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Maria Anita Carneiro Ribeiro

UM CERTO TIPO DE MULHER

Irernnsf

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I

2or1 Ma-ria Anita Carneiro Ribeiro


livro segue as normas do Acordo Ortográfico 1f
da Ltngua portuguaa de t99o,
ado no Brasil em zoog.
(l

Editorial
r)
sadora Travassos í.f
Editorial Sumario ()
istina Parga r)
uardo Süssekind
SaIomé Apresentação l-1 (,
Prefácio 13 r)
Feminina e francesa 23
{)
{)
O enigma d.A. mulher: histeria e ob§essão 4L
()
As damas obsessivas e o falo 59 ,)
... E nâo nos deixeis cair em tentação 79 ()
r certo tipo de mulher
- Rio de ]aneiro :7lehas, zorr, Seu único e inesquecível homem: Deus 99 r)
r90 p.;2r cm.
Uma máscara de mulher L2t ()
Inclui [ribliografia
r)
rsnN 978-85-75 A dor de Medeia L37
ZZ -977_7
r)
Neurose obsessiva. 3. Freud, sigmund. Um pouco de poesia e beleza 159
iiiil?r1,lT;,.1. 4. Lacan, ]acques.
)
Um "quê" de melancolia L67
cDD:150,195
1)
cDu: t59.964,2 Posf;ácio r-87 r)
1)
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iros dc Castro Editora Ltda.
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Gocthe, 54 Botafogo i)
rlcJaneiro I nl I c.p zzzgr-ozo
(zt) z54o-oo76 )
letras.com.br I www.Tletras,com.br
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Os que possam pensar que é por razõu ligadas a seu sexo


aui osiuieitos acolhem aisa ou aquelafaceta da neurose
' veraoi nesta oportunidade, o quanto o que é da ordem
ila atrutura na neurosq deixa muito pouca margem à
determinação pela posição do sexo, no sentido biológico'
(J. Lacan, Serninário v)

I
A meus filhos, loana e Thiago, com muito amor.

A mew pais, que queiam escreverlívros.


-t j='
I

Apresentaçâo

Dez anos seParam a primeira ediçáo de [Jm certo tipo de mulher,


em 2oo1, e a presente edição. Durante este temPo, continuei a
estudar, movida pelos desúos da clínica e também pelos traba-
lhos apresentados por colegas em simpósios, jornadas e reuniôes
científicas e pelos alunos, na minha instituição de psicanálise e
nas universidades onde ensinei e nas que ainda ensino'
Foram estes desafios que me levaram a fazer acréscimo nos
capítulos 5 e 9 (antigo capítulo 8). São acréscimos que me pare-
cem necessários e enriquecedores. Porém o que me entusiasmou
de forma particular foi o novo capítulo 7, que alterou a numera-
ção dos dois posteriores, e que' a meu ver, trouxe para além do
título, um pouco de poesia beleza ao liwo. Este capítulo é fruto
e

de uma pesqúsa mais recente, e esPero que não seja muito amb!
cioso desejar que traga algum esclarecimento sobre os inúmeros
inigmas que a neurose obsessiva ainda apresenta'

Maria Anita Carneiro Ribeiro

I
I

Prefácio

tlm certo tipo de mulher étanto o desdobramento fio a fio quanto


a sustentação rigorosa da seguinte afumação: hoje, como ontem,
sáo muitas as mulheres que sofrem do que Freud soube üagnos-
ticar e esclarecer sob a denominaçáo de Zwangsneurose ovneu-
rose obsessiva. Nesse sentido, ele é também uma resposta. Ou
não ouviríamos, nrun tom entre a surpresa e a descrença, a Per-
gunta que insiste:'Mas... existem mulheres obsessivas?"
Lacaniana à la lettre, Maria Anita Carneiro Ribeiro parte
de Freud e de sua principal contribuição à nosografia da época.
Naquele momento inaugural, era-lhe necessário demonstrar que
os pensamentos obsessivos e os atos compulsivos não deveriam
ser classificados junto às psicoses em geral, entre o que ele chama-
ria posteriormente de 'heuroses narcísicas", mas antes em série
com as histerias de angústia e de conversão, entre as neuroses que
seriam ditas "transferenciais'l Além disso, Maria Anita ilão des-
considera a constatação clínica de que, não menos que as histéri-
cas, as mulheres obsessivas nos ensinam algo "sobre este-aspecto,

ç..t .gto d" f.tnit ilidrd.'l


uma vez que sáo não só menos enganadas pelo falo quglelx e
furono
seia.
__ mais DroDensas ao deslizamento metonímico, o qual denun-
cia com clareza que ao *g§j"blr*939-gue despertghorror, já
o -_-=____--
dizlam-Freud e Lacan, il nly a quhn pas. Ee_q"t4s.-p1bw?i,-é

r3
t,
lt diminuta a distância que separa em um pensamento obsessivo
os análise'l Iá no final do primeiro capítulo, podemos depreender
vocábulos Deus e merda, Cristo e pênis etc, as consequências clínicas de um ensino-aprendizagem seguido à
Alguns psiquiatras anteriores a Freud demonstraram conhe_ risca através do caso clínico de uma adolescente. Mantê-la fora
cer a alta incidência da patologia obsessiva em mulheres, ainda da internação como forma de evitar sua identifrcação com o sig-
que a considera§sem um dos tipos clínicos da psicose. por essa nificante "louca", à qual a destinavam as coordenadas familiares,
razão, somos conduzidos, no primeiro capíttrlo, pelos mean- foi a aposta bem-sucedida da psicanalista com base no diagnós-
dros de textos da psiquiatria clássica, a partir dos quais a tico diferencial. Diante da subjetivação da ideia de se matar e da
autora
retoma, uma a [una, as diferentes formas em que essa patolo_ ausência do fenômeno elementar da alucinação verbal, conclui:
gia foi inicialmente definida: mânia de delíriq monomania de não se trata de um caso de psicose, mas de neurose obsessiva de
raciocíniq loucura da dúvida, patologia da inteligência, entre umamulher.
outras. Tais nomenclaturas, as quais devemos a pinel, Esquirol, O segundo capítulo recorre aos poetas: Marguerite Duras,
J.-P. Falret e Legranddu saurle respectivamente, não eram uní- Nelson Rodrigues e... Lacan. O que nele está em jogo é o enigma
vocas, pois acentuav.rm ora a alteração da conduta dos d'Á mulher e as diferentes formas em que ele se apresentananeu-
sujeitos
obsessiyos, ora sua alienação parcial. Com Falret Filho, psiquiatra rose obsessiva e na histeria. No texto poético desses autores, não
que observou tratar-se de uma doença mais comum em só se vê que "roubar o homem de uma mulher é tornar-se a Outra
mulhe_
res do que em homens, encontramos, como acentua Maria cujo corpo será desnudado'l como também se aprende a firnção
Anita,
'h melhor descrição da neurose obsessiva antes de de véu do vestido, uma vez que ele encobre apenas "o lugar/vazio
Freud'i na qual
que é o dA mulher'l Mais, ainda: verifica-se que a morte de uma
os que delapadecem demonstram incessantes escrúpulos
religio-
mulher não elide a questão que a castração feminina impõe, por-
sos, autorrecriminações, as mais diversas fobias, além de
cuida_
que disso emerge 'h busca incessante da impossível resposta'l
dos demasiadamente longos com a toarete e o sentar-se à mesa.
Nesse sentido, trata-se tanto de distinguir neurose e psi-
Foi necessário, contudo, o advento da teoria psicanarítica,
cose quanto de reconhecer a estratégia de cada tipo de neurose.
para que a articulação de cada um dos diagnósticos com uma
 estratégia da neurose obsessiva, anunciada desde o primeiro
determinada direção do tratamento desvelasse para nós a
cru- capítulo, é então retomada e esclarecida pelo 'truque de Paris":
cial importancia do primeiro. Como veremos neste liwo, se um
fazer-se ver pelo inimigo nos mais diferentes lugares, porque
analista deve poder se antecipar a uma possível interrupção
do estar em todos os lugares é não estar em lugar atgum. Estratégia
tratamento, sob o argumento banal e corriqueiro de que .,tudo
de inflação imaginiíria, como a da paciente que diz: "Eu sou a
agora está beml precisa também saber avaliar o alcance
de uma maior merda do mundo!", para, desse modo, dar a entender que
compulsão a atirar-se pela janela, esse importante elemento 'não é uma merdinha qualquer'i Nenhum obsessivo, homem ou
da
'heurose obsessiva da mulher'l É assim que se decide
a manobra mulhec deixa com facilidade a jaula em que se debate para enga-
da transferência, e que pode formulá-la como o "delicado nar Morte, seu mestre absoluto.
rimite a
existente entre o alivio produzido pelo ato de falar e a manuten- 'As damas obsessivas e o fald', terceiro capítulo do liwo, ana-
ção de um grau de angústia que permita ao sir;eito prosseguir sua lisa o modo particular de degradação do Outro na neruose obses-

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L5

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I

siva feminina e retoma as críticas


de Lacan a Fairbairn, que, em "O sinal", de Guy de
uma espécie de retorno à psiquiatria fenêtre,ela então utiliza um resumo do conto
pré_psicanalitica, insistia em
Maupassant, ao qual Freud se referira a propósito dos sintomas
1/ tratar sua paciente obsessiva como se,
por trás da neurose, hou_ de uma mulher obsessiva. No conto, uma baronesa em estado
vesse uma psicose latente, ou
seja, uma ausência de referência
il ao de grande agitação revela a uma amiga que se comportara como
i falo. Nos termos da autora, é o conceito
lacaniano de semblante "uma mulher da üda": fora até a janela e frzera sinal para que
que posteriormehte esclarece o aspecto
de tombra, do falq pois um homem subisse. Nos termos de Freud então retomados, teria
ele, qual sombra interposta entre
o sujeito e seu gozo, reúne sim_
havido uma descarga sexual decorrente da ideia inconsciente de
bólico e imaginríriq e os opõe ao real
Fazendo uso de um texto sua interpretação,
literário como se fosse um caso clínico, faire la fenêtre, e somente depois da angústia e
Maria Anita propõe outra com a "angústia de cair da janela'l revelando a associação: angús-
série insügante: Bouvet, Lacan
e Eça de eueiroz. Se a hóstia
repre_ üa + janela. E, lançando mão de tun caso de sua própria clínica,
sentava os genitais masculinos para
a paciente de Bouvet, e le o uma jovem adolescente para quem "polut a janela" era o substi-
paciente de Lacan fantasiava introduzir
uma hóstia na vagina da tuto consciente da ideia inconsciente plena de desejo: "estar na
companheira, em pouco ou nada
difere dessas pacientes a beata praia nua, dando pra todo mundo I conclui com finura: "Na Viena
d'e o crime do padre Amaro,
uma vez que um escarro rhe assomava de Freud ou no Rio de |aneiro de hoje, a mulher obsessiva dá ao
à garganta sempre que devia prorr*.1*
o nome de ]esus.;$ift_ jocoso faire la fenêtre de Maupassant a sua versáo trágica e mor-
rs4ça da histér,tca,_que situa para
além do homem o Outro abso_ tífera'i Seguem-naÁ dama do tapete, A dama das lavagens e tam-
ISg e-gbssssry3 *r**1*;.i. àffi
f,ifico-deixa nr-qs-qlgggl"
bém Piggle, abem conhecida análise de Winnicott de "uma dama
-o de dois anos e quatro meses". A releitura de seu caso, por meio da
qual a autora o eleva à dignidade de paradigma, tem por objetivo
no lugar de Outro
abs-oluto,_p_ara_aga*_rjl"dt
máticol e que ele sempre é um segundo t
t1log qqqarrps. I"4r{9-§j q!ps.=
Desdobrando então o enunciado
freudiano segundo o quai das máscaras que vestem as mulheres obsessivas, quer isso se dê
"quase se pode dizer que a
neurose obsessiva é uma religião
par_ em suas relações com os homens, quer com o analista e/ou com
ticular", a autora descreve, no capítulo .hs
4, religiosrs dã signin_ Deus. Esse capítulo se inscreve na contracorrente de uma certa
cante'l como ela nos mostra, seu
deslizamento metonímico não prática pós-freudiana, cujos fundamentos, bastante criticados
deve ser incentivado. Não se d,eve
fazer.h interpretação da inter_ por Lacan, são chamados de "teoria da relação de objeto'l O pró-
pretação'lpois em anáüse o obsessivo
"é um 'trabarhador dedi- prio Freud admitia que uma mulher, através da supervalorizaçáo
cadol Dito de outro modo, é necessário
não levá-lo .h uma inter_ sexual do objeto, podia amar'tomo um homerni Mais que isso,
minável cadeia associativa em busca
do sentidq do sentido, do porém,'de sua observação sobre mulheres aduitas que anseiam
sentido"''l Para esclarecer o sentido
a ser dado à expressã,o
faire ra encarnar um ideal masculino, deduz-se que, em linguagem laca-
r6
17
I
niana, a Penisneid pode ser rida como 'h nostalgia do
faldl euer O sétimo capítulo, 'A dor de Medeia'l desvenda um asPecto
dizer, Freud preparara o terreno para que Lacan,
ao retomar suas peculiar da neurose obsessiva em mulheres: a obsessáo infanti-
premissas, pudesse asseverarr "se a posição do
sexo difere quanto cida. Por que entáo não chamá-la pelo que ela realmente é: uma
ao objeto, é devido à distancia que separa a forma
fetichista da obsessáo âlicida? Se de fato a dor de uma mulher obsessiva tern
forma erotomaníaca do amor.,,
sempre algo de Medeia, entáo a excessiva preocupação com seus
Mas se, com Joan Riviêre, Maria Anita demonstra que
o femi_ filhos não tem como consequência a privaçáo sexual. A ordem é
nino é máscara, descartando quarquer ideia de uma essência
ou de inversa: primeiro a privação, isto é, a perda do lugar de objeto do
uma natureza femininas, é com suape quena piranha, ..pro-
em sua desejo do homem, depois a fantasia de morte do(s) filho(s). Ou,
fusão esvoaçante de cachos, minissaias, corpete justíssimo,
salto nos belos termos em que a autora o enuncia, a fantasia de "imolar
plataforma, unhas longas e vermelhas e, sobretudo, mortdl Ousada, a autora não se furta
um batom o filho no altar do Outro da a
vermelho üvíssimo...", que erapode úrmar que amascarada
femi- interrogar o mestre, propondo-nos que o deciframento freudiano
nina não se um sintoma. para uma mulher, aliás, a masca-
reduz a
segundo o qual se leria: filho + privação sexual à morte do fi1ho,
rada é mesmo inevitável, porque advém de sua própria
condição lhe parece ser "um primeiro deciframento apressado do sintoma'i
de não-toda inscrita na castraçãq ou na lógica fiáüca.
Trata-se antes de saber que espécie de insaüsfação antifreudiana é
Em "Ilma máscara de mulher,', vemos de que modo
os véus essa de uma mulher com a maternidade, que ato é esse de que os
são um tormento para a obsessiva, bem como a que ,turiosos
filhos sáo as ütimas e cuja únicaüsada é atingir o mais íntimo de
extremos" podem ser levadas essas mulheres que se sabem
pre_ um homem, o âmago mesmo de seu ser. Em suàs palavras, tanto
sas aos artifícios da máscara. por meio de um
debate entre Freud Medeia como Madeleine sabem o que fazem e Por que o fazem.
e clérambault, Maria Anita mostra que não há
fetiche sem a refe- O oitavo capítulo, novidade da presente ediçáo, discute ques-
rência ao outro sexo, concluindo de forma bem-humorada: ,,No
tões de poesia e beleza, articulando-as com3l3efesas exclus,i-
que diz respeito à perversâo, as mulheres estão em
posição mais varnente a anulação e o isolamentp-'nn.Ws
cômoda que a dos homens: são perversas por serem mulheres, ^obseTivas,
e Neste
sua forma de amar é sempre marcada pela per-versáo
do desejo.,, capítulo lemos, por exemplo, que o recurso à metonímia para
Em seguida, com base na releitura de Lacan do tratamento garantir a manutenção do recalcado não produz efeitos de poe-
de
uma mulher obsessiva por Bouvet, denominada A mulher
do sia, leva, antes à confusão da neurose obsessiva com a paranoia e
sapato, esclarece as diferenças entre as relaçôes de uma
histérica a melancolia. lg-ggritual§_{er-r_:"vtlrfazer e desfazer, cuja visada é
e de uma obsessiva com o pai e com o homem, respectivamente.
anular a rprópria
_1.- asressividade,
não constroem fetiches, nem des
" - .-. ..----- -- - -.
Enquanto a primeira denuncia a impotência do pai em
lhe dar q r4entem a castração. Resumidamente, as primeiras páginas do
+
significante de um gozo suplementar, a segunda, porque
crê no capítulo nos advertem dos riscos de urn diagnóstico calcado na
pai, espera do homem a salvaçãg ou seja, enquanto a
histérica fenomenologia.
quer despertar o desejo masculino exibindo a falta, a obsessiva Prossegue este capítulo intihilado "um pouco de beleza e
procura fazê-lo encarnando o significante da falta.
poesia'] lembrando ao leitor que, aquém ou além da neurose, 't
r8 19

)
T

no amor que uma mulher, seja


!
ela histérica ou obsessiva, busca
sua subsistência,i peito do que pode ser subjetivado a partir do continente negro
M
da feminilidade. Todo aquele que pôde privar da companhia
remenre em tunção T;
segunda se pode dizer que ,tua
*TTIi,:J:Tffi,: nffiT:::T; daquela que escreveu este liwo certamente conhece um de seus
forma particular de se locüzar
linguagem não lhe permite recobrir_se na üaços mais particulares: o entusiasmo com a prática analítica,
de poesia,l Haveria, entãq
uma distância inevitáver entre algo que transparece em cada uma de suas páginas.
as *rlh"r.. obsessivas e
abereza?
Não é esta a conclusão da autora.
Ao contrário, seu texto nos leva Rio de |aneiro, 3r de março de zorr
a reconhecer na mascarada
feminina das obsessivas, gual
seja, em
vestidos e joias, os instrumentos ..que
:.::"UT
qe camuÍIar a morte com a beleza,l
Ih"s àao a ír.ao Vera Pollo

Não resta dúvida de que somente


uma leitura desse porte
poderia ter conduzido a autora
a encerrÍr o nono capíttrlo
com
uma importante discussão sobre
as diferenças clínicas entre
o
ouf, a passagem ao ato e o ato
lcting sintomático. É a partir da
denominação dada por Lacan aos
atos de Medeia e de Madeleine
- 'ãtos de uma verdadeira
mulher,, _ e por concluir que
é viável
a leitura retroativa de
uma passagem ao ato que Maria
Anita des_
taca'uma possíver leitura da reraçao
particular da murher obses-
siva com a verdade: melhor
do qrl., hirrérica, a mulher
obsessiva
denuncia que o filho não é o
falo.
Enfim, tal quai o movimento da
pulsão que retorna sobre
si, o nono capíh:Io retoma a confusão
diagnóstica entre a neu_
rose obsessiva e a melancolia,
ainda hoJe fre"quente, sobretudo
tratamento de mulheres. A partir no
do ainda atual debate Freud_
Âbrúam e das ultimas elaboraçôes
freudianas sobre o supereu,
esse- ultimo capítulo Procura avançar
na anáIise dos diferentes
modos de relação das mulheres
com o amor. Se bancar o que n4o
sÉPgrmanece sendo algo da "ordem
do inewifáwer,, -o.a ^ - *..rL ^
res, reconhecê-las cgmo escravas
qlitic?yt-nJe-iAcg1.-e-
uda na
íva e histérica.
com [Jm certo tipo de murher,o"rffia"
clínica anaütica, dos mitos e da literatur", . upr.rrd._se algo a res_

i
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i:

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Feminina e francesa

UMANOVA NEUROSE

A palawa psicanálise foi usada pela primeira vez em r.896, num


artigo intitulado 'A hereditariedade e a etiologia das neuro-
ses", neste mesmo artigo Freud afirma que, levado por sua pes-
quisa, foilhe necessário introduzir uma inovaçáo nosográ-
fica. "Encontrei razões para situar, junto à histeria, a neurose de
obsessões [...]" (p. 146). O artigo foi redigido e publicado origi
nalmente em francês, e é portanto da pena do próprio Freud que
vemos nascer la névrose obsasionnelle como traduçáo da palawa
alemã,Zwangsneurose, assim mesmo, no feminino e em francês.'
Freud reivindica assim e, como veremos a seguir, não sem
razáo, a paternidade da neurose obsessiva, sua cria, surgida do
rigor da pesqüsa e do cuidado meticuloso com o diagnóstico
diferencial. Para nós é de extrema irnportância esta autoria assim
tão claramente afirmada, pois joga por terra qualquer úrma-
ção apressada do tipo "Freud se enganou ao classificar algumas
mulheres como obsessivas'i Freud não pode ter se enganado pelo
simples fato de que Freud inventou a neurose obsessiva e, assim
sendo, neurose obsessiva é o que ele, Freud, diz ser. E se fala de
mulheres obsessivas - não poucas, mas muitas - o que nos resta

' Na nota introdutória a Obsusões efobias, ]ames Strachey atribui a Kraft-Ebing, em


1867, a introdução do termo Z:angworstellung (ideia obsessiva) corno traduçáo
, alemá do inglês obsxsíon,p. 72.

