sua idade e alimentado para os
anos vindouros; as férias inesquecíveis daquele verão que irá ser
perpetuado por uma nostalgia dos bons velhos tempos, aventuras
e descobertas inocentes em fugas nocturnas de um acampamento
ou colónia ou de um hotel ou mesmo da casa dos avós queridos
que têm sempre uma nova historia para contar, e depois tudo
termina, de volta ao lar, á realidade; o primeiro beijo, o primeiro
encontro, momentos pequenos de felicidade que explodem como
fogo de artificio, o mundo que nos revela maravilhas e perfeito
porque estamos apaixonados, dentro de uma felicidade falsa

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aparente, que construi-mos á nossa volta, como muros sólidos e
altos, gigantes que turvam a vista para a realidade nua e crua.
Acreditava que era feliz, a vida sorria-me e tudo me encantava
cativava, desde que dentro do meu mundo de contos de fadas,
onde sapos se transformavam em princepes e princesas eram
salvas por princepes montados num cavalo branco, fervendo de
paixão ao encontro da sua amada.
Fui crianças e era feliz. Da minha mãe só tenho a memória do
nome: - Ana. – E a certeza de que meu pai a amava realmente,
contrariamente ao que todos me querem fazer crer, que foi ele
quem a matou.

Vivíamos na Quatro, a maior e mais rica colónia da Lua, um


gigante arquitectónico de vias rápidas aéreas transformadas em
obra de arte, cimento esculpido com formas bizarras que riam ou
choravam, lá no alto imortais, para nós simples humanos. Às
cavalitas do meu pai ria, batia palmas ás estatuas.
Vivia-mos no espaço porto, meu pai era proprietário de uma
Águia, um luxo que poucos podiam ter, a única herança que
recebeu do meu avô. O irmão dele ficou com tudo, o império
Polo’s. E enquanto Vítor Pólo tomava banhos turcos e sauna na
sua torre de marfim, meu pai, Marcos Frederico Polo trabalhava
diariamente nas minas, na extracção de pedra, em turnos de oito
horas seguidas, sete dias por semana, todos os meses do ano e

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ainda vendia as férias para me mimar com brinquedos e roupas
bonitas.

Aos cinco anos fui para a escola, meu pai levava-me no seu jipe
logo pela manhã e ás cinco da tarde lá estava ele outra vez.
Corria para ele, abraçava-o enchia-o de beijos e ele levava-me a
comer gelado, lembro-me de todos os sabores e reconheço-os só
pelo cheiro ou pela cor e espessura. Nadas que em circunstância
extraordinárias são a diferença entre a loucura e a sanidade, e só
depois é que ele ia buscar Nick, o meu irmão mais velho ao
liceu.
Nick era sempre o ultimo a sair, porque eu arranjava maneira de
atrasar o papá mais um pouco do que devia.

Nick ia ser um médico por minha causa.


Estava doente, uma doença congénita qualquer que herdei do
sangue de meu pai e por vezes saltava uma geração: parei de
crescer.
As despesas médicas comigo eram astronómicas, tinha que
tomar hormonas de crescimento e ainda havia as aulas de dança
que arrebentava com qualquer orçamento doméstico de quem
não tem muito por onde se virar.
Meu pai nunca se queixava-se, Nick ficava zangado. Não
compreendia porque, que podia eu saber?

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Lá fora nas ruas nascia uma quietude de descontentamento; nas
minas as sementes da revolta eram semeadas e os lares eram
divididos, o nome de Estebam era segredado ás escondidas,
como um desejo reprimido.
Hoje sei que ambos tentavam proteger-me, cada um á sua
maneira, mas na altura não queria saber, meu pai era o centro do
mundo, meu irmão o meu príncipe encantado.

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2º CAPITULO
REVOLUÇÃO
Era feliz e tudo o resto eram nadas.
Na quarta-feira de vinte de Setembro de dois mil e oitenta e
quatro, a revolução começou nas minas e a enchente alastrou
para as ruas de Quatro. Tinha oito anos e ás cinco horas estava
aos portões da escola á espera do meu pai, mas ele não apareceu
naquele dia e não voltaria a vê-lo, nunca mais.
Quem apareceu foi Nick, surgiu de entre a multidão de
manifestantes que inundava a avenida, sujo de pó vermelho, ou
era sangue? Pegou-me ao colo e correu por entre a multidão
como um louco. Cheirava mal, tentei soltar-me, mas apertava-
me tão forte que era impossível escapar. Queria saber do papá,
para onde ia-mos, queria ir para casa, buscar o meu urso Cosy e
o meu vestido novo cor-de-rosa com sapatos a condizer. Ia haver
um recital de dança nessa noite, o papá comprou-o para a
ocasião. Ele ia ver como eu dançava bem.
Esperneei, tentei fugir daquele abraço apertado, da multidão, dos
gritos, das vozes de ordem e no fim, das salvas de balas, dos
choques das pedras contra os escudos, dos homens e mulheres,
algumas com bebes de colo a serem arrastadas pelo asfalto, e
dos tanques, os meus primeiros tanques, os tanques da opressão,
do capitalismo ditatorial. Queria fugir, mas não consegui e odiei
Nick por isso.

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Conseguimos fugir no comboio. Nas nossas costas soldados da
Aliança disparavam contra civis desarmados, as baixas
chegaram aos cinco mil mortos na primeira semana. Meu pai foi
uma das primeiras baixas, ele estava nas minas, era um herói da
revolução, um mártir, gritavam o nome dele nas ruas com
orgulho, por isso, quando chegamos á Sete, fomos atirados para
um campo de concentração que eles chamavam de campo de
refugiados porque éramos revolucionários.
O mundo estava voltado do avesso, nem compreendia o que era
ser revolucionário.
O exército da revolução cortou o abastecimento de alimentos ás
colónias interiores, eles controlavam os caminhos de ferro e as
pontes aéreas, diziam eles, mas via-os comer em abundância e
todos os dias chegavam camiões fura bloqueios carregados de
arroz.
No campo a única coisa que tínhamos para comer era uma papa
sintética que realmente alimentava mas tinha o efeito secundário
de sugar a vitamina C do nosso sangue, assim tinha-mos que
escolher entre morrer de fome ou morrer de escorbuto.
Nick achou que era melhor morrer de escorbuto e realmente,
quase que morremos, ambos, não fosse as forças revolucionarias
chegarem á Sete e os tanques entraram no campo e fomos
salvos.
Meu pai era um herói, aqueles homens, operários que tinham
pegado nas armas para lutarem contra o regime imperialista e

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totalitarismo da Aliança eram os meus salvadores e por isso sim,
acolhi-os de braços abertos no meu coração e subi para cima do
meu primeiro tanque, o tanque da vitória e do fim da opressão, o
tanque da liberdade e da justiça, da salvação e vingança e gritei
pela primeira vez : - Viva á revolução, viva Estebam!

O mundo voltou a mudar, desta vez a nosso favor, meu pai era
um herói da revolução e nós éramos os seus filhos. Fomos
ambos condecorados, deram-nos uma casa, um apartamento
mobilado no segundo andar de um bloco do sueste, com as
traseiras viradas para os estaleiros de reparação, Nick juntou-se
ao exército vermelho, eu fui para a escola e não voltámos a ter
problemas de despesas de saúde ou de educação ou de água e
energia. O novo governo tudo nos facultava e, quem diz que
passava mal naqueles dias mente, nem os cães foram
esquecidos, todos tiveram direito á sua parte, mesmo aqueles
que eram do contra.
O novo governo não os atirou para campos de refugiados á
semelhança do governo da Aliança, o novo governo deu-lhe a
escolha entre ficarem e adaptarem-se ou irem embora, de volta
para a Terra.
No apartamento ao lado do nosso vivia a Dona Lurdes com o
marido Felipe e a filha Luanda. Veloso viria a nascer alguns
anos depois.
Como descrever Luanda?

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Era simplesmente radiosa. Fiquei cativa primeiro da sua beleza
negra exotica, do seu sorriso branco de dentes perfeitos
alinhados num rosto moldado por uma cascata de trancinhas.
Depois, foi o seu grande coração, do tamanho do mundo, aliado
a uma simplicidade santificada que até assustava a Dona Lurdes.
Sabia sempre tudo, respondia a tudo com uma determinação
complacente e nunca tinha duvidas de nada, ou se as tinhas
nunca soube. Como quando um dia disse-lhe que estava zangada
com Nick porque ele não me comprava uma Barbie, um ultimo
modelo que dançava como uma verdadeira bailarina, ela
respondeu-me que eu não precisava de uma Barbie Bailarina,
quando eu própria era bailarina.
Voltei a dançar, sozinha ou para ela, imitando as coreografias
dos grandes bailarinos e eu transformei-me na bailarina de
Luanda e ela na minha grande fã e admiradora. Luanda
transformou-se no meu sol, uma irmã mais nova que tinha para
brincar e para mim, tudo fazia parte do plano de Estebam, para
um mundo melhor onde todos são irmãos e iguais.
No andar de baixo vivia o Daniel que era da minha idade com os
pais e uma irmã ainda bebé. O pai do Daniel era colega de Nick
no quartel e ele estava sempre lá em casa, até que um dia
desapareceram, todos eles e ninguém me explicou porque. A
Dona Lurdes um dia apenas me disse:
- Eles morreram querida.
- Como? Foi um acidente?

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Ela sorriu para mim tristemente e não voltou a dizer mais nada
sobre o assunto e sempre que insistia, limitava-se a dizes: “Eles
morreram querida”
Demorou algum tempo a compreender que em pouco tempo,
alguns passaram a ser mais do que os outros.
Eu continuava a acreditar na revolução.

Não podíamos festejar dias santos, especialmente o Natal. Mas


comigo era diferente, faço anos a vinte e quatro de Dezembro e
tinha direito a festa.
No meu decimo aniversário, Nick estava de serviço e eu fiquei
com a Dona Lurdes que já estava grávida do Veloso e com
Luanda que na altura tinha seis anos. Ambas não estavam muito
felizes e não queriam saber se fazia ou não anos. Fiquei
zangada, queria que elas cantassem o “Parabéns a Você” mas
em resposta, a Dona Lurdes disse-me coisas horríveis e eu corri
para casa e enfiei-me dentro da cama a chorar, tremendo sempre
que ouvia um comboio passar, agora que compreendia o que
eram aqueles comboios. Mas não queria acreditar. Meu pai era
um herói da revolução, Nick era um herói, eram todos
mentirosos.
Mas não eram e eu sabia isso, sempre soube, só optei por não
querer saber.
No dia do meu décimo aniversario, perdi os meus sonhos e
ilusões.

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3º CAPITULO
A VERDADE DOI
Nick chegou de madrugada ainda com o uniforme de serviço
sujo de óleo. Entrou no meu quarto, beijou-me na testa, disse um
rápido feliz aniversário e entrou na casa de banho.
Era Natal.
Eu estava deitada ainda sem conseguir dormir a pensar nas
coisas horríveis que a Dona Lurdes me disse e Nick vinha do
trabalho, cabo de infantaria, mecânico de tanques que vinham da
frente de batalha, vencidos depois de confrontos com os tanques
da Aliança. E ele ajudava-os a repara-los para voltarem ao
quadrante para voltar a matar, destruir quem nos queria salvar.
Nick acabou de tomar banho e volta a entrar no meu quarto.
Tem vestida a farda de saída, cinzenta com botões dourados.
Pela primeira vez senti vergonha de ser irmã dele. Meu irmão
era um Red e Daniel estava morto por causa dele.
- Ainda estás acordada? – Sorriu encantador, como um príncipe,
mas o meu príncipe transformou-se num monstro. – Olha! –
Disse entusiasmado indicando mais uma linha nas divisas no
ombro. – Fui promovido, agora sou capitão, não é fantástico?
Sentei-me na cama bruscamente e empurrei-o. Ele ficou
perplexo, sem compreender a razão e antes que pudesse dizer
alguma coisa finalmente desabafei a noite de inferno sem
conseguir controlar as lágrimas e sacudida por soluços.

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- Odeio-te, és um assassino, como os outros. Eles mataram
Daniel e foste tu quem o denunciou, a ele e aos pais. Matas-te
um bebé, como pudeste?
- É mentira, quem te disse tal barbaridade?
- Foi a Dona Lurdes, e ela não é mentirosa.
- Não compreendes, não podia fazer nada! Que podes saber tu?
És apenas uma miúda!
- Tenho dez anos, não sou estúpida! E eu sou baptizada, eu
lembro-me, e o papá levava-me á missa aos domingos e ia á
catequese e sou católica, tal como tu!
Nick raras vezes levantou a mão contra mim, aquela foi uma
delas.
Apanhou-me desprevenida e fiquei em estado de choque,
sentindo o ardor no rosto a aumentar, sem saber se devia chorar
ou retaliar.
- Não voltas a dizer isso! A religião é o ópio do povo! Repete.
- Não! É mentira!
Outro tabefe.
- Repete!
Tive medo dele, medo do medo dele, medo simples e puro,
aterrador.
- Repete Serina, repete ou, palavra de honra que eu rebento
contigo de tanta pancada. Eu faço isso se for para salvar a tua
vida e a minha!
- A religião é o ópio do povo. – Repeti com voz trémula.

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- Deus é uma droga, quem acredita em Deus está doente e tem
que ser curado, reabilitado.
- Executado! – Corrigi em tom de desafio.
- Serina, tudo o que faço é para teu bem. – Disse desesperado. –
Não estragues tudo, eu agora sou de confiança, prometo que
vamos embora, que vamos ficar bem, mas por tudo, não voltes a
dizer isso, nunca mais, nem imaginas o que nos pode acontecer.
Imaginava sim, os comboios, lá em cima no alto, sobre as vias
aéreas, de carruagens fechadas, uma ou outra janela pequenina,
para esconder no interior a vergonha da sociedade.
Também tinha medo, não queria estar no lugar dos condenados.
- A religião é o ópio do Povo! – Repeti aos soluços.
Ele abraçou-me. Os braços dele eram tão rijos, tão fortes, o
cabelo molhado gelou-me o corpo passando pela camisa de
dormir, arrepiando-me de frio, mas não me importei.
- Vai correr tudo bem, prometo.
- Prometes?
- Sim.
- E a Dona Lurdes e Luanda?
- Nada lhes vai acontecer, mas não podes voltar a brincar com
Luanda e promete-me que não voltas a falar com a Dona Lurdes.
Eu prometi, mas sabia que estava a mentir, não ia conseguir
afastar-me com elas a viverem ali mesmo ao lado e o Veloso
quase a nascer.

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- Já estas uma mulhersinha. Cresceste e eu nem reparei. Pensei
que conseguia protegeste de toda esta loucura, mas não consigo,
lamento muito.
- E Daniel?
- Não sei. Tentei saber o que lhes tinha acontecido, mas não
consegui e aprofundar mais a investigação só ia levantar
suspeitas.
- Ele está mesmo morto?
- Lamento dizer que sim.
As ruas da sete tornaram-se diferentes, ou eram iguais e eu é que
fiquei diferente. Vivia no mundo dos sonhos e de repente
acordei numa realidade de pesadelo.
Ao ir para a escola, percorri as ruas semi iluminadas, onde
grupos de trabalhadores eram escoltados por praças com semi
automáticas em posição. Escravos do novo regime, escravos
com pulseiras negras em pulsos esqueléticos, de olhos vazios em
orbitas profundas. Escravos mortos que ainda tinham força para
andar e a Dona Lurdes, já em gravidez muito adiantada, era um
desses mortos.

O Veloso nasceu na fabrica de carne enlatada alguns dias


depois.
A Dona Lurdes parou de trabalhar para parir e como se sentiu
mal mandaram-na para casa, a pé, sozinha com o filho recém
nascido nos braços. Quando cheguei da escola Luanda foi-me

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chamar aflita, que estava sozinha, o pai foi chamado para a
guerra e a mãe estava doente, cheia de febre e não tinha mais
ninguém e não sabia o que devia fazer.
Eu pouco podia fazer, mas fui. A Dona Lurdes estava cheia de
sangue, escorria-lhe de entre as pernas formando uma poça no
meio da cama e não tinha forças para se levantar. Lutei contra os
vómitos enquanto limpava os resíduos orgânicos, sangue, urina,
fezes e vómito. Lavei o bebé e como não tinha fraldas
improvisei com panos limpos da cozinha.
Não sei como consegui, agora que penso nisso, a minha primeira
reacção devia o ter fugido logo dali. Durante muito tempo
pensei que fosse por Luanda, mas não, foi por mim, para
satisfazer o meu ego orgulho arrogância masoquista de que eu é
que tenho todas as dores síndroma de mártir .
Quando Nick chegou e não me encontrou foi-me buscar,
adivinhando onde eu estava e voltou a bater-me. Odiei-o por
isso.

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4º CAPITULO
O TIO VITO VAI SALVAR-NOS

O marido da Dona Lurdes não voltou a aparecer e ela não tinha


ajudas de ninguém.
O marido para a proteger denunciou alguns padres que viviam
escondidos por isso, a Dona Lurdes, por um lado era uma
traidora, por outro uma doente.
Na semana que se seguiu tentei evita-la ao máximo mas não
conseguia manter a indiferencia. Passava-lhe comida ás
escondidas, leite especialmente, a pensar no Veloso e arroz, que
tínhamos sempre tanto arroz.
Cada dia que passava sentia-me mais chegada a eles, como se de
minha mãe se trata-se e de meus irmãos. Já pensava num meio
de os tirar dali, Nick podia esconde-los, arranjar uma maneira
qualquer…estava a iludir-me, ele nunca os iria ajudar.
A Dona Lurdes arranjou um novo trabalho, vinham busca-la de
madrugada para uma lavandaria do exercito e levava o Veloso
com ela, enquanto Luanda tinha que se arranjar sozinha e ir para
a escola.
Um dia, tinha acabado de chegar da escola, mal poisei a
mochila, ouço um grande alarido no corredor e batem á porta
com força.
- Serina, Serina!!
- Luanda!

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Corro sem pensar a abrir a porta. O corredor estava cheio de
soldados, a Dona Lurdes no meio deles com o Veloso ao colo e
Luanda cai-me nos braços. Entre choros e gritos e suplicas e
ordens só consegui dizer:
- Larguem essa mulher! – Puxei Luanda para dentro de minha
casa e fecho a porta atrás de mim. – Que vão fazer com a minha
criada?
- Criada? – Um dos soldados dirigiu-se a mim e agarrou-me nas
mãos á procura de qualquer coisa, da pulseira negra. – Quem és
tu?
- Sou Serina Pólo e meu irmão é o Capitão Nickolas Pólo e essa
mulher é minha criada! Olhe que o meu irmão é um homem
muito importante e vai ter sérios problemas com ele.
Via a aflição da Dona Lurdes, o seu espanto e como dizia
continuamente não num abanar louco com a cabeça. Eu estava
louca, a demência tomava conta de mim, ódio raiva mal contida,
revolta por tudo e por todos. Talvez fizesse parte da minha
doença, qualquer coisa com a tiróide, falta de hormonas.
Quero explicar com qualquer coisa física, uma mistura mal
equacionada, qualquer coisa a mais ou a menos.
Estava louca e não era coisa recente, já vinha de á muito tempo,
do tempo dos campos de concentração para os comunistas
revolucionários. Quando Nick me dava pápa que me fazia sentir
doente e sonhava com os tanques de Estebam, ou mesmo antes,
quando...não sei quando, talvez a ausência de uma mãe e ali

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estava a minha mãe, a única mãe que algum dia iria ter e não a
podia deixar fugir.
Não foi por ela, foi sempre por mim.
- Ai sim? Vamos a ver então, também vens espertinha! – E
agarrou-me pelos cabelos e puxou com força arrastando-me
alguns metros. O meu suplicio foi pequeno. Outro soldado
resolveu apelar a meu favor.
- Senhor, olhe que ela está a falar a verdade, é a irmã do Capitão
Nick, o responsável pela oficina.
- Já vamos ver como é que é, suas putas, por mim, hoje mesmo
vai tudo para os fornos!
Fui puxada pelos cabelos, a chorar de dor e humilhação, mas
feliz e contente, tinham esquecido Luanda que tranquei dentro
de casa, mas antes de chegar á rua, Nick chegou, alguém já o
tinha chamado. Meu príncipe voltou a ser encantado e o
cinzento da farda pareceu-me branco como o de um anjo.
A Dona Lurdes deixou a lavandaria e passou a servir lá em casa
apenas a troco de comida. De inicio Nick ficou zangado, mas
correu tudo pelo melhor e eu ganhei uma mãe. Chamava-lhe
mãe em segredo e ela chorava e beija-me tanto o rosto que tinha
que a afastar. “ És uma santa, salvaste a vida dos meus filhos!”
Durante algum tempo consegui voltar a ser criança e fingir que
éramos uma família, mas não havia tempo para brincar. A
tensão aumentava e reinava uma calma que anunciava
tempestade. Nick arriscava-se cada vez mais e já não lhe davam

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muito espaço de manobra. Voltou o jogo das promessas, dos
enganos, das mentiras e com ele, Vito Pólo.

Os Polo’s. Maldito já esse nome, maldita seja eu porque o


carrego.
Ele chegou com as suas promessas. Um monstro de cento e
trinta quilos, careca, sem barba, branco como cal. Entrou no
nosso pequeno apartamento, abriu muito os braços e eu fugi dele
num ataque de terror espontâneo, apavorada perante a visão de
tão repugnante criatura. Fugi para o quarto e Nick demorou
muito a convencer-me a sair.
Lá fui eu, muito tímida, escondida a traz de Nick, a espreitar das
suas costas para ir conhecer o tio Vito, o irmão do papá.
- Vem ao tio Vito, Serena, vem ao tio. Não tenhas medo.
E eu fui, empurrada por Nick até aquela figura grotesca sentada
no sofá, ocupava dois lugares. O tio Vítor sentou-me ao seu
colo: Olha só para ela, uma mulher, tal qual a tua mãe.
Foi o suficiente para me prender a atenção, fiquei cativa daquele
pote de banha e pela primeira vez ouvi falar da mama.
- Chamava-se Ana. A mulher mais bonita que conheci em toda a
minha vida, tal como tu. Tinha os teus olhos verdes, esse cabelo
ruivo lindo e até o nariz arrebitado. E quando ela sorria, era
como um anjo.
Minha mãe era como um anjo. Essas palavras marcaram o resto
da minha existência, muito mais do que ele poderia imaginar. E

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depois da história do anjo veio as promessas: - Amanhã antes da
noite chegar estamos todos juntos em minha casa em Marte.
Tenho uma filha da tua idade, chama-se Mariana e tu vais gostar
dela. Ela já gosta de ti, espera ansiosa pela tua chegada.
- Luanda e Veloso vão estar lá também?
Vi a sua expressão mudar e vi o que ia acontecer, vi os
comboios a percorrerem as vias aéreas em direcção a Quatro e
Luanda e Veloso e a Dona Lurdes lá dentro com todos os outros
malditos. Odiei-o, odiei Nick por isso e fugi de ambos, monstros
demónios. Quando voltei a sair do quarto o tio Vito já tinha ido
embora.
Foi no dia seguinte, doze de Fevereiro de dois mil e oitenta e
oito, tinha doze anos, Luanda oito, Veloso dois. Lembro-me
como se tivesse sido ontem, era carnaval.
Precisamente um ano antes brincava com Nick, eu mascarada de
Cleópatra, ele de Marco António, fechados dentro de casa,
recitando ao som de uma música invisível para um público de
fantasmas e sombras. Aspirava a ser uma prima bailarina, já
dançava de pontas e Nick adorava quando eu dançava para ele.
Um ano antes não pensava nas pulseiras electrónicas ou nos
chips de identificação, não temia os soldados, as camionetas
vermelhas ou encolhia-me de horror sempre que um comboio
passava, de olhos fechados com força a tentar não pensar no que
se passava lá dentro, para onde ia, o que ia acontecer a todas
aquelas pessoas.