I
afazer é debruçarmo-nos sobre seus ensinamentos e deles apren-
lidaddl estava obtendo, em contraste com o fracasso que e§Pe-
der sobre este aspecto, certamente muito obscuro, do continente
rava'üas coisas realmente boas" entre as quais enumera um texto
negro da feminilidade.
sobre as "Ideias obsessivas", presumivelmente (e quem Presume
O adjetivo obsasionnelle, em francês, se deriva de obses_ aqui sou eu) o texto "Obsessões e fobias" escrito no mesmo ano e
sion (em inglês), que tem como raiz latina oásassus, significando
publicado em 1895.
"sitiado'l 'tercado'l É curioso notar como
mesmo antes de Freud, No rascunho D que acompanha esta carta, "Sobre a etiologia
esta característica de "estado de sítio" da neurose obsessiva
era e a teoria das principais neuroses", a neurose obsessiva jâ é apre'
sublinhada pelo psiqúatra Legrand du saulle. Descrevendo o pri-
sentada com seu nome próprio' Mas é no Rascunho K, que acom-
meiro período daquilo que ele denomina "loucuras da dúvida,l
panha a carta de ro de janeiro de 1896, ironicamente intitulado
conclui: 'iA. luta é silenciosa: o sitiado não se queixa do sitiador,,
por Freud de Um conto defadas natalino, que e1e vai firmar a des-
(p.s:).
crição de netuose obsessiva, contrapondo-a à paranoia e à histe-
Embora o termo'heurose obsessiva,l cunhado para designar
ria e caracterizando-a pela autorrecriminação, o que é hoje con-
o que Freud afirmava ser'ma .,inovação nosográfica,i só tenha
sagrado como o'tofrer dos pensamentos".
surgido em 1896, a preocupação de Freud com a obsessão e as
A grande "invençãd' de Freud foi retirar a obsessão do campo
representações obsessivas é bem anterior. Aliás, o próprio
sin_ das psicoses e subordiná-la ao campo da neurose ao lado da his-
tagma 'heurose obsessiva" já está presente em sua correspondên-
teria. Freud, na verdade, subverteu a perspectiva a partir da quai a
cia a Fliess dois anos antes de anunciáJa como,Ína nova concep-
psiquiatria abordava então as obsessões: como dar conta de uma
ção nosogrrífica. Comenta então com o amigo que ele tem razão
"loucura" (mania) que não afetava o raciocínio? Ao centralizar
em chamar-lhe a atenção para o fato de que o vínculo entre a
a questão da obsessão em torno do pai, Freud pôde alinhar sua
neurose obsessiva e a sexualidade .hão é assim tão óbvio, (p.
66).
nova neruose ao lado da histeria.
Curiosamente, no texto gue os dois presumivelmente, comen-
tam, 'âs neuropsicoses de defesa'l Freud não utüza o termo neu_
rose obsessiva, mas se refere apenas às representações obsessivas os clÁsstcos
(Zwangsvarstellungen). É como se precisasse ganhar
tempo e se
aprofundar em suas pesquisas para impor com tranquilidade a O debate da psiquiatria clássica antes de Freud, sobre aquilo que
nova neurose por ele descoberta. após o mestre sabemos ser a neurose obsessiva, tomou a dire-
Na carta de zr de maio de rg94, diz a Fliess que se sente muito ção contrrária, ou seja, preocuPou-se em afirmar a integridade
só na elucidaçâo das neruoses e comenta a ironia da ,.incongruên_ do pensamento nesta afecção. Pinel chrunou íe "mania serBielí.1
cia entre o apreço que se dá ao próprio trabalho intelectual jl"_§Tg_ryry_po::ig j-glgg!"dqç-que-s-e3arss!çdza-v-a-Pelo-f ato
eo
valor que os outros the atribuem' (p.zà. Fala do grande sucesso de que se tratavam de "loucos que em nen[Yq j1otl9.n193g9--
que um üwo sobre as dplegias, que preparou ,,quase corn
frivo-
t_.:i"* qü"t-quã-tesaõ {o=ent.ndim".lrio, (ue estavam domi:
"
nados de uma espécie de instinto de furor, como se uniçq-4entq
Âpresunção édo editorJeffreyMoussaieffMasson, iítiGssem lêsadas suas faculdades (p- +r). Neste artigo,
nanota da carta de3o.r..r994, p.6S. 1{etiyls'
24 25

I
E---
lii.
ir

Pinel descreve magistralmente três casos de sujeitos acometidos ern 166o,r sobre um de seus devotos. O piedoso homem lia dois
de um fiuor sem limites, porém isentos de atividades delirantes. livros de devoções que tanto lhe agradavam que resolveu discipli-
Embora o autor não nos dê outros dados que permitam um diag- nar-se na tarefa, Passou a dedicar três horas por dia para ler seus
nóstico cabal de neurose obsessiva, os casos descritos se asseme- üvros, e como observou que em três horas lia os livros três vezes,
lham aos daqgs!*{g SIg de que são capazes alguns obsgggvos passou a os ler durante seis horas. Em pouco tempo já tinha che-
quando, prlsos na gaiola de seu naicisismõ ie-ntem-sãim"gi""- gado ao ponto de ler durante doze horas, doze vezes seus precio-
,1@---_Ug_úaça{os. Uá bom exeúplo deste furor, toiahãnte sos liwos, o que levou o sensato bispo a declarar que "seu escrú-
ãpoiado na rivalidade imaginríria, está no fllme "[,lm dia de fiiria'l pulo era irracional".
no qual o personagem central, encarnado por Michael Douglas, A avaliação do bispo Tayler era guiada pelo bom sensq
sentindo-se pressionado e ameaçado pelo cotidiano estressante enquanto que o objetivo de Prgele-Elguirol era o de determi-
da cidade grande, sai matando como um louco. Um dos aspectos nar o caráter específico a. delí-
"rrá;t&à-É;d";"?üàsem
interessantes de se observar é que o alvo de seus ataques é sempre rio. No início do artigo citado, Pinel deixa isto claro, ao se opor a
um representante de uma minoria racial (minoria para os Estados Locke, para quem a loucura seria sempre acompanhada de uma
Unidos, é claro). Assim, asiáticos e chicanos caem sob seus gol- perturbação no raciocínio. Ao estabelecer a diferença entre o
pes justiceiros, ilustrando magnificamente o que Freud chamou louco e o idiota, Locke diz que: "Os loucos juntam ideias erra-
de narcisismo da pequena diferença. O ponto mais curioso é gue, das e assim constroem proposições errôneas, mas argumentam e

centrando a trama na ótica do herói-assassino o diretor leva o raciocinam certo a parür delas; mas os idiotas constroem poucas
espectador a uma identificação especular maciça, deixando claro ou nenhuma proposição, e quase náo raciocinam" (p. 146). Para
*não
que qualquer um na sala de projeção do cinema é potencialmente Pinel, na "mania sem delírio', se adverte nenhuma alteração

um "maníaco sem delírio" nos moldes de pinel. sensível nas funçóes do entendimento", e sim uma'terta perver-
são nas funçôes afetivas", sem que se possa assinalar "nenhuma
Também outro ilustre representante da psiquiatria clássica,
ideia dominante, nenhuma ilusão da imaginaçáo que seja a causa
Esqúrol descreve um transtorno mental, a "monomania racio-
determinante destas funestas inclinações" (p. +s).
nantdi que consiste em umaperturbação da conduta sem partici-
Assim sendo, o que preocupa Pinel é a etiologia de sua "mania
pação do raciocínio: "Por mais irracionais que pareçam seus atos,
sem delírio" e o que o espanta é não encontrar runa ideia deli-
estes monomaníacos sempre têm motivos mais ou menos plausí-
rante que origine esta dita mania. EmíJSgÇtr[_F@t descreve
veis para justificar-se, de modo que podemos dizer que eles são
minuciosamente o que ele chama de "úenaçáo parcial com pre-
loucos razoáveis" (p. S:).
domínio do temor ao contato com os objetos externos". Salienta
A "mania sem delírio" e a "monomania raciocinante" cen-
que é uma variedade de doença que tem como fundo os delírios
tram a classificação nosogriífica na pecúaridade de existirem
parciais, ativos e expansivos, estando portanto do lado da mania
maníacos que preservam o seu raciocínio. Tiú nâo é a opinião do
e não da melancolia. Ressalta que é uma variedade da mesma
bispo Jeremy Tayler, autor de uma curiosa observação publicada
Como observa J. Stracheyo significante obsession data, em inglês, do século xvu,p. 22.

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enfermidade que seu pai chamou de "doença da dúvida,i ..para e surpreendentemente observa que "esta doença é mais comum
resumir, em sua forma mais geral, o fato psicológico que consti_ na mulher, porém também se observa no homem" (p' S6).
tui seu fundamento principal" (p. +S). A maior incidência da neurose obsessiva nas mulheres obser-
. -?ara Fúet Filho,
trata-se de uma doença que atinge ospensa_ vada por Falret é facilmente expücável pelo fato, que ele próprio
,' mentos e as ações. O doente se vê compelido a repetir os mesmos sublinha, de que esta é uma doença que aParece mais frequente-
' atos e as mesmas palawas, o que implica um tesgaste excessivo mente nos consultórios particulares do que nos hospitais e asi-
da energia nervosa e intelectual'l levando o sujeito a um estado de los para úenados. Assim sendo, não espanta que em 1886 o ilus-
.- tal sofrimento que o autor se surpreende que esta doença, que às tre alienista encontrasse mais mulheres se queixando de siirtomas
vezes dura a vida inteira, 'hão desemboque nunca numa verda- obsessivos, pois até hoje a clínica comProva que as mulheres,
i

deira demência" (p. 5o). mesmo as obsessivas, têmmaiorpropensáo a falar dos seus proble-
- -- O texto de Falret é sem dúüda a melhor descriçáo da neurose mas, das suas falhas, do que os homens, mesmo os histéricos. Esta
obsessiva antes de Freud. Como podemos ver, o autor salienta, hipótese é confirmada por Legrand du Saulle, que reivindica ser o
desde o título que dá à doença, or_9úioa1;ài,iÊ9i presentes primeiro a isolar a "loucura da dúvida (com delírio do tato)'i como
com frequência na neruose obsessiva. Oii-{ue tais doentes têm uma das quatro variedades nosológicas da loucura cornconsciên-
medo de tocar objetos externos com suas mãos, pois estes podem cia. Diz ele: "A loucura de dúvida afeta muito mais às mulheres do
estar sujos ou podem conter alguma substância prejudicial. Têm que aos homens, pode aparecer pela primeira tÍez na puberdade
também medo de cachorros e sobretudo de cachorros raivosos e se observa quase sempre nas classes mais aitas da sociedade"
(p.+8). Fogem ao contato com todos os objetos e os objetos metá- (p. s6). Esta observação confirma o fato enfatizado pelo autor: a
licos "são, de ordinário, aqueles cujo contato mais lhes repugna,, "loucura da dúvida" é doença de consultório particular.
(p.+S).Além disto, alguns pacientes são sujeitos a escrúpulos reli- Du Saulle menospreza os trabalhos de seus antecessores e
giosos e se reprocham sem cessar. Empregam um tempo dema_ úrma ser o primeiro a de fato estabelecer a sintomatologia desta
siadamente longo para fazer sua toalete, ou para se sentar à mesa. "patologia da inteligência" (p. 5z). Ele também atribui a ProPen-
Falret vai assim enumerando, catalogando cuidadosamente, os são à doença à herança mórbida, e dá como fatores desencadean-
sintomas que Freud decifrará no futuro como característicos da tes do quadro, não só uma variada lista de doenças físicas, mas
neurose obsessiva. É curioso verificar como a simples observa- também'b onanismo inveterado, uma grande emoção e um vivo
ção clínica, sem um respaldo teórico preciso, leva o autor - cer_ pavor" (p. ss).
tamente um grande clínico - a atribuir o mesmo peso a sintomas Du Saulle também une neruose obsessiva e fobia. Sua "lou-
importantes (a repetiçáo de atos e palawas, os escrúpulos) como cura de dúüda" vem acompanhada sempre do "delírio de tato'l
a sintomas secundários e acidentais (medo de cachorros raivosos Êm 1895, Freud publica seu artigo sobre "Obsessões e Fobia'lcom
e repugnância a objetos metiílicos). Falret atribui a origem deste i o objetivo claro de distinguir os mecanismos psíquicos e a etio-
transtorno mental a uma doença física, observando que o quadro Iogia "das verdadeiras obsessões, muito diferente do das fobias"
aparece'hpós uma doença como a febre tifóide ou cólera,, (p.
So),
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I
(p.l ). Este é o primeiro passo para destacar a netuose obsessiva
a

zB
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l:

)
com 'hfecção autônoma e independente" (p. 146), porém a rela- O estabelecimento do desencadeamento da neurose obses-
ção entre neurose obsessiva e fobia, ou neurose de angústia ou siva é de extrema importância, no caso especial das mulheres,
histeria de angústia é tã<l complexa quanto o número de designa- pois é quando será possível detectar a causa da ruptura produ-
que se queira usar. Ao longo da obra de Freud, novas nuan- zida na estrutura de camuílagem. É o caso de uma jovem com
i
ções
ças vão se delinear e uma rica trama de conceitos vai se tecer. ideias obsessivas, extremamente penosas, de se atirar pela janela.
 conjunção da entrada na adolescência, com as questóes rela-
tivas ao sexo que aí se impõem, juntamente com a existência de
o oracrqósrlco DIFERENCTAL...
um segredo familiar relativo a um suicídio, foram os responsá-
Retornemos por um momento agora para o famoso rascunho K veis pela eclosão da neurose. A jovem até então tida como filha
já anunciado no inicio do capíhrlo, para tentarmos extrair dele exemplar, excelente aluna, com um rendimento intelectual bri-
todo o entusiasmo e a sabedoria que Freud dedica a sua nova lhante, passara a ser, de súbito, o tormento da famflia. A com-
neurose. Freud descreve as neuroses como 'hberrações patológi- pulsão a se atirar pela janela foi muito bem decifrada por Freud
cas de estados afetivos psÍquicos normais" (p. 16l). É uma defi- (Marson, 1986, p, zt7-zt9), como um elemento importante da
nição importante no que ela antecede a definição lacaniana de neruose obsessiva em mulheres, e teremos oportunidade de reto-
estrutura, e nos permite distinguir a estrutura neurótica - estado mar depois este tema. No momento, quero apenas observar que
afetivo psíquico normal - da neurose desencadeada - sua aber- o estabelecimento claro destas circunstâncias desencadeantes
ração patológica. A própria estrutura da histeria, apontando para foi um dos dados que orientou a analista no estabelecimento do
a falta e paÍa a insatisfação do desejo, permite com que, mútas diagnóstico e na manobra da transferência, e a impediu de dar
vezes, os histéricos possam procurar uma análise porque 'h vida um rumo desastroso ao caso, que tinha inclusive indicaçáo de
vai mal'l de um modo genérico, e será a manobra de transferên- internação psiquiátrica.
cia, por parte do analista, que poderá desencadear a neurose de A questão do diagnóstico diferencial é postulada por Freud
transferência para permitir o decorrer de uma análise. (rSr:) a partir de parâmetros éticos: "Se o doente náo sofre de
IáL na neruose obsessiva, 'bs q$jêA.:5,-ai_s.-difíEeis--de- rom- histeria nem de neurose obsessiva, porém de parúenia, ele [o
p e r"'- (t'acanl 193 ri;
""
*j í;il;;;"; a,pêrJr_c-ul4{rnente analista] não poderá manter sua promessa de cura e por isto tem
destffiadaataúiiflái;'ãáilocãr, a nãgar, a d.uüdgtli pó vÍunos motivos particulares sérios para evitar o erro diagnóstico" (p.
serprocúrados como analistas quando algo, de f"to ," ,o*p.u. n6).ParaFreud, este erro é "muito mais funesto" para o psicana-
'-
A manobra da transferência vai se dar no limite delicado entre o lista do que para o psiquiatra clínico, para quem o diagnóstico só
alíüo produzido pelo próprio ato de falar e a manutenção de um tem "um interesse acadêmico'. Estamos, portanto, no terreno da
certo grau de angústia que permita ao sujeito prosseguir sua aná- ética: não se trata de diagnosticar para classificar.
üse. Os analistas conhecem bem a frequência com que as aniilises Na "lntrodução à edição alemã dos Escritos", de r973, Lacan
dos obsessivos são interrompidas porque'hgora está tudo bemi elucida; 6o anos depois, a recomendação do mestre: "Freud o
miraculosamente. disse antes de mim: tudo numa anáüse deve ser recolhido - onde
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3o 31
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se vê que o analista não pode escapÍr - recolhido
como se nada, framento pela análise: "r{.s formações do inconsciente, como as
aliás, houvesse sido estabelecido'(p. ,o).Lacan aqui se refere a designo, demonstram sua estrutura Por serem decifráveis. Freud
um texto anterior de Freud "Conselhos ao médico sobre o trata- distingue a especificidade do grupo: sonhos, lapsos, chistes, do
mento psicanalítico' (t9tz), no qual Freud enurrciaaregrafun- rflodo, o mesmo, com o qual ele opera com eles" (p. 8).
damental da anáIise, em duas versões: ,''-^'OÍa, na psicose, a falha do recalque deixa o inconsciente a
o pÍIra o analista, a atenção flutuante; / cé,taberto. Não se trata de decifrar, porém de cifrar, ou seja, bus-
o pÍIrâ o analisante, a associação liwe.
Il. .*, no caminho inverso da análise, que o sujeito possa constrúr
É entâo da palawa do analisante, dita o mais possível sem
\ com as palawas um dique ao gozo que o invade. Deste modo, a
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promess" de cura não poderá ser mantida pelo analista na psi-
barreiras, que o analista, numa escuta o mais possível sem pre-
) cose. De que promessa se trata? Muito simples: da felicidade!
conceitos, vai poder verificar a relação do sujeito à estrutura que . L- Diz Lacan: 'A boa hora, Ie bon heur, existe. Só existe isso
é, nos diz Lacan, estrutura de linguagem. "Pois a questão começa
mesmo: a felicidade, le bonheur, é questão de chancel Os 'teres"
apartir disto existem üpos de sintoma, existe uma clínica. Só
- falantes são felizes, felizes por natureza, aliás, desta ultima é tudo
que ela é anterior ao discurso analítico, e se este último traz-lhe que lhes resta. Será que por meio do discurso analítico não se
uma luz, isto é seguro mas não é certo. Ora, precisamos da cer- poderia vir a ter um pouco mais? Eis a questão de cujo esüibi-
teza porque só ela pode transmitir-se ao demonstrar-sd' (Lacan, lho eu não falaria se a resposta jâúo aqui estivessd' (p. ro). Uma
1973, p. ro).
aposta na felicidade, pouca que seja, nos leva do terreno da ética
Aí começa a questão da dificuldade do diagnóstico diferen- ao da política - a política do analista. Apostar na felicidade é
cial, sinúzada por Freud no seu texto de r9r3. "Várias vezes, apostar em ir além do sintoma, além do pai, além do espesso nó
quando encontramos tuna neurose com sintomas histéricos ou mas para seguir além, o analista deve se apoiar na segurança de
-
obsessivos, porém não presentes em excesso e de curta duração o Édipo, o pai,
um diagnóstico que lhe garanta a presença do nó -
- quer dizer, justamente as formas que se considerariam favo- o sintoma paÍa poder ir além dele. É, segundo Lacan, 'b nó tal
-
ráveis para o tratamento - deve caber a dúúda sobre se o caso como um Marx o percebeu" (p. 9), porém indispensável para que
nâo corresponde a um estádio prévio da chamada dementia pra- a aventura analítica se dê.
ecox (esqrizofrenia, segundo Bleuler, parafrenia, segundo minha A certeza buscada no diagnóstico diferencial, na evidência
proposta) e, passado mais ou menos tempo, mostrará um quadro do nó, é entretanto problemática. "Que os tipos clínicos resul-
declarado desta afecção'(p. rz6). Dentro desta mesma perspec- tem da estrutura, eis o que já se pode escrever, ainda que não sem
tiva, Lacan nos adverte iO seminário As psicosa que se tomar- hesitação. Só há certeza e só é transmissível para o discurso his-
mos um psicótico não desencadeado em anríIise (na época ele térico" (p. ro).4 histeria tem um discurso próprio, matemizado
dizia'pré-psicótico') teremos uma psicose desencadeada. por Lacan no seminário xvII; a histeria fazlaço social, permite
O texto de Lacan de ry7 elucida ainda mais precisamente mais facilmente um diagnóstico positivo. A neurose obsessiva,
a questão. O significante cifra o gozo, e a esta operação na neu- nos diz Freud, é dialeto, não tem discurso próprio, o que dificulta,
rose Freud denomina recalque. É o recalquê que garante o deci- e muito, um diagnóstico preciso.

32 33

I
O elemento básico destacado por Freud no Rascunho Kpara da culpa desprazer à lembrança prazerosa e possibilitaria o recal-
estabelecer o diagnóstico diferencial da neurose obsessiva, com camento, mantendo-se o esquema de 1896 - Desprazer-Prazer-
relação à histeria e à paranoia, é autorrecriminação.Embora Freud Recalcamento.
reconhecesse, como já foi mencionado, que o vÍnculo entre neu, O próprio Freud autoriza esta interPretação ao afirmar que
rose obsessiva e sexualidade não era, à primeira üsta, tão óbvio a autorrecriminação emerge iniciaknente como "um sentimento
quanto o da histeria, insiste em que também nas obsessóes as cau- pruo de culpa, sem nenhum conteúdo' (p. 166), para depois
sas precipitantes são de naiureza sexual, e ocorrem no período Iigar-se a um novo conteúdo distorcido. Assim sendo, % ideia
precedente à maturidade sexual do sujeito. A etiologia sexual das obsessiva é produto de um compromisso, correta no que tange
neuroses já está assim afirmada e Freud já pode declarar que não ao afeto e à categoria, mas falsa em decorrência do deslocamento
crê "que a hereditariedade determine a escolha de neurose defen- cronológico e da substituição por analogia" (p. 166). A desloca'
siva específica" (Marson, 1986, p. r63). mento jáé então sublinhado por Freud, como o mecanismo pró-
O encontro traumático com o sexo seria na neurose obses- prio da neurose obsessiva.
siva, acompanhado de pÍazer, ao contrário do que ocorre na his- Embora Freud aborde, no Rascunho K, a neurose obses-
teria. Aqui Freud desvincula a experiência sexual prazerosa de siva, a paranoia e a histeria, a ênfase comparativa é dada entre
atividade (nos meninos) ou de passividade (nas meninas), e em a neruose obsessiva e a paranoia. Na neurose obsessiva a autor-
seguida cai em contradiçâo. Postula uma posição passiva inicial recriminação é recalcada e posteriormente deslocada, enquanto
do sujeito, quer homemr Qu€Í mulher, diante do ataque sexual que na paranoia "náo há formação e recalcamento posterior de
vindo do Outro, o que aliás é confirmado por ele próprio, trinta e uma autorrecriminação" (p. i68). Esta comparaçãro iâ está pre-
cinco anos depois, ao atribuir à mãe o papel da grande sedutora, sente no Rascunho H, de 1895, quando Freud enumera paranoia
para ambos os sexos, pela via dos cuidados corporais estimulan- e obsessão como "disturbios puramente intelectuais" (p. ro8). No
tes. Em 1896, entretanto, se vê obrigado a recuar num raciocí- Rascunho K, Freud sublinha que o deslocamento da ideia obses-
nio contraditório, de modo a conectar a passividade ao desprazer, siva poderia levar a formas de delírio que, no entanto, não perten-
pouco depois de afirmar que nas meninas obsessivas a e4periên- cem à psicose (p. 16z). No Rascunho H, separa a neurose obses-
cia passiva era prazerosa. siva como uma perturbaçáo que "deve sua força a um conflitoi
Somente no ano seguinte, na carta de r5 de outubro de rg97, e defiae a paranoia dizendo que sua finalidade "é rechaçar uma
Freud nos darâ a chave para resolver esta contradição: a univer- ideia incompatível com o eu, projetando seu conteúdo no mundo
salidade do Complexo de Édipo. Assim, podemos compreen- externd'(p. rro).
der, retroativamente, como a experiência prazerosa do encontro Assim sendo, Freud responde às inquietações de Pinel e
com o sexo retorna como desprazer naneurose obsessiva, como Esquirol: não se trata mais de discutir se na neurose obsessiva há
efeito da culpa e não da passiüdade. Sendo assim, a experiên- ou não há delírio, ou de marcar a distância com relação à para-
cia inicial passiva ao convergir posteriormente com a experiên- noia pela preservaçáo ou não das "funções do entendimento'i As
cia prazerosa também passiva nas meninas, acrescentaria pela üa construções obsessivas sã.o obviamente construções delirantes, e

34 35

I
quem o duüdar confira a história enlouquecida do Homem dos do real, sáo exteriores ao sujeito, mesmo que seja ele quem pro-
Ratos com o tenente Â, o oficial B e os correios, que custou a nuncie as palawas. Â moça dizia múto claramente: "Não quero
Freud a elaboraçáo de um mapa (Freud, 1909, p. 166 nota 43). me matar, mas esta ideia não me sai da cabeça." Haüa portanto
Lacan, nos anos 70, marcou exatamente isto ao falar dos Nomes- conflito, e a ideia era subjetivada, embora sua origem fosse des-
do-Pai, no plural. Na neurose, tal como na psicose, trata-se de conhecida para o sujeito, instaurando a divisão subjetiva, indica-
I
fazer suplência ao impossível, ou seja, no diagnóstico não se trata I dora do recalque.
I
de estabelecer uma diferença qualitativa entre neurose e psicose Neste caso qualquer medida protetora que tranquüzasse a
(loucos yersus não loucos), mas sim de marcar uma diferença i
analista, como a internação indicada por outro profissional, teria
estrutural, que tem consequências clínicas. sido desastrosa, pois haüa na família antecedentes psiquiátricos
que levariam facilmente a jovem à identificação com o signifi-
cante louca, o que lhe fecharia as portas para outra saída. Como já
... E suÂs coNsequÊucres crÍNrcÁ.s
disse, o dever do diagnóstico é ético, e assim sendo, coube à ana-
Em 1895, Freud aborda a mesma questão a parür do destino lista suportar a angústia do seu ato, e manter a adolescente fora
dado ao que ele chama na época do "representação incompatí- da internação, confiando no dispositivo analítico para dar conta
vel com o eu". Na paranoia representação é rechaçada, enquanto
a da situação.
que na neurose obsessiva a representação é recalcada e substitu- Na verdade, o estudo comparativo entre paranoia e neurose
ída, por deslocamento, pela ideia obsessiva. Muitos anos depois, obsessiva, embora difícil e complexo, é bem menos espinhoso do
Freud (r93r) vai esclarecer sobre esta representação incompatí- que aquele entre histeria e obsessão. No que pese o zelo de Freud
vel com o eu: é a representação da castraçáo materna que ame- em descrever e isolar a sua nova neurose, já em 1896, no mesmo
aça o sujeito. Ora, o agente da castração simbóüca, Freud é bem ano em que lança ao mundo a neurose obsessiva, diz que'tm
claro, é o pai, e assim não é surpreendente que Lacan vá denomi- todos os meus casos de neurose obsessiva encontrei um fundo
nar de significante Nome-do-Pai ao significante que na neruose de sintomas histéricos" (p. 16g).Dezoito anos depois, no capítulo
vai amarrar o sujeito à linguagem: Na psicose este significante VII do historial clínico do Homem dos Lobos, volta a se referir
está foracluído - ou seja, a representação é rechaçada - e retorna ao "pequeno fragmento de histeria que regularmente se encontra
no real, no muado exterior, sob a forma, por exemplo, das vozes no fundo de uma neurose obsessivd' (Freud, r9r8, p. 7o).lâ no
alucinadas. caso do Homem dos Ratos, Freud dissera claramente que " a lin-
O tormento das ideias obsessivas, que assediam o sujeito guagem da neurose obsessiva é, por assim dizer; apenas um dia-
como vozes interiores, pode levar, em alguns casos, a tuna dúüda leto da Iinguagem histérica" (r9o9, p. L2à.Em t926, em Inibição,
diagnóstica entre neurose obsessiva e a paranoia. É o caso da Sintoma e Angústia, chega a declarar que 'h situação inicial da
jovem já citada: aideia obsessiva de se jogarpela janela a assaltava neurose obsessiva não é senão a da histeria, a saber, a necessá-
com tal energia que poderia ser confundida com vozes que orde- ria defesa contraas exigências libidinosas do complexo de Édipo'
nassem que pulasse. No entanto, na psicose âs vozes, retornando (p. ros). Lacan, por sua vez, fala do "núcleo histérico da neu-

t6 37

!i

I
rose" (1953), chegando a atribuir à histeria um discurso, ou seja, la iniciación del tratamiento" (rgr:). Ítt obras conple-
demonstrando como a histeria faz laço social, não havendo entre- fas. Buenos Aires: Amorrortu Ed., 1996, v. xrl.
tanto um discurso próprio à neurose obsessiva. ."De la historia de una neurosis infanírl'
-."Sobre (lqr8). In: Obras com-
Assim sendo, não seria mais prático sustentar que não exis- pletas.Bteoos Aires: Àmorrortu Ed., 1996, vol. xvtr.
tem mulheres obsessivas e sim histéricas, com defesas obsessivas? síntoma y angustia" (1926). In: obras completas,
Curiosamente, ninguém pensa na hipótese de chamar os homens Buenos Aires: Àmorrortu Ed., 1996, vol. xx.

obsessivos de histéricos com defesas obsessivas, o que seria coe- -."Inlübición,


malestar em la culturd' (rsro). ln obras completas. Buenos

rente dentro do mesmo raciocínio. Deste modo, em lugar de Aires: Amorrortu Ed., 1996, vol. xxr.

abandonar aqui as neuróticas obsessivas com o rótu]o fácil de his- -.'El la sexualidad feminina" (rslr)' In: obras comPletas.
Buenos Àires: Amorrortu Ed., 1996, vol. xxr.
téricas prossigo com Freud e com a clínica, para examinar o ema_
-."Sobre
LAcÂN, ;. "lntrodução à edição alemã dos Escritos". Revista Falo, n. z,
ranhado complexo das relações entre histeria e obsessão.
jan.-jun. ry88,p.7-tz.
O semintirio livro j, As psícoses. Rio de Janeiro: ]orge Zúar Ed.,
nrreRÊNcras grsllocnÁrlces 1985.
'1\ agressiüdade em psicanrílisd' (rg+8). In: Escrifos. Rio de
DU SAULLE, r.. "La locura de la Duda (com Delirio del Tacto),,. In: Ias Janeiro: lorge Zahar Ed., 1998.
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"Função e campo da fala e da linguagem em psicanáüsd' (rs:s).
FÂLRET, 1. e. 'toucura razonantdl In: Las Obsesiones. Buenos Aires:
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Nueva Vision Ed., 1985.
"De uma questão preliminar a todo tratamento possivel de psi-
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Aires: Ed. Nueva Vision, 1985.
(18g6). lnt Obras completas. Buenos Áiresl Âmorrortu Ed., 1996.
vol. rrr. sAURr, ,. s. "La lectura informativa'l In: Las Obsesianes, Buenos Aires:
Nueva Vision, 1985.
propósito de un caso de neurosis obsesiva,, (.sos). In: Obras
completas. Buenos Aires: Àmorrortu Ed., 1996 vol. x.

-.'A al médico sobre el tratamiento psicoanalíticd, (rgrz).


In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Ed., 1996, v. )or.

-"Consejos
r8 39

)
O enigma ü Á, mulher: histeria e obsessão

O QUE OS POETAS NOS ENSINAM

Há cinquenta e poucos anos atrás estreava nos palcos do Rio de


]aneiro a peça Vatido de Noiva, de Nelson Rodrigues (r98r),
que marcou o nascimento da moderna dramaturgia brasileira. A
peça, completamente revolucionária com relaçáo ao modelo tea-
tral ügente, causou polêmica e hoje, quando seus aspectos ino-
vadores já foram absorvidos pela cultura, continua a encantar o
público pelo seu vaior artístico e por tocar em algo da verdade do
inconsciente, através do talento de seu autor,
Em um artigo em que presta homenagem a outra grande
artista, Marguerite Duras, Lacan (1988 bgSl} se espanta pelo
fato de que ela, a autora, através de sua obra, mostra saber sobre
aquilo que ele ensina sobre a psicanálise, sem ao menos conhe-
cê-lo. Para Lacan, diante da obra de arte, o psicanalista deve
lembrar-se, com Freud, de que o artista o precede no tema que
aborda, e procurar aprender da obra o que o artista sabe sobre
o inconsciente, que ele, psicanalista, estuda. O texto que Lacan
comenta em sua homenagem a Marguerite Duras é O deslumbra'
mento de Lal V Stein.
Coincidentemente os dois textos giram em torno de um ves-
tido: o vestido negro da mulher gue arrebata o noivo de Loi numa
festa do cassino, e o branco nupcial, usado por Alaíde e Lúcia

I
na peça de Nelson Rodrigues. É o tema do vestido que, segundo tido: o véu que encobre o lugar vazio que é o d' Mulher. Alaíde,
Lâcan, sustenta a fantasia de Lol: o vestido negro desnudando o Lúcia, Mme. Clessi são máscaras, véus que velam ovazio. Âiaíde,
corpo da Outra, num gesto que nunca se completa. O que revela- aos olhos de Lúcia, rouba-lhe o noivo. Roubar o homem de uma
ria a queda do vestido negro senão o vazio, o nada em que a pró- mulher é, em Nelson Rodrigues, em Marguerite Duras e no coti-
pria Lol foi lançada quando o noivo a despoja do seu amor, dei- diano da clínica, tornar-se a Outra, cujo corpo velado será inter-
xando-a nua aos olhos dos outros, como louca? rogado, desnudado com o olhar.
Mas que mulher não ficaria louca ao ser assim trocada por O que é que ela tem que eu náo tenho? Diante da castraçáo
outra? É numa festa num cassino à beira-mar que Lol vê uma feminina, stuge o enigma do desejo e as respostas sempre falhas.
estranha e fascinante mulher vestida de negro arrebatar o noivo Alaíde é a que rouba os namorados da irmã, é a que ousa dizer, e
que ela, Lol, amava. Permanece inerte diante da cena, ela própria faz suavoz ecoar mesmo após sua morte, nos ouüdos culpados
arrebatada pela visão do casal. O gênio de Marguerite Duras vai da irmã:
nos conduzir sutilmente ao segundo tempo da novela. Recuperada - Eu sou muito mais mulher do que você, sempre fui.
da crise provocada pela cena do cassino, Lol retorna, anos mais Mais mulher, mais o quê? Mais nada. Tanto que fazendo girar
tarde, a sua cidade, casada e com fiIhos. Sai em peregrinação seus personagens o autor mostta,num segundo momento, que é
pelas ruas e reconhece uma amiga da adolescência, Tatiana, com Lúcia que encarna a Outra para a irmã, Mulher que lhe rouba o
o amante, os segue e os observa de longe. O vestido negro retorna marido, ponto defazê-lo desejar a morte dela, Alaíde.
a

sob forma dos longos e negros cabelos de Tatiana, que recobrem


a - Nem que eu morra deixarei você em paz, atteaçaÂlaíde.
sua nudez no encontro amoroso. Nem poderia deixar, pois a morte de uma mulher não mata a
O amante de Tatiana, narrador do liwo, se apaixonapor esta questão que a castraçáo feminina impõe. "Se vocês querem saber
estranha mulher, Lol, que espia seus encontros amorosos, e ter- mais sobre a feminilidade", nos diz Freud Gglz), 'dirijam-se aos
mina por acompanhá-la numa viagem ao cassi.no, onde se dera poetas." E o poeta-dramaturgo nos responde, fazendo coro com
a cena do arrebatámento. Na ida de trem os dois se amam. Na Lacan: A mulher não existe! E a busca incessante da impossível
volta, Lol, transtornada, enlouquecida, se recobra pnra lembrar resposta desliza no palco, onde o drama e o humor se misturam,
ao amante que não faltasse a seu encontro com Tatiana. O liwo fazendo borda ao vazio. Num momento cômico, em que as recor-
se encerra com a imagem de Lol deitada no campo de centeio, dações delirantes de Alaíde se misturam com cenas daTraviata e
diante da janela onde os amântes se encontram, ela própria ape- de E o vento levou, a frase que faz espoucar o riso da plateia é: "O
nas uma mancha escura na paisagem. "IJm ser oferecido à mercê olhar daquele homem despe a gente." Scarlett O'Hara, Violetta,
de todos'l dizLacan, 'âs dez e meia da noite no verãol' Mme. Clessi, Lúcia, Alaíde...
ÊmVatido de noiya, o vestido que recobre a nudez d' Mulher Alaíde entre-duas-mortes. Logo no início da peça, o diretor
é branco, copiado de "uma fita de cinema'l Numa montagem rela- do jornal á NoiÍa pergunta ao repórter carioca:
tivamente recente, o diretor, ao usar o mesmo vestido de noiva - Morreu?
paÍa as duas irmãs, Alaíde e Lúcia, aponta para o que é este ves- - Ainda não. Mas vai.

42 43
Por meio de um personagem secundrírio temos a morte Num diálogo alucinado entre Alaíde e Mme. Clessi ficamos
anunciada de Âiaíde. Ainda não. Mas vai. sabendo que este desejo do casal que ela desuniu e que agora se
No seminrírio vrr, á Ética da psicanálise [1959-196o], Lacan une contra ela, ecoa seu próprio desejo, dela, Alaíde.
intitula o capít,lo xxr 'i{ntígona entre-duas-mortes,,. A partir da Clessi: Quer ser como eu, quer?
heroína da tragédia de sófocles ele nos fala desta "zona limite Alaíde (veernente): - Quero sim, quero.
entre a vida e a morte" onde os heróis trágicos estão situados. Clessi: - Ter a fama que eu tive. A üda. O dinheiro. E mor-
Nelson Rodrigues, em que pesem os seus deliciosos toques de rer assassinada?
humor, situa aí sua tragédia carioca. Também Lol V Stein está Sim, Alaíde queria, sim, morrer assassinada e por esta razáo
aí situada, neste "umbral entre-duas-mortes,,, .b iimite em que o no seu delírio entre-duas-mortes evoca aprostituta Mme. Clessi,
olhar se torna beleza'l que vivera na sua casa no século anterior e cujo diário lia na ado-
Este umbral é posto em cena emVestido de Noiva desde sua lescência. Mme. Clessi havia sido morta Por seu amante, um
concepção em três planos: alucinaçáo, memória e realidade, com menino de 17 anos. Nesta sutileza o autor nos revela o desejo
a peça se iniciando pelo atropelamento da heroína. É Âlaíde que mortífero que levara Âlaíde a ferir sua irmã, roubando-lhe o
enczrna este umbral. Tal como Antígona, ela está desde há muito homem que ela - Lúcia - amava, e casando-se com um canalha a
"morta para o mundo'l Tal como Antígona, ela também .tstá con- quem desprezava.
denada a jogar num jogo cujo resultado é conhecido de antemãdl Neste sem saber sabendo, Alaíde vai traçando seu destino
Mas ao contriirio de Antígona, que sabe a que está condenada, rumo à morte anunciada, até sua consumação, Por não saber que
e que neste saber, e não recuar diante de nada, encarna o desejo sabe, Alaíde não tem a grandeza de Antígona, mas a peça não se
puro, Aiaíde não sabe que sabe. redtz a Alaíde. Na cena final, as duas noivas com o mesmo ves-
Que ela sabe, o autor se encarega de nos informar. tido, os braços estendidos, entre elas o buquê, elevam a tragédia
* Você pode morrer, minha filha. Todo mundo não morre? carioca ao universal da tragédia humana: o amor, o §exo, a morte.
diz a mulher-de-véu. É disto que a psicanrílise trata.
Alaíde não se engana: Diante da Outra mulher que lhe rouba o noivo, Lol V' Stein
-Você quer dizer que me mata? desmorona, enlouquece. Lol não é um paradigma da psicose pela
Ao que a outra retruca, explicitando seu desejo: simples razáo de que, tal como Alaíde, Lol não é um sujeito: é
-Quem sabe? Você acha que eu não posso matar você? fruto da imaginação de um artista. Mas seguindo a orientação de
Esta cena se passa com Alaíde vestida de noiva, antes do seu Freud, podemos aprender com Duras e Nelson Rodrigues algo
casamento, fundindo sexo e morte, fusão que o autor colocará em mais sobre a verdade da tragédia humana.
cena, explicitamente no enterro de Mme. Clessi. A Mulher-de- Assim, pois, temos duas posições contrastantes. Para Lol a
véu no decorrer da peça se desvela: éLt3cia, a irmã traída e mais Outra existe e é tão consistente quanto o Deus de Schreber. Diante
tarde, traidora. Porém não é só a irmã que deseja AlaÍde morta, da mulher do vestido negro, não há nada a fazer, senão que-
mas também seu marido, o noivo roubado e depois desprezado. dar fascinada, reduzida ao puro olhar diante da cena. Ao retor-

44 45

I
nÍr anos mais tarde e reencontrar Tatiana - quando o triângulo é Na neurose, o sujeito paga um preço alto pela segurança que
refeito com outros atores - o que busca Lol? Certamente não é a obtém da fantasia: o preço de estar preso numa posição fixa, tes-
vingança, nem tomar o homem da Outra. Isto, aliás, ocorÍe quase pondendo estereotipadamente, do mesmo lugar e com as mes-
como se fosse à sua revelia. Lacan nos diz claramente: trata-se de mas respostas, ao outro que a estratégia neurótica faz existir.
orgarizat um "ser a três", montar uma cena onde ela, Lol, entre É somente quando a segurança que o sujeito obtém da fantasia
como a "terceira não excluída". é abalada, que ele pode procurzu uma aniilise. Daí jâ podemos
Diante da cena edipiana * a irmã que lhe rouba o noivo - deduzir a delicadeza da posição éüca do analista no diagnóstico.
Lúcia se prepara para dar o troco e, destruindo a Outra, se des- Não se trata apenas de diagnosticar entre neurose e psicose - o
truir. Lol, reduzida à posição do objeto, pura mancha no cená- que, a1iás, já é muito, uma vez que o rumo dado ao tratamento
rio, um ser a mercê de todos, tenta construir algo que sustente o é totalmente diverso, em um e outro caso. Trata-se, no caso da
seu mundo que já desabou: "Nua, nua, sob seus cabelos negros", neurose, de avaliar o tipo de resposta do sujeito e o tipo de per-
repete. gunta que orienta a posição fixa que ele ocupa na vida, e que o
Nua sob seus cabelos, sob o vestido branco ou negro; nua, faz sofrer.
nua, é o enigma dA Mulher que se impoe. Na psicose trata-se Em 'A psicanáüse e seu ensino" Itg577, Lacan enfatiza que
de tentar construir, pela via do delírio, uma tela que, fazendo às tanto na histeria como na neurose obsessiva trata-se do sujeito
vezes da fantasia, possa velar minimamente, o real insuportá- tentar dar uma resposta às questôes relativas ao sexo e à morte
vel. Na neurose, esta tela da fantasia é assegurada pela amarra- b. +Sr). A histérica "se experimenta nas homenagens dirigidas
ção do sujeito ao simbólico. O Édipo é então a ficçáo que prende a uma outra e oferece a mulher, na qual ela adora seu próprio
o sujeito à estrutura. mistério, ao homem cujo papel ela toma sem poder gozar disto'
(p. +s:). Neste jogo de enganos, tão bem exempüficado pelo caso
Dora, o desejo f,ca insatisfeito e o sujeito condenado a recriar a
O ENIGMA DO DESEJO
Outra mulhe! como Lúcia, presa a Alaíde para além da morte.
Lacan nos diz que a neurose obsessiva é uma estratégia mas-
Que desejo me gerou? O que estou fazendo no mundo? Na psi-
cose a falta de sentido radical da existência está posta a nu e resta culina. Na estratégia feminina da histeria, a questão em jogo é

ao sujeito tentar se proteger da melhor maneira que possa. Uns se sobre o sexo: sou homem ou mulher? que se resurne em: o que
protegem com a arte, como Joyce, mas nem todos são bem-suce- é uma mulher? Na neurose obsessiva "é a morte que se trata de
didos. O presidente Schreber se protegeu com sua missão divina enganar por mil ardis" (p. 454). O obsessivo se engolfa num cir-
de procriar homens schreberianos. O tratamento possível da psi- cuito fechado do qual não pode sair e cuja finalidade lhe escapa,
cose vai na direção da construção, por parte do sujeito, da tela pagando o preço de manter seu desejo impossível, pois está "sem-
protetora que o permita continuar üvendo. Ao anústa cabe tes- pre em outro Iugar do que lá onde se corre o riscd' (p. 454). Lacan
temunhar esta construÇão e, como secretário do alienado, forne- compara a estratégia obsessiva ao truque que Vênus usou com
cer o dispositivo analítico para que esta construção possa se dar. Páris. No início do cerco de Troia, gregos e troianos concordaram

+6 47

)
em resolver o conflito através de uma luta entre paris e Menelau, gue esta obsessão com a morte não tem ligação com a experiência
marido de Helena, a mulher que páris haüa seduzido. páris foi direta da morte de alguém na história pessoal do sujeito:
derrotado e só se salvou deüdo à proteção de Afrodite (vênus),
que o envolveu numa espessa nuvem, subtraindo_o assim aos Porém não é muito diferente do comportamento de nosso pacienta o
de outros doentes obsessivos a quem o destino não confrontou em anos
olhos do inimigo. Enquanto piiris se escondia ao lado de Helena, tão precoces com o fenômeno da morte. Seus pensamentos se ocuPam
a deusa iludia Menelau, fazendo-o ver o inimigo em vários luga- sem cessar da duração da vida e da possibilidade da morte de outros [...].
Porém, sobretudo, eles necessitam da possibilidade da morte para solu-
res, precisamente onde ele não estava. A luta recomeça e Heitor,
cionar os conÍlitos que deixan sem resolver [...]. Ássim, em cada conflito
irmão de Príris e comandante dos troianos, nota que este não está útal, esperam a morte de uma pessoa significatila para eles, na maioria
presente. Vai procurá-lo e o encontra com Helena, repousand.o, das vezes uma pessoa amada, seja urn dos pais, seja um rival ou um dos
objetos de amor entre os quais oscila sua inclinação.
enguanto os exércitos se batem, numa guerra causada por ele.
Ao evocar este episódio, falando da neurose obsessiva, Lacan
acenfua a covardia que subjaz à manobra obsessiva de não correr LÀcÂN s r.Évr-srRAuss
riscos, se eximindo de seu desejo. ora, se o obsessivo não arrisca,
também não goza, e o gozo do qual ele assim se priva "é transfe- Foi através do caso do Homem dos Ratos que Lacan iniciou "uma
rido ao outro imaginário que o assume como gozo do espetáculo" referência estruturalista em forma (o primeiro texto de Claude
, , (p. 4s4), no qual o o\essivo, preso em sua jaula, se debate para Lévi-Strauss sobre o mito)'l Na sessão de z6 de maio de ry56 da
;i : j provar que está üvolg caráter especular, narcísico, da neurose Sociedade Francesa de Filosofia (Bulletin), Lacan afirma que ten-
obsessiva torna o seu eu, ao mesmo tempo, inflado e vulnerável, tou, quase que em seguida à leitura deste texto de Lévi-Strauss,
susceptível e ameaçadol-Neste texto de ry57, Lacan sublinha o aplicar o mesmo esquema à clínica, o que fez com 'pleno sucessdl
risco de uma análise conduzida pelo viés da relação dual, imagi- O caso utilizado foi 'h admirável anáIise que Freud fez do caso
nária, particularmente no caso da neurose obsessiva. do Homem dos Ratos, isto numa conferência que eu intitulei,
Uma mulher queixa-sg logo nas primeiras entrevistas, de pre cisament., b_I]l]gi+, $U{l+jll.d.g rer;-ró!i.sd: (p., r s ). o texto
que se considera feia, gorda, desatraente e diz, referindo_se a de Lacan é de 1953 e a análise do mito de Édipo feita por Léü-
uma análise anterior: "Não adianta você me provar que não é Strauss está no artigo 'A estrutura dos mitos'i de 1955. O próprio
nada disto. Eu sou a maior merda do mundo!, Notem bem que Lévi-Strauss esclarece que entre ry52-Lg54 tentou verificar a teo-
não é uma merdinha qualquer, é a maior do mundo. Só isto já ria por uma análise exaustiva dos mitos Zuru na École Pratique
dá a medida da dificuidade que terá o analista em desalojar esta des Hautes Étuda. Podemos então supor que o que Lacan utili-
senhora de sua jaula, mesmo que o preço pago por ser a maior zotr paÍa serr Mito individual do neurótico foi uma versão inicial
mundo, seja o de ser uma merda. por isto Lacan nos diz que do texto de 1955.
_do
''h
saída desses impasses é impensável por qualquer manobra de Em sua análise, que já se tornou clássica, sobre os mitos,
troca imaginiária, pois é aí que estão os impasses', (p. Léü-Strauss propôe que:
+Sà.
A inflação imaginrária faz contraste com a presença da morte r. 'Como todo ser linguístico, o mito é formado de unida-
na neurose obsessiva. No caso do Homem dos Ratôs, Freud indica des constitutivas

+8

I
z. Estas unidades constitutivas implicam apresença daque- Trata-se agora de buscar o traço comum que une o feixe de
las que intervêm normalmente na estrutura da língua, ou mitemas de cada coluna. O da prirneira coluna é fácil. Temos
seja, os fonemas, os morfemas e os semantemas. Cadmo, o fundador de Tebas, procurando sua irmã Europa,,rap-
Cada uma destas formas difere da que aprecede por um mais tada por Zeus. É nesta busca que Cadmo vai ao oráculo e é por
alto grau de complexidade, e assim os mitemas são grandes uni- ele desestimulado a prosseguir, e aconselhado a seguir uma vaca
dades constifutivas, as mais complexas de todas. Em 1956, Lacan (lembrar que Zeus se disfarçara de touro para seduzir Europa) e
diz: 'Ao final de contas o que faz com que uma estrutura seja pos- fundar uma cidade onde esta pÍrasse para descansar. Na mesma
sível, são razôes internas ao significante, o que faz comque umâ coluna temos Édipo casando com sua mâe e Antígona, sua filha,
certa forma de troca seja concebível, ou não, são razões propria- desobedecendo as ordens do tirano e enterrando, sob o risco
mente aritméticas; eu creio qo. .1. [Léú-Strauss] não recuará certo de morrer, seu irmão Polinice. Léü-Strauss propõe que esta
diante deste termo'(p. rr+). Pois o que encanta Lacanno mitema primeira coluna seja a das relaçõa de parentaco superestimadas.
é a possibüdade de rigor na formalização. É esta mesma busca Na segunda coluna, os Spartói, homens que surgem da terra
de rigor que o levará anos depois a propor o mateffia, na tenta- armados, quando Cadmo ara aterra com os dentes do dragão que
tiva de chegar a luna transmissão o menos contaminada possível matou, eliminam-se mutuamente, só restando cinco, que ajuda-
pelo imaginário. ráo Cadmo a fundar Tebas. São portanto irmãos que se matam,
Vejamos como Lévi-Strauss (sem data) trabalha o mito de como Édipo mâta o pai, e seus filhos, Etéocles e Poliaices, se des-
Édipo. Ele se propõ e a fazer uma demonstração 'hão no sentido troem entre si. Daí intitular esta coluna de relaçõa de parentaco
que o sábio dá a este termo, mas, quando muito, no sentido do depreciadas.
camelô [...] explicar tão rapidamente quanto possível, o funcio- ' A terceira coluna diz respeito a monstros que devem ser des-
namento da pequena máquina que ele trata de vender aos basba- truídos para garantir a vida dos homens. Lévi-Strauss diz que sáo
ques" (p. 24il.O mito é separado em pequenas unidades (mite- monstros ctônicos, ou seja, gerados pela terra. Matando os mons-
nas) que são reagrupadas em colunas pertencentes ao mesmo tros ctônicos, esta coluna representaria a negação da autoctonia
"feixd: Ternos assim: dos homens (ou seja, que os homens não nascem da terra).
A quarta coluna traz os nomes próprios do avô, do pai e do
Cadmo procura Os Spartói se
Cadmo mata o próprio Édipo com seus respectivos significados de c oxo, torto e pé-
sua irmá Europa, exterminam
dragão inchado. Lévi-Strauss nos diz que em várias lendas americanas os
raptada por Zeus Ínufuamente
seres ctônicos, que nascem da terra, têm dificuldades de se manter
Labdaco (pai de
Laio) ='le1s:' em pé, claudicam, caem. Assim sendo, os nomes dos Labdacidas
Laio = torto apontariam para a afirmaçao da autactania doshomens.
Édipo esposa Édipo mata seu Édipo imola a Édipo = "pé Lévi-Strauss nos diz que,lido desta forma, o mito de Édipo
Jocasta, sua mãe pai, Laio Esfinge inchado"
Antígona enterra Etéocles mata seu exprimiria a impossibilidade em que se encontra uma sociedade que pro-
seu irmão Polinice irmão Polinice fessa a crença na autoctonia do homem, de passar desta teoria ao reco-

5o 5r.