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5º CAPITULO
O SACRIFICIO DOS INOCENTES

Era um dia como outro qualquer, saímos do prédio, não muito


longe de onde estou agora, primeiro eu, depois Luanda,
seguimos e caminho habitual e o que mais me espantou foi o
silêncio. Um horroroso e terrível silencio.
Os soldados não se moviam, as patrulhas estavam paradas,
imóveis em grupos de dez como estatuas a prometerem a morte
através dos seus tubos negros reluzentes. De tempos a tempos
passava um strique do exército ou um autocarro público. Estava
proibida a circulação de carros particulares. Diziam que
danificava a qualidade da atmosfera e realmente desde que a lei
entrara em vigor, o ar estava fresco e limpo.
Lembro-me que durante o caminho lutei cada segundo para não
olhar para traz, a certificar-se de que ela ainda estava ali. Por
quanto tempo? Quanto tempo até aos comboios? Obriguei-me a
andas no passeio, sempre em frente, um passo de cada vez. O
silêncio cortado pelo ronronar dos autocarros, os striques, os
soldados parados, as carrinhas vermelhas, tudo isto tornava a
atmosfera mais poluída do que o trânsito caótico à hora de
ponta.
Promessas de salvação, apenas promessas ocas atiradas ao ar, ao
vento sem força. A única coisa com algum sentido era Luanda,
ela era a minha força, o meu anjo negro, com as suas trancinhas

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pequeninas, tinha só oito anos. Meu Deus, como pode ter
permitido uma coisa dessas? Oito anos!
Luanda tinha que ser entregue, ela sabia, todos sabiam, seria
sacrificada por nós todos, mas não por mim, não por mim.
Cobardia foi o que foi. O medo calou a minha boca, um medo
tão aterrador que tornava a morte em algo doce e desejável.
Não queria ir para a escola, queria voltar para casa com Luanda
chamar a dona Lurdes e correr até á Águia. Podia tentar. Sabia
que nunca conseguiríamos, seríamos apanhados, e Nick e o
Veloso e a Dona Lurdes.
Luanda era o problema, ela tinha que ir á escola a sua falta seria
logo detectada e todos seriam localizados através dela.
Não podia fazer nada, nada, rigorosamente nada, tinha um
grande nada, um sentimento de impotência torturava-me e nem
sequer podia chorar porque ia dar nas vistas e tinha que me
comportar como se estivesse tudo bem. Tinha que ser um
exemplo na sociedade do estado novo, uma mente sã num corpo
são e Luanda que se lixasse, eu ia para Marte e ia viver num
palácio.
Não podia pensar nela, era apenas mais um número num mundo
de números onde a maioria era vencedora e Luanda era a
minoria vencida.
Cheguei á escola, ficava na avenida das descobertas, ao lado
ficava a esquadra central da polícia militar. Parecia tudo calmo.
Alguns alunos chegaram ao mesmo tempo que eu, alguns de

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olhos vermelhos cabeças baixas. Luanda passou furtivamente, os
auxiliares de educação já controlavam as entradas: - Levaram a
mãe de Mellie. – Disse ela e seguiu em frente. Mellie era judia.
Procurei-a e encontrei-a, não chorava e o seu rosto parecia que
dizia: Não te preocupes, eu compreendo.
E compreendia, ela mais do que ninguém. Todo o povo judeu
sabia o que era aquilo, eles não choravam, nenhum deles. Só que
desta vez não estavam sozinhos, não era só os judeus, eram
todos os outros, todos, eu incluída, católica apostólica romana.
Baptizada, primeira comunhão, assistia às missas de domingo.
Mas meu pulso estava nu e meus braços limpo de chips. Estava
segura, meu pai era um herói da revolução, meu irmão oficial
red, um capitão.
O silêncio constrangedor no pátio foi cortado pelo toque de
entrada. Forma-mos duas filas, os doentes de um lado, os
saudáveis do outro. Nós entramos primeiro, calma e agonizante,
já não conseguia ver Luanda, sentia que não ia voltar a vê-la,
perdia-a para sempre, abandonava-a, era o que estava a fazer.
Apenas um entre muitos.
Decidida entrei com os outros na minha sala, a foice e o martelo
suspensa ao fundo atrás da mesa da professora; a faixa por cima
do quadro a dizer: A religião é a droga do povo.
Coloquei-me ao lado da minha mesa, um ritual matinal, a
professora entra, os seus saltos soam como bombas no soalho.

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- A religião é a droga do povo! – Recita-mos a uma só vós antes
de sentar-mos e atirar-mos com os livros para cima das mesas
inóxidadas.
A professora avança ao longo da sala até ao quadro e olha para
nós, parece muito satisfeita. Meteu-me nojo, ódio. Era louca
aquela mulher, já não me lembro do seu nome e rosto, apenas do
som daqueles saltos altos, um cabelo louro intenso e o porte
altivo de dona do mundo.
- Camaradas, hoje é um dia de festa, de grande júbilo! – Disse. –
Finalmente após meses de deliberação foi aprovada a
recolocarão em massa de todos os camaradas doentes. Vão para
um lindo campo onde existe pessoal qualificado para os curar e
reintegrar na sociedade como jovens saudáveis. Uma mente sã
num corpo são.
Mentirosa. Iam alimentar as fornalhas das refinarias e as suas
cinzas seriam transformadas em sabão.
- A partir de hoje não vão ter que se preocupar nunca mais em
ser contaminados, vocês são o exemplo da juventude do novo
estado, produtivo e saudável. Uma salva de palmas á revolução!
Viva á revolução, viva Estebam!
E como em todos os comunicados, de pé a bater palmas a fingir
uma alegria e contentamento que estava longe de sentir.
- Agora vamos á lição de hoje, os mísseis de cuba.
Os misses de cuba. Que cuba fosse para o inferno mais os
Estados Unidos e os russos. A ameaça nuclear não foi mais do

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que um embuste idiota e todos caíram que nem patinhos, como a
suposta doença de Luanda, outro embuste e todos acreditavam.
Uma jogada política que não conseguia compreender, com o
objectivo de agradar aos capitalistas. Comunistas umas merda.
O cimento era dinheiro, um negocio como outro qualquer e
alguém tinha que pagar por ele para o obter.
Naquele dia a palavra de ordem era Fidél mas o meu espirito
estava muito longe da matéria dada, estava na outra ala da
escola, ao lado de Luanda impávida e serena espera de ser
recolocada e no espaço porto, Vito Polo esperava por mim e em
Marte tinha um palácio...
O som de vários carros a entrar no pátio quebrou a monotonia. A
professora calou-se finalmente e nós não nos atrevemos a mexer
um dedo sequer quanto mais respirar.
- Camaradas, chegou a hora, vamos assistir ao transporte dos
doentes.
+ E ainda temos que assistir?
Saímos em fila, ordenadamente, cá fora no pátio os outros já
estavam alinhados, ao centro voltados de costas para nós, de
frente para as carrinhas vermelhas, as portas laterais abertas, um
contingente se soldados armados. A professora parecia feliz com
o espectáculo, como se fosse certo correcto. Eu via o absurdo
que arrancava a minha consciência e matava os meus ideais.
Não acreditava em Deus, acreditava no estado novo mas não
conseguia compreender aquilo.

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As crianças foram obrigadas a despirem-se e foram examinadas
no local à vista de todos. Choravam, chamavam pelas mães, mas
estavam assustados demais para desobedecerem. Comportavam-
se como gado a ser preparado para ir para o matadouro.
Levei as unhas à boca e comecei a roer até fazer sangue e a dor
acordou-me do meu estado de choque. Quando chegou a vez de
Luanda fechei os olhos. Não queria ver, não queria saber. Nick
estava á espera com o Veloso e a dona Lurdes, Daí a uns anos
Luanda não seria mais do que uma lembrança de passagem.
Que podia eu fazer? Luanda voltou-se e gritou por mim, não
consegui evitar e abri os olhos, os dela estão rasos de lagrimas,
todo o rosto é uma expressão de puro sofrimento.
Lembro-me que estava a ler os miseráveis de Vítor Hugo.
Lembrei-me na altura da história do pastor que abandona o
rebanho á sua sorte para partir em socorro de uma ovelha
tresmalhada. Veljam abandonou tudo para salvar o desgraçado
que ia ser condenado no seu lugar e para salvar Cossette. A
pequena Cossette. Luanda era a minha Cossette.
- Serina! – Luanda não aguentou, tentou fugir, correu na minha
direcção, foi apanhada e atirada para dentro da carrinha como
uma coisa. O corpo nu pequenino, a sua magreza exibida a
publico, como gado. E foi assim que o pastor abandonou as
ovelhas, uns segundos de fraqueza e deixo o meu lugar vazio.
- Eu sou baptizada! Acredito em Deus. Sou católica apostólica
romana e o estado novo é uma fraude. Deus é o meu porto de

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abrigo e a minha salvação e vocês estão todos condenados ao
fogo dos infernos!
O meu inferno ainda estava para chegar.

Como descrever o que aconteceu? Nem eu sei. Recordo uma


garagem cheia de homens mulheres e crianças, todos nus, eu no
meio, Luanda sempre junta a mim, a andar em círculos horas
intermináveis, a pisar a nossa própria urina e excrementos, há
espera de sermos chamados, e depois lá fomos e raparam as
nossas cabeças e deram-nos banho com jactos de agua gelada.
Lembro-me de ter apanhado uma das tranças cortadas de Luanda
e de a ter agarrado como se da vida dela se tratasse e de procurar
desesperada por Nick, com a certeza de que ele nos viria salvar.
Mas Nick não apareceu e fomos para a estação, como carne
enlatada e enfiaram-nos dentro do comboio. Luanda perguntava
constantemente por Nick e eu só sabia dizer que ele não se ia
esquecer.
- Ele vai-nos salvar Luanda, vamos para Marte viver num
palácio. Vais ver…
Luanda agarrou-se a essa esperança, não estava sozinha, eu
estava ali e ia tomar conta dela como sempre tinha feito. Mas
quem ia tomar conta de mim?
O ser pequena para a idade salvou-me a vida, só muito depois eu
soube isso, mas mais valia...

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O destino final foi a base militar de Quatro, mais precisamente o
centro de recrutamento, oito pavilhões cercados por redes de
quatro metros electrificadas, dentro do gigantesco posto de
operações da frente de batalha. Um homem veio buscar-nos e
disse:
- Bem vindos á recruta da divisão dos infantários. A partir de
hoje são recrutas, soldados e vão poder provar que merecem
estas ao serviço do estado e fazer com que as vossas miseráveis
vidas sirvam para alguma coisa. Meu nome é Damiem, serei o
vosso instrutor e se fizerem tudo o que eu disser, vai correr tudo
bem e sem darem conta já estão com as vossas mamãs e papás.
E foi assim que tudo começou.

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6º CAPITULO
A RECRUTA

Dali ao campo de treino foi uma questão de horas e antes do dia


acabar aprendi a ficar calada e a fazer tudo o que me mandavam,
a bem da minha saúde e da dos outros.
Os dias seguintes não foram melhores, mas chegou a uma certa
altura em que tornou-se normal. Éramos crianças e não tínhamos
como nos defender ou fugir.
Luanda deixou de perguntar por Nick e já ria de vez em quando
mas eu continuava á espera dele e continuei durante muito
tempo.
No campo não havia nomes, só números e como não podíamos
falar uns com os outros, também não os podíamos saber. Éramos
conhecidos desconhecidos e o único nome que conhecíamos era
o de Damiem, o nosso recrutador. Qualquer coisa, tínhamos que
nos dirigir a ele. Demien era como um deus que éramos
forçados a venerar, dependia dele ir ou não dormir com fome ,
tínhamos que o deixar contente. Felizmente ele contentava-se
com pouco, resumia-se a não falarmos uns com os outros, não
tentar fugir, não roubar nada, responder prontamente a todas as
chamadas e fazer tudo o que ele mandava. Em troca éramos
recompensados com comida em abundância e uma cama quente
para dormir.

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Condicionados desta forma, doze miúdos foram transformados
em soldados á força, mas quando a noite chegava, voltávamos a
ser crianças assustadas, amedrontadas. Chorávamos, cada um a
sua dor, a sua ausência saudade, chorávamos por uma mãe um
pai um salvador. Luanda rezava e chamava por Deus, eu
esperava por Nick e já o via a entrar dentro da camarata como
guerreiro furioso.
Ele tardava e eu desesperava por esperar.
Já não sei á quanto tempo estávamos lá quando vi os primeiros
tanques carraças.
Era por eles que fomos enfiados ali. Tanques pequenos,
autónomos, que davam muitos erros e passaram a manuais. Os
tanques eram pequenos demais para um homem adulto mas era
o ideal para uma criança até metro e meio de altura.
Na minha vida tive muitos tanques, os tanques da revolução, os
tanques da esperança e agora ia ter um tanque só para mim, um
brinquedo muito melhor do que qualquer Barbie bailarina.
Eram três, um ao lado dos outros, passaram pelos portões a alta
velocidade e pararam logo de seguida abruptamente em
simultâneo, com as lagartas na vertical, como torres de aço a
ladear a estrutura achatada com um canhão amovível no topo.
Um Jipe apareceu logo de seguida e parou perto dos tanques, do
interior deles saiu Damiem e outros dois soldados. Eu vinha a
sair da enfermaria, com os bolsos cheios de aspirinas, o máximo

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de analgésicos que se podia ali encontrar. Ao assistir á entrada
desenfreada dos tanques esqueci logo a dor de cabeça.
Os tanques abriram-se e do seu interior saíram três miúdos
vestidos com camuflados cinzentos e de cor de tijolo, de
capacetes redondos enfiados nas cabeças pequenas demais para
os segurarem devidamente e semi automáticas presas ás pernas e
munições á volta dos ombros e cintura.
Crianças armadas, crianças soldados. E ao olhar para eles, vi o
meu futuro. O que eu não faria para ter uma coisa daquelas
naquele momento, lutaria até á morte pela minha liberdade e
pela liberdade de todos os outros. Uma arma e teria o poder, e
eles tinham alem das armas, um tanque. Um lindo e glorioso
tanque com um canhão de 600mm. Podiam atacar…
Não, não podiam, a ameaça das torres de vigia e da segurança
do outro lado daqueles portões era bem assente e nada lhes
escapava. Qualquer tentativa seria suicídio.
Um dos miúdos parecia muito irritado e avançou na direcção de
Damiem completamente á vontade.
- Onde está o meu leite. – Consegui ouvi-lo gritar
- Já falamos sobre isso. – Damiem respondeu.
O rapaz ficou furioso, como um homem em ponto pequeno,
inquieto, com gestos rápidos, tirou o capacete e atirou-o para um
dos companheiros que o agarrou.
Damiem pareceu ficar ofendido, até magoado.
- Eu prometi o leite, já alguma vez faltei?

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- Sim, muitas vezes. Nem vale a pena enumera-las. As vitaminas
acabaram, não temos açúcar, arroz e ração e agora não temos
leite. Se queres resultados, como os posso obter se tenho um
monte de homens a passar fome? Lutar de barriga vazia não é
produtivo e eu estou incluído!
- Olha…
- Vai-te foder Damiem, estou farto das tuas falinhas mansas!
Quero leite agora!
Aquela foi demais, já estava á espera de uma punição pavorosa
tipo execução no local, sustive a respiração, á espera de
qualquer coisa que pudesse acontecer, mas nada, ou tudo.
Damiem volta-lhe as costas com a promessa de que ia ver o que
é que podia fazer. Ele viu-me e eu, assustada desatei a correr o
mais depressa que pude sem querer saber de mais nada.
Vi Damiem rebaixar, humilhar e espancar recrutas, eu fui um
deles. Mas aquela era novidade. O outro confrontara-o,
insultara-o e Damiem respondia com um simples: Vou ver o que
posso fazer.
Talvez essa coisa de ser soldado forçado não fosse assim tão
mau como pensava, ia receber uma arma e um tanque e ia poder
fazer também exigências, como chocolate. Tinha saudades de
chocolate e só a ideia me fazia agua na boca.
Não conseguia deixar de pensar no rapaz homem. Na voz
autoritária, na maneira como controlou a situação, o seu porte
altivo. Havia algo de familiar nele, como se o conhecesse desde

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sempre, ou então, o identificava comigo, não conseguia explicar.
Talvez fosse alguém lá da rua, ou algum colega da escola. A
minha curiosidade levou-me a aproximar-me dos portões onde
os tanques ainda lá estavam e os seus ocupantes também. Só que
agora carregavam caixas de leite em pó para cima de um
atrelado preso ao tanque do meio, que tiravam do interior de
uma camioneta cinzenta.
Damiem não estava á vista, apenas um motorista encostado de
cigarro na mão, tragando longos bafos, numa pausa solene.
Eram homens como aquele que despertavam em mim algo de
mau, tão mau que até eu me assustava comigo própria.
O miúdo soldado continuava a fazer o seu trabalho. Eu
conhecia-o, sabia que o conhecia. No geral era como todos os
outros, um miúdo de cabeça rapada dentro de um camuflado, era
sempre difícil identificar quem conhecia-mos, quanto mais os
que não conhecíamos.
Foi os olhos que o traíram. Olhos cor de avelã.
Já não me lembrava do rosto dele, Daniel era apenas um nome
associado a uma má recordação que tentava esquecer. Mas
lembrava-me que tinha os olhos da cor das avelãs. Lembrava-me
dos olhos dele sempre que via avelãs e esse fruto passou a ser os
olhos de Daniel: “ Olha Daniel, são os teus olhos!” – Disse-lhe
uma vês quando passamos pelos mercado, tantos anos atrás, ou
talvez não tantos. Mas com a minha idade o tempo passava tão

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lentamente que um dia parecia uma eternidade. Ele riu e
comprou um quilo de avelãs. “ Para não te esqueceres de mim.”
Nunca esqueci os olhos de Daniel. Olhos grandes e rasgados cor
de avelã, as marcas de uma mãe com sangue asiático no sangue,
a única prova de uma descendência oriental da qual se
orgulhava. A família de Daniel era Budista, a mãe em tempos já
tinha sido uma monge e tinham um santuário a Buba dentro de
casa. Daniel era diferente de todos os outros, Daniel era o
menino Budista do andar de baixo que não matava uma aranha
porque todas as vidas eram importantes, mesmo uma mosca, ou
uma barata. Era alvo de troça na escola por causa disso, mas
nunca se defendia e era eu quem tinha que o ir socorrer quando
os outros levavam as brincadeiras mais longe.
Ver Daniel vivo outra vês, enfeitado com um colar de balas e
uma semi automática presa á perna chocou-me mais do que
quando recebi a noticia de que ele tinha morrido
Comecei a chorar, Daniel estava vivo e desejei que fosse
mentira. Já não era o meu Daniel Budista que acreditava na vida
e cuja única aspiração era ir ao Tibete e viver o resto da sua vida
como monge.
E eu não conseguia parar de chorar, a visão turva pelas lagrimas,
desejando sempre que não fosse ele. Foi quando ele olhou para
mim e a caixa do leite caiu aos seus pés e também me
reconheceu, tão em choque quanto ele.
- Serina! Tu aqui…

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Quase que não o consegui ouvir, fugi dali. Ele ainda voltou a
chamar-me, mas não podia falar, muito menos com o motorista
ali a controlar tudo.

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7º CAPITULO
CRIANÇAS SOLDADO

Nessa noite fui acordada por mãos fortes sobre a minha boca e,
por segundos pensei em Nick. Era Nick que finalmente me
vinha salvar. Mas encontrei os olhos de Daniel, muito aflito,
com um dedo encostado aos lábios a pedir-me silencio.
Ele levou-me para fora da camarata onde estavam os outros dois
miúdos e sentamos nas escadas de acesso ao pavilhão.
- O que aconteceu? – Não era uma pergunta, era uma exigência..
- Como não sabes? – E agarrou-me o pulso e obrigou-me a olhar
para a pulseira. – Onde está o teu irmão? Foi apanhado?
- Não sei. – Voltei a responder tremula com medo de ser
apanhada a falar.
- Tá tudo bem miúda, ninguém te vai fazer mal. Podes falar.
Meu pai disse-me que vocês iam para Marte, o que correu mal?
- Eu estraguei tudo, a culpa foi minha.
- Não digas isso.
- É verdade.
E confessei-lhe o meu crime, como denunciei Nick e todos os
outros apenas para não deixar Luanda sozinha. – Traiu-o.
- Tá tudo bem. Nick tem boas relações, é um Pólo, como tu e o
nome da tua família tem algum poder nas altas esferas.
- E se não conseguiu?

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- Não penses assim. Positivo miúda, sempre positivo. Seguir em
frente e não olhar para traz. Senão, não te viras no outro lado.
No outro lado, para lá daqueles portões, para lá da segurança do
campo de recrutadores. Ali estava em segurança, no outro lado
estava morta. Aí estava a razão porque Damiem se deixava ser
insultado, Daniel já estava morto, era uma questão de como e
onde. Para que preocupar-se com protocolos de pelotão de
fuzilamento?
- O que fizeram contigo?
Ele sorriu cínico. Um homem no corpo de uma criança, um
homem soldado mau e cínico.
- Meu pai foi apanhado a tentar sabotar as oficinas na Sete.
- Nick era o responsável pelas oficinas.
- Ele ajudou, mas correu tudo mal e no fim, Nick teve que fingir
que o tinha apanhado em flagrante.
- Então a culpa foi sempre dele…
- Serina, ele fez o que tinha de ser feito. De outra maneira seria
muito pior. Ademais, ele conseguiu avisar a minha mãe e ainda
conseguimos fugir.- Por quanto tempo?
Ele encolheu os ombros, não parecia muito preocupado com
isso.
- Isto não é assim tão mau, patrulhamos as ruas da cidade,
procuramos espiões e resistentes. A cidade e toda nossa, até é
giro, bem…mais ao menos. As vezes temos que lutar.
- Não quero lutar, não vou lutar.

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- Vais sim, como todos os outros. Não por eles, mas por ti. É
como o jogo do gato e do rato em que tu és o rato. Foges, ficas
encurralada, se paras és executada. Lutas podes sobreviver. Um
conselho, aprende bem o que te ensinam aqui, pode salvar-te a
vida e a de outros.
- Posso tentar fugir!
- Para onde? – E voltou a rir com escárnio. – Esquece miúda, a
não ser que tenhas tendências suicidas.
- Render-me ao inimigo. – Insisti.
- Inútil, eles não aceitam prisioneiros. Já tentei.
- O que falhou?
- Assim que me aproximei fui atacado como a um cão. Não
estava sozinho, perdi muitos homens nesse dia.
- E depois?
- Depois o que? Que podia fazer? Calei-me, dei parte das baixas
e pedi reforços. – Voltou a encolher os ombros despreocupado.
– Lau, léu, cheguem aqui!
Os outros dois que estavam de vigia aproximaram-se e
acercaram-se de Daniel prontamente. – “ Serina, estes são os
meus braços, o esquerdo e o direito. Estão comigo desde que eu
me lembro e só não são capazes do que não querem. Podes
contar com eles para tudo.
- Ois. – Disseram ao mesmo tempo.
Eram iguais, mais iguais do que todos os outros, como gotas de
água. Irmãos gémeos, parti logo do principio. Mas o que mais

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me impressionou foi os rostos brancos de morte e magros
cadavéricos de olhos encovados sem cor, sem brilho, sem vida,
vazios. Olhos vazios em mentes vazias. Seria aquele o meu
aspecto? Ainda não, mas não faltava muito tempo.
Olhei através deles, através daqueles portões de rede, para alem
das torres de aço das minas, para lá das ruínas de quatro. Senti o
silencio e tive medo. Eu não queria morrer, não ali, daquela
maneira. Era nova demais para morrer. “ Quero viver, meu
Deus” – Pensei de repente.
Desejei a vida, pedia a vida a um Deus em que não acreditava e
se ele existia era um sádico com um sentido de humor muito
negro.
Não queria acreditar nesse Deus que castigava os inocentes.
- Ois. – Disse sem saber bem o que dizer.
- Não é assim tão mau como isso. – Eles divagaram. Ao mesmo
tempo como anteriormente, falavam a uma só voz o que achei
de extraordinário. Dois num só.
- Eu estive nas minas Serina. – Daniel falou preocupado, talvez
tivesse pensado que preferia estar nas minas. – Quatro é um
paraíso comparado com aquilo.
Talvez sim, mas não por muito tempo. O paraíso transformou-se
num inferno.
Voltei para a camarata a pensar em Lau e em Leu, tudo o resto
passou para segundo plano. A minha curiosidade de criança
tentava revolver o enigma de como é que se podia falar ao

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mesmo tempo com outra pessoa. Seria ensaiado? Um
passatempo bizarro de quem não tinha nada para fazer?

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8º CAPITULO
PEÕES DE UM JOGO DE XADREZ

Eram os primeiros tempos de Divisão dos infantários, como era-


mos chamados.
A coligação levantava acampamento depois do acordo de não
envolvimentos, por outro lado a Aliança evacuava, ou o que
restava dele. Todas as colónias foram ocupadas pelo exercito
vermelho e em todas elas o povo os esperava entusiasticamente.
Na atmosfera cinco, foram mais longe: os que tentaram fugir
foram massacrados num autentico banho de sangue.
O novo governo, a Lua socialista, tornou-se no único e
exclusivo exportador de cimento e ele era vendido a preços
exorbitantes ás grandes multinacionais, mesmo com o bloqueio
imposto da Aliança.
Na Terra, as guerras internas pelo cimento faziam as suas
vitimas como na Lua, mas ali, não eram contabilizadas como
baixas de guerra. Eram chamados de danos colaterais. Mas o
que era isso? “ O cimento constrói mundos e cruza o espaço.” A
vida tornou-se descartável.

A Aliança tinha Quatro cercada e fazia movimentos dentro da


cidade nos quadrantes superiores enquanto o exercito vermelho
a tentava afastar da cidade e das minas, protegidos por escudo
invisível e pelos geradores de atmosfera artificial.

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A Aliança perdia terreno e começavam a ficar com falta de
recursos. Os custos da guerra eram elevados e na Terra todos
protestavam. Por outro lado, o cimento da Lua construía mundos
e a própria Aliança era obrigada a comprar esse ouro cinzento ao
inimigo, mesmo com as leis contra essa pratica.
O cimento construía mundos e atravessava o espaço, nada era
construído sem ele, desde ao pequeno brinquedo até ao grande
cruzador espacial.
No campo de recrutas era ignorante em relação ao que se
passava para lá dos portões electrificados e só pensava nas
promoções para finalmente sair dali para fora. Em breve
teríamos os nossos tanques e as nossas armas. Já praticávamos
com semi automáticas, mas eu gostava especialmente das
Sniper, armas de tiro de precisão a longa distancia e era tão boa
a manobra-la que fiz um treino especial de atirador com soldado
das forças especiais de infiltração que foi chamado para o efeito.
Foram dois dias muito especiais. O soldado era muito atencioso,
falava comigo com gentileza e nunca me bateu por fazer alguma
coisa mal. Nunca falei com ele, não podia, Damiem estava
sempre por perto e não perdoava qualquer transgressão. Dizia
que sempre que nos batia, estava na realidade a salvar-nos a vida
e odiava-o por isso. Fazia-me lembrar Nick que um dia
prometeu espancar-me para me salvar a vida. Não queria ser
salva daquela maneira e estava farta de levar porrada e ver os
outros a levar porrada. No entanto, eu não levava só por mm,

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apanhava também por Luanda, pois assumia todas as suas culpas
a ponto de Damiem já não ir ter com ela. Era sempre comigo e
eu agradecia-lhe intimamente cada golpe com o cinto nas costas
e pernas, por a dor ser minha e não de Luanda.
Durante os dois dias que estive com o atirador das forças
especiais, não pude proteger Luanda, não estava lá e quando
voltei ao centro da recruta, a dor que me foi afligida foi muito
superior do que se tivesse sido espancada até á morte. Luanda
tinha cometido muitos erros durante uma manobra e o recrutador
que estava lá não era Damiem. Bateram-lhe até ela não
conseguir levantar-se e o meu anjo negro estava deitado cheia de
edemas e em grandes dores, com os dedos das mãos todos
partidos.
Queria tratar dela, cuidar-lhe das feridas mas Damiem não
deixou. Jurou-me que o faria por mim, jurou que não voltaria a
acontecer e eu acreditei. Tinha que acreditar, ele era a única
coisa com que podíamos contar.
Foi nessa altura que fomos uma noite acordados por um enorme
estrondo que até o chão tremeu, e depois outro e outro. O chão
tremia tanto que, contrariando as ordens, levantamo-nos e
saímos da camarata para saber o que se passava.
Ao longe, o céu era cortado por fios luminosos. Mísseis.
Ninguém entrou em pânico, estávamos cansados demais para
isso, de espíritos vencidos, não queríamos saber para onde eram
os mísseis dirigidos. Ficamos algum tempo a apreciar o

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espectáculo, entre uma correria desenfreada de homens carros e
tanques que passavam por nós sem nos dar atenção de especial,
até que chegou Damiem.
- Acabou o espectáculo! Todos para dentro!
Voltamos para as nossas camas mas era impossível dormir. Os
bombardeamentos continuaram e o chão tremia e foi assim a
noite toda e o dia seguinte e continuou durante o resto do tempo
que me lembro, até que nos habituamos e deixamos de sentir o
chão a tremer ou os missei a detonar. Só estranhava durante as
pausas que podiam durar entre duas a oito horas, ficava inquieta
e voltava a tranquilizar-me quando as detonações voltavam.
Chegou o dia em que ia-mos receber os nossos tanques. Todos
tentaram não dar a entender, por medo ou vergonha, não
importa, o certo é que ninguém ficou indiferente. Para mim foi
como uma prenda, um lindo brinquedo novo, só para mim. E ia
poder usa-lo, brincar com ele, como os outros, no outro lado, nas
ruínas de Quatro.
Apesar de saber, não tinha a real consciência de que era isso que
esperavam da nossa parte. Ofereciam-nos armas e queriam que
brincasse-mos com elas.
Luanda foi a única que lutou até ao fim.

Na parada, parecia-mos todos iguais. Rapazes e raparigas;


brancos, pretos amarelos, católicos, protestantes, judeus, hindus,
islâmicos, budistas, muçulmanos…

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Ali éramos todos iguais, respirávamos o mesmo ar viciado,
pisávamos o mesmo chão tremente, sofríamos as dores da
mesma carne, na alma os mesmos tormentos e todos, sem
excepção chamavam por alguém durante a noite e choravam de
saudades e rezavam a um Deus para os ir salvar. Eu ainda
chamava por Nick e Luanda ainda rezava a um Deus ausente.
Aí na parada, os tanques novos reluziam com o seu brilho
prateado á nossa frente, a dez metros de distancia, como um
prémio de bom comportamento e Luanda não respondeu á
chamada.
Segunda chamada:
- Soldado 431.
O capitão baixou a ardósia de plasma e fez um sinal a Damiem
que apresentava a formatura e eu acompanhei todos os seus
movimentos.
Damiem voltou a chamar insistente. Ele preocupava-se, apesar
das pancadas preocupava-se e talvez acreditasse mesmo que era
para nos ajudar. Desejei que Luanda compreende-se, queria vê-
la, mas estava duas linhas atrás de mim e não me atrevia a olhar
para traz só para dar uma espreitada.
Damiem procurou Luanda na parada e furou caminho.
- Responde rapariga! – Ouvi ele gritar.
- Deus é o meu pastor e o meu guia. E embora caminhe pelo
vale da morte…
“ Não Luanda, por favor, não digas isso”

51
- Dez mil tombarão do meu lado direito, dez mil do meu lado
esquerdo…
- Luanda, eles mandam-te para as minas. – Damiem ainda tentou
chama-la á razão. Mas foi inútil, a resposta dela continuava a
mesma.
- Jesus é o meu salvador, morreu pelos pecados do mundo.
- Ele não vai salvar-te! – Damiem agora suplicava.
- Já chega recrutador! – O Capitão berrou. – Tirem esse monte
de esterco daqui, não vale o tempo que perdes-te com ela!
Luanda não gritou quando vieram os soldados, os soldados de
verdade, não gritou, não chamou por mim. Sorria, parecia muito
feliz quando passou por mim, como quem diz: “ Não faz mal,
está tudo bem, vai ficar tudo bem.”
Se ela tivesse chamado por mim, eu ia com ela, morreria por ela,
faria qualquer coisa. Mas não fez nada. Algo de mau apoderou-
se mim naquele momento, algo que já queria entrar no meu
espírito mas nunca deixei entrar. Lembrei-me de algo que tinha
ouvido há muito tempo: “ Pássaros fizeram ninho no meu
coração e aí deixaram ovos de pedra.”
Meu coração transformou-se em pedra naquele instante. Luanda
era levada, Damiem passou por mim e o seu rosto era mais
emotivo do que o meu. Ele ficou surpreso, talvez esperasse que
eu fizesse alguma estupidez.
Não fiz nada. Deus não fazia nada, que podia eu fazer se ele
estava a olhar para o lado naquele instante? Ele está-se a borrifar

52
para nós, simples mortais, tão frágeis na nossa condição de reles
vermes, vírus, como alguns acreditam que somos.
Levaram a minha esperança, o único significado da minha
existência ali, a razão onde ia buscar forças para continuar a ser
quem era. Sem Luanda, ficava um saco cheio de nada.
Chegou a minha vês e respondi prontamente. Depois, as pedras
abandonaram-me de repente, tão depressa como tinham entrado.
- Depois de destroçar venha ter comigo ao gabinete de
comando!
Meu coração disparou.
A chamada continuou, cada minuto era como uma hora, mil
ideias a varrer na minha cabeça, cada uma pior do que a outra. A
minas a primeira; Nick…teria sido apanhado? Alguma coisa que
tinha feito de errado e não sabia; iam-me tirar o tanque ou pior
ainda. Já tinha reparado como o comandante olhava para mim,
para as minhas mamas que começavam a crescer, podia ser isso,
ia ser violada, seria pior do que tortura. Ou era grande demais e
afinal decidiram que ia ser retirada dos tanques. Ouvi dizes que
quando isso acontecia ficávamos no centro, como Damiem e
trocávamos o camuflado cinzento pela farda vermelha dos
recrutadores, como aconteceu com ele. Não, não podia ser, a
minha recruta era recente, não tinha experiência para isso e era
muito nova. Mas Damiem também era novo, tinha ouvido dizer
que teria dezoito anos ou menos.

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- Direita volver! Destroçar ao primeiro tempo, quero ouvir
apenas uma batida!
Não ia aguentar, senti que ia entrar em pânico.

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9º CAPITULO
O FIM DA ESPERANÇA

Uma das recrutas foi comigo. Andávamos sempre aos pares,


fiquei sem Luanda, deram-me outra companhia.
- Chamo-me Mellie. Sou Judia. – Disse em segredo para que só
eu pudesse ouvir. Então lembrei-me que já podíamos falar. Já
podia saber quem eram eles mas não queria saber, não me
importava.
- Meus pais estão nas minas. Já sabíamos que isto ia acontecer,
para nós, para o meu povo. Não é a primeira vez. Reconhecemos
os sinais, acreditamos que Deus nos põe á prova para testar a
nossa fé, até nós conseguirmos aguentar sem O abandonar. Se
conseguir-mos, tudo o que nos foi retirado, nos será devolvido
em dobro, essa é a graça de Deus. Meus pais e meus irmãos
sofrem essa provação nas minas, eu aqui, mas através de Deus,
sei que no fim estaremos todos juntos. O bem prevalece sempre
ao mal.
- Porque estás a dizer-me essas coisas? Eu não acredito em
Deus! Deus não vai salvar-te, ele está de costas viradas para
todos.
- Eu vi o que fizeste todo este tempo pela outra.
- Luanda, ela chamava-se Luanda! – Apercebi-me que já falava
nela no termo passado, como se já estivesse morta e assustei-me.
- E os outros, e eu?

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- Não compreendo. – Disse parando confusa. – O que é que
queres?
- Não foi só com ela. Escondeste os lençóis do meu irmão
muitas vezes quando ele fazia xixi na cama e a mim, quantas
vezes cobriste os meus erros? E quantas vezes foste buscar
aspirinas mesmo sendo proibido para alivias as nossas dores?
Obrigada por tudo e nem sei como te chamar.
- Serina, chamo-me Serina.
- Obrigada. Foi Deus que te enviou para nós e mesmo que não
acredites nisso, eu acredito e fico muito contente por ser o teu
par e lamento muito por Luanda.
Era só o que faltava! Não sabia o que era pior, ter um par
fanático religioso que acreditava que tudo era de intervenção
divina, se ter perdido Luanda ou ser chamada ao gabinete do
Comandante.
- Não tens que agradecer Mellie.
Mellie descolou do meu ombro assim que entramos no pavilhão
de comando. Damiem estava na sala de espera.
- Demoras-te soldado.
Soldado. Já não era rapariga ou miúda ou outra coisa pior
- Anda comigo.
Levou-me através de um estreito corredor até uma porta que
dizia “ Comando da divisão de recrutamento. Capitão Plates”
Engraçado, nunca tinha pensado que o capitão tivesse um nome.
Era sempre o Sr. Comandante.

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Estava sentado atrás de uma secretaria de inox, computador á
frente, um monte de papéis, a bandeira da foice e do martelo
pendurada na parede atrás dele e uma fotografia de Estebam.
- Sente-se soldado! – Ordenou indicando a cadeira á frente dele,
a mesa a separar-nos. – Pode sair Red, não preciso mais dos seus
serviços hoje.
- Sim senhor.
Damiem saiu e fechou aporta atrás dele.
Pois bem, não ia ser torturada, ia ser fudida, de mal a mal, que
viesse o diabo e escolhesse.
Estudei o porco. Um vírus nojento filho de uma puta reles.
Mentira. Não era assim tão feio, falando verdade, tinha boa
aparência, limpo, cuidado. Pouco mais de vinte anos e cheirava
a saúde. No entanto havia algo de cruel em toda aquela
aparência de menino de bem. A maneira como condenou
Luanda á morte sem vacilar.
- Serina Pólo.
- Sim.
- Posso proceder a um exame de retina?
Achei aquilo esquisito. A perguntar se podia? Perdi a conta aos
exames de retina e ninguém me perguntou se os podia fazer.
- Sim…
Ele levantou-se, era um gigante ao pé de mim, mas todos eram
gigantes, com o meu metro e meio de altura até alguns dos
miúdos eram maiores do que eu.

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Tirou de uma gaveta escondida um identificador de retina,
passou-o pelos meus olhos e aguardou o resultado sentado.
- Óptimo! – Mas o seu estado de espírito era todo mas óptimo. –
Parece que temos um problema.
- Temos senhor comandante?
- Estás cá por embuste, nunca devias ter sido recrutada.
- Estou?
Agora estava mesmo confusa. Durante meses fui condicionada a
um regime severo de disciplinas, a não pensar, não ter ideias e
fazer só o que me mandavam, como uma maquina bem
programada. Se ele me manda-se saltar, rebolar no chão e fazer
de morta, obedeceria sem duvidar.
- És irmã do Capitão Nickolas Frederico Pólo.
- Sim senhor.
- O Capitão Pólo é comandante de logística na Atmosfera Sete,
um oficial de primeira em oficinas.
- Não sei Senhor Comandante
- Mas sei eu. Parece que um oficial da divisão Red tinha um
problema pessoal com ele e recrutou-te, foi uma espécie de
ajuste de contas. Estás a compreender?
- Sim Senhor Comandante. – Claro que não estava a perceber
nada, mas tinha ordens para concordar com tudo o que um
superior dizia, por isso a resposta seria sempre sim.
- O teu irmão está muito irado, muito irado mesmo e já
rebolaram algumas cabeças.

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- Sim Senhor Comandante.
- Ele já esteva cá por duas vezes e nas duas vezes eu neguei a
tua existência. Compreendes o nosso problema?
- Sim Senhor Comandante.
- Não, não compreendes nada. És estúpida que nem uma porta,
nem sei como fizeste a recruta em primeiro lugar. O que se
passa é que só soube que estavas cá quando fizemos a
distribuição dos tanques. O recrutamento Red é altamente
confidencial, apenas do conhecimento de algumas altas patentes,
lá muito no alto, eu não posso abrir mão de ninguém, seja um
engano ou não, por isso, sabes o que vamos fazer? Vou queimar
o teu ficheiro, para sempre e esquecer que tu estas aqui por
engano e tu serás uma boa menina e ficará tudo bem. Caso
contrario, eu mando o teu ficheiro para as minas, livro-me das
responsabilidades e, com um pouco de sorte o teu irmão
encontra-te lá daqui a uns dias. O que é que dizes?
- Eu não quero ir para as minas. – Foi a única coisa que consegui
dizer. – Eu não quero ir para as minas, quero ficar aqui, quero
ficar aqui com Luanda. Eu porto-me bem, eu porto-me sempre
bem, pergunte a Damiem, ele sabe, eu faço o que disser, deixe-
me ficar com Luanda , eu sempre tratei dela, não quero ir para as
minas…
- Está bem, não precisas de ir para as minas, mas vais esquecer o
teu nome.
- Pode chamar-me o que quiser, não me importo.

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- E não quero ouvir falar sobre o teu irmão, vais esquecer que
ele existe. Se eu ouço falar alguma coisa, já sabes, vais logo para
as minas. Eu não vou assumir a responsabilidade de um idiota
qualquer que não conheço de lado nenhum. Entendido?
- Sim senhor comandante, não tenho nenhum irmão, eu nem sei
como é que me chamo, só não quero ir para as minas. Não quero
morrer…
- Linda menina, se todos fossem como tu não tinha que mandar
ninguém para lá. Acho que nos vamos dar muito bem. Só por
isso podes pedir o que quiseres.
- O que quiser?
- Sim. Chocolate. Gostas de chocolate?
- Eu não quero chocolate, eu quero Luanda.
O comandante ficou inquieto.
- Porque é que não posso ficar com Luanda? Juro que cuido bem
dela, não vai dar trabalho nenhum.
- Posso ver isso, mas não sei se a esta hora será possível, sabes,
eles trabalham bem, lá na reciclagem.
- O que quer dizer com isso?
- Vou ver, prometo. Se não conseguir, chocolates está bom?
- Eu quero Luanda, ela é muito pequenina e está sozinha.
Sozinha, compreende? Ela não gosta de estar sozinha, tem medo
do escuro. Eu porto-me bem…
- Vá não preciso mais de ti, podes ir, retirar.

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E eu retirei sem questionar nada, confusa, a tentar perceber
porque é que queriam que eu esquecesse o meu nome, a desejar
chocolate e a pensar se Luanda estava bem e o que era a
reciclagem.

Estávamos todos a dormir. No silencio só se ouvia os


bombardeamentos lá muito ao longe e o chão já não tremia
tanto, ou então era eu que já não o sentia.
Nunca dormia completamente, estava sempre em alerta,
qualquer coisa de anormal e ficaria desperta de imediato,
condicionado pelos despertares repentinos da recruta. Não fui só
eu que se apercebeu da entrada de estranhos na camarata,
mesmo com as luzes todas desligadas e na escuridão total, sabia
que estava ali alguém. Sentei-me de imediato e ao mesmo tempo
o foco de uma lanterna foi dirigido a mim.
Encadeada, não consegui ver nada apenas ouvi uma voz forte e
rude e um banque seco, como alguma coisa a ser atirada.
- Com os comprimentos do Senhor Comandante!
Não me atrevi a levantar, esperei que o intruso saísse e só então
liguei a minha lanterna e procurei o que tinham deixado.
A cama de Luanda estava coberta por um saco preto, a medo
levantei-me e aproximei-me dele. Não sabia o que tinha lá
dentro e não queria saber. Antes de o abrir as lágrimas já me
escorriam pelo rosto. Mellie apareceu ao meu lado e tentou
impedir-me, mas eu tinha que ver.

61
Já não era Luanda, era qualquer coisa que não podia ser ela.
Como descrever o ser rosto perfeito e tão limpo transformado
em algo de grotesco e impossível de ser descrito? Minha querida
Luanda, como é que Deus podia permitir uma coisa daquelas…e
ainda estava viva, olhou-me com aqueles olhos suplicantes,
escuros como a minha alma, raiados de sangue e tentou falar,
mas apenas conseguiu um som de gorgolejar e da sua boca saiu
uma golfada de sangue.
Não consegui fazer nada, fiquei ali a olhar par o seu rosto
inchado em estado de choque enquanto ela asfixiava com o seu
próprio sangue, vindo não sei de onde.
Eu que limpei os fluidos da Dona Lurdes quando o Veloso
nasceu, não fui capaz de lhe tocar. Transformei-me numa estatua
de pedra fria como gelo sem ter nada para sentir excepto um
estranho vazio que se transformou num gosto amargo na boca.
Foi Mellie que agiu. Tirou-a de dentro do saco, deitou-a de lado
e ajudou-a a cuspir aquela porcaria toda, a boca dela era um
buraco negro sem fundo. Tinham-lhe arrancado os dentes todos,
no seu lugar ficou grotescas crateras de carne aberta até ao osso
da mandíbula.
Os lindos dentes brancos dela, tão lindos e perfeitos…
Foi Mellie que também, no dia seguinte embrulhou-a num
cobertor e carregou-a até á enfermaria, a arder em febre e
inanimada. Estavam ali apenas quatro enfermeiras e nenhum
médico e todas as camas e corredores e até o chão estavam

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cheios de homens em agonia, alguns já mortos, que tinham sido
transferidos do hospital de campanha da frente de batalha. Os
hospitais estavam a abarrotar, não havia espaço ou tempo para
Luanda.
- Lamento muito. – Disse o enfermeiro que nos atendeu. – Não
temos vagas.
- Um canto qualquer serve. – Mellie suplicou.
- Lamento, ordens do Comandante.
- Qualquer coisa para as dores e para a febre.
- Está a ser racionado para as amputações.
Mellie voltou com ela e contou-me como foi e pela primeira vez
pensei” Vou mata-los a todos”
Luanda continuou inconsciente, a febre aumentou e entrou em
convulsões. Mellie mergulhou-a em agua fria, melhorou mas por
pouco tempo.
Soava o toque da formatura e tivemos que a abandonar na
camarata sozinha e desejei que estivesse morta quando voltasse.
Já não era a minha Luanda, do que recordava não ficou nada,
ficou o espectro sinistro de um cadáver em decomposições de
uma magreza estrema de cabeça rapada, cheia de escoriações e
feridas abertas. Passei a mão pela minha cabeça lisa, os galos
salientes, as pequenas cicatrizes de muitas quedas e pancadas.
Também eu podia estar morta, a morte era preferível aquilo
tudo. No entanto…continuava a não querer ir para as minas.

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10º CAPITULO
CHEFE DE COMBATE

Roubaram o meu nome, a minha própria identidade. Deram-me


o nome de Atila, o nome de um rei qualquer do passado
histórico da terra. Atila, rei dos Hunos, o flagelo de Deus. O
Comandante tem um sentido de humor tão grande como Deus.
Deram-me um tanque, uma arma, uma Mac 1500, de alta
precisão, muito melhor do que as semi automáticas e um colar
de balas e com ela o lugar de chefia do meu agrupamento.
Continuava a mesma, nada mudou, tirando meia dúzia de pares
de olhos á espera das minhas ordens para destroçar a formatura.
- Destroçar ao primeiro tempo…marche!! – Foi fácil
Fui ver Luanda. Os restantes foram para a fila do rancho para a
primeira refeição do dia. Um pouco de pão com manteiga e uma
caneca de café com leite á mistura de inibidores de crescimento,
testosterona e outras drogas das quais não conhecíamos o efeito.
Uma certeza: estávamos todos a alargar, braços, pernas, tronco,
pescoço. Estávamos a mudar e não controlávamos esta nova
força adquirida á base de químicos.
Entrei na camarata, as botas a suar no pavimento de madeira do
pavilhão pré fabricado. Á cabeceira da cama de Luanda estava
Damiem com um injector na mão.
- Ois Serina. Atila. – Corrigiu de imediato. – Não tenhas medo,
aproxima-te.