l
nhecimento do fato de que cada um de nós nasceu realmente da união de
mitos americanos. Os Spartói tinham como marca de sua origem
um homem e de uma múher. A dificuldade é insupeÉvel. Mas o mito de
ctônica uma lança desenhada na espádua, autentificando sua raça
Édipo oferece uma espécie de instrumento lógico que permite lançar uma
ponte entre o problema inicial - nascemos de um único ou de dois? _ e de Filhos da Terra e relembrando sua vocaçâo guerreira (p. 55
o problema derivado, que se pode formular, aproximadamente: o mesmo nota z). Partindo de outras fontes da tradição grega sobre perso-
nasce do mesmo ou de outro? (p. z+s)
nagens mancos ou tortos, Vernant interPreta a "mancada" de Laio
no plano de seu caráter: exilado de Tebas com 1 ano de idade,
Na aula inàugural da cadeira de antropologia social, dada
após a morte de seu pai Labdaco, Laio é recebido e acolhido por
no Collàge de France, em 1960, Lévi-Strauss (rSS:) se utiiiza
Pélops. Já adulto, retribui a generosa hospitüdade estrupando
novamente do mito de Édipo para propor uma conexão estru-
Crisipo, fiIho de Pelops. "Ele manca no seu comPortamento eró-
tural entre os temas do enigae,e dp irlçç:!p.. Ambos apontariam
tico por uma homossexualidade excessiva [...] rompendo assirn
para a união impossível de dois termos: o filho que casa com a
com as regras de simetria que se impõem tanto entre os Írmantes
mãe, o irmão com a irmã. Trabalhando mitos de diversas ori-
como entre os hóspedes" (p. 6o). Crísipo se mata e Pelops lança
gens, do Édlpo grego às lendas dos índios iroqueses, passando
contra Laio a maldição: os gens dos Labdacidas não devem se
pela saga medieval do Santo Graal, Léü-Strauss observa a con-
perpetuar.
j unção de ste s d ois tem as : m!_tor -sobre-o-in_c_e_s,tg- ttAzem s-empre
99 De volta a Tebas e ao trono, Laio, advertido pelo oráculo do
ulIl-g"qrg43..gSe:-dççit4.d_o. Assim, 'ha lenda de Édipo, o casa-
futuro terrível que teria o fiIho por ele gerado, Passa a ter relaçôes
mento com ]ocasta não se segue, pois, arbitrariamente à ütória
falhas, "mancas", "do tipo homossexual", com Iocasta. Numa noite
sobre a Esfingd' (p. ar).
de bebedeira, por ato falho, planta na esposa a semente do filho
O enigma, tal como o incesto, uniria o que não pode se unir:
que o destruirá. "O gnêsios, bem nascido, se revelará assim pior
é uma pergunta à qual é postulado que não haverti raposta, e
que um nothos,para além da bastardia: um monstrd' (p. 6o).
invertendo os termos, uma resposta para a qual não houve per-
A crítica de Vernant a Lévi-Strauss é longa e extremamente
gunta (p.3o). A interpretação psicanalítica, operando entre o
interessante, mas no que pese uma possível "mancada" do antro-
enigma e a citação, toca neste ponto mesmo de opacidade, mar-
pólogo, como bem reconhece Vernant, sua aplicação dos "feixes"
cado na estrutura, e presentificado na novela famüar do sujeito
de mitemas já se tornou clássica. Vejamos então o uso que dela
pelo drama edipiano.
fazLacan, segundo ele próprio, com pleno sucesso, em 1953. O
seu ponto de partida é a definição do mito como'b que confere
Éprpo E o HoMEM Dos RÀTos uma forma discursiva a qualquer coisa que não pode ser transmi-
tida na definição da verdade [...]" (p. +g).
]ean-Pierre Vernant (1988) diz que a leitura de Léü-Strauss do No mito individual do Homem dos Ratos temos, como
mito de Édipo é no mínimo contestável, aos olhos dos helenistas. no esquema de Lévi-Strauss, tuna estrutura quaternária que se
Nos mitos gregos, os seres nascidos da terra, tais como os Spartói, repete, no que Lacan chama de "pré-história" do sujeito e em sua
não claudicam, nem apresentam defeitos na marcha, como nos história atual da neurose:

52 53

I
Pai Amigo que paga a Mulher rica Mulher pobre suplício, com a entrada em jogo do último elemento que faltava:
dÍvida de jogo
a dívida.
A estrutura da'tonstelação originária que presidiu o nasci-
Homem dos Tenente A Seúora do
Ratos (arnigo) Correio
mento do sujeito" (Lacan [rgSg], p. sS) se rePete na articulaçáo
de seu drama neuróüco. 4ggf* g!-.. plóp!p--ggg-ç:1ílo Ugg {-g
A primeira coluna liga-se à segunda coluna pela díüda. No p4 dg,v9d9l- e.9 _!gng*g A qo iugg daquelç qqs d-e.v-e-§ei P?gs*
passado, o pai do Homem dos Ratos havia perdido no jogo todo
Ora, na verdade quem haüa pago os óculos era a senhora dos
o dinheiro do seu regimento e contraíra uma dívida de honra, óiiêit §; q*uc]⧧d a§siirÍ'a cicúpâ? õ-hryai'ê§trtituia1 diiinulher
nunca pâga, para com o amigo que o salvara, compaÍecendo com
ricã, êEr-ãôniiãFõs,i ç páo â'um a fiãAiiiliá"irãbiã ão AU gtgu., .oÁ
Ç

o dinheiro. quem o Hoç5rçm dos Ratos se e1.rg,r,êç.arê."."


A terceira coluna une-se à quarta,
através de uma brinca- A questão é que ao ouvir do capitáo cruel que deviapagar ao
deira que a mãe do sujeito costumava fazer, dizendo que o pai Tenente A, o Homem dos Ratos completara mentalmente a jura
havia se enamorado de uma moça linda mas pobre, casando-se
de assim o fazer, para que o suplício dos ratos não ocorresse com
depois com ela, rica que lhe dera uma boa posição social.
a dama que amava ou com seu querido pai, aliás já morto a esta
âtçp:llça1ry lgurg:e te dá a partir dq encontrqÀq-ssjeÍto altura dos acontecimentos. Elabora entáo um esquema complexo
'g-gg-o39-91-"*4" :9! 1ggl4,e le-laÍq do-,teqnento dos em que daria o dinheiro ao Tenente A, que o daria à seúora dos
ratosfeito pelo capita uel,_Capitão_LIemeczek.SegundoLacan, correios que por sua vez o daria ao Tenente B, que era o verda-
relato tem "uma evidente função de desencadeamento,, (p. 54).
este
deiro encarregado dos correios, numa roda-viva enlouquecida
No momento, em que, com múto custo, o Homem dos Ratos, o da qual só consegue sair quando vai para Viena tratar-se com
Tenente Ernest Lehrs, narra o cruel suplício, Freud [r9o9] observa Freud.
em seu rosto uma expressão "que só posso resolver corno horror Podemos observar que, em sua análise, Lacan segue à risca a
diante de seu gozo ignorado por ele mesmo" (p. r:a). estrutura da demonstraçáo de Lévi-Strauss para o mito de Éaipo.
A conjuminação do confronto com este gozo proibido e igno_ do-lJomem-dos Ratos vai se resol-
E 1rqlr:ry&$.gqia-queo-drama
rado, corn o desejo do pai de que casasse com tuna moça rica, em ver.Freudinicialmente_99_Bpg_o._lg-g_{g1g3loigs*qu-exÀo-que
detrimento da pobre, que amava, o lança num estado em que ,.as
..p1rlg"*1_q_Ti-ay3_g-.tlp.I[g-1ggp_q_Bgi.-"_...porém-muito*rap-
construções neuróticas do obcecado acabam às vezes por aproxi_ d,a111gryg?Ilptura:lgrgryivlsqge;9v_çq!e19-.!qCa9.§_r9b-ç0e5ig
marem de construções delirantes" (p. S8). o.!99ssry9 sgIsv§!?{-n, O paciente atribui um papel dúbio a Freud,
O acaso leva o sujeito, que estava acampado com seu regi- entre amistoso e maligno. Imagina que Freud o quer casar com
mento, a perder seus óculos e encomendar a seu oculista de sua filha, a quem atribui muitas riquezas e que lhe aParece num
Viena um novo pÍr. O oculista os envia pelo correio e o capi- sonho com óculos de merda. Diz Lacan: "O mito e o fantasma
tão Nemeczek the diz, erroneamente, que ele deveria pagar ao juntam-se aqui, e a experiência passionai ligada ao vivido atual
tenente A a importância do reembolso postal. Está armado o da relação com o analista, é trampolim, por intermédio das iden-

54 ,5

)
tifcações que ela comporta, para a resolução de um certo número cravo de Hegel. O obsessivo, escravo, aguarda a morte do Mestre
de problemas" (p. 64). cujo lugar ambiciona para si, e enquanto aguarda, se faz de morto,
No Seminário II, O eu na teoria de Freud e na técnica da psi- apagando seu desejo para náo despertar a cólera de seu seúor'
canálise, Lacan nos apresenta o esquema L que articula o eixo Porém se ele próprio está morto, não é ele quem tem um seúor;
imaginário (a+S). Tomando os doisprimeiros feixes de mitemas é o outro, e assim ele está semPre em outro lugar, fora do alcance
usados por Lacan, podemos rebatê-los no esguema L. do inimigo (igual e/ou rival).
Temos então que a partfu do eixo imaginrário que o tenente Como o eu é uma instância paranoica (pois na medida em
Lehrs vai interrogar o mestre absoluto que se perÊla por detrás do que é ideal, tudo ameaça sua integridade) o obsessivo oscila entre
pai morto: a morte. se fazer de morto (insensível) e ser tomado da mais viva cólera
diante da ameaça que vê em toda parte . Assim, nas relações amo-
aIIugo rosas (os outros dois feixes dos mitemas) está dividido não só

a X^
esquema L
_"x
do pai
do nn

pai morto
(Morte)
entre as damas (rica e pobre) pelas quais oscila sua inclinaçáo,
como pela própria ambivalência (amor-ódio) que colore esta
mesma inclinação.
Lacan termina seu texto de 1953 acentuando a impossibi-
Neste seminário Lacan nos diz que lidade de conciliação para o neurótico, entre o papel social que
deve desempenhar e as relações com o parceiro sexual. Pois a
o obsessivo é sempre um outro. seja o que for que ele contar para vocês,
sejam quais forem os sentimentos que ele lhes trouxer é sempre os de um diüsão do obsessivo entre a mulher rica e a mulher pobre esca-
;<.-: ,
..
- outro que não ele mesmo {p. ll6-12il. É pela voz do outro que ele pode moteia e oculta a questáo que é posta em primeiro plano na his-
teria: o que é uma mulher? A questão elidida se faz presente no
(Truque de páris).
Homem dos Ratos, na dificuldade de assunção de sua virili-
: dade, nos diz Lacan, "tma vez que escolhi o caso de um homem"
Lacan nos diz gue esta objetalizaçâo de si mesmo üsa evi_
(p. 6s). E se tivesse escolhido o de uma mulher?
tar seu próprio desejo, apresentando-o como desejo deste outro
que é seu próprio eu. Essa inflação egoica já é em si mesma mor-
tificante; 'te o obsessivo se rnortifica é porque, mais do que um nErEúnctes BIBLIocRÁFIcAs
outro neurótico, apega-se a seu eu, o qual carrega em si o desa-
BULLETIN DÊ LA socIETÉ rnauçaIsr DE PHILosoPHIE, senace du z6 mai
possamento e a morte imaginária" (no eixo imaginrírio a _ a,)
r956, xrvur, r956.
(p. :se).
DURÁs, u. O deslumbramento, Rio de |aneiro: Nova Fronteira, :-986.
Mas é no eixo simbólico (A -+ S) que a mortificação do
obsessivo revelará sua outra face: paruquem ele está morto? para FREUD s. 'i4. propósito de um caso de neurosis obsessiva" (rgog). ln:
Obras Complefas. Buenos Aires: Amorrortu Ed', 1996, v. x.
aquele que é para ele seu senhor, aquele ocupa o lugar do Mestre.
feminidad" - Conferên cia y (tyz).ln Obras Completas,
i'La
O obsessivo encarna assim o paradigma da relação senhor_es_ Buenos Âires: Amorrortu Ed., 1996, v. xxrt.

S6

)
T
t l

LAcAN, t. O mito indívidual do neurótico (rpSa). Lisboa: Assírio &


Âlvim, sem data.
t
O seminárío z: O eu na teoria de Freud e na técnica da psícaná-
lise j954-r95Sl, Rio de Janeiro: Jorge Zúar Ed., 1985.
LACAN, I. Semináio va: A Ética da psicanálíse
[r959-r96oj. Rio de
Janeiro: lorge Zahar Ed., 1988.
As damas obsessivas e o falo
"A psicanrílise e seu ensind' bgSfl.In: Escritos. Rio de Janeiro: :l
lorgeZahar Ed., r998.
"Étourdit'l Scilicet 4. Paris: Editions du Seuil, 1979.
"Homenaje a Marguerite DuÍas" bgZSl. ln: Intervenciones y
UMA OBSESSIVA LACANIANÂ
Textos z. Buenos Aires: Manantial, 1988.

tÉvr-srnauss, c. 'A estrutura dos mitos'l In, Antropologia Estrutural.


Em pelo menos três seminários j_é -p-gblicados, Lacan aborda
Rio de |aneiro: Ed. Tempo Brasileiro,4" edição, sem data.
casos de neurose obsessiva em mulheres. No Seminátrio n, O eu
"O campo da antropologil'.It Antropologia Estrutural z. Rio
na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, no capítulo xxl,
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.
Lacan (1954) trabalha um caso de Fairbairn,z dando-lhe o diag-
RoDRIcuEs, N. 'Vestido de Noiva'i ln: Teatro Completo, peças psicológi-
cas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, r98r. nóstico de neurose obsessiva. O interesse da retomada do caso
é justamente este: o autor, estando preocupado com as pulsóes
vERNANT, ;. r. "Le Tyran boiteaux: d0Edipe à Périandre" In Oedípe et
ses mythes. Bruxelas: Editions Complexe, 1988. pré-genitais, fixa-se num diagnóstico de psicose maníaco-depres-
siva, enquanto que Lacan é claro: "Não se trata de um obsessivo,
porém de uma mulher que tem uma anomalia genital" (p. ::s).
A mulher tem de fato uma anomalia que faz com que na
puberdade levantem-se dúvidas quanto ao seu sexo, pois tinha
uma vagina diminuta, sem útero, tórax amplo como o de um
homem e uma altura exagerada para uma mulher. Uma pesguisa
genética e hormonal tira toda dúüda: é mulher! Seu próprio ana-
I
I
lista comenta: "Apesar das dúüdas que pudessem existir, entre-
i tanto, quanto a sua feminilidade física e fisiológica, psicossexu-

l: almente pelo menos ela dava a impressão de ser uma mulher; e


ela tinha bastante atração por homens heterossexuais" (Fairbairn,
1952, p. r99).
Curiosamente a pergunta que orienta sua estrutura não é pri-
mordialmente a questão do sexo. É óbvio, como observa Lacan,

t8 59

)
que "ela não sabe quem é, se é homem ou mulher" (Lacan, 1954, anústa, que diz no início do caso que "felizmente, nas circuns-
p. 341), porém a estratégia masculina de sua neurose vai em tâncias, ela nunca havia se aproveitado de alguma chance para
outra direção. Confrontada com sua anomalia, dá-se por muito se casar" (p. zoo), não sabe agora o que fazer diante desta explo-

satisfeita, julgando-seliwe das obrigações sexuais das mulheres são de libido. A paciente, descrita como uma mulher de meia-

e decide se dedicar ao magistério. Na verdade, como vamos ver idade, ainda ürgem, está üsivelmente encantada com a maneira

no decorrer da análise, sua anomalia física lhe permite se firr- pela qual ela "afeta" os homens, e elabora uma teoria segundo a
tar à questão do desejo, mantendo-se como morta, nesta zona de qual ela seria dotada de poderes, ainda não descobertos pela ciên-

penumbra entre homem e mulher. No magistério, dedica-se com cia, que poderiam ser usados para o benefício da humanidade.
afinco, mas a exigência de perfeiçáo termina por levá-la a um cír- paz deve13!
culo vicioso: "Quanto mais ela lutava pela eficiência, menos efi- q4"õãúç *, hott.* d...i, w ?"),

ciente ela se tornava; e quanto menos eficiente ela se tornava, mais aberto pelo confronto desta obsessiva com seu próprio desejo, o
zor). O fracasso é acompanhado
ela lutava" (Fairbairn, t952, p. analista determina que "agora ela estava sujeita a delírios de gran-

de autorrecriminação e como resume Lacan (r-954), "ela é tirani- deza com colorações messiânicas" (p. zo6).

zada, de maneira medonha, por seus escrúpulod' (p. :+o). A condução do caso, totalmente dominada pelo imaginario
É neste contexto que se alternam as crises de depressão e do analista, é catastrófica. Como bem o demonstra Lacan, pri-
períodos de euforia, levando o analista ao seu erro diagnóstico. meiro ele dá um eu à analisante e, em seguida, não sabendo o
Na verdade trata-se de uma psicose maníaco-depressiva muito que fazer com o seu desejo pelos homens, e guiado por seus Pre-

estranha, pois, 'â medida que a anrilise prosseguia, algumas das conceitos, "ensinou-lhe o que ela queria deveras, isto é, demolir
fases que apareceram duravam apenas algumas horas ou mesmo os homens" (Lacan, t954, p.34o). Não satisfeito com isto, enfia-

alguns minutos" (Fairbairn, L952, p. zoz). É, pela üa da depres- lhe goela adentro um superego - como se a uma obsessiva fal-
são que surge a demanda de anáIise, e sob transferência alguns tasse um - e consegue a duras penas despertar-lhe o sentimento

outros sintomas se definem: 'A presença de uma forte fixaçáo de culpa de modo que, na etapa posterior da análise, ela passa a

anal foi inferida, a princípio, tendo em üsta sua extrema arru- ter crises de angústia e depressão cadavezque se aproxima de um

mação, seu ódio à sujeira e sua paixão por limpeza" (P. zoz), homem. Missão cumprida, a fera está domadal

A paciente tem um histórico de prisão de ventre e hemorragia O autor comenta que este é o estádio paranoide da anáüse, o
retal. Passa a ter sonhos com banheiros sujos e a experimentar que faz Lacan observar, com ironia: 'Acredito, com efeito, de bom

sensaçóes sexuais no reto. Com tudo isto, permanece o diagnós- grado que assim seja - ele consegue ensinar-lhe muito bem onde

tico de psicose maníaco-depressiva para Fairbairn... estão suas pulsõês, e agora ela as vê dando sopa por todo cantd'
(p. :+o).
À medida que a anáüse avança, a paciente é posta em con- @z-a-Eairhairnrentra:§el,
tato com seu desejo: passa a ter "aventuras" no trem... em que oue diz resoeito à técnica: "Uma das molas secretas dos fracassos

vem à sessão de As 'hventuras" não passam de beijos e


anrá.lise! dos tratamentos de obsessivos é a ideia que. ppl-trás da neugse

abraços com homens desconhecidos que encontra no trem. Seu olsessiva,há uma ps.r:'lse}ry Náo é de admirar que se che-