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Avancei á cautela, espreitei por cima do ombro dele, Luanda
parecia repousada. Repousada demais.
- Está morta? – Perguntei friamente.
- Não, está apenas a dormir. – Respondeu e passou-me o
injectou para as mãos. – Esconde, é penicilina. – Deu-me outra
ampola.- Morfina. Foi o máximo que consegui arranjar.
Arranquei aqueles tesouros preciosos das mãos dele como se
fosse a minha derradeira salvação. E era, morfina e penicilina
valiam o meu peso em ouro.
- Mais alguma coisa?
- Vai haver uma reunião de chefes de combate, os outros chefes
já foram convocados.
- Eu tenho que ir?
- Sim, agora és chefe de combate, vais ter a teu cargo cinco
equipas de dois elementos e tens que trabalhar com os outros
chefes.
- E reporto-me a quem?
- Ao teu comandante Red, que sou eu. Não é nada complicado,
mas entre vocês, podem estruturar o vosso próprio comando.
- Como?
- Vem, eu explico…

Na mitologia greco-romana Lua é o nome latino de Serene, filha


de Hipérion e Teia, e irmã do Sol. Lembro-me das historias que
meu pai me contava sobre Serena, as suas aventuras amorosas,

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foi amante de Pã e de Endimão, com quem teve 50 filhas. Eu era
Serena e tive dez filhos. Até o lugar era propicio á magia de
Serena, o Mar da Serenidade, junto aos montes Haemus, de onde
era extraída a pedra de ouro.
De um lado as torres do desfiladeiro que se abria entre duas
paredes que projectavam sombras fantasmagóricas sobre o
campo e as chaminés das refinarias, no outro, estendendo-se por
doze quilómetros quadrados, a atmosfera Quatro, em tempos
uma cidade de Luz agora uma cidade fantasmas em ruínas,
vitimas de constantes bombardeamentos, e, para lá da cidade, a
frente de batalha entre o exercito da revolução e a Aliança.
O chão tremia mas já não o sentia, já não ouvia o som das
bombas. Agora ele tremia sob o peso das lagartas dos carraças e
o único estrondo que ouvia era o do metal a romper o chão.
Atrás de mim tinha dez filhos.
Mellie e o irmão Josef, doze e onze anos, judeus de ascendência
alemã; Lang Li, dez anos; budista; Luanda, dez anos, católica
romana; Pirelli, treze anos católico protestante; Muamed Abu,
dose anos, muçulmano; Sara onze anos, muçulmana, Tomás,
treze anos, católico; Valéria e o irmão João, nove e treze anos,
católicos .
Tento lembrar-me deles, dos seus rostos, agarro-me a isso como
se isso fosse o suficiente para os manter vivos. Mellie de olhos
azuis tão limpos e cheios de brilho, sempre deslumbrante
mesmo enfiada naqueles camuflados cinzentos e brancos. O

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cabelo dela depois de começar a nascer revelou-se louro e era a
única vaidade que tinha, a ponto de se preocupar em o manter
sempre limpo.
Josef, sempre atento de olhos ariscos, nada lhe escapava, tinha
os olhos da irmã mas o cabelo revelara-se mais escuro e tentava
mante-lo sempre rapado, dizia que o incomodava e Mellie
satisfazia-lhe a vontade.
Lang Li, o cara de bebé, de rosto macilento e olhos rasgados
sempre a sorrir, gostava de jogar futebol e inventava esquemas
para fazer as suas bolas.
Luanda, minha doce Luanda, recordo-a de tranças com o rosto
rasgado por um sorriso do tamanho do seu coração a exibir uma
fileira de dentes brancos de marfim. Mas ela já não tinha as suas
tranças, o que restava delas escondia no pulso entre a pulseira
electrónica e a pele e o seu sorriso era sempre um esgar de dor
numa boca negra sem dentes e o rosto tornou-se uma caveira
onde os olhos quase não se viam escondidos nas suas orbitas.
Pirelli, sempre contrariado, sempre do contra, nunca estava
satisfeito com nada. De rosto corado, inchado de arrogância e
orgulho, manobrava o carraça como ninguém, conseguia subir
até dez lances de escadas se tivesse largura para passar, fazia
lop’s só para se exibir, as lagartas transformaram-se em
membros que se prolongavam do seu corpo e raras eram as
vezes que abandonava o seu interior.

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Muamed Abu, hesitante, de olhar assustado num rosto em forma
de coração, era muito trapalhão, nunca conseguia arrancar com o
carraça á primeira e trocava a direita com a esquerda, não sabia
ler o quadrante e o gps e perdia-se facilmente sozinho. Pirelli
tornou-se no seu braço direito e os dois faziam uma equipa
bizarra: o trapalhão e o meticuloso. Funcionava.
Sara, muito terna e bondosa a da voz harmoniosa. Ia ser cantora,
mas já era. Sara cantava e nós parávamos para ouvir, nunca se
cansava de cantar e nós nunca nos cansamos de a ouvir.
Tomás, o bravo e destemido. Nunca tinha medo de nada, era o
primeiro em tudo e incentivava os outros a seguirem-no. Andava
sempre em confronto com Pirelli, por vezes pegavam-se á
pancada e lá vinham a chamar-me para os separar. Tomás queria
ser pintor e gostava de fazer grafite, tinha as paredes de Quatro
só para ele e matéria prima não lhe faltava depois de, logo nas
primeiras patrulhas, encontrar um armazém de tintas. Mas nunca
encontrou pincéis e as suas mãos tornaram-se no seu
instrumento de arte e era um mestre por excelência. Andava
sempre sujo de tinta, com o tempo tornou-se numa segunda pele.
Valéria, a brincalhona. Como Mellie também deixou o cabelo
crescer e ambas passavam muito tempo a tratar dele. Faziam
penteados uma á outra, modificavam os camuflados e
conseguiram fazer deles algo diferente que fazia bem á vista.
Valéria queria ser bela como Mellie e imitava-a em tudo, por

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sua vez, Mellie deleitava-se com tanta atenção e retribuía-a o
melhor que podia.
João, o meu braço direito, o segundo no comando. Partilhava
comigo a responsabilidade de tudo o que acontecia ao grupo.
Nunca falava sobre ele, sobre o que lhe tinha acontecido, como
tinha ido ali parar. Nunca o ouvi chorar e invejava a sua força e
dedicação. Ele disse que via coisas, quis saber quais e ele
respondeu apenas: “ Pessoas mortas.”
Um dia em acordei a comecei também a ver pessoas mortas,
mortos que andavam, falavam, viviam de sonhos e esperanças.
A nossa infância tinha acabado, já não éramos crianças, éramos
soldados.

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11º CAPITULO
UM MOMENTO DE FELICIDADE

Quatro estava dividida em territórios, quadrantes. Cada


quadrante tinha estabelecido um comando de operações com a
missão de patrulhar todo o território a fim de encontrar o
inimigo. O inimigo era qualquer coisa que se mexe-se e que não
era suposto estar ali. Como eu era o comandante das operações
de vigilância, nunca saia da base, fazia os mapas diários e
distribuía-os aos grupos de dois que faziam as rondas. Luanda e
João raramente saiam, ficando comigo na base, o que logo de
inicio originou conflitos com os outros.
O nosso quadrante estava inserido numa das zonas mais ricas de
Quatro e escolhemos como base o que restava de um hotel de
cinco estrelas que ficava mesmo ao lado de uma sala de
espectáculos.
O hotel semi destruído ainda tinha vestígios da gloria do
passado e quase tudo funcionava. Ocupamos os melhores
quartos, suites presidenciais com colchas e reposteiros de seda
com casas de banho privativas com agua corrente. Mas não
havia electricidade, por isso não havia agua quente ou ar
condicionado e fazíamos fogueiras no salão que era o
restaurante e usávamos a mobília como combustível para nos
aquecer e cozinhar a comida que nos mandavam do quartel.
Comíamos arroz com manteiga em pratos de cerâmica fina com

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talheres de prata; bebíamos leite em copos de cristal e comíamos
pão com caviar que encontramos ainda na despensa do hotel.
Caixas e caixas de caviar deixadas para traz por alguém que
partiu do principio que não tinha qualquer valor.
Nos outros quadrantes, os seus chefes respectivos tinham optado
também pelos hotéis, aprendi com eles a tirar o melhor partido
dos restos abandonados .
Daniel ocupava o território á minha frente, era o único que não
estava num hotel mas num quartel de bombeiros sapadores.
Já estava no activo á algum tempo quando finalmente o fui
visitar, um pouco a medo, pois nunca me tinha afastado muito
da minha base. Levei Luanda e deixei o João no comando.

Escolhi um dia em que os bombardeamentos estavam calados e


reinava uma calma inquieta na cidade abandonada. Havia
prédios em desmoronamento eminente, as estradas estavam
cheias de partes de paredes, carros queimados e lixo. Montes de
lixo acumulado pelos residentes mais resistentes que demoraram
a abandonar a cidade. Cheguei a pensar que acabaria por ver
algum cadáver deixado para traz, mas os restos mortais tinham
sido todos colhidos e enterrados algures ou incinerados.
Passei por uma patrulha de Daniel, eles barraram o meu
caminho, abriram a escotilha da torre e saíram acenando.
Reconheci de imediato os gémeos que falavam ao mesmo tempo

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e saí também do meu tanque. Sentada em cima da torre, com os
pés ainda enfiados na entrada cilíndrica.
- Ois! Está tudo bem?
- Tudo o.k. Atila! E contigo, já conheces o teu campo? –
Disseram ao mesmo tempo.
- Mais ao menos,
- Queres ver uma coisa gira?
- O que?
- Segue-nos!
Eles desapareceram quase de imediato, funcionavam em
conjunto numa perfeita sincronização de movimentos e ideias.
Eu fui atrás deles, com Luanda sempre por perto, no carraça
atrás de mim, através de ruas estreitas de casas de dois ou três
pisos com restos de jardins e relvados em tempos idos bem
arranjados deixados ao abandono. Vi flores. Flores teimosas que
ainda conseguiam desabrochar no meio das trevas e recordei os
pequenos vasos que Nick tinha arranjado para animar a janela
do meu quarto. Então, chegamos a uma rua que acabava num
grande arco e por cima do arco, em letras forjadas a ferro estava
escrito “ Jardim Zoológico de Quatro”
O par á minha frente parou abruptamente , saltaram da torre para
as lagartas poisadas na horizontal e sentaram-se aí, cada um no
seu lado respectivo. Sai de dentro da torre, atrás de mim, Luanda
pergunta o que se passava. Metade do que ela dizia não se
percebia, a ausência dos dentes dificultava a prenuncia e mesmo

72
eu ainda estava a aprender a traduzir aqueles conjuntos de
gemidos e grunhidos que ela emitia pela boca.
Não sabia, encolhi os ombros e Lau-Léu pediram silencio
através de um dedo encostado aos lábios serrados.
Fiquei muito quieta, quase imóvel, á espera de qualquer coisa.
Passados alguns segundos eles vieram, primeiro um, depois o
outro. Duas bolas de pelo com a barriga a arrastar o chão, quatro
pernas muito pequeninas num corpo redondo que acabava numa
cabeça de focinho pontiagudo com olhos oblíquos.
- São cachorros! – Luanda exclamou atrás de mim e ouvi-a rir
como á muito tempo não a ouvia, dando grunhidos de pura
felicidade. Virai-me para ela para contemplar aquela felicidade
imensa. Luanda saltava em cima da torre, batia palmas, os olhos
encheram-se de lágrimas de alegria e eu fiquei feliz também por
ela. Quando voltei a olhar, os dois cachorros estavam
acompanhados por uma gigante branco acinzentado de quase um
metro de altura. Não eram cachorros, eram lobos e aquela era a
mãe loba.
A loba aproximou-se hesitante dos carraças da dupla á minha
frente, os dois atiraram-lhe com qualquer coisa que ela apanhou
no ar voltando logo de seguida para o seu refugiu com as duas
bolas de pelo atras.
Lau e Leu voltaram-se para mim satisfeitos.
- Não são lindos?
- Sim, são um milagre.

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E eram um milagre mesmo. Mais tarde soube que Daniel
atropelou o macho sobrevivente e quis enterra-lo no jardim
zoológico. Aí encontraram a loba prenhe e como que a
adoptaram, tornaram-se divindades secretas que adoravam
secretamente, uma prova em que ainda não estava tudo perdido.
Continuei a olhar para o ponto onde a mãe loba e as crias
desapareceram, como se ainda estivessem ali a pensar em tudo,
em nada, a tentar compreender aquele pequeno milagre. Talvez
Deus exista mesmo…só não estamos na mesma sintonia
Eu desejo, eu desejo tanta coisa eu desejo não desejar mais nada,
nunca mais.

O quartel dos bombeiros sapadores de Quatro era um luxo


comparado com o meu hotel. Eu tinha talheres de prata, Daniel
tinha um gerador, deposito de gasóleo cheio e ar condicionado e,
alem de todas estas coisas tinham equipamento de saúde e
equipamento de combate a incêndios.
Não fiquei surpreendida ao saber que o grupo de Daniel tinha
ocupando um quartel de Bombeiros, ele sempre quis ser
Bombeiro, ia- se especializar em matérias perigosas e ia ser
chefe. De uma certa maneira bizarra, o desejo dele tornou-se
realidade.
Os carros de combate a incêndios e ambulâncias estavam um
pouco por todo o lado, espalhados nas imediações do quartel,
em estado de abandono e degradação. O vermelho reluzente de

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uns e o branco de outros deu lugar a uma espessa camada de
ferrugem. Alguns estavam queimados, outros vandalizados, sem
rodas, sem portas, uma carcaça sem esperança de voltar á vida,
outros estavam intactos, como á espera de uma missão que
nunca mais chegava.
A garagem do quartel foi ocupada pelos tanques carraça, torres
de metro e meio de altura ladeadas por lagartas da mesma altura
e coroadas por um canhão de 90mm, pintados de cinzento ás
manchas brancas, que se confundiam com os camuflados que
vestíamos. Confesso que gostava de ver, eram lindos, ali,
alinhados uns aos lados dos outros, uma representação de força,
da nossa força. Dava-me uma sensação de poder inimaginável,
mas era mesmo isso o que os outros pretendiam. Como um pai
que oferece uma arma de brincar a um filho e ele fica delirante e
passa horas e dias a brincar a batalhas, sem ter noção da
realidade. Estávamos todos na fase do irreal, da fantasia do
sonho, sem saber que era um pesadelo. Luanda era a única
agarrada á realidade.
Isto é errado, Serina. Não devíamos estar aqui, não é certo.
Crianças não vão para a guerra, crianças não são soldados.”
Eu não queria saber, só não queria ir para as minas e não
compreendia porque é que simplesmente, Luanda não desistia.
Seria muito fácil, não ter que viver com o coração apertado, com
medo do que ela podia fazer ou dizer. Precisava dela, da sua
sanidade, para manter a minha e a dos outros. Apesar de não

75
saber, sentia que estava a perder-me, já não pensava em mim
como Serina, como alguém que tinha uma vida, já não me
lembrava do rosto do meu pai, tinha dificuldade em recordar a
minha casa e Nick era uma memória muito estranha e começava
a duvidar se ele alguma vez tinha existido. O mundo estava
louco e eu fazia parte desse cenário como todos ou outros e a
imagem dos carraças alinhados na garagem do quartel dos
bombeiros, era tão louca como a Mac agarrada á minha perna, o
que eu considerava absolutamente natural.
Estacionei no lado de fora da garagem enquanto Lau e Leu
faziam manobra para dentro de marcha atrás e, de entre os
tanques, lá apareceu Daniel. Cumprimentou-os , disse qualquer
coisa e logo depois veio ao meu encontro, mãos enfiadas nos
bolsos e um sorriso irónico nos lábios.
- Sempre vieste! – Disse. – Ois Luanda, tudo bem? Ouvi dizer
que estiveste doente. – Daniel olhou para ela sem qualquer
emoção, repulsa pelo que lhe tinham feito, como se não fosse
nada demais, um encolher de ombros e acabou, não havia nada a
fazer. Não queria saber, ninguém queria saber ou se preocupava,
eu não queria ser assim, eu importava-me, com todos, e com ele
também. – Demoras-te.
- Ainda estou a apalpar terreno, não me aventuro muito fora do
meu quadrante.
- Não precisas de ter medo, não acontece nada.
- É por isso que tens os carros todos na base?

76
- Yap! – Confirmou. – Hoje levantei-me sem vontade de
trabalhar. – Riu descontraído. – Planeamos um jogo de futebol
de salão no ginásio, já começou. Queres assistir?
Fomos com ele, atravessamos a garagem até ao pátio interior
onde se erguia ainda os cinco andares da casa escola, e do outro
lado o ginásio, um gigantesco complexo de três bancadas em
toda a volta sem adeptos. Os únicos presentes eram os jogadores
no campo e uma bola verdadeira. Desejei aquela bola, como
faria as delicias de Lang Li, sempre á procura de trapos para
fazer as suas bolas. Luanda pensou o mesmo, deu-me uma
cotovelada e apontou para a bola tristemente.
- És a nossa claque o.k.? Vai ser divertido, termos claque!
Eles jogaram e nós assistimos.
Daniel não tinha raparigas no grupo dele. Mais tarde explicou-
me que de inicio havia. Do grupo inicial, Lau e Leu eram os
únicos que ficaram. Quando lhe perguntei o que tinha
acontecido aos outros a resposta foi clara e rápida.
- Rebentaram.
E mais nada. Simplesmente tinham rebentado e pronto acabou a
explicação e eu fiquem com a duvida. Como é que podem ter
“simplesmente rebentado”? Temos armas…
Nunca coloquei a hipótese que o inimigo também podia ter
armas e melhores do que as nossas e que o inimigo não estava
ali a brincar ás guerras.

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12º CAPITULO
A PRIMEIRA BAIXA

As semanas transformaram-se um meses e perdemos a noção do


tempo. Vivíamos o dia a dia como o primeiro e o ultimo, as
patrulhas tornaram-se um acto automático sem surpresas e eram
mais as vezes que não as fazíamos do que as que fazíamos.
Eu treinava tiro ao alvo a grandes distancias, Mellie e Valéria
inventavam penteados e mundificavam fardas, Lang Li fazia
bolas e jogava sozinho futebol, Tomás pintava as paredes do
hotel com toscas obras de artes que se tornavam cada vês mais
perfeitas, o João falavam com os seus mortos, Sara cantava,
Luanda rezava, Pirelli treinava manobras com o tanque,
Muamed Abu …bem, ele era de pouca utilidade, mas Pirelli não
fazia nada sem ele. Talvez precisasse dele, tal como eu precisava
de Luanda, não sei porque ou para quê.
Entretanto, os filtros da atmosfera começaram a falhar,
lentamente, dia após dia, até ficarmos com o céu coberto por
uma nuvem espessa e cinzenta que muitas vezes descia até ao
chão como um manto de neblina tóxico e com ele chegou o frio.
Os camuflados foram substituídos por macacos térmicos e
recebemos mascaras com filtros de carbono. Lá ao longe, as
gigantescas chaminés das refinarias não paravam de cuspir fumo
e fogo e as cinzas passou a fazer parte dos ingredientes do
nevoeiro.

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Havia cinzas por todo o lado, a cidade mudou de cor, passou a
ser cinzenta, em zonas de maior concentração chegava ao negro.
Na base tínhamos que ter cuidado com a água, temíamos que
fosse contaminada e todos os dias fervíamos grandes
quantidades para consumo. Tomás passou a pintar o interior dos
edifícios e o animo começava a esmorecer, ao ficarmos de
movimentos limitados.
Odiava aquele nevoeiro, as cinzas, o cheiro, esse já nem o
sentia. Outros se juntaram ao meu grupo, enviados de Demien,
os novos vomitam e ficavam doentes. Os muito doentes
Damiem ia busca-los, aos outros, ficavam bem e adaptavam-se.
Não me lembro dos nomes, tento mas não consigo, eram os que
vieram depois, como um grupo á parte sem nome, sem
identidade. Não queria saber, é muito mais fácil pensar em
termos de numero e não queria mais filhos. Não podia ser
responsável por todos.

A folga continuava e parecia que ia durar a vida toda. Era


incrível o que se podia fazer dentro de um Hotel de luxo.
Brincar as escondidas era uma das principais, a seguir, dormir e
comer. Damiem tornou-se generoso com os mantimentos e até
carne nos arranjava. Um dia chegou com Daniel que não voltei a
procurar desde que o fui visitar ao quartel.
Ordens do Senhor Comandante.

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Os grupos iam ser unidos. Daniel foi promovido a comandante
de todos os grupos, eu continuava a ser chefe do meu grupo e
íamos passar para o quartel dos bombeiros, todos. Não sei ao
certo quantos grupos éramos mas o quartel tornou-se demasiado
pequeno para todos e seriam necessárias dez garagens para
guardar todos os tanques. Estes passaram a ficar localizados em
grupos á volta do quartel e o resultado foi que nunca mais
voltaram a ser limpos.
Mudamos do nosso hotel de cinco estrelas com tudo o que
conseguimos levar, incluindo as louças de porcelana e as
talheres de prata que se tornaram numa marca nossa. Nem vale
a pena tentar descrever a confusão inicial, ninguém se entendia,
todos os chefes de grupo queriam mandar e Daniel não
conseguia impor-se ao respeito. Foi preciso Damiem ameaçar
todos com castigos severos para finalmente ouvirem o que
Daniel tinha para dizer.
A estrutura da cadeia de comando era fácil, os chefes
reportavam-se a Daniel, este a Damiem e este por sua vez ao
senhor comandante.

Vinte e quatro de Dezembro de dois mil e noventa. Véspera de


Natal, véspera do meu aniversário. Fazia catorze anos.
As patrulhas tornaram-se organizadas e não havia como fugir
delas. Naquele dia, uma não voltou a horas, era o meu grupo de
reconhecimento. Outro grupo já esperava ao longo da estrada

80
para a rendição, os tanques, porque os condutores jogavam á
bola numa grande algazarra um pouco afastados. Reconheci a
voz de Daniel entre eles, ao longe não passavam de sombras
entre o denso nevoeiro.
- Daniel! – Chamei. – Mellie ainda não chegou!
- Chama pelo rádio!
- Ninguém atende!
- E depois?
- Daniel! – Berrei furiosa. – Mellie nunca se atrasa e não
responde, alguma coisa aconteceu, manda o grupo de Jab seguir!
- Mas se ela ainda não chegou, para que vou ter dois grupos em
campo? E não vez que estou a jogar á bola?
Fiquei arreliada, também eu estava na brincadeira. Um jogo
novo que Lau e Leu nos ensinaram: alguém dizia um numero , o
parceiro tinha que o dobrar de imediato, outro multiplicava-o,
outro dividia-o pelo primeiro numero e outro voltava a dobra-lo
e o jogo continuava assim, interminável. Lau e Leu conseguiam
estar nisso horas a fio, eu esgotava ao fim de alguns minutos. Os
números tornavam-se grandes demais para os conseguir
acompanhar.
Daniel abandonou o jogo, mandou o segundo grupo ir ver o que
se passava e veio ao meu encontro.
- Feliz aniversário Atila. – Sorriu antes de me abraçar. – Não
stresses hoje. É o teu dia.
- Ainda não fiz anos, é só amanhã. – Repreendi.

81
- Eu vou com Jab. Aguenta por aqui os cavalos, assim que
souber de alguma coisa entro logo em contacto.
Logo a garagem foi iluminada pelos faróis frontais e laterais dos
Carraça e, num movimento sincronizado, as lagartas passaram
do posição vertical para a horizontal para rasgarem o chão num
silencio surdo, primeiro lentas, depois mais rápidas enquanto se
faziam á estrada de cimento marcado e gasto , até
desaparecerem entre as ruas labirínticas de Quatro.
Ainda fiquei a olhar algum tempo, á espera de os ver voltar, mas
nada.
- Atila, vai dormir um pouco. – Luanda disse. – Assim que Mel
chegar eu acordo-te.
Segui o conselho dela. Recolhi nas camaratas com a merda do
Feliz aniversário a ecoar-me ainda nos ouvidos. Não foi Luanda
que me acordou, foi Daniel.
- Já voltou? – Perguntei logo totalmente desperta.
- Vem depressa.
- Que foi?
- Que foi?
- Mel esta mal.
Levantei-me num salto e calcei logo as botas.
- Foi atacada?
- Desmaiou enquanto conduzia e foi contra ma parede a oitenta
há hora. O Carraça começou a trepar e virou-se ao contrario, não
conseguimos volta-lo outra vez.

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- Parque é que não falaram no radio?
- Tentaram, mas ninguém respondeu.
- Quem está no radio?
- Lau e Leu.
Soltei uma exclamação de impaciência. Aqueles dois não
podiam estar no radio, viviam num mundo demasiado á parte
para lhes poder dar um atestado de incompetência.
- Jacob está lá agora. Mas a culpa não foi deles, é os rádios,
estão nas ultimas.

Lá fora, toda a divisão dos infantários esperava inquieta. Alguns


tinham estado a dormir e parecia que continuavam a dormir. Lau
e Leu surgiram do nada a correr com um rolo de cabo de aço.
Nem me dei ao trabalho de perguntar onde o tinham arranjado.
Jacob apareceu logo de seguida com Veleria muito chorona.
Lau e Leu entregaram o cabo a Jacob e explicaram como o
deviam utilizar, a uma só voz.
- Prendem uma ponta do cabo á frente do tanque de Mellie, com
o cabo a passar por cima e a outra no teu e depois é só fazer
marcha atrás.
- Acho que compreendi. – Jacob não tinha tanta certeza e Daniel
mandou Lau e Leu irem com ele para virar o tanque. Depois
lembrou-se que não havia ninguém a vigiar a cidade e enviou
dois grupos de reconhecimento, ambos eram homens meus:
Pirelli, Lang Li e Muamed com Tomás. Fiquei furiosa.

83
Valeria já estava com Jacob. Sentia que Daniel me roubava os
meus homens, já não tinha controle neles, era ele quem ditava
sempre as ordens e isso incomodava-me mais do que Mellie
estar trancada dentro do tanque.
- Eu vou também! – Decidi de repente
Daniel estava para protestar mas nem lhe dei oportunidade de o
fazer. Voltei-lhe as costas e segui em frente.

O tanque de Mellie ficou no mesmo sitio, as lagartas partidas,


inutilizado, mais uma carcaça em ruínas a juntar-se aos outros
dejectos.
Voltamos para o quartel em coluna de dois a dois. Josef e
Valéria sentados em cima do tanque de Daniel carregavam com
o corpo abalado de Mellie.
Uma pequena multidão de pequenos corpos receberam-nos com
lamentações. Braços estendidos a tentarem tocar-lhe e a
pergunta solta no ar : “ Está viva?”
Pelo menos estava inteira e, fora algumas escoriações, parecia
estar bem.
Levamo-la para a camarata e consegui afastar todos. Fiquei só
eu Josef e Daniel e Mellie, deitada a chorar convulsivamente e
quanto mais tentávamos saber o que lhe doía mais ela chorava.
Foi Josef quem revelou a verdade, ele já sabia e escondia o
segredo da irmã.
- Está grávida!

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Fiquei chocado, não mais do que Daniel. Os lábios dele
apertaram-se num fio cruel sob uma vontade assassina. Acredito
que ele desejou que Mellie estivesse morta, que tivesse ficada
esmagado sobre o tanque.
As palavras faltaram-me, nem consegui pensar direito, como é
que podia estar gravida? Éramos miúdos, tomava-mos inibidores
de crescimento, podíamos chegar aos vinte anos ali sem passar
do metro e meio de altura.
Éramos miúdos, mas estávamos a crescer e Mellie era
excepcionalmente bonita, podiam ter abusado dela. Sim,
abusado, porque não acreditava que o tivesse feito de livre
vontade.
- Mellie! – Clamei. – Querida Mellie, que fizeram contigo, diz-
me quem foi e eu juro...
- Para! Cala-te Atila, estou farta das tuas obras dramáticas!
Sempre armada em mártir, a sacrificada! Para de ter pena de ti
própria, pensas que foste a única que perdeu tudo? Tu não
perdeste nada, até estas aqui por quiseste e adoras isto, cada
segundo...
- Mellie! – Fiquei a olhar para ela aterrorizada. – Lamento..
- Vai buscar Damiem e ele que traga um médico!
E eu fui.
Na garagem, o João esperava por mim junto ao meu tanque. Ele
falava pouco e, quando falava, não gostava do que ouvia.
- Eu vi Mellie.

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- Mellie esta na camarata.
Ele ignorou a minha repulsa e continuou.
- Ela disse-me que deves declinar junto dos quais queres descer.
Passei por ele, como quem passa por um fantasma cheia de raiva
mal contida e ainda consegui gritar:
- Mellie não está morta!
O aborto era algo que ali poucos tinham ouvido falar. Usávamos
a palavra em tons de insulto mas não sabia-os realmente o que
era, e as suas consequências. Não saibamos que a interrupção
voluntária de uma gravides sem meios e assistência era uma
condenação á morte.
Mellie morreu e o João sabia isso. Ele via pessoas mortas e
também quem estava para morrer. Não voltei a duvidar da sua
palavra.

86
13º CAPITULO
A CAPACIDADE DE AMAR

Damiem já estava á minha espera no campo. Mal saí do interior


do tanque fui bombardeada por uma salva de perguntas:
- O que é que aconteceu? Como pode ter acontecido? Então mel
não viu a parede? O que lhe deu na cabeça? Onde é que ela esta?
Jacob disse que vinha para a enfermaria? Onde é que ela esta?
- Na camarata. – Respondi saltando para o chão. – Perdemos o
tanque.
- Quero lá saber do tanque. Onde está Mel?!!
Observei melhor, a Damiem, sob aquele nevoeiro,, o seu rosto
transfigurou-se numa mascara de dor intensa, tão real como a
minha ou de outro qualquer, e, naquele instante não estava
preocupado em a esconder.
Via-o tal como ele era. Uma criança fraca, aterrorizada tal como
nós, que tentavam apenas sobreviver. Mellie passava muito
tempo com ele, era normal que se preocupasse, mas aquele
ponto?
- Ela desmaiou. – Respondi rápida. – Tem um problema.
- Está doente? Eu vou buscar antibióticos!
- Damiem! – Chamei em tom de alerta.
- Não morreu pois não? – O pânico agora era evidente e eu
continuava a não compreender.

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- Ninguém morre por desmaiar. – Exclamei irritada. Como é que
ia dizer aquilo? O melhor era de chapa na cara como Josef fez
comigo. – Está gravida.
Imaginei uma explosão de fúria repentina, mas nada.
Acho que não ficaria tão chocado se lhe tivesse anunciado a
morte dela. Damiem ficou branco de repente e podia jurar que
quem ia desmaiar era ele.
Fui tão estúpida, devia ter visto logo de inicio, era tão obvio,
evidente. Os encontros ás escondidas, os segredos nos cantos, os
olhares comprometidos e a prontidão com que Damiem se
oferecia para resolver qualquer assunto relacionado com o
quartel desde que fosse Mellie a pedir.
Damiem, sempre Damiem. Damiem para cá, Damiem para lá!
Mellie adorava-o! Era obvio que era fudida por ele.
Tinha a faca presa ao cinto, senti o toque quente da madeira do
punho seguida pelo frio da lamina com um crescente nojo.
- Estava enganada Damiem, és pior do que eles.
Continuou mudo, preso na sua própria culpa e vergonha. Deu-
me as costas e disse sem se voltar.
- Tiveste escolha sabias? Pudeste escolher entre a segurança de
um lar e o inferno e escolhes-te o inferno. Algures tens um
irmão e um tio preocupados, á tua procura, furioso com o
sistema e com poderes para se vingar de que entender. Eu não
tive escolha, o recrutamento era obrigatório, a não comparência
seria considerado como um acto de traição ao estado. Fui

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destacado para a Cinco, meu pai para a Dois. Minha mãe e
minha irmã ficaram na retaguarda, nas fabricas de armamento. –
Voltou-se de repente. Estava a chorar. – Um dia recebi uma
mensagem. Um homem bomba fez-se explodir dentro da fabrica
com todos lá dentro. “ A vingança de Deus” Foi a justificação da
resistência. Eram mulheres e crianças Atila, que deus é esse que
reclama o sangue de inocentes?
- Deus que se foda, não foi ele quem andou a foder Mellie , foste
tu!
- Ainda não percebes-te pois não? Pobre criança! – Damiem
soltou uma gargalhada estridente que mais parecia um grito
histérico. – Olha para ti! O que pensas que és? Não és nada, não
tens nada, és aquilo que quisermos que sejas. Estás tão sega no
teu orgulho e altruísmo! Só tu é que sofres, só tu é que perdes-te
tudo, só tu és a miserável. Contudo, adoras o que fazes, adoras o
poder de mandar, adoras subjugar e se tiveres que matar, farás
com prazer. És um monstro Atila, e que Deus me perdoe por te
ter ajudado a criar.
- Há! Agora a culpa é minha?
- Não deturpes o que eu digo, sabes muito bem a que estou a
referir-me! Estou a falar da capacidade de amar, amar pura e
simplesmente. Podem roubar-te tudo Atila, mas isso não, nunca.
Foi o que aconteceu contigo, tu és ódio, ódio puro e cristalino.
Eu ainda consigo amar e isso não é nenhum crime.

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Um judeu qualquer roubou-me a minha família e, em troca,
Deus deu-me Mellie e ela roubou-me todo o ódio e raiva que
carregava no peito. E sabes uma coisa? Sinto-me bem, livre e
sem qualquer duvidas sobre o meu lugar aqui ou em qualquer
lugar.
Deus outra vez. Estou farta de Deus, que Deus fosse para o
inferno e com ele Damiem e Mellie.
Voltei para o interior do tanque, sega de raiva, fúria, ódio. Ódio
puro e simples, ódio.
Amor!
O que raio era isso?
Onde estava esse maldito amor de que todos falavam?
Amor não mata a fome.
Que importa o amor?
Que importa a felicidade?
Que importa a razão?
Que importa a virtude?
Que importa a justiça?
Que importa a piedade?
Que importa clamar aos céus?
Nada destas coisas ia salvar Mellie. Era um Aborto e tinha que
ser rápido.

90
Tentei compreender, juro que tentei, mas não consegui, como se
uma torrente de lama destruísse tudo á sua passagem deixando
uma paisagem de caos sem sentido.
Lembrei-me de um dia de promessas de salvação que ainda
esperava para serem cumpridas, de outros dias de felicidade, já
quase esquecidos, quando Quatro era uma cidade prospera e eu
tinha alguém a quem chamar de pai.
Para mim, esses dias não tinham volta. Aquela era a minha vida
e a vida dos outros e, se queríamos sobreviver, tínhamos que
lutar todos os dias por isso. No entanto, no meu intimo, eu sabia
que Damiem tinha razão, Mellie tinha razão, se eu estou aqui,
foi porque todas as decisões que eu tomei me levaram a isso. As
minhas decisões, a minha culpa e de mais ninguém. Eu pude
escolher o meu caminho e, sega pelo ódio, depositava a minha
ira sobre Nick e sobre Vito Polo. Magicava meios de vingança,
fazia planos atras de planos. Eu queria sobreviver sim, não por
mim, não por Luanda, mas para me vingar e adorava o sabor de
cada silaba da palavra: vendeta.
Não tinha nada contra a Coligação, contra a Aliança, contra o
estado novo comunista de Estebam, nem sequer sabia o que
realmente eles eram ou o que queriam ou o que estávamos ali a
fazer. Tinha tanto sentido para mim como Mellie ter
engravidado. Via as coisas de uma forma muito simples, aquele
era o meu campo, o meu território e qualquer invasão era uma
ameaça.

91
Estava a ser seguida. Damiem possivelmente. Bem colado a
mim o tempo todo. Não pensei mais nele assim que cheguei ao
acampamento, afundei-me na garagem e desliguei-me de Mellie.
Era um problema de Demien, tinha outros assuntos mais
importantes para resolver, pendentes, á espera de serem
resolvidos, um dia era o sono em dia.

Acordei com Daniel ao meu lado a dormir profundamente, um


braço sobre a minha cintura, o rosto afundado no meu peito, de
pernas encolhidas.
Fiquei imóvel, acusada pelas palavras de Damiem ainda a
martelarem na minha cabeça, agora mais claras e então
compreendi. Ali o monstro era eu. Alem de escolher por mim,
escolhi por todos. No quartel o mundo girava á minha volta e eu
adorava cada segundo. Algures esqueci a razão do ter optado por
ficar. Não era Damiem, era eu. Eu transformava-me no que o Sr.
Comandante estava á espera, uma arma fria e calculista sem
alma. E dizia que era pelo próprio bem deles, as mesmas
palavras de Damiem quando nos espancava, que era para o
nosso próprio bem. Perdi-me de mim própria, esqueci quem era,
esqueci o meu nome, meus sonhos...não tinha nada, era nada, tal
como os outros...perdi a esperança. Minha alma estava morta e
no seu lugar ficou um enorme buraco vazio.
Com cuidado, para não acordar Daniel levantei-me.

92
Estava frio, muito frio. Os níveis de temperatura atmosférica
estava outra vez doido. Lá fora o nevoeiro dispersava um pouco,
graças ao fim dos bombardeamentos e reinava uma calma
inquietante. Estava tudo quieto demais.
Percorri os corredores vazios e desci as escadas que iam dar ao
hol de entrada. Em frente ficava a garagem que estava cheia de
tanques. Aquela falta de movimento não era normal.
Encontrei-os do lado de fora, em pequenos grupos, entre
fogueiras improvisadas a esfregarem as mãos numa tentativa de
se aquecerem. Mas não era o corpo que queria ser aquecido, era
a alma.
João veio ao meu encontro.
- Eu vi Mellie. Ela disse que agora já não pode ajudar-te, estás
por tua conta.
- Como?
- Demien levou-a não vai voltar.
Lá vinham as lagrimas outra vez não queria chorar...
- Não podes chorar agora Atila. Se caíres, caímos todos contigo,
tens que ser forte por nós todos.
Forte? Forte como? Estava tão debilitada quanto eles, não era
mais nem menos, foi isso que Mellie tentou dizer-me.
Juntei-me a eles. Meia centena de rostos esmorecidos voltaram-
se para mim. Olhos tristes de tristes sem esperança, olhos baços
sem brilho, olhos mortos...

93
- Demien levou-a. - Josef começou a explicar, vindo de traz de
mim. – O doc. fez o melhor que pode mas acabou se esvaziar em
sangue.
- Mas ela só estava gravida! Como é que...
- Às vezes acontece. Foi o que o doc. nos disse. A mana era
muito nova e não aguentou.
Não sei como aconteceu, de repente, comecei a falar. Uma
história antiga, lembro-me de a ouvir primeiro da boca de meu
pai e mais tarde da Dona Lurdes, numa altura em que ainda
sentia saudades de meu pai.
- O reino do Verão, já ouviram falar sobre ele?
Os que estavam próximos abanaram as cabeças, os outros
aproximaram-se mais para ouvirem melhor.
- No reino do Verão todos os meninos são principies e todas as
meninas princesas, filhas e filhos da rainha. No reino do verão, o
céu é azul, azul como os olhos de Mellie, porque são os olhos
dela, e existe um Sol, um sol verdadeiro, como o cabelo dela.
Lembram-se do cabelo dela? Dourado e limpo. Que quando de
põe o céu é flamejado por mil chamas de todas as cores. No
reino do Verão, não faz frio, é quente, sem ser em demasia, com
o toque suave das brisas das montanhas. No reino do Verão o
chocolate nasce das arvores e só temos que ficar de bicos de pé
para os apanhar. E há muitos Lobos, mansos como cordeiros que
nos vêm comer á mão e que nos defendem de qualquer mal. Ali,
nada nos pode afectar, não há tanques, bombardeamentos, o

94
chão não treme. Assim que lá chegamos, a Rainha manda-nos
chamar e lá esta a nossa mãe e os nossos irmãos, e todos aqueles
que julgamos perdidos. E nunca mais precisamos de pedir para
comer, pois podemos comer tudo o que quisermos, sem pedir.
Porque a Rainha do Verão conhece as nossas necessidades, sabe
o que precisamos e não nos deixa passar sem nada. Mellie está
lá, a esta hora já esta com a rainha e com a mãe e o pai. Não
vamos ficar triste por ela, temos que nos manter unidos, e o
nosso dia vai acabar por chegar.
- Vamos todos para lá?
- Sim, todos. È a minha promessa, se conseguirmos manter-nos
unidos, essa será a nossa recompensa. Nunca mais teremos frio,
terão uma casa com janelas voltadas para as montanhas de um
lado e para o mar do outro, terão uma cama com colchão de
penas e passarinhos virão cantar logo de manhã á nossa janela
para nos despertar para um novo dia, terão um quintal com
baloiços e escorregas e relvado para jogarem á bola e lindos
jardins cheios de flores com mil cheiros deliciosos para
apreciarmos.
- E não há lá Red?
- Não. Os Red. não podem entrar lá.
- Porque, o que é que os impede?
- Os Lobos. Eles detectam Red. á distancia e quando isso
acontece transformam-se em terríveis monstros e devoram todos
os Red. que tentarem entrar. Nunca mais voltaremos a velos.

95
- E os tanques?
- Os Lobos engolem também os tanques.
- É assustador...
- Não querido, não fiques assustado, os Lobos são nossos
amigos, vocês sabem, eles avisam sempre quando esta a chegar
alguém, e ajudam quando estamos perdidos. Sabem sempre
onde estamos e nunca nos abandonaram.
- E o que é que temos que fazer para ir para o reino do Verão?
Foi Luanda que respondeu a esta pergunta, sem hesitações.
- Têm que morrer e voltar a nascer.

96
14º CAPITULO
OS SOLDADOS DA PAZ VÊM AÍ

Continuamos de folga, parecia que ia continuar até ao ano novo


e aproveita-mos ao máximo aqueles dias de calma.
Sonhava-mos um sonho acordados e a culpa era minha, a
história do Reino do Verão pegou e criou raízes fortes sem
meios de desenraizar e com a história as promessas, a esperança
voltou. Agora tinham uma razão para fugir, um mundo novo
muito melhor do que aquele.
Jogava-se á bola, á apanhada entre concursos de tiro ao alvo e,
principalmente, comíamos, dormíamos e drogavam-nos.
Abusávamos dos comprimidos que nos davam e já nem
sentíamos os efeitos secundários.
Podia faltar leite, pão ou manteiga mas os comprimidos azuis
nunca. Era o nosso suporte, a fuga divina da realidade, sob o
efeito das drogas acreditava-mos que era-mos alguma coisa,
sonhava-mos. Sonhos azuis, era o que aquilo era, a razão de
todos passarem a acreditar que existia mesmo um Reino do
Verão, e a razão de eu também acreditar.
Só voltei a ver Demien depois do ano novo. Estava a acabar de
limpar o meu tanque, no parque das viaturas quando ele
apareceu de repente.
Estava diferente, parecia mais velho, abatido, de olhos marcados
por rugas. Tinha olhos verdes, como os meus, engraçado nunca

97
ter reparado nisso. E continuava vivo, vivo por fora, vivo por
dentro. Uma luz intensificara-se e eu pensei que ele era belo.
- Daniel não está, estão no Zoo. – Disse, partindo do principio
que ele queria alguma coisa com Daniel.
- O comandante quer falar contigo. – Disse calmo.
- Por onde tens andado? Cheguei a pensar que tivesses dado um
tiro na cabeça.
- Sou um sobrevivente, como tu. – Respondeu ríspido.
- Eu sei, agora somos iguais...O que é que o comandante quer?
- Não sei de nada, fui apanhado desprevenido.

Durante o caminho para o campo reparei que ele tinha os pulsos


enfaixados. Afinal sempre tentou alguma coisa.
- O que é que te fez mudar de ideias?
- Eu não mudei de ideias. Para mim acabou, não aguento mais.
Engraçado, a decisão de por termo á vida deixou-o mais
animado, radiante até, como se estivesse preste a atingir a
libertação total. Foi a tal luz que eu detectei, a luz que advêm do
fim.
- Pensei que fosses um sobrevivente. – Observei.
- E sou. – Sorriu como quem planeia algo de nada bom. – Tenho
umas ideias...
Não quis saber que ideias eram essas, o que quer que fosse...nem
queria imaginar e fiquei com medo de que ele fosse fazer
alguma coisa que me prejudicasse.

98
- Não te preocupes Atila, não tem nada a ver contigo. É só
que...nunca estive tão lúcido e sinto-me bem.

O comandante estava em reunião com um general qualquer do


Estado Maior das Forças Armadas. Tive que ficar á espera
sozinha, depois de Demien abandonar-me á chegada, talvez a
pensar numa forma mais rápida do que abrir os pulsos para
receber uma viagem só de ida ao reino do Verão para depois ser
devorado pelos lobos gigantes.
Um praça juntou-se a ele, um cão de guarda...
O general saiu, levantei-me e bati continência. Era um homem
velho, de cabelo e barba muito branca, a farda impecável,
cinzenta, cheia de galões e medalhas. Na testa, mesmo por cima
da sobrancelha direita, tinha um enorme buraco coberto por pele
nova, ainda branca, esticada, raquítica. Um tiro de uma Mac,
queimava e furava a carne.
O general devia ser mesmo ruim por ter sobrevivido.
Atrás dele veio o Sr. Comandante, cheio de vigor, a rodar o
chicote nas mãos numa expressão de satisfação solene no rosto.
- Há! Já cá estás! Meu General, deixe-me apresentar-lhe um dos
chefes de grupo dos batedores. Atila tem feito um excelente
trabalho.
- Esperamos que continue assim! – Volveu e retirou-se. Lá fora
um carro já o esperava.
- Entra Atila, temos coisas para tratar.

99
Era a segunda vez que entrava ali e desta vez sentia-me em é de
igualdade.
- Ouvi dizer que perdeste um dos teus homens.
- Mellie, chamava-se Mellie.
- Um trágico acidente. – Disse com emoção falsa. – Tenho a
certeza que não vai voltar a acontecer, não acha?
Não, não achava. Um acidente...
Realmente poucos souberam realmente a causa de morte de
Mellie. A verdade podia ter consequências, foi o que Daniel
disse, por isso fiquei muda.
Pobre Demien. Imaginei-o com ela no fim, a tentar inutilmente a
conter a hemorragia, os restos do filho morto com a porcaria. De
todos, acho que foi ele quem sofreu mais, ele tinha uma
consciência enquanto que nós éramos muito novos ainda para
esquecer o iguismo de infância.
- Tenho más noticias. A sete caiu.
Senti um aperto no coração. Nick ele estava na Sete.
- O capitão Nickolas Polo foi feito prisioneiro. Agora já
ninguém te pode vir buscar.
Por isso ele estava tão aliviado, contente, já não corria o risco de
ser descoberto, já não tinha importância. A única pessoa que o
podia incriminar àquela hora já devia estar morto, ou pior.
- Foi um acordo. O nosso grande líder Estebam concordou com
a rendição da Sete em troca do levantamento do cerco na
Quatro.

100
Afinal íamos ter umas longas ferias...
- Infelizmente o que Estebam diz não se escreve.
- Há! – Não estava a perceber nada. – E afinal, o que quer de
mim?
- Passo a explicar...
O Sr. Comandante ligou o quadrante halográfico por cima da
secretaria. A cidade foi projectada ao pormenor com todo o
movimento no interior.
- Já tinhas visto um destes? – Perguntou divertido.
- Não. – Respondi impressionada estudando o todo atentamente.
Lá estavam as minas, as refinarias, o espaçoporto, os geradores,
toda a rede aérea dos comboios e estações, o ZOO, O
QUARTEL DOS BOMBEIROS... – Posso ter um?
- Fica com este, vais precisar.
Um brinquedo novo, alta tecnologia de informação com raios
espiões e era todo meu e esqueci logo Nick, se estava morto ou
se estava vivo.
- A coligação!- O Comandante continua a falar, mas já não lhe
dou muita atenção. – Aqui á direita, a Aliança á esquerda. Como
sabes, a coligação tá aqui em representação da cruz vermelha,
auxilio humanitário e essas balofas todas.
Não sabia, nunca os vi, apesar de alguns me garantirem que a
cruz vermelha estava em Quatro.
- Até agora, - Continuou. – A única coisa que tem feito é
observar, no entanto... – Ele fez o Zoom do sector 1-2. Tornou-

101
se nítido um movimento frenético de viaturas. – Nos últimos
dias foi detectado um movimento anormal no espaçoporto. O
numero de soldados da paz aumentaram, para o triplo. Por outro
lado a Aliança retrocedeu e esta a começar a levantar o cerco. O
que pensar disto?
- Que a Aliança não esta a retirar esta apenas a aguentar o barco
até á chegada de reforços.
- Atila, a tua inteligência espanta-me. É isso mesmo filha, é isso
mesmo! Infelizmente os nossos generais não acreditam no que
estou a dizer, eles pensam que a coligação só tem a perder se se
envolverem num conflito armado com quem lhes dá de comer.
Sabes, não são os governos que governam, são as empreses, as
grandes empresas. E elas querem cimento barato para vender
caro á Aliança. É tudo um grande negocio...um negocio de
milhões. Eles não acreditam que sejam reforços disfarçados de
cruz vermelha.
- Mas são, não é?
- São. Quero que fiquem atentos e que ataquem caso começam a
movimentar-se em direcção á frente da Aliança.
- Atacar? Não quer antes dizer avisar a frente da infantaria para
averiguar?
- Não. O General tem ordens directas para não interferir nos
movimentos da cruz vermelha.
- Deve ter as suas razões.
- Ele tem as suas ordens.

102
- E onde é que eu entro nisso?
- Tu fazes o que eu mandar, foi esse o nosso acordo lembras-te?
Vais atacar a cruz vermelha, vai tirar esses gajos todos daqui
para fora, para fora do meu território e vais dar um pretexto a
Estebam para proibir a entrada deles de vez em território Lunar.
- Mas, se eles são mesmo a cruz vermelha, não está a dar-lhes
um pretexto para se juntarem á Aliança?
- Claro que não, eles não fariam isso, não iam parar uma mina
de ouro como a nossa.
- Ouro? Pensei que fosse pedra...
- Atila, és tão ingénua...agora vai e faz o que eu disse.
- Mas como vamos atacar se não temos bombas nos tanques?
- Espera no quartel, receberás as tuas bombas e outras coisas que
te serão úteis e, não te esqueças, a cruz vermelha é uma fachada.

103
15º CAPITULO
A FUGA

E nós éramos o que?