6o
a neurose valor simbólico, e que vai haver problema. Seria um perfeito engano, diz o
que então as dissociaçóes larvadas, e que se substitua autor, acreditar que o Ppnf'sreld seia absolutamenle-:natural naq mul.heres.
uma orien-
obsessiv" por depressóes periódicas, e até mesmo Por Quem íoi que disse a ele que era-nanrralG simbÉliçS-hgrn-Cqtendido*É
tação mental hipocondría ci' (p. 3 4z). na medidaem que q glgf!r9r,,q9-aq!a_.qqqre-q1-{9m_simbólicadep-e6p3cliva
não é o pênis,,pgr§ry
O texto original de Fairbairn é de r93r, ou seja' contemPo-
r.-,A.tirís,

"um o
f4o, el leja, alg=o-cq!.-eg1§gr U49-1.,:9 é p991ív5l po-igg.e-ry.v-ê, so;;
râneo da chamada "querela do faldi da qual Lacan diz ser qug está erigido. Do que não se vê, do que está escondido, não há ernprego
da psi-
exemplo de uma paixáo doutrinal, a qual a degradação simbólico possível (p. 34).
junta um
canálise, consecutiva a sua transplantação americana'
de nostalgia" (1958, p.68il.Trata-se do debate entre
Freud'
valor
da pri- O DÊUS DO FALO
Ernest Jones, Karen Horney e Helen Deutsch, em torno
o caso de
mazia do falo na sexuüdade feminina' Fairbairn' com Na "Significação do falo' (rgs8) Lacan vai precisar que 'b falo é
dar uma
uma paciente com uma anomalia genital, parece querer u!q*§ig!úcanÍe
contribuição inovadora ao debate: subj etiva de anaiiss§.oqlgE§_t-4Jç.49y-é.udaquela-Sre-ele-ü.úa=qos
\ia-#
Tendo em vista a natureza de seu defeito fisico seria esperado
que a vagina, r.§Ériqs_(.L_q9-9).O. mistérios a que se refere Lacan são os mis-
mas na realidade dos
e não o pênis fosse o objeto da inveja inconsciente; térios da iniciação dionisíaca, representados nos afrescos da Vila
parece ter sido promovida pela ausência da vagina,
fatos a úveja do pênis dos Mistérios, em Pompeia, notadamente num dos mais belos,
e não o conüário. Pode-se inferir daí que, no
gue diz respeito às mulhe-
que é o que representa a sacerdotisa no momento que desvela
resnormais,aposiçáoéadequearepressãodasexualidadefemininaéo
pré-requisito de inveja-do-pênis, em lugar de que a inveja-do-pênis
seja o falo, e que está na capa da edição francesa de Televisão. Mais
'.rln feminina.
f.nôIn.oo primário, favorecendo a repressáo da sexualidade adiante, Lacan volta a se referir ao falo, na sua conexão com os
Se inferência for correta, o ciríssico conceito
do tomplexo de castração
a antigos mistérios dionisíacos; "O falo é o significante desta pró-
feminina' parecia precisar ser reúsado (rarnnetN' tg5z'p'
zzt)'
pna Auftebung lelevaçáo, suspensão] que ele inaugura (inicia)
por sua desaparição. É por isto que o demônio do ái(ws (Sham)
O autor quer, na verdade, nada menos do que isto: revi-
sar Freud, e revisá-lo a partir de uma série de mal-entendidos:
[o demônio do Pudor] surgia no momento mesmo em que, no
já mistério antigo o falo é desvelado.
equivalência da vagina com o pênis (Quem é que ouüu
falar
de que a Ele se torna então a barra, que pela mão deste demônio
di "invela da vagina"?), e principalmente a suposiçáo
de atinge o significado, marcando-o como a progenitura bastarda de
repressão da sexualidade de sua paciente fosse consequência
sua concatenação significante" (p. 692).
sua anomalia física e náo de sua neurose, o que a própria
anáüse

quando sob a transferência, a repressão diminui e a Os mistérios, no mundo greco-romano, eraÍn remanescen-
desmente,
tes de cerimônias tribais que sobreviveram paralelamente à reli-
sexualidade eclode.
Lacan Q954) vai ao ponto, de forma contundente: gião oficial. Mistério é derivado do verbo grego myein - fechar -,
referindo-se aos lábios dos iniciados que deveriam permanecer
Não há melhor ilustraçáo da funçáo do Penkneid - é na medida em que selados, não revelando as práticas sagradas ocultas. Os grandes
com o homem imaginário' que o pênis adquire
nela existe identificação

6z
6z
mistérios eram dionisíacos e eleusianos. Os mistérios eleusianos
dizem respeito à deusa Demeter, a deusa-mãe da agricultura e do Zess -Io
grão, cujo principal santurá.rio encontrava-se na cidade de Eleusis,
I

na Ática, entre Atenas e Megara. Os mistérios dionisíacos diziam I

Epafo - Mênfs
respeito, obviamente a Dionisos, Baco, o deus que trouxe o vinho
I

para os homens. I

Líbia - Poseidon
Em Ás Bacantes, de Eurípedes (rgg:), Tirésias, o sábio pro-
I

feta, adverte Penteu (p. zr9): I

Ares - A-frodits Ágenor - Teleíassa

Pois saibas, frlho,


que para todos nós, simples seres humanos,
há dois conceitos realmente essenciais: Harmonia- Cadmo Europa - Zeus
primeiro o de Demeteç a deusa maior
ou, se preferes, simplesmente a Terra-mãe (podemos invocáJa Por um
destes nomes);
eia nos nutre com seus alimentos sólidos; depois da deusa veio o filho de
Semele,
seu êmulo, que descobriu e revelou
Penteu
o leve suco produzido pelas uvas
para curar de suas muitas amarguras rl
ll
Labdaco

a triste raçahumana- Oclaso Laio


I

Os afrescos de Vila dos Mistérios, que tanto agradam a


I

Meneceu
Lacan (ele os citará de novo na "Direção do tratamento") mos-
I

tram a iniciação de uma moça nos mistérios dionisíacos. Num


Creonte
deles a jovem, com a fisionomia tomada pelo espanto, desvela um
enorme falo ereto. O falo ereto é'h estátua, o ágalma de Dionisos"
(Detienne, 1988, p. 58).
Dionisos, filho de Zeus e Semele, é um deus peculiar. No
I
panteão do Olimpo, no qual é o décimo segundo entre os deuses
maiores, e o ultimo a ser admitido, ele é representado por uma
máscara. O deus mascarado tem que impor sua divindade, já que I

é fiIho de uma mortal. Por sua linhagem materna, Dionisos per-


tence à casa real de Tebas, da qual descende também o desafor-
tunado Édipo.

65
6+

I
A lógica dos deuses não é a lógica dos homens. Desta forma, Ainda que Dionisos náo fosse um deus,
Harmonia, mulher de Cadmo, embora filha de dois deuses maio- como imaginas, deverias, mesmo assim,
dar-lhe este nome e admitir devotadamente
res, não é divina, mas mortal, e seu neto, Dionisos, embora filho
a inveução de que ele é filho de §emele
de uma simples mortal, ganha seu lugar entre os grandes deuses. para que ela desfrute a fama de ser mãe,
Hesíoto canta assim o nascimento de Dionisos: ela, mortal, de um deus, e esta distinção
se estenda por todos os nossos parentes.
Semele filha de Cadmo, unida a Zeus em amor (runÍrcors, 1993, p. zzt-zzz)
gerou o esplêndido filho Dionisos multialegre
lmortal, ela mortal. Âgora ambos são deuses (p. rSS). Mas o grande confronto da peça é entre Dionisos e Penteu,
seuprimo, filho de Agave com Equion, um dos Spartói que surgi-
Dionisos, o deus mascarado, "é o deus que vem de fora, ele
ram da terra arada por Cadmo com os dentes do dragão. Penteu
vem de Outro lugar". Por isto é sempre o Estrangeiro,'ho duplo
se recusa a reconhecer Dionisos como deus, manda prendê-lo e
sentido de Ksénos" (Detienne, 1988, p. zr), ou seja, é estrangeiro
ofende suas mênades. O coro grita:
porque é portador de estranheza, mas pertence ao mundo helê-
nico. Ksénos designa o estrangeiro que vem da cidade próxima, Ah! Que furor! Ah! Que rancor exala
o estrangeiro próximo. Dionisos se manifesta por epifanias e suas este neto da Terra - sim, Penteu! -,
o filho do dragáo assustador,
festas sagradas não têm dia marcado. Irrompe de súbito, acom-
gerado por Equion, monstro horrível
panhado de seu séquito de ménades, exigindo ser cultuado. É em de olhar feroz e em nada parecido
Tebas, sua cidade de origem, que este aspecto de atrangeiro pró- com a raça das criaturas humanas [...] (p. zf z).

ximo vai se manifestar de modo mais claro.


 peça As bacanta, de Eurípedes, narra o retorno de
A vingança de Dionisos é terrível: enlouquece as tias, que
correm pelos bosques com as bacantes, e se oferece a levar Penteu
Dionisos a Tebas e seu ajuste de contas com a família de Cadmo,
para observar, escondido, os ritos sagrados. No bosque, amarra-o
que haüa difamado sua mãe, Semele, e duvidado que ela estivesse
no alto de um pinheiro, onde é descoberto pelas muiheres e dila-
dormindo com um deus. Semele, insuflada pela ciumenta Hera,
cerado vivo por suaprópria mãe, Agáve, e suas tias.
pede para ver seu amante em todo seu frrlgor e morÍe queimada. &t_gg_gjeC-
tino das mulheres que-.nãoprestasiem culto ao deus do falo: des-
A criança, Dionisos, no sexto mês de gestação, é salva por Zeus e
escondido na coxa do divino pai. Assim, ao deus é reservado um
trúr su as própri as cng§*ÍILe-nãoggis*rcc-onheciam. Tamb ém
com as Miníades o mesmo acontecera (Detienne, 1988), §r que
duplo nascimento: de sua mãe morta e de seu pai, soberano entre
Ieva a concluir que as
os deuses, de cujo corpo sai também divinizado.
Mas esta divindade tem que ser irnposta na sua própria casa,
O deus cuja presença é anunciada pelo phallós afeta prin-
onde suas tias Autonoe, Ino e Agáve, haviam zombado de sua
cipalmente as mulheres. "Em uma série de santuários e de ceri-
mãe, e onde mesmo Cadmo, ao reconhecer a divindade do neto,
mônias'dionisíacas, os homens são excluídos e só as mulheres
o fazpor motivos interesseiros, como diz a Penteu:
aceitas. A recíproca não é verdadeira" (Detienne, 1988, p. 138-

66 67

I
139). Detienne ressalta que Dionisos não tem no panteão grego
o monopólio do falo, porém é o único deus que se manifesta que slstiria no lugar vazio onde ponho, y6* que velam
-05
'hge por e sobre o fald' (p. z6g). Afatofaria consistia na procis- o corpo dos fiéis de Dionisos, o stolê,são vestes cerimoniais femi-
são em que o falo era carregado e se dava sob a influência da che- ninas, mas é também o traje do deus. É vestindo Penteu com
gada de Dionisos a um lugar, em grego, epidemia (chegada ao os trajes rituais femininos que Dionisos o leva a cair na arma-
país). No Seminário VI, no seu texto dedicado a HamJet, Lacan dilha mortal (Eurípedes, 1993, p. 242-249).4 relaçáo da más-
cria um significante novo,falofaria, paradizer da irrupção epifâ- cara dionisíaca com o feminino é observada pelo próprio Penteu
nica do falo. que, impressionado com a beleza com que o deus se apresenta, o
Na peça de Shúespeare, Lacan vai nos dizer que é em pri- chama de "efeminadci' (p. zzz).
meiro lugar Oféüa que vai enca.rnaÍ o falo. "OÍélia é o falo, exte-
riorizado, rejeitado pelo sujeito enquanto símbolo significante
o ursrÉnro DA DEUsA BRANCÀ
da vida" (p. S6). Hamlet rejeita Ofélia-falo e hesita em destruir
Cláudio, o tio-assassino, justamente porque está identificado fú- Robert Graves Gg6l) interpreta o mito de Dionisos como a saga
camente a ele: '?\ mola que faz desüar constantemente o braço de da descoberta do vinho pelos homens, e diz que o momento
Hamlet é o laço narcísico de que nos fala Freud no seu texto sobre em que este deus substitui Hestia no panteão do Olimpo é mais
o declínio do complexo de Édipo - não podemos ferir o falo por- uma alusão à substituição do matriarcado original dos povos da
que o falo, mesmo real, é uma sombra" (p. ,r+). Mais tarde, ao Europa antiga, pelo patriarcado.
desenvolver o conceito de semblante este aspecto de ,bombra,, do Para este autor, citado por Lacan na sua introdução à peça
falo se esclarece. Uíalo é semblante por natureza, iá quq o fal.o de Wedeking, O dupertar daprimawra, os mitos gregos são rela-

1
q" ..1j,9&ttlê@41$-99 &19-qsç*Uta;1o *o--utto sexo, à tos desta passagem; 'A Europa antiga não tiúa deuses. A grande
I{silqi _q311i9jt[.: Deusa era considerada como imortal, imutável e toda-poderosa;
As epifanias de Dionisos são anunciadas por gritos e furor, e o conceito de filiação pelo pai não havia penetrado no pensa-
mais do que por cantorias alegres de bacantes embriagadas. É o mento religiosd' (p. zo). O primeiro mistério religioso celebrado
estranho deus dos contrastes: a ele é atribuído ter ensinado aos era o mistério da mãe. Diz Lacan: "Como saber se, como o for-
homens a postura erecta (orthó.s) e ter-lhe dado o vinho que os faz mtrla Robert Graves, o proprio Pai, o pai eterno de todos nós,
cair. O próprio ünho também é de natureza dúplice: remédio ou não é mais que o Nome entre outros da Deusa branca, aquela
veneno, ou cura ou destrói. A mania,loucura sagrada trazida pelo que seu dizer se perde na noite dos tempos, por ser a Diferente,
deus, pode ser a purificação através da própria loucura ou a impu- Outra sempre em seu gozci' (p. rrz-rr3). Lacan não está falando
reza delirante que exige uma purificação (Detienne, r9gg, p. de mitologia, naturalrnente, mas se serve da hipótese de Robert
4g).
Detienne resume a duplicidade de ,i{.través Graves para falar deste Outro absoluto, mistério que se perde
Dionisos dizendo:
da máscara que lhe confere sua identidade figurativa, Dionisos na noite dos tempos, que é Á mulher gue nâo existe. A mulher
afirma sua natureza epifanica de deus que não para de oscilar não existe porque o que existem sâo mulheres, particulares, seres

68 6g

)
falantes. No entanto, cada sujeito, por ser nascido de uma mulher, neurose obsessiva feminina vai aparecer de modo particular, está
se interroga sobre este gozo misterioso que n'mulher estaria para inscrita no matema da faÍltasia do obsessivo.
além do falo. Neste seminário Lacan expõe clinicamente as variantes, para
O próprio falo, significante da falta, vela o fiuo no Outro, a neurose obsessiva e para a histeria, do matema que define a
mas náo o recobre totalmente, mantendo assim um jogo de pre- estrutura da fantasia fundamental I 0 a, o sujeito do inconsciente
sença e ausência. "O que ele designa não é nada que seja signifi- (8) em todas as relações lógicas possíveis (0) com o objeto que
cável diretamente'l nos diz Lacan no Seminiírio daTransferência, causa seu desejo (a). Este matema resume os tempos lógicos da
"é aquilo que está para além de toda significação possível [...]" fantasia descritos por Freud (rprs) em "Bate-se numa criança'l o
(196o, p. 258). que é desvelado no final de uma anáüse, quando o segundo tempo
É neste seminário, no capítulo xvrrr, que Lacan vai abordar ("meu pai me bate, logo me ama") que nâo pode ser recordado,
outro caso de neurose obsessiva em uma mulher. Comenta um pois é uma construçáo lógica "mas nem por isto menos necessá-
caso de Bouvet, descrito no artigo "Incidências terapêuücas da ria" (p. r83) se eüdencia. O primeiro tempo ("meu pai bate numa
tomada de consciência da inveja do pênis na neurose obsessiva criança que eu odeio") e o terceiro ("bate-se numa criança") esca-
feminina'l do qual retira um fragmento que exemplifica
Lestra-
moteavam o cerne da fantasia - o segundo tempo - recalcado,
téeqbj.e;gr c9*:Sl1ç_qg9^fat9, Â paciente de Bouvet tinha proibido, incestuoso. O atravessamento da fantasia no final da
uma fantasia sacrflega: representava, na sua imaginação, órgãos análise consiste então em desvelar esta condição do sujeito como
genitais masculinos no lugar da hóstia. Lacan comenta um caso objeto do gozo do Outro, posição estruturalmente masoguista e

seu, de um homem obsessivo, que tinha a fantasia de introduzir incestuosa, designada no segundo tempo oculto.
uma hóstia santa na vagina de sua companheira, no momento "O valor da psicanálise", nos diz Lacan (tg6l), "é de ope-
do coito, de modo que "ela iria envolver o pênis do sujeito no rar sobre a fantasia. O grau de seu sucesso demonstrou que aí se
momento da penetração" (Lacan, 196o, p. 255). Os dois fragmen- julgaa forma que assujeitou corno neurose, perversão ou psicose i
tos clínicos nos reportam à beata de Eça de Queiroz, em O crime Melanie Klein já o sabia, ao contrário dos autores que apostaram
do Padre Amaro, que, aflita pela dúvida, recorre a seu confessor. na adaptação do eu à realidade, pois é 'ã fantasia que dá a reali-
Sucedia que no meio da oração, ao evocar o nome de Jesus, asso- dade seu enquadre'i Este é um ponto fundamental no qual o klei-
mava-lhe urn escarro. Daí a dúvida atroz: devia cuspir o nome de nianismo se mantém paradoxalmente fiel a Freud e distante de
|esus junto com o escarro, ou engolir junto com o escarro o nome Freud: a posição do sujeito em relação ao Outro na fantasia.
I
de Jesus? í
i
Ali onde Freud aponta a posição masoquista primordial que
I
Cuspir ou engolir o Nome-do-Pai, reduzido a um escarro. L.
l
no tempo imemorável ("meu pai me
se fixa na tela da fantasia,
!