Atacar a coligação? O Comandante só podia estar louco, mais
louco do que eu que começava a acreditar no Reino do Verão,
nas minhas próprias mentiras. E porque falou comigo? Devia ter
falado com Daniel, ele é que era o comandante de todas as
operações.
Nós fazíamos patrulhas, nunca entramos em confrontos, nunca
usamos realmente o poder de fogo dos tanques, eram apenas
brinquedos que subiam e desciam escadas.
Daniel ficou tão confuso como eu. Algo não estava certo, até o
tal general tinha entendido que a cruz vermelha não eram
reforços e que a Aliança estava mesmo a retirar. A guerra estava
a chegar ao fim, ia haver um acordo de paz, uma coisa qualquer
que nos ia tirar dali.
- Não podemos lutar. È...olha para nós, o que é que eles pensam
que podemos fazer? Eles têm armas melhores do que as nossas,
tanques pesados, cuspidores de fogo! Não podemos lutar.
- E as consequências? – João estava preocupado.
- O que é que vês? – Perguntei com urgência.
- Nada. – E isso era pior sinal do que se ele visse alguma coisa.

104
- Fugimos! – Lau-Léu sugeriram. – Hoje, agora mesmo!
Largamos os tanques e seguimos para o sector 1-2 onde está a
cruz vermelha e rendemos a eles.
Não era um plano, era mais um acto de desespero, uma ultima
possibilidade de dizer não ás armas, e sem os tanques para nos
protegerem. No entanto, havia o cessar-fogo, a Aliança estava a
retirar, conhecíamos a localização exacta da cruz vermelha, era
agora ou nunca. Todos compreendemos isso.
- Se os combates recomeçarem, não teremos outra oportunidade.
- Votamos. – Daniel decidiu. – Toquem a sirene, que venham
todos.
Todos disseram sim, nem um votou contra.
Não houve festa ou aplausos, mais um sentido de obrigação e
dever elevado. Deixamos tudo para traz, mesmo tudo, fomos nós
e a roupa que trazíamos no corpo, nenhuma arma nos
acompanhou para não haver perigo de alguém a usar.
Afastamo-nos em coluna do quartel para nos afundarmos no
nevoeiros que, esperávamos ia cobrir a nossa fuga.
Nunca tive muita fé naquela ideia, era disparatada e idiota. Um
movimento tão grande como o nosso seria facilmente detectado,
mesmo avançando a pé. Mas tínhamos que tentar, tínhamos que
fazer alguma coisa.

Éramos muitos. Se fossem só meia dúzia, acredito que


conseguissem, as que ficassem para traz podiam encobrir.

105
Daquela maneira era impossível, uma deserção em massa dava
muito nas vistas.
Não andamos mais do que duas horas, passamos ainda o sector
2-3, bastava chegar á fronteira do sector 2-3 para ficarmos ao
alcance da coligação.
Não chegamos lá.
Antes de os avistarmos já os ouvimos. Ninguém se mexeu
enquanto era-mos cercados pelos strikes da infantaria e pelas
suas metralhadoras frontais e rotativas. Por momentos ainda
pensei que fossem atirar, mas nada.
- Larguem as armas! – Alguém gritou.
Quais armas? Fiquei arrependida de não termos trazido as
armas, se íamos morrer, então seria a lutar. Não devíamos ter
deixado as armas, meu Deus, podia ter terminado ali, sem nada
de mais, rápido e sem dor.
Obrigaram-nos a voltar para o acampamento. O comandante
estava lá á nossa espera, cigarro no canto dos lábios, o chicote a
silvar no ar a seco.
Fomos separados, os chefes de grupo dos restantes.
Os outros tiveram ordem de voltar para o quartel acompanhados
pelos soldados de infantaria e nós fomos obrigados a enfrentar a
fúria do Senhor Comandante.
O homem estava louco e já se tornava evidente, a sua paranóia
já não tinha explicação.

106
- Atila, portaste-te muito mal. – Foste uma menina muito mal
comportada. Teu irmão não ia gostar disto, não ia não, um
camarada de primeira. – Aproximou-se de mim, tocou-me no
rosto com o chicote, pensei que me fosse bater e já esperava a
dor da carne rasgada. – Não pensas-te que ias conseguir, pois
não? – Afastou-se em posição. – Este campo é meu e nada
acontece aqui sem que eu saiba. Ou pensas que também não sei
qual foi o acidente da puta judia de Demien?
Queria mata-lo, estava capaz de vender a minha alma ao diabo
só para poder ter essa satisfação.
- O plano mantém-se. Atila, és agora a comandante da divisão e
só te reportas a mim, Damien tratará apenas da logística e mais
nada. Estamos entendidos? Tens agora um exercito Atila, faz
uso dele, é só isso que espero da tua parte. Claro que serão
castigados, vão passar a saber o que acontece sempre que
alguém tenta fugir. Basta um!!
Veio uma camioneta e enfiaram-nos lá dentro. Ninguém disse
nada, nem um som e eu desejei que o João estivesse ali, ele
conseguia ver sempre alguma coisa.

O campo de concentração, o campo dos escravos das minas. De


lá só vinha historias demasiado horríveis para serem contadas.
A carrinha parou junto a uma cratera roteada por um alto arame
farpado. A chaminés fumegavam perto, do meu lado esquerdo,
nunca estive tão perto e ali o cheiro era mais fétido do que na

107
cidade e o fogo voava alto, soltando labaredas azuis que
salpicavam o vazio como fogo de artificio, lá em baixo na
cratera a dez metros de profundidade, linhas de pavilhões
formavam um quadrado e, da parte detrás, havia um muro
escuro comprido, apenas um muro.
No campo de treino também havia um muro assim, sabíamos
muito bem para que servia.
Vários holofotes foram ligados, os projectores incididos sobre o
muro e duas carrinhas fechadas cortaram o quadrado das
instalações para pararem a uma pouca distancia dele. Do seu
interior saíram os alvos, aos tropeços, empurrados pelos
soldados, gritando implorando, alguns rezando.
Tinham feito de propósito, estavam altifalantes espalhados na
cratera e o sistema estava em alta voz.
Ouvimos tudo.
O pelotão chegou, formar, apontar, disparar.
Daniel apertou-me tanto a mão que quase a partiu. O
comandante, do outro lado segredou-lhe qualquer coisa ao
ouvido.
Ao voltarmos para dentro da carrinha é que compreendi. Daniel
gemeu:
- Minha mãe estava lá...
Naquele dia todos eles foram obrigados a assistir á execução de
um pai, uma mãe, irmão ou irmã, ou ambos, como foi o caso de
Jab. O pai de Luanda morreu naquele dia.

108
Incrível, depois de tanto tempo, ainda conseguiu reconhece-lo.
Era um dos que rezaram.

109
16º CAPITULO
PLANEANDO O COMBATE

Então, ia-mos combater a sério.


E fizemo-lo como o comandante nunca imaginou que o
pudéssemos fazer. Estávamos zangados, precisávamos de
descarregar a nossa raiva e ódio e no fim, até o comandante
passou a viver aterrorizado com as coisas que conseguíamos
fazer.
Éramos miúdos com armas que não tinham medo de morrer,
Acreditava-mos no reino do Verão, éramos alimentados com
drogas alucinogénitas e queríamos vingança.
O quadrante do Comandante foi-nos de grande utilidade, isso e o
meu génio estratégico, aliado ao espirito inventivo de Lau-Léu,
á ferocidade de Daniel e ao bom senso de Luanda.
Tinha carta branca para actuar , as munições que bem
entendesse e uma centena de miúdos que me obedeciam sem
vacilar.
Na realidade, impossibilitados de fugir, encaravam com uma
nova expectativa e animo renovado a preparação do ataque.
Foi a cinco de Janeiro. Escolhemos a hora do rancho da tarde,
por ser uma hora menos propicia a incidentes e estavam todos de
barriga cheia e drogados demais para sentirem o que quer que
fosse.

110
O campo foi avisado, alguns Red. vieram acompanhar para
terem a certeza que não tentávamos outra estupidez.
Um dia antes, eu e Daniel patrulhamos a área a pé, do alto dos
telhados dos edifícios.
La em baixo um exercito estava acampado. Com o meu novo
quadrante até pude conta-los, vinte e dois camiões pesados com
o símbolo da cruz vermelha bem evidente, hospitais de
campanha, era o que eram, e todo o pessoal especializado e de
apoio que os acompanhava. Tudo isto protegido por cinco
tanques pesados cospe fogo, lança misses, strikes e soldados da
coligação com o braçal da cruz vermelha no braço esquerdo mas
devidamente equipados e armados. No todo, eram perto de mil,
nós todos juntos não chegávamos a duzentos
- O que fazemos? – Perguntei a Daniel preocupada.
- Agora és tu que mandas, não tenho que dar opiniões.
- Por favor, Daniel não tenho a culpa!
- OK. Deixa-me pensar...não podemos fazer um ataque directo.
- Diz-me algo que eu não saiba.
- São da cruz vermelha né? Então devem fazer operações em
campo com os soldados da Aliança. Esperamos e depois
atacamos.
- Esperamos o que?
- Movimento querida, movimento.
O movimento foi detectado: quatro camiões, hospitais de
campanha protegido por um tanque e uns vinte strikes de dois

111
elementos cada. Moviam-se lentamente dentro das ruínas da
cidade. A cidade que eu conhecia, os seus esconderijos, a sua
força, as suas fraquezas.
Lau-Léu calcularam o destino que seria algures na terra de
ninguém, um território neutro de onde eram evacuados os
mortos e feridos do inimigo e projectaram o caminho que teriam
de percorrer até lá chegar, oito mil metros de ruas e avenidas
estreitas se queriam evitar o raio de alcance dos mísseis do
campo. Não podiam descer muito e nós não podíamos subir
muito, por isso, a primeira coisa a fazer foi cortar-lhes o
caminho para os obrigar a descer, até onde os queríamos e
encurrala-los como ratos.
Sara e Tomás ficaram com essa tarefa.
Ouvimos as explosões no sitio onde estávamos, na rotunda da
memória, que passava por baixo de uma das estações de
comboio, que eles seriam obrigados a atravessar com a avenida
de cima cortada devido a quatro derrocadas completas de dois
edifícios de quinze andares. Os camiões não tinham como passar
e o tanque era grande demais para passar pelas outras ruas mais
estreitas. Eles iam descer, ou voltar para traz.
Esperei que eles voltassem para traz mas não voltaram.
Enquanto o João armadilhava a ponte, Luanda minava toda a
área e ficou escondida dentro do tanque, na esquina de uma das
ruas da avenida á espera da ordem para a detonação. Daniel
ficou com a equipa de atiradores no alto dos telhados e eu fiquei

112
com a equipa de terra, escondidos ao longo da avenida, á
espreita, á espera....
Chamei Daniel pelo radio:
- Achas que resulta?
- Com um pouco de sorte, e se eles forem muito estúpidos...viste
o tamanho daquele cano? Vamos ser esmigalhados.
- Luanda pôs as minas. Se forem detonadas no momento certo,
rebentamos com o tanque.
- Isso partindo do principio que elas são fortes o suficiente para
rebentarem com aquelas coisas...olha, estão quase a chegar ao
alcance dos rádios, temos que desligar.
- O.k...
Fui possuída por mil e uma duvidas. Éramos miúdos armados a
brincar ás guerras. A nossa experiência resumia-se a fazer
patrulhas e a afugentar intrometidos mais ousados, nunca matei
ninguém, e havia aquele tanque...tão grande, com dois canos,
um de granadas e outro de mísseis termodinâmicos e com um
escudo capaz de suportar fogo intenso incluindo minas.
Entraram na avenida, só o som das lagartas era o suficiente para
assustar qualquer um. A estrada a ser rasgada á passagem dele
marcava um trilho poderoso e impressionante.
Os strikes vinham á frente, os camiões atrás o tanque a fechar a
coluna.

113
Passaram por mim, não ia resultar...enfiei na boca dois
comprimidos azuis, não queria sentir nada, se ia morrer seria
totalmente anestesiada.
O radio começa a receber as transmissões deles.
- Estão operacionais...
- Não é possível saber. Podem estar ali á anos, sei lá!
- Não detecto qualquer actividade electrónica. Os automáticos
não respondem.
- Também disseste isso na ultima vez e levaste com meia dúzia
deles em cima.
- Estou-me nas tintas, se acordarem esmago-os com um só
golpe. Terminado.
O avanço continuou, já davam a volta, aproximaram-se, a linha
da frente já estava por baixo da estação do comboio, o tanque
estava quase em cima das minas, mais um pouco...” Agora
Luanda, agora!!

114
17º CAPITULO
OS EFEITOS DA LOUCURA
Foi loucura total, enquanto as minas rebentavam por baixo do
tanque gigante, os pilares que sustentavam a estação rebentavam
e o tabuleiro caiu em cima da linha da frente, de uma altura de
vinte e cinco metros. Os que não foram apanhados pelos
escombros viram-se cercados por todos os lados pelos atiradores
nos telhados, tentaram fugir a foram barrados pelos carraças que
saltavam dos seus esconderijos e apertavam o cerco. O tanque
gigante, apanhado de surpresa, começou a arder, virado de lado,
e os seus tripulantes, saiam, um a um do interior, protegidos
pelos restantes que procuravam o tanque para se protegerem mas
este rebentou com todas as munições que carregavam e nós
começamos a atirar em tudo o que se mexia.
Já não havia surpresas, o combate foi directo, frontal e não havia
duvidas em relação ao mais forte. Houve uma altura, sob fogo
intenso que pensei que não íamos conseguir aguentar. Vi alguns
companheiros a retroceder e comecei a retroceder também sob a
pressão das granadas. O inimigo de animo redobrado,
reagrupava e intensificou o lançamento das granadas, atiravam-
nos com tudo o que tinham, para cima de nós ou para o pessoal
que estava nos telhados.
Entretanto outras divisões de carraças tomavam posição nos
francos e na retaguarda, contornando para o efeito as ruas e
becos estreitos que conheciam tão bem, colocaram-se em

115
posição e só depois é que avançaram, como formigas, ao mesmo
tempo. O inimigo baixou as armas e nos rádios soou o grito da
rendição incondicional.
Fiquei ali, parte de um circulo imóvel, o inimigo no interior a
gritar por rendição.
Renderem-se a quem? Para que? Do que?
Uma comédia patética! Quase que dava vontade de rir.
Olhavam á volta, á procura de qualquer coisa, mãos ao alto,
depois de atirarem com os lança granadas para o chão,
aterrorizados era pouco para os descrever; sem saberem o que
lhes tinha caído em cima, despojados de armas e escudos, a
segurança tinha caído por terra, o impossível tinha acontecido, e
foi tão fácil...
Cercados, sem fuga possível, num circulo fechado com canos
escudos envoltos em neblina...ali perto um carraça rebentou,
vitima atrasada...e nós ficamos loucos, eu fiquei louca: era
Pirelli. Nos meus ouvidos Pirelli gritava e todo o meu grupo
com ele e fui possuída pelo ódio e desejo de vingança:
- Fogo!! Pirelli foi abatido!
Lá fora o inimigo atirava-se ao chão sob uma chuva intensa de
granadas e balas dos atiradores.
Imagens irreais, como um sonho em câmara lenta.
- Atila, Atila. – O som era aflito, denotava uma certa urgência.
Num gesto de profunda preguiça respondi:
- Estou aqui.

116
- Cessar fogo idiota! Cessar fogo, eles renderam-se Atila....os
red. chegaram.
- Agora?
Olhei para o monitor, a ultima carga tinha rebentado com um
dos camiões que ardia com fogo muito trabalhado. O inimigo
pareceu-me ratos encurralados sem terem por onde fugir. O
incêndio intensificou-se. Grandes labaredas subiam em direcção
aos céus, lindas, imponentes.
O fogo tem algo de belo, acabando o oxigénio, formava
pequenos redemoinhos que dançavam, cantavam e voavam á
procura de ar, á procura de combustível. Um pequeno bocado do
inferno.
Ninguém disse nada ou fez alguma coisa. Estávamos demasiado
pedrados, sonhos azuis a mais. Eles podiam ter fugido, trepado
por cima de nós, que o teríamos permitido. Invés disso
escolheram ficar ali, no pequeno inferno, para nos deleitar com
o espectáculo.
No radio, os red. diziam qualquer coisa, um som espectral quase
que vindo de outro mundo. O fogo era lindo e eu olhei para ele,
ele olhou para mim e vi-o pela primeira vez; montado num
cavalo em estado de decomposição, com o mando da cruz
vermelha a servir-lhe de sela, A Guerra, o meu primeiro
cavaleiro do apocalipse...

117
Os red. que esperassem! Que fossem para o inferno, que se
juntassem ao meu cavaleiro e que ardesse no palco de todas as
verdades.
Lá estavam os Red, meia dúzia deles, Damiem e o Senhor
Comandante incluído. Atravessaram a linha de defesa, furaram o
circulo: alguém os deixou entrar para assistir também numa
posição mais privilegiada. Senti-me ofendida por isso, queria
ver mais de perto, não era justo ficar de fora. Levantei-me da
cadeira, estiquei os braços para abrir a escotilha e saltei para o
exterior. Fui de imediato atacada por uma onda de calor, fumo e
gases misturado com outro cheiro que demorei a reconhecer:
carne queimada.
Outros já lá estavam, outros vieram depois alguns não chegaram
a sair sozinhos, os corpos enfiados dentro de sacos pretos,
sonhos azuis a mais.
Não saibamos o que se passava, davam-nos aquelas coisas para
nos sentirmos bem. Podiam avisar, em excesso mata. Nunca
fomos informados das causas efeitos e consequências. Naquele
dia, todos abusamos, todos se excederam e os red. viram com os
seus próprios olhos as consequências da omissão dos factos.
Pobre Damiem que dizia que já tinha visto muitos horrores!
Toda a sua vida e experiência não o preparou para aquilo.
Depois, veio a equipa de limpeza, homens fortes com estômagos
fracos, não houve um que não vomitasse. “ Não deviam ir

118
muitas vezes ás minas...” Depois vieram os sacos e não me dei
ao trabalho de os contar.
Um Red, um dos novos recrutadores passou por mim, parou, deu
meia volta...medo, ele cheirava a medo, quanto a mim, estava
tranquila.
- Porque? – Uma interrogação em suspensão antes de voltar ao
que tinha que fazer.
- Porque não? – Respondi e ele ficou ainda mais escandalizado.
Monstro, chamou-me de monstro.
Depois do fogo extinto ficou aquele cheiro incomodativo de
carne no churrasco. Voltei-me para o monte de carne queimada
fumegaste, ávida e só vi isso, carne.. Vários vultos passeavam-se
entre aquela iguaria proibida, como répteis necrófagos, as mãos
a trabalhar rápidos...para sumirem entre os destroços.
“ Porque não?” – Voltei a pensar

119
18 CAPITULO
EM BUSCA DO JUIZO PERDIDO

O Senhor Comandante estava errado, mas acho que ele soube


sempre isso. A cruz vermelha era mesmo a cruz vermelha, não
eram reforços, a coligação não tinha formado qualquer parceria
com a Aliança, e estes estavam mesmo a retirar. A coligação
estava ali para ajudar na evacuação.
Ele sabia, usou-nos para fazer o seu jogo sujo, fosse ele qual
fosse, a paz estava tão perto e nós estragamos tudo.
Os bombardeamentos começaram, a cruz vermelha juntou-se ao
exercito da Aliança no cerco a Quatro e as investidas deles
tornaram-se mais ousadas, testando cada vez mais até que ponto
conseguiam entrar.
Depois daquele primeiro confronto, o Senhor Comandante
passou a afastar-se de nós, acho que também teve medo do que
nos transformamos, algum juízo da sua cabeça maluca. Perdi o
medo e ele tornou-se num alvo a abater.
Do meu grupo inicial sobreviveram poucos, o João, Luanda,
Sara, Tomás e Valéria. Valéria bem podia ter-se juntado aos
outros, apagou de vez, andava de um lado para o outro a falar
com uma Mellie imaginaria a regar um jardim que não existia e
a fazer roupa sem tecidos que depois exibia para um publico
invisível que aplaudia.

120
Luanda ficou a tomar conta dela, mas não demorou muito tempo
para Damiem a levar e senti-me aliviada. Até Luanda que
gostava tanto dela não tentou impedir Damiem quando veio para
a levar. Depois disto, ninguém quis ficar maluco e voltaram-se
de novo para os sonhos azuis como meta de salvação contra a
insanidade.
Resultava.
No quartel dos bombeiros era mais Daniel quem mandava do
que eu, Lau-Léu faziam sempre o planeamento da segurança e
João era o nosso conselheiro, através dele saibamos se algo ia
correr mal ou não, só ficávamos preocupados quando ele não via
nada, era muito mal sinal.
Vieram outros, muitos mais, vinham como ratos assustados e
voltavam dentro de sacos pretos, deixei de os contar, de os
chamar pelos nomes, nem sequer olhava para eles, eram carne
para canhão.
Entretanto, aconteceu algo inexplicável, comecei a deitar sangue
pela boca do corpo, pensei que estava doente e recorri á
enfermaria do campo, deram-me uns pensos de compressão para
hemorragias e mandaram-me embora sem me explicarem nada.
Foi Daniel quem acabou por me explicar o que era a
menstruação, e o que isso significava. Que era o primeiro sinal
que as mulheres tinham a avisar que era altura de casar e ter
filhos.
- Foi o que aconteceu a Mellie?

121
- Acho que sim, talvez ela tenha pensado que não queria morrer
virgem.
- Mas ela ficou gravida, eu posso ficar gravida?
- Claro que não Atila, não sejas ridícula, primeiro tens que
deixar de ser virgem, arranjar um namorado, casar e essas coisas
assim...acho eu...não sei. Sabes como se fazem bebes?
- Acho que sim...não sou estúpida, sei como se fazem bebes!
Um homem tem que me beijar e entrar dentro de mim, como
Damiem fez com Mellie, isso é nojento!
- Eu gostava de entrar dentro de ti. – Daniel disse depois de um
pequeno silencio. – E ficar assim para sempre para não termos
que nos separar.
- Mas se fizer-mos isso, eu posso ficar com um bebe dentro de
mim.
- Eu sei, foi só um desejo, não ligues ao que eu digo. Mas posso
dormir contigo?
- Dormes sempre comigo, que pergunta é essa?
- Agora é diferente, já não és criança, és uma mulher.
Não vi qualquer a diferença e, se ela residia em sangrar, passava
melhor sem isso.

Luanda encontrou a igreja de Quatro. Ainda estava em pé, um


milagre dizia ela. Chegou toda entusiasmada com a mãe loba e
os dois filhotes atrás que já eram quase tão grandes como a mãe,
numa correria desenfreada e levou-me a correr com ela, dar

122
tempo através das ruas labirínticas até chegar a uma pequena
praça. Já tinha estado ali muitas vezes, mas nunca tinha visto a
igreja.
Nada de especial.
Um pequeno auditório de esquina a uma das transversais á
praça transformado em igreja: uma plateia da bancos destruídos
de frente a um palco nu e, ao fundo uma cruz com cristo
crucificado.
Tomás estava lá encantado com as paredes, mateira prima de
qualidade, iluminadas por velas acesas quase do tamanho dele,
tal uma pequena colunada incandescente que contornava todos
os lados do auditório.
- Vou pintar a igreja, o que é que achas? Luanda pediu-me.
- O que é que vais pintar? Tanques e fogueiras ? – Gracejei.
- O Reino do Verão, tal como o descreveste.
- É o teu tempo, faz o que quiseres!
- Olha Atila, encontrei uma bíblia, agora posso recordar as
coisas que aprendi na catequese. – Luanda estava sentada no
palco com o livro entre as pernas e folheava excitada, como se
fosse um tesouro. – Posso vir aqui mais vezes?
- Podes Luanda. Porque não?

123
19º CAPITULO
A RESTAURAÇÃO DA IGREJA

Não foi só ela a voltar ali. Muitos iam e vinham todos os dias até
que estranhei sobre o que faziam na igreja durante tanto tempo e
fui para averiguar.
Já não era a mesma coisa.
Por onde começar?
Acho que pelo cristo crucificado, foi limpo e totalmente
restaurado e, assim que se entrava , era a primeira coisa que
saltava á vista. O palco foi encerado e polido, e lá estava a mesa
do sacramento com uma toalha de linho branco rendado, o cálice
para o vinho e o prato das hóstias, no meio uma bíblia aberta.
Ao lado direito um altar á virgem Maria com uma estatua a
representa-la vestida com um manto azul e carregava com o
menino Jesus nos braços embrulhado num manto hebraico
colorido, aos seus pés uma pequena mesa cheia de velas acesas.
Ao lado esquerdo estava mondado um andaime com quatro
andares, no de baixo estavam latas de tinta fechadas com
trinchas e rolos e panos sujos ao lado. O tecto e paredes foi
remendado e pintado de novo a branco, o chão polido e
envernizado, as cadeiras arranjadas e colocadas no lugar,
formando três corredores, um em cada lado e outro, mais largo
ao meio. As velas gigantes continuavam a ladear o auditório,
algumas já não eram tão grandes, outras eram novas e,

124
misturadas com as que estavam quase gastas, davam um aspecto
sinistro ao local, projectando sombras, como fantasmas do
passado.
Por segundos deu-me a sensação que ia começar a missa, que ao
fundo o Padre fazia os sacramentos e que, homens e mulheres
enchiam a igreja e ouviam com atenção, algumas de pé, outras
de joelhos. Abanei a cabeça com força.
- O que é que achas?
Tomás apareceu de um lado qualquer do palco, todo salpicado
de tinta branca.
- Foste tu?
- Todos ajudaram.
- Pensei que fosses pintar o Reino do Verão nas paredes.
- Estou a preparar, primeiro tinham que ser limpas.
- Há!
- Li num livro que encontrei, explica por etapas como pintar
frescos.
- E o chão? Precisava de ser limpo também?
- Não, mas ficou bonito não achas?
- Falta o padre.
- Nós somos radicais! Luanda agora é o padre. Uma mulher
Padre, fixe não é? Nunca a vi tão contente.
- Se Damiem descobre isto...
- Ele já sabe.
- Não sei...

125
- Vá lá Atila, não sejas tão céptica!
- Tudo bem, já assimilei. Pelo menos agora podemos fazer
funerais, será que Demien deixa? Isso é, antes de os levarem em
sacos? – A ideia saiu de repente não sei como e arrependi-me
logo. Mas Tomás levou-a á letra e começou logo a gritar por
Luanda. Luanda apareceu e com ela mais meia dúzia de cabeças
e começou a explicar muito á pressa a minha ideia. Depois dessa
vieram outras, cada uma mais fantasiosa do que a outra e
perigosa. Um livro com nomes e as poucas recordações de todos
os elementos da divisão dos infantários, sem excepções,
incluindo os que já tinham morrido que podia ser escondido na
cave.
- Há lá em baixo uma sala secreta, a entrada foi tapada por uma
estante cheia de livros, onde podemos esconder coisas.
Fui de arrastão e concordei com tudo , incluindo uma guarda
permanente á igreja, claro que Luanda e Tomás ficaram
encarregados dessa parte e levaram o assunto mais a peito do
que eu esperava.
A igreja passou a ser uma fortaleza e foram feitos esforços
suplementares para afastar o inimigo das proximidades, a ponto
de eles começarem a pensar que ali os Red. tinham algo de
muito importante. Importante demais para valer a pena tentar
furar as nossas defesas.
O inevitável então aconteceu. Tanques da Aliança entraram
dentro do perímetro e aproximavam-se da praça com uma força

126
considerável. Tomás deu o alarme e de imediato chamei todos
os carros em campo para o local , entrei em contacto com
Damiem a pedir reforças da Infantaria e parti logo de imediato
para o local com Lau-Léu que já planeava um plano de defesa
para os aguentar até á chagada da infantaria.
Espalhamo-nos pelo local, aprendemos que separados em
pequenos grupos conseguíamos uma melhor defesa do que todos
juntos, mas também saibamos que era uma posição que
funcionava temporariamente. O inimigo era superior em
armamento e numero, tínhamos que fugir logo de imediato.
Mas, dali, ninguém ia fugir, iam atacar e lutar até ao fim, e eu
fiquei apavorada.
Daniel chegou logo depois, veio ao meu encontro com Damiem.
Eu estava na praça com Lau-Léu e Jab e organizar a colocação
dos grupos de combate.
- A infantaria não vem! – Damiem atirou logo. – O Comandante
deu ordens para retirarem até ao alcance dos mísseis, o sistema
automático de defesa das minas trata deles num instante.
- Então temos um problema. – Respondi preocupada. – Ninguém
vai retirar.
- Não sejas estúpida, achas que consegues fazer frente a “
Charutos”?
- Já o fizemos uma vez.

127
- Sim, a um e foi apenas sorte. Se o raio do camião não tivesse
começado a arder hoje eras sabão!! – Deixa-te de merdas e
chama os miúdos. Voltam de imediato para o quartel.
Eu chamei, mas ninguém me obedeceu tal com esperava. Havia
uma certa autonomia entre nós, só obedeciam até um certo
ponto, quando os interesses individuais eram postos á prova
esqueciam de imediato toda a estrutura hierárquica.
Uma das razões porque pessoas como eu ou Daniel e mesmo
Tomas, Luanda e Jab estavam vivos, era porque sabíamos
quando fugir sem vergonha de o fazer e só o tempo e a
experiência nos podiam ensinar isso. Naquele dia estavam
unidos por um ideal, acreditavam em algo e estavam dispostos a
lutar até á morte por algo que tinham construído e que não
queriam ver destruído, era tudo muito bonito mas não era isso
que os ia ajudar. Sem a infantaria estávamos votados ao
fracasso, eles sabiam, eu sabia, a diferença era que eles não
queriam saber.

Não fui embora, fiquei com eles. Não por acreditar em Deus,
por acreditar na igreja como santuário, por acreditar que valia a
pena morrer por aquilo, mas por orgulho e, quem sabe, porque
Mellie tinha razão e sofro de algum síndroma de Mártir, ou
simplesmente porque não queria ser deixada para traz.

128
Damiem voltou para o campo para dar a conhecer ao Senhor
Comandante a nossa decisão e, ao vê-lo partir acreditei que não
voltaria a vê-lo.
O inimigo aproximou-se e as ruas de Quatro transformaram-se
num campo de batalha. Não sei quanto tempo durou. Uma
infinidade.
Criamos uma linha de defesa á volta da igreja, criamos raízes
que eram arrancadas á força de granadas e mísseis a ponto de a
linha da frente se transformar numa barricada de aço retorcido
com carne. Éramos carne para canhão.
Eu e Daniel ficamos na linha de traz a coordenar os esforços,
dentro da igreja Luanda rezava aos pés do altar, vestida com
uma batina branca que lhe ficava enorme e Tomás pintava ao
som dos canhões a grande velocidade, numa tentativa de tentar
acabar a sua grande obra prima, ainda mal começada, antes de
morrer. Comecei a chorar a certa altura ao reparar num
detalhe que nunca pensei. Daniel, ao meu lado passou-me um
braço pelo ombro.
- Está tudo bem, não tenhas medo.
- Eu não tenho medo. – Disse entre soluços. – É que...
- O que foi?
- Vou morrer virgem!! – Disse apavorada. – Vou morrer virgem
Daniel, isso é horrível.
- Atila...
- Casas comigo?

129
- Claro que sim! – Ele riu entusiasmado.
- Agora?
- Sim, como tu quiseres. Anda, vamos!
Entramos na igreja com a musica das bombas a acompanhar,
Daniel ria e eu com ele, Tomás acenou-nos no alto do andaime.
- É agora?
- Ainda não! – Gritei eufórica. – Eu e Daniel vamos casar!
- Há é? Yap, tasse bem, encontramo-nos no outro lado!
Luanda interrompeu a sua oração para nos casar, Tomás foi a
nossa testemunha, o acento de casamento foi preenchido e
depois de toda a cerimónia conduziu-nos á sala secreta da cave.
Havia uma mesa com um livro aberto sobre ela, era o livro dos
nomes, como Luanda lhe chamava, nos últimos dias trabalhara
muito nele e pensava que ia acabar por ali.
Luanda abraçou-me com força e beijou-me no rosto com os seus
lábios deformados pela falta de dentes.
- Obrigada Serina...
Apertei-a nos meus braços, era a derradeira despedida,
finalmente ia tudo terminar.
- Nunca te vou deixar Luanda, é uma promessa.
- Eu sei, estás aqui, até logo, encontramo-nos no outro lado.

Luanda voltou para o seu altar e eu, dez minutos depois já não
era virgem.

130
Foi rápido e muito técnico. Eu sabia tanto de sexo como Daniel,
isso é, nada. Ele despiu-se, eu despi-me; eu deitei-me no chão e
ele deitou-se sobre mim. Nem sequer nos beijamos, não houve
paixão, nada. Mas ele rio e prometeu-me amor eterno.
- És a minha mulher, a única e será assim para sempre.
- Amo-te Daniel, sempre.
- Óptimo, agora, vamos mandar uns gajos para o inferno,
contamos?
- Claro que sim! Eu ganho, eu ganho sempre.!
Voltamos a vestir-nos, pegamos nas armas e saímos da sala
secreta quase a correr, mais excitados com a ideia de ir matar
alguns gajos do que com fazer sexo, mas antes de chegar á porta
de saída, começamos a ouvir os silvos e depois as detonações
em massa que faziam o chão tremer. Algumas velas caíram ao
chão e corremos logo para as apagar. Tomás começou a
reclamar:
- Como é que se pode trabalhar assim?
Era a infantaria. O Comandante tinha mandado chamar a
infantaria. Estávamos salvos!

131
20º CAPITULO
OS CAVALEIROS DO APOCALIPSE

Vieram outros, mais tanques, mais miúdos, miúdos assustados


que chamavam durante a noite pelas mães, que faziam xixi na
cama, que se cagavam no primeiro confronto e fugiam do
segundo e eram cada vez mais novos, ou era eu que era cada vez
mais velha.
Luanda continuou com os seus livros de apontamentos, corria a
quartel recolhendo nomes e as historias individuais de cada um,
ninguém passava ao activo sem passar por ela primeiro.
Lau-Léu continuavam a jogar ás contas, mas os cálculos deles
tornaram-se tão complexos que já ninguém os acompanhava.
Tomás pintava a igreja á luz das velas, ocupando todo o seu
tempo, cada minuto como se fosse o ultimo. Quando as velas
acabaram, enfiamos dois tanques dentro da igreja com os
projectores ligados.
O João continuava a ver coisas, agora dizia que via a fome a
cavalgar nas ruas de Quatro, lado a lado com a Guerra. Por
precaução, começamos a racionar os mantimentos e a armazenar
tudo o que podíamos.
Jab passou a comandante dos grupos de combate.
Da recruta de Daniel ele foi o único que sobreviveu. Da recruta
de Lau-Léu não ficou nenhuma, da minha consegui manter
Luanda, Tomás e João e não os expunha a qualquer risco

132
desnecessário. Não os podia perder, de maneira nenhuma, eram
os Vip´s.
Todos ou outros compreendiam isso comigo, ou era eu que os
obrigava a compreender.
Daniel continuou a ser o meu marido e comportava-mos como
tal. Já não nos limitávamos a dormir na mesma cama da
camarata. Tínhamos um quarto só nosso, privacidade e fora do
quarto não nos separávamos, como se correntes invisíveis nos
prendessem um ao outro. Íamos morrer juntos, foi a promessa
que fizemos um ao outro, nem a morte nos podia separar.
E então aconteceu que a previsão de João se concretizou. A
fome chegou e passeava-se lado a lado com a guerra.
Não foi de repente, os mantimentos eram cada vez menos, e
cada vez menos, até que fomos obrigados a recorrer ás reservas,
mas depois acabou e eu e Daniel fomos ao campo falar com o
Comandante.
Descobrimos então que no campo as coisas não estavam melhor,
o inimigo tinha tomado conta da linha ferroviária que abastecia
o campo e as minas. A alternativa eram as naves de
carregamento de cimento que vinha só uma vez por mês, vinha
carregada de comida e voltava carregada de cimento. Mas não
era o suficiente e nós e os escravos das minas ficaram em ultimo
lugar.
O inimigo não nos matou, a fome faria isso.

133
Acabaram as patrulhas e ficamos apenas com a protecção da
igreja. E esperamos um mês para comer qualquer coisa.
O João disse que viu os quatro.
- Os quatro que? – A fome não me deixava pensar muito bem,
só pensava que tinha fome, que queria comer, que tinha que
comer, qualquer coisa...
- Os quatro cavaleiros do apocalipse.
Desatei a rir. Grande novidade! Já os via á muito tempo!
A fome troce a doença e a doença a morte. Era maior inimigo do
que os gajos da Aliança e da coligação e matava cruelmente.
Voltei ao campo e supliquei comida ao comandante, qualquer
coisa, ele manda-me comer os cães. A ideia causou-me repulsa,
preferia mata-lo a ele e come-lo do que matar os lobos.
Quando voltei ao nosso quartel e disse isso a Lau –Leu, eles
pegaram nos tanques e partiram. Voltei-me para Daniel e chorei
convulsivamente.
- Eles eram um milagre!! Não podemos comer um milagre!!
Luanda correu para a igreja e pediu perdão a Deus pelo pecado
que íamos cometer.

Lau-Léu voltaram com carne, grandes bocados de carne


cuidadosamente fatiada, sem ossos, ainda encharcada de sangue.
Disse logo que preferia morrer do que comer os lobos, mas, logo
atrás deles ...

134
Ninguém fez perguntas, ninguém quis saber de onde vinha
aquela carne fresca. Ela foi grelhada e todos a comemos como
se fossem bifes. Já não me lembrava da ultima vez que tinha
comido carne e não quis saber, ninguém quis saber, a única
coisa que sabíamos era que não íamos morrer de fome.
Os lobos passaram a viver no quartel e todos os dias, Lau-Léu
saía com eles para ir caçar e voltavam ao fim do dia com aquelas
fatias de carne suculenta que partilhávamos com os principais
responsáveis da caça.
Quanto a mim, deixei de sangrar e comecei a engordar. Comia
carne todos os dias, vinda nem quero pensar de onde e comecei
a engordar.
Sempre soube, era algo que estava dentro de mim, vivo, que se
mexia, e que crescia até não dar mais para esconder. Daniel
acabou por me perguntar o que é que eu ia fazer.
- Não posso abortar. Morro, como Mellie morreu. Vou tê-lo e
depois peço a Damiem para o levar.
Daniel beijou-me de uma maneira que nunca tinha feito e
acho que pela primeira vez fizemos amor, com desejo um do
outro, com uma necessidade urgente de unirmos os nossos
corpos como se isso fosse o suficiente para afugentar todos os
nossos problemas.
De qualquer maneira, não esperava que ele nascesse vivo,
encharcava-me em drogas e comia carne proibida. Quando falei
com Damiem ele não ficou surpreendido e limitou-se a dizer:

135
- Não te preocupes, eu resolvo o assunto.

Estávamos a perder, a cruz vermelha atravessava a cidade e já


não fazíamos nada para a impedir. No campo, ninguém queria
saber, estavam isolados, com mais fome do que nós, nas minas
morriam ás centenas por dia, a produção de cimento diminuiu e
nós fomos esquecidos, abandonados á sorte.
Começou o inferno. Passamos de soldados a ladrões.
Invadíamos o acampamento da cruz vermelha para pilhar e
fugíamos o mais depressa que podíamos até ao raio de alcance
com tudo o que podíamos carregar. Numa missão bem sucedida,
o máximo de baixas eram duas, numa mal sucedida, perdíamos
o grupo todo. Ao longe víamos o que os soldados da cruz
vermelha faziam com os nossos mortos, eram atirados para um
monte, regados com gasolina e deitavam-lhes fogo.
Alguns ainda estavam vivos.
Depois de ver a primeira fogueira e comprovar com os meus
próprios olhos, passei a ser a primeira a incitar Lau-Léu a caçar
e a carne sabia-me cada vez melhor.
Á medida que o meu dia se aproximava, passei a ficar cada vez
mais presa ao quartel, estava gorda demais para caber dentro do
tanque e deixei de ficar colada a Daniel. Ficar separada dele era
como viver mil mortes ao mesmo tempo, a minha ânsia era tal
que não dormia, não comia e andava de um lado para o outro a
gritar com os novos feita uma louca e só descansava quando ele

136
voltava. Um dia que ele tardou a chegar, peguei na minha arma
e desloquei-me a pé até á ultima localização dele, acompanhada
apenas pelos Lobos.
Se Luanda estivesse lá, podia ter-me impedido, mas não estava,
estava na igreja, agora passavam mais tempo lá do que no
quartel, se não fosse o ar condicionada, era bem provável que
passavam também lá a dormir, mas as comodidades que
tínhamos eram insubstituíveis.
No meio do nevoeiro surgiram fantasmas, vi meu pai, a sorrir
para mim, parou para me dizer adeus e depois foi embora;
Mellie a passar com Valéria, de mão dada, tão felizes que elas
estavam; vi um campo de relva fresca onde um grupo de miúdos
jogava á bola e gritavam sempre que havia golo, vi Nick, foi ele
quem mais me assustou, estava feliz, ao lado da Dona Lurdes o
Veloso á frente deles a aprender a andar. E depois vi os
cavaleiros, os quatro, a galope numa nuvem de fogo, desceram
dos céus e passaram por mim numa correria desenfreada, os
cavalos a relinchar, os cavaleiros a rir, a rir alto, os cães a
rosnar, a morderem-me as pernas...esperneei para me livrar
deles e acordei.

Os cavaleiros transformaram-se em quatro strikes, o fogo nos


faróis, os relinchos nos travões de emergência e os risos em
gritos desenfreados. Os strikes passaram por mim, a loba saltou
sobre um fazendo-o cair, os outros foram de arrastão,

137
surpreendidos, sem terem tempo de travar. Pego na arma e
coloco-a em posição, não atiro de imediato com medo de atingir
a loba, aproximo-me primeiro até ter um tiro limpo.
Os filhotes seguem a mãe, depois da presa escolhida já não a
deixam escapar. Tenho duas balas que tratam dos outros dois, o
ultimo foge e eu vou atrás dele, a loba apercebe-se a corre ao
meu lado, passa por mim e atira-se sobre o fugitivo, com os
dentes cravados na garganta. A presa esperneia e grita, como ele
grita...
- Bom trabalho querida! – Afasto a loba, disparo mas já não
tenho balas.
- Por favor, não quero morrer, não quero morrer, não me mates,
não quero morrer...
O homem arrastava-se de costas, chorava, implorava enquanto
eu continuava com a semi automática em punho, inútil, e a loba
esperava um sinal para atacar e acabar com a presa. Quem lhe
tinha ensinado? Acho que ninguém, era instinto de
sobrevivência, nós precisamos dela, assim como nela precisava
de nós, ela nunca abandonou os filhos, sacrificou tudo por eles,
para os alimentar, para os criar e ainda continuava a fazer tudo
por eles.
Chorei e deixei cair a arma. O que estava a acontecer comigo?
Transformei-me em algo pior do que um animal.
- Deus, ajuda-me, Deus...tira-me daqui, eu quero o meu filho!

138
- Eu ajudo-te, vem comigo, eu ajudo-te! – O homem disse como
se de repente perdesse todo o medo para ser possuído por uma
onda de compaixão.
- Eu já vi como é que nos ajudas, filho da puta!
- Não sou eu, sou só um soldado, são os gajos da coligação, os
da cruz vermelha! Ordens de cima, a guerra tem de acabar e
vosses estão a estorvar! Andam a atacar hospitais de campanha,
a matar médicos, inocentes! Foram vocês que começaram!
- Temos ordens!
- Podiam-se ter rendido!
- Não compreende! Pensa que não tentamos? Não podemos...
- Não podem ou não querem?
- Não sei...- Já não sabia, já não me lembrava porque é que não
podíamos fugir, como é que tudo tinha começado, toda aquela
matança, quando nós passamos a ser o carrasco, os monstros e a
cruz vermelha a vitima, como é que começou o ódio? As
aberrações, as anormalidades, quando começamos a ficar loucos
e a ver coisas. – Não sei...
- Vem comigo, eu ajudo-te!
Ele estendeu-me o braço e eu vi a mão de Deus, podia tocar nela
e ficaria salva, vi meu filho nascer num palácio em Marte,
crescer, o primeiro aniversario, as primeiras palavras, os
primeiros passos e ele pulou dentro de mim, como se tudo isso
fosse possível, mas não era, não passava de um sonho e era hora
de acordar. Não podia viver para contar que a cruz vermelha

139
usava crianças para fogueiras. Eu sabia isso, Damiem nesse
sentido era um bom professor, passava a vida a justificar porque
é que não podíamos fugir, como estávamos presos, amarrados a
uma condição que fomos nós que iniciamos.
- Nunca deviam ter feito aquele primeiro ataque! – Estava
constantemente a lembrar. – O comandante nem sequer estava á
espera que o fizessem, afinal, não passam de miúdos...agora é
tarde demais, eles querem a vossa pele bem assada.
- Não podes. – Recusei a mão de deus ao som das lagartas a
cortar o chão. – Chamo-me Serina, sou sobrinha de Vito Polo, já
ouviste falar?
- O Vito Polo? O Magnata de Marte? Quem não ouviu falar?
- Procura-o, jura-me que o procuras.
- Juro, pela minha vida!
- Diz-lhe que ainda estou viva, diz-lhe...- O som das lagartas era
cada vez mais próximo. – Vai, correr, se eles te apanham és
transformado em carne para o jantar! Foi a primeira vez e ultima
que confrontei-me com o meu próprio canibalismo e isso foi o
suficiente para por o homem em fuga. Antes de o tanque chegar,
há muito ele tinha desaparecido.
Era Daniel, tinha chegado ao quartel e não me tendo encontrado
partiu á minha procura. Foi saudado alegremente pelos Lobos e
eu fui ao seu encontro sem pensar mais no sucedido.
- Desta vez fui eu que cacei. – Disse fingindo indiferença. – Eles
quase que vieram ao meu encontro.

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- Não te devias afastar, é perigosos. – Repreendeu. – Estas bem?
Não te magoaste?
- Está tudo bem, agora que estás aqui comigo. O que é que
fazemos com estes gajos?
- Deixa-os estar aqui.. Podemos levar as strikes. O que é que
achas? Aquela ali esta muito danificada mas as outras estão
boas.
Daniel reparou que havia quatro motas e só tres mortos, um
deles já parcialmente comido pelos lobos mas não disse nada.
Senti-me mal, nunca escondemos nada um do outro, mas não lhe
podia dizer que tinha vergado, que era fraca, que deixei a caça
fugir.
Caça. O inimigo passou de gajos para caça e era assim que nós
os víamos, como comida mas ninguém se atrevia a falar sobre o
assunto, como se isso fosse o suficiente para sermos perdoados.

141
21º CAPITULO
MONSTROS

Deus estendeu-me a mão e eu recusei-a. Qualquer hipótese de os


meus sonhos se tornarem realidade morreram ali, naquele
segundo, naquele momento...porque a vida é cheia de
momentos, e eu perdi o meu ultimo e grande momento de
felicidade suprema:
O momento da salvação.
Eu vi a mão de Deus e recusei, tão simples como isso, e porque?
Trocava a minha salvação pelo que? De volta ao quartel
compreendi. Não tínhamos salvação, ali não podia haver perdão,
éramos monstros sem possibilidade de redenção, ou perdão.
Mesmo que fossemos salvos, que seria de nós? O que é que nós
éramos?
Abandonados á sorte, sem eira nem beira, sem regras, sem leis,
sem nada. Ladrões que ceifavam a vida de homens inocentes
que salvavam, médicos, enfermeiros...Não podíamos ser salvos,
íamos morrer ali.