Engolir a hóstia santa como um pênis, ou fodê-la inserida 4a I b4te, meu pai me ama"), Melanie Klein fala de um sadismo pri-
vagina. Eis um aspecto da "temática da degradação do grande meiro (fantasias de destruiçáo do objeto) que se remete a uma
Outro em pequeno outro, em cujo campo se sifua o desenvolvi- leitura do Freud de r9r5 em 'As pulsÕes e seus destinos". Assim,
mento do desejo" do obsessivo (p. zSil. Esta degradação, que na enquanto quê para Freud há na fantasia primordial algo que não

7o 7L

I
pode ser relembrado, algo que toca o real e que tem â ver com "O signo de funçâo fáhcd', nos diz Lacan (196o), "emerge de
estaposição do sujeito como objeto de gozo do Outro, paral{ein, todas as partes no nível da arüculaçáo dos sintomas" (p. z5r). O
como as fantasias se referem a ataques sádicos do sujeito ao outro Outro do obsessivo é barado, marcado pela falta 0 e sua eska-
primevo (o corpo da mãe), podem e devem ser ditas, exaustiva- tégia é preencher avazio do Outro com os objetos erotizados do
mente, pela interpretação do analista. seu desejo [q (a, a', a'1..)]. Estes objetos são colocados numa certa
Se afantasia é o que dá enquadre à realidade, é fundamental equivalência por deslocamento. É por isto, nos lembra Lacan,
ao anústa balizar a posição do sujeito na fantasia: que Freud fala do Homem dos Ratos no plural, embora o suplí-

. cio narrado pelo capitáo cruel tratasse de apenas um rato. Mas os


preso a uma posição que o fixa numa relação lógica pre- ratos se multiplicam nas equivalências erotizadas: "Tantos ratos,
cisa ao objeto - na neluose.
tantos florinsl'
r pr€so a uma posição determinada pela vontade de gozo
Uma paciente obesa, nada ingênua no que diz respeito à teo-
que o fixa como instrumento do Outro na perversáo.
- ria psicanalítica, tendo perdido peso pela mudança trazida pela
. à deriya, em busca de uma construção significante que o anrilise à sua economia de gozo, dizia: "Pareço o Homem dos
determina frente ao gozo do Outro - na psicose. Ratos, tantos ratos, tantos quilos'i "O rato simboliza, ocupa pro-
Na neurose, onde a fantasia opera como tela protetora, dando priamente o lugar daquilo a que chamo rp, na medida em que ele
uma resposta que defende o sujeito do indecifrável do desejo do é uma forma de redução de (D, e mesmo a degradação deste sig-

Outro, a condiçáo estrutural do sujeito como objeto do gozo do nificantd' (Lacan, 196o, p.z5o). O significante fáIico, degradado,
outro (revelada na psicose) é escamoteada nas duas estratégias: se multiplica no deslocamento metonímico das eqúvalências
eróticas.
mascúna e feminina.
Lacan nos diz para não tomarmos simplificadamente a dife-
Na estratégia feminina (histérica) e na masculina (obsessiva)
rença entre (D e q como o falo simbólico (@) e o falo imaginario
esta condição estrutural é escamoteada de formas diversas. Na
(g). Realmente, a questão é mais complexa, uma vez que mais
histeria, (ai-g 0 A) o sujeito, oferecendo-se como objeto (a), na
tarde Lacan vai se referir ao falo como "significante imagináridi
missão impossível de causar o desejo, recria o Outro (A), cuja
introduzindo aí uma ambiguidade que só se elucidará quando ele
castração ele vela (-g), nos dois sentidos
- oculta e toma conta. introduzir a noção de semblante.
Mas o Outro para a histéricanão é o homem, de cuja castração ela
sabe (como no caso Dora, o pai impotente). para além do homem
está o Outro absoluto, mulher, na qual a histérica adora o mis_ rNrMrGAs oe crvruzeçÃo
tério de sua própria feminilidade, e interroga o enigma do gozo
É em r97o- Lg7L, no seu seminário (ainda inédito) De um dis-
para além do falo.
curso que não seja do semblante, que Lacan propõe este conceito
Na neurose obsessiva, a função frílica não é recalcada (sob a
i em oposição ao real. Não se trata de opor o semblante ao ser. O
barra) como na histeria:
I
semblante é um conceito operativo gue permite reunir frente ao
ÁOrp(a, al a'i...) I

t real, o simbólico e o imaginário.


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I
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72 I
I.

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)
Assim, o significante Nome-do-Pai, que na neruose funda a paciente histérica: "Que ele gostou dela, gostou, e os moleques
relação do sujeito ao simbóüco, é semblante, semblante operativo [que ela não suportava] são a prova."
necessário para amarar o sujeito à estrutura. A psicose põe a nu a Todo sujeito do inconsciente tem uma relaçáo essencial
natureza de sembiante do significante. No Rascunho K, ao opor com o nada, uma vez que o recalque se funda sobre este nada
a paranoia à neurose obsessiva, Freud observa que o paranóico que é a castração materna. Em outras palawas, é a falta radical
"retira a crença" na autorrecriminação primária e a rechaça, pro- que é encoberta pelo significante fálico, fundando o inconsciente.
jetando-a no mundo exterior, Em outras palawas o paranóico não Freud já aponta isto ao dizer que não existe no inconsciente a
crê no significante, sabe de sua natureza de semblante. No traba- representação do negativo - do náo ter -, o que equivale a dizer
lho de delírio, que pode resultar na construção de uma metáfora que não há no inconsciente a representação da mulher, o signi-
delirante, como a "mulher de Deu§'de Schreber, trata-se de subs- ficante mulher, enquânto faltosa. Esta falta original é recoberta
tituir o semblante Nome-do-Pai, ausente na estrutura, por outro pelo significante no simbólico e pelos objetos imaginarios que
semblante operativo. o sujeito elege inconscientemente como recobrimentos, revesti-
No mesmo Rascunho, Freud observa que o obsessivo crê na mentos daquilo que causa seu desejo, ou seja, a própria falta.
autorrecriminação, ou seja, crê no significante, o que lhe permite, Ora, a mulher, por sua falta frilica, tenderia a ser mais pró-
inclusive duvidar, pois é a crença que sustenta a dúvida, como xima ao real na medida em que teria uma relação mais aberta,
bem o demonstram os religiosos. Poderíamos mesmo dizer que mais clara com este nada essencial, como o revelam inúmeros
a religião particular do obsessivo, à qual Freud se refere, é a reü- casos de histeria, cuja queixa já diz respeito a uma falta insupor-
gião do significante. tável. O Penisneid pode assim ser lido não só como a inveja do
No capítulo tv do "Mal-estar na civilização' Freud (r93o) diz órgão peniano, mas sobretudo como a nostalgia do falo enquanto
que a mulheç e aqui ele está falando da posição feminina e não aquele semblante que daria conta de recobrir totalmente a falta.
da neurose, 'entra em uma relação de hostiiidade" (p.ror) com Nos homens, a presença do órgão frílico üabiliza que eles
os valores da cultura e os semblantes da civüzação. Isto se dá façam um conjunto, o conjunto dos homens referidos ao falo e
porque há uma evidente diferença entre o investimento objetal portanto submetidos ao complexo de castração. O que permite
no homem e na mulher. Segundo Freud, a famflia se funda por- a formação deste conjunto é sua exceção, ou seja, o Pai, agente
que o macho deseja manter a proximidade de seu objeto sexual, a real da castração simbólica. Freud, ao longo de sua obra, enfa-
mulher, e esta deseja manter perto de si seus objetos, os filhos. tiza a dissimetria entre o Édipo masculino e o feminino exata-
Hoje, já no século xxt, quando vemos surgir novas formas mente no ponto que diz respeito à castração. Nas mulheres, des-
de famfl.ia, a teorização freudiana se comprova: nos novos casa- providas do órgáo fálico, a ameaça da castração náo pode incidir
mentos que contraem com mulheres com filhos de outro homem, do mesmo modo que nos homens e vai se configurar sobretudo
os homens tendem a aceitar mais facilmente a situação do que como ameaça de perda do amor.
as mulheres, parâ quem os filhos de seu homem representam o Assim sendo, nem tudo na mulher vú dizer respeito ao falo e
desejo que ele teve por outra mulher. Como toda generalizaçâo, ao significante, o que leva Lacan a dizer que a mulher é não-toda e
esta merece ser confrontada caso a caso, mas como nos disse uma a grafa mulher, com barra. Porém, se podemos formar o conjunto

74 75

)
dos homens, isto só é possível se o fizermos em torno do falo, RTFERÊNCIÁS BTBLIO GRÁFICÀS
signi6cante da falta, o que equivale a dizer que o conjunto dos
homens existe enquanto conjunto dos'teligiosos do significante'l
DETIENNE, u. Dionisos a céu aberto. Rio de faneiro: forge Zahar, 1988.
Nesta lógica, é impossível formarmos o conjunto das mulheres,
nnnÍrr»rs. ffgê ni a, As b a c ant es, As fení ci as. No de Janeiro : J or ge Zahar,
na medida em que um conjunto só poderia ser formado a partir
t993.
de seus atributos que são necessariamente fálicos, o que automa-
FAIRBAIRN, w.R.D. "Features in úe analysis of a Patient wiú a Physical
ticamente as colocaria dentro do conjunto dos homens. genital Abnormality". ln Psycho analytic studies of the Personalíty,
A Grande-Mâe de Melanie tr3ein demonstra bem isto: ela Londres: Tavistok Publicaüons, r95 z.
tem seios que resumem o mundo, ela tem, ela é portanto fálica, un niio" (rprS).
FREUD, s. "Pegan a ln Obras completas, Buenos Aires:
pertence ao conjunto dos homens. Lacan propõe que as mulhe- Amorrortu Ed., 1996, v. xvrr.
res enquanto não-todas só podem ser tomadas uma a uma, como "El malestar en la cultura" (r93o), v. xxl, Obras completas.
no mito de Don ]uan, que as seduz uma a uma. A nostalgia do Buenos Aires: Amorrortu Ed., 1996.
falo, aquele que permite fazer conjunto, aponta para a afinidade cnÁvEs, Robert. Ies mytha grecs,v. r. Paris: Librairie Feryard, ry67.
da mulher com o real. nnsÍopo. Teogonia, São Paulo: Ed. Iluminuras, 1995.
Esta posição, aparentemente, aproxima as mulheres da psi- LAcAN, '1.
O semínáio z: O eu na teorla de Freud e na técnica da psícaná-
cose pois, tal como expusemos acima a respeito da paranoia, na líse. (:-954-1955). Rio de |aneiro: Jorge Zúar, 1985.
psicose também o sujeito não crê iro significante,
despreza os O semínário 8: A transferêncía (ry6o-r96r). Rio de ]aneiro:
semblantes. No entanto, Lacan nos diz que esta aparente proxi- lorgeZa\ar, t9gz.
midade entre mulheres e psicose é bem isto - uma aparência. EIas 'A significação do falo' (rgs8). In: EscnÍos. fuo de Janeiro:
não são todas loucas, porque elas são não-todas.. Em outras pala- ]orge Zúar Ed., 1998.
was, as mulheres não estão todas fora do significante, ou seja, náo Tblevisão. Rio de Janeiro:lorgeZahat 993.
são todas loucas. A estrutura neurótica é o que permite a algumas "Discours de clôture des journées surla psychoses chez l'enfant''
mulheres (pois também existem as loucas) se manterem ligadas (tg6z).lnl. Enfanca aliénée. Paris: Editions Denoel, 1984.
ao significante, pois estrutura é isto: estrutura significante, estru- Hamlet por Lacar. Campinas: Escuta Ed., 1986.
tura de ünguagem. "El despertar de la primaverci' GgZà. Inl. Intervencíonx y
Porém, resta a questão: se na histeria a denúncia da falta Texfos. Buenos Aires: Manantial Ed., 1988.
impera, se a histérica denuncia os semblantes como insatisfató- MAssoN, 1. u. A conapondência completa de S. Freud para W. Fliess.No
rios, como compreender que uma mulher, mais próxima ao real, de |aneiro: Imago, 1986.

se aferre tão firmemente ao semblante, a ponto de ser tornar uma


religiosa do significanfe, na neurose obsessiva?

"É justamente por isto que elas não são todas, isto é, não loucas-de-todo, antes
con-
ciüadoras: a tal ponto que náo há limites às concessões que cada uma Íaz para um
homem: de seu corpo, de su1 elm6, ds ssu5 lens'l ]. Lacan, Televkão,p,7o,

l6 77

I
... E não nos deixeis cair em tentação

 lovEM oBsEssrvA

Paradoxalmente são as religiosas do significanÍe as mulheres que


melhor denunciam, por seu tipo de clínico, a natureza de sem-
blante do falo. Não tendo pênis, elas se inscrevem, no entanto,
na lógica do ter e não do ser, o que aliás não as impede de serern
o falo para um homem, uma vez que, no caso, é o homem quem
as faiiciza. Não tendo no corpo o suPorte imaginrírio do falo, a
obsessiva faltciza o que bem entende - e que está determinado
pela constelação originária que presidiu seu nascimento.
Certamente não é por acaso que esta falicização incide, na
maioria das vezes, sobre a cabeça da obsessiva. É o caso de uma
mulher jovem que, num sonho que marca sua entrada em análise,
diz que sonhou que estava com a cabeça entre as Pernas de sua
analista, Repete assim, sem o saber, a fantasia de completar a falta
frílica do Outro que Freud bgv) descreve no seu clássico caso
que de agora em diante chamaremos 'â jovem obsessiva'l
Tiata-se de uma jovem de t9 anos, bonita, hteligente e filha
única. Freud nos conta gue ela havia sido uma criança levada e
traquinas e no entanto nos ultimos arlos, aparentemente "sem
influência exterior visível' (p. z+t) haüa se tornado neurótica.
Mostra:se muito irritável, especialmente com sua mãe; "sempre
insatisfeita, deprimida, se inclina Para a indecisão e a dúvida e,

I
por ultimo, confessa que já não pode mais ir sozinha a praças paciência do leitor, omite. Porém o mais terrível é que, uma vez
ou ruas importanted' (p.z4r). Vemos aqui a combinação de sin_ executado o ritual, a jovem é tomada de dúvidas sobre cada deta-
tomas obsessivos e fóbicos que já chamavam a atençáo dos psi_ lhe, de modo que é necessário repetir tudo de novo, e nesta brin-
quiatras que, antes de Freud, estudaram a loucura da dúüda. Na cadeira.lúgubre gasta cerca de duas horas, nas quais não dorme
conferência em que apresenta este caso (a t7),Freud vai privile- nem deixa dormir os seus'hcovardados pais'i
giar a aniilise do cerimonial de dormir da jovem obsessiva. Freud A advertência que Freud nos faz antes de discutir o decifra-
observa que toda pessoa normal tem seu próprio cerimonial para mento deste sintoma é uma pequena aula sintética sobre a clí-
dormir: trata-se de criar condições pÍ*a a passagem do estado de nica da neurose obsessiva. Em primeiro lugar, nos faz notar a
ügflia para o sono. No caso do cerimonial patológico este é infle_ atitude de resistência da paciente: de início recebia as interpre-
xível, imutável e se impõe obrigatoriamente ao sujeito, mesmo tações ou com um solene nã.o ou com uma dúvida desdenhosa.
que às custas dos maiores sacrifícios. Mais adiante, já em trabalho anaUtico, ela passa a recolher dados
O ritual da jovem começa pelos relógios: com a desculpa de sobre seu rifual, produzir recordaçôes, estabelecer nexos, "até
que não consegue dormir se ouve qualquer ruído, desliga todos que aceitou todas as interpretaçôes por seu próprio trabalho'
os relógios da casa, inclusive seu pegueno relógio de pulso, que (p. z+i. Temos aí dois comportamentos frequentemente encon-
não faz ruído algum. Em seguida, todas as jarras de flores e vasos trados na clínica e que impõem uma estratégia particular ao ana-
da casa têm que ser empilhados em sua escrivaniúa para que lista no manejo da transferência. O paciente histérico, levado por
não possam cair, quebra\ fazer barulho e acordáJa. O motivo seu sentimento de insatisfação, de vazio e de falta, está sempre
do barulho já não é evocado para o restante do cerimonial, e mais disposto a falar, nem que seja para se queixar. Já na neurose
Freud observa que sua exigência de manter as portas de comu- obsessiva, o que encontramos de saída é uma forte resistência ao
nicação entre o seu quarto e o de seus pais, encostando vários trabalho do inconsciente, o que leva, por exemplo, muitos obses-
objetos, parece, pelo contrrírio, "ativar uma fonte de ruídos sivos a dizerem que não acreditam em anáüse, ou que se anali-
perturbadores'l sam sozinhos. Porém, uma vez entrado em anáüse, o obsessivo é
Porém, as estipulações mais rigorosas do ritual de dormir um trabalhador dedicado e é necessririo ao analista estar atento
dizem respeito a própria cama da moça. O travesseiro não pode a não incentivar o desüzamento metonímico incessante das asso-
tocar a cabeceira da cama, e um travesseirinho menor é colocado ciações, que levariam a uma interminável cadeia associativa em
sobre o maior no qual é feita uma depressão que forma um buraco. busca do sentido, do sentido, do sentido...
É sobre este travesseirinho menor que se colocará a cabeça da Não é o que âcontece com ajovem obsessiva de Freud, cuja
jovem, tapando o buraco. O edrêdom, com o qual se cobre, tem análise se encerra, aparentemente, com êxito. Outra observação
que ser sacudido de modo que as penas se acumulem nos pés da sutil do autor nos leva a verificar que a jovem aceita as interpre-
cama, formando um volume bem grosso, que depois será aplas- taçôes "por seu próprio trabalhdl ou seja, é ela própria que inter-
tado por ela mesma. Freud nos diz que há ainda inúmeros deta- preta seu ritual, sob transferência. O inconsciente é intérprete,
lhes de menor importância que ele, em benefício certamente da como Freud já o demonstrou desde a Interpretaçãa dos Sonhos,