Luanda tinha uma Polaroid. Encontrou-a na igreja e não parava


de tirar fotografias aqui e ali. Via-a tirar fotografias aos soldados
mortos da Aliança com a mãe loba e os filhotes a acabar de
devorar um deles. Continuava a tirar junto aos restos dos carros
de combate a incêndios, alguns dos miúdos lá dentro com o

142
equipamento especial, até tinham os aparelhos respiratórios. Os
rolos não iam durar muito tempo, aquela velocidade...
Jab vinha da garagem ao meu encontro a esfregar as mãos nas
calças já sujas. Ele estava todo sujo... nós todos. De tanto
racionarmos água acabaram-se os banho e a roupa lavada. Agora
vestíamos o que encontrávamos, no quartel, nas lojas fantasmas,
no gigantesco centro comercial. Algumas estavam como novas,
ou eram mesmo novas.
Estava cansada demais para procurar roupas que pudesse usar,
continuava a engordar, mal conseguia suportar o meu próprio
peso. Usava uns macacos que Daniel me troce de uma fabrica
qualquer, vermelhos. Era a única de vermelho ali, uma red. Dei
comigo a rir sem razão aparente, Luanda viu-me e riu também,
tirou-me uma fotografia e veio traze-la. Amostrou-a com um ar
tão feliz que fiquei emocionada.
Ao olhar para a fotografia não me reconheço.
Aquela era eu?
Lembro-me de uma menina com um vestido amarelo cheio de
folhos, de cabelo ruivo, olhos verdes rasgados num rosto
redondo de pele muito branca, o pálido transparente
característico dos Lunares, de lábios cor de rosa...eu era linda.
Meu pai não se fartava de dizer isso, mesmo Nick...
Já não tinha cabelo, de tanto o rapar, deixou de crescer, os meus
olhos eram duas orbitas escondidas num rosto cadavérico, olhos

143
verdes baços, sem brilho, como tudo o resto, a pele coberta por
uma camada de poeira que nunca conseguia arrancar.
Estava a rir...
Ria da minha própria miséria, e compreendi que não fazia mal,
ainda podíamos rir, apesar de tudo não perdemos essa
capacidade.
- Ficaste muito bem, não achas?
- Deixa ver! – Jab arrancou-me a fotografia das mãos e fugiu
com ela e ria também. Daniel apareceu atrás de mim, sentou-me
na lagartas do tanque dele e pediu a Luanda para tirar-nos uma
juntos. Luanda tirou duas e deu-nos uma a cada um.
Na imagem, reflectiu-se a nossa felicidade. Estávamos felizes,
ainda estávamos vivos.
A esperança voltou de repente, podíamos ainda fazer alguma
coisa. Agarrada á fotografia corri ao encontro de Jab.
- O que foi?
- Esses aparelhos ainda funcionam?
- Sim, porque?
- Tive uma ideia...Daniel, vem aqui depressa!
- O que foi?
- Tive uma ideia! – Gritei histérica. – Vai chamar Damiem,
depressa!
Daniel foi a correr chamar Demien e Jab seguiu as minhas
instruções para recolhermos os aparelhos Respiratórios que
funcionavam e todo o equipamento de protecção individual que

144
estivesse em condições. E enquanto o equipamento era
verificado e limpo, recolhemos á sala de planeamento á espera
de Demien.
Lau-Léu estavam inquietos, eles que tinham sempre as grandes
ideias e planeavam tudo, viam com cepticismo qualquer coisa
vinda de outro lado e não compreendiam para que queria eu os
aparelhos respiratórios.
Finalmente Damiem aparece com cara de ter sido interrompido
em algo de importante.
- O que queres agora, esta na hora?
- Ainda não! Tive uma ideia.
- Tu? Uma ideia, desde quando?
- Tive uma ideia!
- Estou a ouvir, a não ser que tenhas ficado maluca de vez,
podias explicar?
- Estou a tentar por a ideia em ordem, sabes é que foi de repente,
como uma visão. – Expliquei ansiosa, ansiosa demais enquanto
as imagens passavam pela minha cabaça a grande velocidade. –
Vamos recuperar a linha férrea.
- Ai sim? E como? Ela está protegida por rampas de lançamento
de mísseis, não conseguimos nos aproximar sequer para as
rebentar.
- Não, os tanque não, são um alvo fácil de ser detectado, são
grandes, mas quatro ou cinco homens podem atravessar a
planície, subir a colina e rebentar com as rampas.

145
- A pé?
- Sim, a pé!
- Atila, esta fora do alcance do escudo atmosférico! Oitenta a
noventa graus negativos, os níveis atmosféricos são
extremamente baixos, a gravidade esta a metade e a colina é
guardada por um regimento. Mesmo com escafandros, e já o
fizemos, é impossível e os nossos mísseis são todos
interceptados pelos deles antes de atingir o alvo.
- Nós conseguimos! – Gritei alucinada. – Diz-lhe Daniel! Diz-
lhe que conseguimos, temos os fatos e os aparelhos,
atravessamos a planície, subimos a colina...
- Atila! Até á colina são..são...
- Vinte mil metros. – Lau Leu ajudaram. – A rastejar, e seria
obrigatório, a uma velocidade de cinco mil metros por hora, e
com uma autonomia de quarenta minutos por aparelho a
trabalho, e isso na melhor das hipóteses, teriam que carregar
com muitas garrafas e ainda teriam que ter para a volta. – Não é
praticável.
- É suicídio! – Daniel ponderou sensato. –
- Estás errado, eu vi que pode ser feito.
- Atila...
Olharam para mim como se eu tivesse perdido o juízo, não o
tinha perdido mais do que ele, a única diferença é que estava
disposta a fazer algo para mudar a situação.
- Eu vou! – Decidi.

146
- Não podes, olha para ti, mal te aguentas nas pernas!
- A gravidade é menor no outro lado. Vou sozinha se ninguém
quiser ir, mas vou!
Daniel ficou furioso, agarrou-me por um braço e tirou-me dali á
força.
- O que pensas que estas a fazer! Cala-te, não se fala mais no
assunto, acabou! Cai na realidade! Não vais a lado algum!
Foi a primeira vez que discutimos. A primeira e a ultima.
Daniel trancou-me no quarto e ignorou o meu ataque de furia.
Atirei-me contra as paredes e porta e, depois de gritar até
estourar, acabei por me atirar á cama com a barriga aos pulos.
Daniel voltou muito tempo depois. Entrou hesitante, talvez a
recear algum ataque da minha parte, mas já estava lúcida o
suficiente para compreender que tinha sido uma ideia
disparatada.
- Atila, estas acordada?
- Estou, idiota!
Ele ligou a luz e veio sentar-se aos pés da cama, de costas
voltadas para mim.
- O que foi?
- Eles foram.
- Não!!! – Saltei da cama eléctrica. – Não pode...quem? Tens
razão, foi uma ideia estúpida, louca, sem pés nem cabeça!
Quem?
- Lau-Léu.

147
Paralisei. Os únicos elementos que não podíamos dar ao luxo de
perder. O que é que tinha feito?
- Não disseram nada a ninguém. Levaram os fatos, os aparelhos
e foram nas strikes. Levaram também as coisas dos gajos , acho
que vão tentar fazer-se passar por eles. Não sei o que se passa
naquelas cabeças, nunca soube...causa-me arrepios, o que juntos
conseguem fazer. Acho...já não sei o que pensar. Se os perder-
mos vai ser complicado.
- E agora?
- Esperamos.

Não conseguia esperar, procurei como uma louca á procura de


João e encontrei-o na igreja a ajudar Tomás com a mistura das
tintas. Luanda e outros estavam também por ali, sempre a limpar
ou em algum acto de conservação do sagrado.
- João, vês alguma coisa?!- Perguntei com uma certa urgência. –
Eles vão voltar?
João continuou a mexer a lata da tinta como se eu nem estivesse
lá, Tomás encolheu os ombros como quem diz, “ Sabes como
é...” Mas eu queria uma resposta, tinha que saber, afastei João
da tinta e abanei-o cheia de raiva:
- Eu sei que vês alguma coisa, diz-me o que é! Fala ou eu juro
que acabo contigo!
- Atila! – Tomás gritou escandalizado. – Que te deu?

148
Tomás afastou-me á força, o que não foi muito difícil, esgotei o
resto das minhas forças naquele gesto.
João recompôs-se e finalmente disse alguma coisa e pela
primeira vez senti algo da parte dele, algo mais do que aquele
indiferença, desprezo, desdém a que nos habituou.
Medo.
Cheirei-lhe o medo e, se vinha dele, então já não havia nada a
fazer.
- Eles vão voltar Atila! Vão voltar para serem cortados em duas
partes iguais e dos céus descerão os anjos do apocalipse e os
demónios reinarão sobre a terra. Tens que os matar, quando
voltarem, antes que sejam cortados ao meio!
Afastei-me dele e das suas alucinações, já tinha as minhas, os
meus medos, os meus devaneios. Voltei para o quartel, para o
meu quarto e não voltei a sair dali tão cedo.

149
22º CAPITULO
AS DORES DO PARTO

Lau-Léu voltaram vitoriosos. A linha férrea foi reconstituída e


os comboios da abastecimento voltaram.
O jubilo não durou muito tempo, a Aliança atacou com rides
aéreos as linhas e estas foram destruídas. Nem para nós nem
para eles.
Enquanto ardia em febres altas e gritava com as dores do parto,
Lau leu voltaram a ir caçar, decididos mais do que nunca a não
deixar ninguém morrer de fome.
Pouco me lembro daquelas horas, pouco me lembro do resto.
Luanda segurava uma das minhas mãos, Daniel a outra, Damiem
estava de joelhos entre as minhas pernas e gritava “ Força, Atila,
não desistas agora.”
Na igreja Tomás dava os últimos retoques no tecto e o grupo de
Jab limpavam e arrumavam tudo, fazendo os preparativos para a
missa pascal.
No parque de viaturas chegava mais um carregamento de “carne
para canhão”, cada vez mais moles, sem formação, sem recruta,
de mãos tão minúsculas que só serviam para limpar os canhões.
Nas minas o cerco apertava-se, documentos eram queimados e
as provas eram executadas. Como eram muitos, brigadas de
bombas abriam valas no chão e eram enterradas vivos.

150
Algures um grupo de assalto atacava um comboio da cruz
vermelha com êxito e outro, com menos evento ardia em
fogueiras improvisadas.
- É uma menina!
Damiem poisou aquele bocado de carne sobre o meu peito. Era
uma menina, estava viva e era perfeito, abriu a sua pequena boca
para respirar e soltou o seu primeiro choro.
- Leva-a! – Gritei. – Tira-a de cima de mim, Daniel...
- Estou aqui, vai correr tudo bem! – Beijou-me nos olhos, no
rosto e nos lábios e senti o sabor salgado da sua pele e das suas
lagrimas. – Lamento muito, Serina, esperava que nascesse
morto.
Foi Luanda que cortou o cordão com a minha faca, embrulhou-a
num lençol e entregou a Damiem.
- Daniela! – Disse de repente. – Ela chama-se Daniela.
- Prometo...
Não compreendi o que ele prometia, pegou na minha filha, carne
da minha carne, sangue do meu sangue e levou-a enquanto eu
gritava com dores muito mais fortes do que as dores do parto.
Daniel gritou comigo e chamava pelo meu nome, um nome que
já nem me lembrava que um dia fora meu e Luanda sofria em
silencio a impotência de não fazer nada.

O ultimo Natal que passei com o meu pai.

151
Nick entrou nesse ano para a faculdade de medicina e ao fim do
primeiro trimestre ainda usava os livros emprestados da
biblioteca, desactualizados velhos, as folhas a cair, folhas
amarelas e amassadas pelo uso. O papá prometeu-lhe os livros
pelo Natal, ia compra-los com o decimo terceiro mês. Mas
naquela noite o papa ofereceu-me uma Barbie ultimo modelo
com todos os acessórios e uma mala nova para a escola e Nick
só recebeu o livro de anatomia do primeiro ano.
Nick ficou zangado e destruiu a minha Barbie e eu chorei e o
papá chorou numa chuva de promessas de : para o ano vai ser
tudo melhor, vais ver, vais ter os teus livros Nick.
E teve-os, não no ano seguinte mas no dia seguinte, todos os
livros e um carro e dinheiro no bolço e até á revolução não
voltamos a pensar ou a ficar preocupados com a falta de
dinheiro. Porque o papá deixou de estar na reforma, ele tentou,
eu sei que ele tentou, como o posso julgar? O sangue de alguém
pagou aqueles livros e Nick não quis saber, qual dos dois era o
assassino?
Nick apenas não carregou no gatilho.
E eu matei a minha filha.
Tenho vergonha de ser quem sou, de acreditar no sistema, de
louvar Estebam, o grande revolucionário depois de Castro, que
tomou o exemplo de Cuba na Lua, desapareceu logo de seguida
assim que nos atiraram para o comboio a caminho do fim.

152
Entre o medo de morrer e do como, ficou um ódio indiscritível
contra Nick. Não sei como aconteceu, porque ... acho que
começou muito antes daquele dia, muito antes das promessas de
uma vida palaciana em Marte. Começou quando, ao defender o
nome de meu pai, Nick respondeu-me num acesso de raiva: “ O
teu querido pai era um monstro, ele matou minha mãe, tal como
matou a tua e estou feliz por o estupor filho da puta estar morto
e que arda no inferno!”
Se meu pai era um assassino, Nick não era melhor do que ele,
era um Capitão Red , a diferença não é muita, por isso, estava
nos genes.
Eu sou uma assassina!
O medo é uma arma de destruição massissa. Eu sei isso muito
bem, aprendi da pior maneira. Menti e vi o medo a esvaziar-se
da minha alma, o tormento apaziguado como o fim de uma
dolorosa tortura.
Fui traída por um palácio em Marte e entreguei a minha carne
para a morte.
Era tão pequenina a minha Daniela, um corpinho rosado, de
olhos cor de amêndoa com um tufo de pelos no alto da cabeça.
Perfeita, tudo no lugar certo, cinco dedos em cada mão, cinco
dedos em cada pé.
Ficou apenas o leite.

153
Antes de ela nascer já corria dos meus seios, virou fonte
inesgotável de vida e com ele alimentei ou filhos de outras
mães, meus filhos.
Lembro-me das bocas ávidas nos meus seios, a chuparem
desesperados, o leite misturado com as lágrimas, todos eles eram
Daniela, vida da minha vida, nascidos do meu ventre,
amamentados do meu peito. Mas naquela altura já estávamos
todos afectados. Sem animo, sem esperança, só nos restava
esperar a morte e aquele leite era a promessa do paraíso, a
promessa do Reino do Verão, onde estaríamos em segurança,
onde ninguém jamais nos poderia magoar: salvos da dor, da
fome, da morte; a vida eterna…
Eles tiveram sorte, invejo-os por terem encontrado a salvação,
por hoje brincarem no Reino do Verão, esquecidos de todas as
amarguras. Será que eles, os meus filhos perdidos da terra no
nunca ainda se lembram de mim?
Podia ir até lá e perguntar-lhes pessoalmente.
Sou teimosa demais para isso, recuso-me a ser salva.

A febre subiu até ás convulsões, vitima de um parto sem


assistência e sem o mínimo de higiene.
Mais uma vez foi Lau-Léu quem partiram em meu auxilio.
Precisava de Penicilina e eles foram buscar. Tal como João
previu voltaram cortados em dois. A parte que voltou chegou
com a minha salvação mas ele já não podia ser salvo.

154
Sentou-se ao meu colo, as mãos dele envoltas no meu pescoço e
a boca nos meus seios.
Era um bebé acabado de nascer, bem podia ser a minha
Daniela.
Foi a noite em que os céus se abriram e os anjos do apocalipse
desceram sobre a terra.
O que aconteceu? Não sei, nunca saberei.
Daniel e João entraram no quarto de repente. Amamentava o
meu novo bebé recém nascido, protestei mas não quiseram
saber, afastaram-no de mim á força e arrastaram-me para fora do
quartel.
Lá fora, estavam todos loucos, idas e vindas á volta de uma
carrinha escafandro, Junto ás portas de acesso das traseiras
estava Damiem, parecia um demónio vindo das profundezas do
inferno, contudo havia algo de libertador enquanto gritava:
- Só os mais pequenos! Só os mais pequenos!
Acordei então, despertei para a vida enquanto os mais pequenos,
como carga eram enfiados dentro da caixa da maquina..
Daniel levou-me até ele implorou por mim, eu afastei-me
repudiando o gesto:
- Não! Leva-o antes a ele, leva-o a ele! – Estava a referir-me a
Lau-Léu cortado em dois que o João ainda mantinha bem
seguro.

155
- Não podes! – João afastou-o de mim mais uma vez. – Ele está
morto Atila, os mortos não podem viver na terra dos vivos! Será
o fim do mundo como nós o conhecemos!
- Não faz mal João, quando algo morre, no seu lugar nasce
sempre qualquer coisa, mesmo que seja diferente, será algo de
maravilhoso! Deixa-o ir João, acabaram-se os medos, acabou!
- Ainda mal começou! – Era uma profecia e não duvidei disso,
mas ao olhar para os restos de algo tão perfeito, vi a arma da
minha vingança, a força destruidora que nos faria justiça. Se ele
não fosse capaz, mais ninguém o faria.
- João... – Supliquei. – Por favor, por todos nós.
João deixou-o ir, não por mim, mas por ele, finalmente, não quis
saber, já não importava. Damiem pediu-me para o levar para a
frente.
Daniela estava ali, dentro de uma caixa de botas, aos pés do
banco do pendura, ainda vivia. Peguei naquela caixa preciosa e
depositei-a nos braços de Lau-Léu. Ele agarrou com força e
apertou-a contra o seu peito.
- Prometo mãe, prometo...
Não sei o que ele prometia , não quis saber, tal como João, já
não me importava. Virei-lhe as costas e afastei-me á procura de
Luanda. Via-a ao longe com um pequeno corpo nos braços a
correr em direcção a Damiem para o entregar .
- Vai também Luanda, entra! – Grito com urgência.

156
Damiem ajuda as duas entrar mas Luanda volta a sair e vem ao
meu encontro.
- Não te vou deixar agora. – Abraçou-me e beijou-me no rosto. –
Está na hora Serina, eles não vão conseguir passar sem escolta.
- Todos aos tanques!!!!
O meu grito é repetido um pouco por todo o lado.
Formamos em posição de quadrado em volta da caixa
escafandro.
Fomos todos, uns a pé, na retaguarda, os restantes nos tanques,
em posição de ataque, com tudo o que podíamos carregar. No
radio alguém gritou: Para o Reino do Verão!!” E ele foi repetido
como a derradeira promessa de libertação.

157
23º CAPITULO
DAMIEM TEM QUE PASSAR

Directos para a frente da Coligação.


A surpresa esteve a nosso favor os primeiros segundos, só até o
inimigo se organizar e retaliar com tudo o que tinha. Mas nós já
nem atacávamos, como uma massa compacta que diminuía
enquanto penetrávamos no território inimigo, abríamos caminho
seguro para Damiem, até ao outro lado, para fora do escudo
atmosférico, até onde não podiam ser seguidos e facilmente se
podiam esconder nas planícies rochosas.
Conseguimos.
Foi a nossa única verdadeira vitoria. Tínhamos um objectivo
comum e executamo-lo até ao fim, a qualquer custo.
A debandada foi geral, desorganizada, entre gritos que se
silenciavam logo de seguida e outros: “ Para o Reino do Verão.”
Estávamos cercados no vale da morte, mil tombavam á minha
esquerda e mil tombavam á minha direita.
Luanda gritava: Para a igreja, encontramo-nos na igreja:”
Fomos para a igreja, ou tentamos ir. Antes de entrarmos na
cidade já éramos um grupo muito reduzido.. Apanho Daniel no
Radio: “ Serina, ajuda-me! Serina!
Na confusão procuro por ele com um sentimento iguista, sem
querer saber de mais ninguém, tento reconhecer o tanque de
Daniel, o que é quase impossível com todo o fume que nos

158
cercava. Então vi-o, passou mesmo rente a mim. Travo de
repente enquanto ele choca comigo e rebenta logo de seguida
com um missal.
Ouvi um grito e demorei algum tempo a compreender que era eu
a gritar. Levanto-me a abro a escotilha, salto para o tanque em
chamas sem sentir o calor, as chamas, o fumo, os gazes, não
sentia nada, nem sequer pensei que usávamos fatos de nomex e
que eles ainda funcionavam. Abri a escotilha do tanque com as
mãos nuas sobre o metal ao rubro e assim que ela desliza, uma
tocha em chamas salta do interior, uma tocha com voz: “ Dói
mãe, dói mãe, dói...” A tocha desliza e tomba no chão e eu vou
atrás dele, tiro o casaco e abafo as chamas , viro-o, Daniel esta
negro como o carvão.
Deixei-me tombar sobre ele, queria morrer com ele, queria
arder, as minhas cinzas unidas ás dele, juntos para sempre, No
Reino do Verão.
O tempo passou sem eu dar por ele, parou naquele instante e
tudo o que aconteceu de seguida passou-se sem eu dar conta.
Quando reparei, estava no mesmo sitio, junto ao meu tanque, o
fogo já extinto, cercada por um vazio de morte e destruição. O
silencio era mais aterrador do que o barulho da detonação dos
roques, granadas e mísseis.
Vaguei-o pelos escombros da batalha á procura de
sobreviventes, mas não encontro nenhum. Contudo, não faz mal,
Damiem conseguiu, era a única coisa que importava.

159
O meu tanque estava demasiado danificado para arrancar e,
depois de um ultimo adeus a Daniel sigo para a igreja, a pé, sem
me preocupar em encontrar inimigos pelo caminho. Se alguém
tinha sobrevivido, estava lá.

Os lobos uivavam ao longe, algures. Chamei-os mas eles não


vieram e depois, até eles se calaram. O silencio era total. Nem
tanques, nem strikes, minas granadas mísseis gritos alguém a
respirar o pulsar da bomba dos filtros da atmosfera das sereias
dos alertas dos postes comboios crispar das chamas detonações
derrocadas...Nem um som um deslumbre de vida da dor de
qualquer coisa...qualquer coisa
Eu e a igreja, a porta tombada esventrada uma violação do
sagrado um buraco escuro negro como a minha alma que
sufocava...a bomba da atmosfera nem um som.
Entrei e vi o meu anjo, ao fundo, na parede do altar, de vestido
cor de rosa pregueado, de sorriso largo de rosto limpo dourado
de longas tranças de dentes brancos muito certinhos, sentada no
trono do Reino do Verão, aos seus pés muitas cabeças de braços
estendidos, protegidos por três lobos monstros gigantes bestas
feras que devoravam tanques num jardim de rosas e macieiras.
Ainda estavam vivos. Deitados numa poça de sangue,
amputados pés e mãos sob o prazer doente de fúrias cegas, os
corpos violados torturados desfigurados.
Ainda estavam vivos.

160
Um monte de pés e mãos a um canto, de todas as cores de todos
os tamanhos.
Meu anjo chamou por mim e eu fui, ela foi a ultima.
-.Luanda...
- Não faz mal...não faz mal mãe. Estás a ver? As palavras são
sangue a borbulhar na boca sem dentes. – Dói mãe, dói...
- Eu sei. – Tiro a faca do cinto. – Não vai doer mais, vamos para
o Reino do Verão, nunca mais vais sentir dor. – Mal sinto a
lamina cortar a carne e artérias. – Nunca te vou deixar, nunca...
Choro finalmente, sou lagrimas sangue e leite.
Pego nela ao colo, nem lhe sinto o peso e procuro a sala onde
senti Daniel pela primeira vez dentro de mim. A sala secreta
com o legado de Luanda.
Nomes e óbitos.
Deito-a com cuidado sobre a pedra do chão, sento-me á mesa e
acabo o seu trabalho, no fim escrevo: “ Serina Maria Polo,
falecida em vinte e oito de Abril de dois mil e noventa e três.”
Fecho o livro e deixo-o no mesmo lugar.
Acabou para mim, para todos, fica um vazio inexplicável.
Volto para a igreja, junto os outros e deito-me ao lado deles, a
olhar para o tecto, um parque, um jardim, onde estamos todos, a
jogar futebol.
Estão a rir.
Correm a rir, marcam golo, levantam os braços ao ar, abraçam-
se...estão tão felizes. Ao longe as sereias, quase que não ao

161
ouço, e as detonações, umas atrás das outras, até que o jogo
acaba e o tecto se abre para se desfazer um mil bocados. Fecho
meus olhos, finalmente.
O jardim é luz e cor. É tal qual como eu imaginei, não sinto
nada, apenas uma leveza crescente e uma infinita sensação de
paz. Luanda aparece á minha frente, com um sorriso do tamanho
do Sol. “ Tens que voltar Serina.”
“ Eu não quero voltar.” – Protesto. “ Não te vou deixar, nunca,
preciso de ti.”
-“ Eu estarei sempre contigo, no teu coração!”
A imagem de Luanda desaparece e eu grito inconformada, não
quero que ela vá embora, não quero, é suposto ter acabado tudo.
O jardim é substituído por névoa cinzenta e sons característicos.
- Está consciente!!
Procuro o dono da voz e descubro um rosto grotesco obeso e
careca de orelhas enormes, um rosto húmido lavado por
lagrimas que tombaram sobre o meu e sinto o sabor salgado da
dor:
- Encontrei-te, eu sabia, eu sabia...encontrei-te! – Ele aperta-me
nos seus braços, o grande obeso tio Vito.
Está tão feliz que fico contagiada, o meu espirito transborda de
esperança, a um nivél surreal, onde o impossível se transforma
em realidade.
Liberdade, segurança, para mim, para todos…Depois algo
muda, tento gritar mas só sai um gemido inaudível. Ainda tenho

162
a faca nas minhas mãos a mesma que usei para salvar Luanda,
para nos libertar, a passagem de uma viagem até ao Reino do
Verão, onde seriamos realmente felizes.
Não sei onde encontro as forças, o meu braço levanta-se, tinha
sido para isto que Luanda me queria de volta, mais um bocado,
só mais um pouco...
Ele afasta-se com uma expressão de crescente espanto.
- Arde no inferno! ! –Meu desejo...

Fim

163
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