8o 8r

t
I

,
e cabe ao analista botá-lo para trabalhar, mais do que fazer con- No deciframento das precauções com jarras e vasos, Freud
corrência a seu trabalho interpretativo, produzindo a interpre- GS:.7) lembra de início a associação generalizada entre estes reci-
tação da interpretação, que reproduziria a deslizamento metoní- pientes e o sexo feminino, que faz com que em cerimônias religio-
mico incessante dos próprios sintomas do obsessivo. Freud nos sas de casamento de viírios grupos étnicos, jarros, taças ou coPos
adverte também que o trabalho analítico exclui'h elaboração sis- sejam quebrados. Mas é no particular do caso da jovem que o sin-
temática de um só sintoma" (p. z+i, ou seja, que é necessária toma pode ser decifrado: ela tomada de angustia de não sangrar
é

uma flexibilidade para acompanhar as idas e"vindas do incons- na noite de núpcias. Esta ideia obsessiva, contra a qual ela impu-
ciente, o que Lacan chamou de abertura e fechamento, no seu tra- úa a precaução das jarras, lhe üera de um sangramento produ-
balho de deciframento. zido por uma jarra quebrada na infância, ressignificado 'h pos-
A jovem obsessiva decifra então que o relógio a importu- teriori" quando teve conhecimento sobre o ato sexual. Este é um
nava por uma associação inconsciente com a sexualidade: o reló- dos aspectos do seu sintoma que nos importa de forma particular,
gio, marcando tempos regulares, se associa às regras femininas, e eo retomaremos adiante.
diz-se de uma mulher, cujos períodos vêm sern alteração, que "ela No centro de todo este tortuoso cerimonial está o drama edí-
é regular como um relógioi Além distq o que incomodava espe- pico. A jovem confessa a Freud que semPre Pensou no traves-
cialmente a paciente de Freud era o tic-tac do relógio que, em seiro grande como uma mulher, que não podia encostar na cabe-
análise, aparece associado à pulsação excitada do cütóris. A jovem ceira da cama, que era o homem. Esta angústia tinha a ver com o
pode então se recordar que havia acordado muitas vezes com esta temor ciumento de que seus pais tivessem outro filho e com seus
sensação, para ela penosa. É interessante lembrar que esta asso- próprios desejos edípicos de separar os pais. Antes que aPaÍecesse
ciaçáo entre o tíc-tac do relógio e a excitação clitoridiana já haüa o cerimonial de dormir, havia tentado separar os pais através de
sido observada por Freud (r9r5) em outro caso de mulher, esta ma simulação consciente de angústia, indo dormir na cama deles
uma psicótica. Entretanto o sentido do sintoma é sempre parti- e, à medida que crescia, convencendo a mãe a lhe ceder seu lugar
cular a cada sujeito. na cama. "Esta situação'l sinaliza Freud, "foi por certo o desenca-
No caso do Homem dos Ratos, Freud (r9o9) nos apresenta deador de fantasias cuja repercussão se registra no cerimonial"
um outro deciframento feito sobre a relação do obsessivo com o (p.r+). O ultimo deciframento é o que diz respeito à cama pro-
relógio. Freud está descrevendo a dúvida do obsessivo como a priamente dita. O ritual de encher e esvaziar o pé do edredom é
técnica por excelência de isolar-se do mundo - a dúüda seria, decifrado como uma tentativa de controle da temida gravidez da
enfim, a garantia da perda de realidade na neurose obsessiva. mãe, e o ritual do travesseiro é assim explicado: o buraco no tra-
A aversão a relógios surge neste enquadre, pois os relógios "pelo i- vesseiro maior (travesseiro-mãe) é tapado pelo travesseiro menor
menos certificam as marcas do tempo' (p. r8r). Freud comenta (travesseiro-filho). O buraco no kavesseiro reproduzia a forma
como os neuróticos obsessivos usam, inconscientemente, de dos genitais femininos e, assim, nos diz Freud; "Ela mesma fazia
todos os artifícios para inutilizar qualquer instrumento que o papel do homem, o pai, e corn sua cabeça substituía o membro
exclua a dúvida. üril" (p.245).

8z 8l
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FAÍRE LA rrrvÉrnE I
dos. Olhando pela janela de seu apartamento em frente ao mar,
lhe ocorre a ideia de que "de longe Parece que todo mundo na
A adolescente que pensava obsessivamente em pular da janela é i praia está nu I É tomada de forte angústia e Pensa, pela primeira
descrita pela mãe como "uma cabecinha de ourdl Excelente aluna, t
vez, em "prl* da janela'i
estudava o dia inteiro e só tirava notas altas. O estudo, aliás, reve- I
Em 1894, nas Neuropsicosa de defesa, Freud narra o caso de
I
lava aspectos de uma autêntica compulsão: tinha qte estudar. Já uma mulher com urn sintoma múto semelhante: uma senhora
em análise, tendo se afrouxado o mandato superegoico, revela um t
que tinha o impulso obsessivo de jogar-se da janeia ou davaranda.
l.
dia a fantasia de que suas notas altas eram uma fonte de eterna Tratava-se de uma senhora casada cuja atividade sexual tinha se
satisfação para a máe, e completa dizendo: "Eu só üro cem, nota
tornado muito pouco frequente, mas que se dizia Pouco sen-
cem, como nas notas de cem reais'l.. tantos ratos, tantos florins! úrma-
sual e conformada com isto. Freud questiona este tipo de
A cabecinha de ouro da mamãe era assaltada por dúvidas e
ção e ela lhe revela toda sua infelicidade conjugal. Numa carta a
escrúpulos, e tinha os mais variados rituais para dormir, para se
Fliess de ry de dezembro de 1896, Freud comenta mais extensa-
vestir e, principalmente para estudar. Este ultimo inclúa o uso
mente este caso, ou talvez outro quase idêntico. Diz que a "análise
de dois relógios, um de cabeceira e outro de pulso, que eram fre-
diante da ideia de atirar-se pela janela" é uma construção incons-
quentemente consultados e, de súbito, esquecidos, para que ela
ciente em torno do significantejanela, qure pode ser dissecada da
de repente se desse conta de que gastara mais tempo do que pre-
seguinte maneira:
tendera com determinada tarefa e entrasse em crise de angústia e
Angústia + ... janela ..'
autorrecriminaçáo.
Em r9r3, Freud atribui o que ele chama de 'pulsão de A ideia inconsciente é a de ir até a janela e fazer sinal a um
homem para que ele suba, como fazem as prostitutas. Há entáo
a
saber", na neu.rose obsessiva, a uma transformaçáo sublimatória
do sadismo, ou seja, da pulsão de apoderamento. O excesso de descarga sexual decorrente desta ideia, e surge no pré-consciente

estudo da menina, além de marcar uma relação compulsiva com o repúdio pela ideia censurável. A angústia advém da descarga
o saber, revelava a falicização da cabecinha de ouro que, com sua sexual e a associação angústia + janela é interpretada como angus-

notas equivalente a dinheiro, e portanto à merda (lembremos o tia de cair da janela. Freud encerra sua interpretação escrevendo
Homem dos Ratos), preencheria a falta fâlica da mãe, tal como a para o amigo: "Pense no faire lafenêtre, de Guy de Maupassant",
jovem obsessiva de Freud.h{as, por que a fúcização da cabeça? referindo-se ao conto O sinal.
Freud nos diz que o obsessivo goza e sofre dos pensamentos. O conto de Maupassant (rg86) é irônico e encantador. A
Lacan, em L975, na Conferência de Genebra sobre o sintoma, diz: jovem e linda Baronesa de Grangerie vai visitar sua melhor amiga,
"O obsessivo é muito essencialmente alguém que é penso. Ele é a também jovem linda marquezinha de Rennedon. A baronesa
e

penso avaÍLmente. Ele é penso em circuito fechado. Ele é penso estava em estado de grande agitação, pois tinha lhe acontecido
para si mesmo" (p. r+o). 'uma coisa horrível". A baronesa era casada e, como toda dama
A ideia obsessiva de 'pular da janela" surgiu pela primeira da alta sociedade, náo fazia nada. Assim, estava à tarde na sua
vez justamente quando se preparava para mais um dia de estu- janela, observando o movimento da rua, quando vê em frente

84 8S

)
uma mulher vestida de vermelho, que ela logo percebeu que era O problema é que o rapaz gostara tanto da experiência que
"uma mulher da üda'i Embora de início tenha ficado 'Sborrecida prometera voltar no dia seguinte para repeti-la. A baronesinha,
e chocada" pelo fato da outra também estar à janela, logo passou apavorada, pede ajuda à amiga marquesa. Esta, uma jovem divor-
a observá-la com interesse. ciada, trata primeiro de se certificar se tinha sido boa a uperiên-
A técnica da mulher de vermelho, exercendo a mais antiga cia. Confirmado isto, sugere que a amiga mande prender a rapaz,
das profissões, fascina a jovem baronesa. "Na verdade'l diz ela, dando queixa na polícia de que ele a estava assediando. A outra
"ela me apaixonava'l Curiosa em observar a outra com mais deta- hesita, temendo que se divulgasse o episódio da janela, mas a
lhes, pega seu binóculo de teatro e nota que a outra, depois de sor- marquesinha é firme; 'Não lhe darão crédito, tolirha, desde que
rir para o freguês potencial, "fazia um pequeno gesto de cabeça" você impinja bem a sua história ao comissário. Ele acreditará,
que era um conüte, "mas tão leve, táo vago, tão discreto, que era pois você é uma irrepreensível dama da alta sociedade." A histó-
preciso mesmo múta habilidade para fazê-lo que nem ela'l ria termina com as duas amigas discutindo o destino a ser dado
A baronesinha sente-se desúada: "Poderia fazê-lo assim tão ao dinheiro que o jovem loiro deixara de pagamento pelos serü-
bem, esse pequeno gesto de baixo para cima, ousado e gentil?" ços sexuais da baronesa:
Corre imediatamente para o espelho e comprova que não só con-
- Dois luíses?
seguia imitar o pequeno sinal da outra, como 'o faziamelhor do
- Sim.
que ela, muito melhor!" Retornando à janela, nota que a outra já - Nada mais?
havia encerrado seu expediente, pois o sol mudara de posição e os - Não.
possíveis fregueses só passavam agora na calçada do lado dajanela - É pouco..A. mim isso me humilharia. E daJ?
- diúeiro?
Que devo fazer com este
da baronesinha. Esta, excitada e encantada com sua recém-adqui-
- Minha querida... Deve... deve dar um presentinho a seu marido...
rida habilidade - o pequeno sinal - resolve testá-la em um tran- Nada mais justo.
seunte. "E eis que sou tomada de um desejo louco de thes fazer
aquele sinal, mas de um desejo de mulher gráüda... um desejo Âo contrario da jovem baronesa, as pacientes obsessivas
espantoso [...]" Escolhe um jovem loiro, alto, "um lindo rapad'. sofrem pelo desejo de faire la fenêtre. No conto de Maupassant,
Aqui a narrativa dajovem baronesa para sua arniga fica cada toda referência está na Outra mulher, no jogo entre a baronesinha
vez mais agitada: 'Olho,b. Ele me olha. Sorrio, ele sorri; faço o e a prostituta, e entre ela e sua amiga marquesa. A falta de escrú-
gesto, oh! quase imperceptível, ele responde sim com a cabeça e pulo das duas resulta num dos aspectos mais deliciosos do conto.
ei-lo que entra..." A baronesinha corre para impedir que os cria- Na neurose obsessiva é o excesso de escrúpulo que domina a cena.
dos vejam o homem desconhecido. Diz a ele que fora tudo um Lembremo-nos que, na sua anáIise do caso da paciente obsessiva de
engano, que era uma mulher honesta, casada, além do mais. Fairbairn, é exatamente este o primeiro ponto que Lacan enfatiza:

A cada explicação sua o jovem achava que era uma tática para "Ela é tiranizada, de maneira medonha, por seus escrúpulos."
aumentar o preço. Finalmente, temendo a chegada de seu marido, jovem obsessiva cujo caso
Tal como apaciente de Fairbairn, a

a jovem cede porque... "era preciso'. apresentei também é diagnosticada pela ciência médica como

86 8t

I
psicótica maníaco-depressiva. Na verdade, o erro diagnóstico do ciitóris e a fantasia de náo sangrâr na noite de núpcias, que se
de Fairbairn, um analista bastante e4periente, é mais comum do aproxima da fantasia de a jovem adolescente de "engravidar'] e
que poderia se pensar: as oscilações do obsessivo entre o ouro e a deram origem aos rituais dos relógios e das jarras. Uma circuns-
merda, entre o tudo ou nada, ganham, no caso das mulheres, tuna tância particular da famflia da jovem adolescente reduplica um
conotação particular. A dor de existir própria da mulher aparece aspecto ressaltado por Lacan sobre a paciente de Fairbairn: "Na
sob uma máscara exlremamente trágica, por vezes, na neurose famflia o lado masculino está apagado. É o pai de sua mãe que
obsessiva, levando à confusão com a melancolia, se esquecermos desempenha o papel de personagem superior, eé ern relação a ele
a referência à estrutura e nos ativermos apenas ao fenômeno. Este que o triângulo se estabelece de maneira típica, e que se coloca a
ponto será retomado mais adiante quando examinarmos mais questáo de sua fabcizaçáo ou não" (Lacan, $54, p.34r). Lacan
detidamente a tristeza feminina na neurose obsessiva. comenta que tudo isto é esquivado por Fairbairn, na teoria e na
Porém como entender a ideia obsessiva de 'pular da janela'] condução da análise, em nome do reconhecimento das pulsões
desta jovem que mora em um condomínio fechado do Rio de pré-genitais. Na famflia da jovem adolescente, também o pai era
]aneiro, em conexáo comfairelafenêtre de Freud? Sob transfe- apagado, e a referência masculina era o avô materno, já morto e

rência, em associação liwe, revela que teme engraüdar. Não vai à muito amado pela mãe. Levada pela análise, interroga sua mãe
praia porque se acha muito feia, "uma tábudl Lentamente revela sobre a morte deste avô, em torno da qual existia um segredo de
suas técnicas de fugir dos rapazes, mantendo seu desejo impossí- famfia, e descobre que ele havia se matado.
vel, pois tem medo de'perder a cabeça'i Sexualidade e morte espreitam pela janela. "Pular da janela"
faire la fenêtre moderno vai se completando quando se
O é não só "dar para todo mundo' - versão moderna da prostituta
recorda de uma brincadeira sexual infantil com o irmão, o gozo - como identificar-se com o morto, objeto de desejo da mãe. No
excessivo e a culpa. Das onze observaçôes citadas por Freud em conto de Maupassant, a baronesiúa interroga na Outra o pró-
"Obsessões e fobias", dez casos são de mulheres, confirmando os prio mistério de sua feminiüdade, e é identificada com a prosti-
comentários de Falret filho e Du Saulle (Capítulo r). Para todas tuta - a mulher que tem o saber sobre o sexo - que pode sentir
estas mulheres, as obsessões se caracterizam como uma modali- o "desejo de mulher grávida" de imitála. A obsessiva, temendo
dade de proteção contra as tentações sexuais. Nas "Neuropsicoses seu gozo excessivo e acreditando que tern o que não tem, trans-
de defesa" (r8g+) Freud Sla, referindo-se a uma destas mulhe- forma a fantasia feminina {e prostituição em ameaça de morte.
res, em hiperatesia sexual, que podemos opor à anestesia sexual Na Viena de Freud ou no Rio de Janeiro de hoje, a mulher obses-
observada na histeria (p. 5il. Tal como nas pacientes de Freud, siva dá, assim, ao jocosofaire lafenêtre de Maupassant, a sua ver-
é a hiperestesia sexual que leva a jovem adolescente a pensar em sâo, trágica e mortífera.
'jogar-se pela janela'i Para ela o "pular da janela" era o substituto No caso da adolescente, o objeto em causa na fantasia funda-
de estar na praia nua, "dando para todo munddi como imaginara mental, 80a, era o olhar, e podemos construir sua frase fantasmá-
quando 'blhava pela janela'i É também a hiperestesia sexual a res- tica como: "Olha-se uma criança nua pela janelal' É o olhar que
ponsável por alguns dos rituais da]ovem obsessiva" - o latejar está em questão naquilo que Freud chama de "pulsão de saber'l

88 8p

)
e que pode ser lido como uma transformação da pulsão escó- de sua neurose. Seu marido era muito mais velho do que ela e
pica, manifestada na sua compulsão aos estudos, assim como é o na primeira noite ficara impotente, indo e vindo do seu quarto
olhar que está em jogo na sua vergonha de mostrar o corpo ("uma para o dela, para renovaÍ as tentativas infrutíferas de consumar
tábua"). Na estratégia masculina de sua neurose, o olhar é reco- o casamento. De manhã, comentou que teria vergonha da criada
berto pelos objetos da pulsão anal (ouro, dinheiro, fezes), na ten- do hotel onde estavam, quando estaviesse fazer as câmas. Tomou
tativa de completar fúcamente o Outro: em que podemos tomar então um üdro de tintavermelha, que por caso estava no quarto,
como a mãe castrada com a qual o sujeito se identifica, <f a identi- e jogou a tinta no lençol, mas o fez de tal modo que a mancha foi
ficação frílica da moça com o avô morto, repercutindo nos objetos parar ilrm
lugar totalmente inadequado. O tapete que çobria a
falicizados (cabecinha de ouro, nota cem nos estudos, cem reais...) mesa junto à qual a dama se postava para chamar a criada tinha
e nos pequenos outros (seus colegas e seu irmão), nos quais investe também uma mancha, e ao chamar a outra, a dama do tapete
amor e ódio, na competição pelo primeiro lugar (al d: a'"). tinha o cuidado de se colocar de modo a que ela não deixasse de
ver a mancha.
"Agora não restava nada duvidoso sobre a íntirna relação
AS DÁMÂS DO TAPETE E DAS LAVÀGENS
entre aquela cena que se seguiu à noite de núpcias e sua atual
 hiperestesia sexual da mulher obsessiva dá origem às ten- ação obsessiva" (p. z:S). Freud enfatiza que o primeiro aspecto a

tações enfatizadas nos casos analisados por Freud. Na mesma sublinhar é a identificaçáo desta mulher com o marido. É, então,
conferência em que apresenta o caso da 'jovem obsessiva" (r7n fazendo o papel deste, que ela substitui a cama e o lençol pela
Conferência), Freud narra minuciosamente outro caso, que mesa com o tapete e, chamando a criada, afazver a mancha, cor-
chamaremos 'h dama do tapete'l Este caso já haüa sido citado rigindo a cena da noite de núpcias. A presença da criada é neces-
por Freud em Lgo7, em 'Atos obsessivos e práticas religiosas" e saria para que testemunhe a presença da mancha e para que seja
serve como uma maravilhosa ilustração tanto píra as tentações negada a frase do marido na manhá seguinte: não, ele não tem
das obsessivas como para a religião particular que as protege do por que tudo beml Freud
se envergonhar, a mancha está lá, está
pecado. sublinha exatamente isto: o esforço desta mulher em sustentar a
Trata-se de uma senhora, por volta dos 3o anos, separada falsa potência fiílica do marido, que ela sabe ser impotente. Como
do marido e acometida dogmais variados sintomas obsessivos. O compreender esta urgência de sustentar o homem, de bancar a

mais chamativo, segundo Freud, era urn que parecia não ter sen- sua potência nesta mulher obsessiva?
tido algum, até o dia em que foi decifrado pela própria paciente: Outra dama freudiana dedica-se também a sustentar 'b
corria de um cômodo para o outro da casa, postava-se diante de homem que era para ela o único" com seus penosos rituais.
uma mesinha coberta por um tapete, chamava a criada, dava- Trata-se de um curioso caso narrado por Freud em r.919, no
lhe uma ordem qualquer, corria para o outro cômodo e voltava artigo'A pré-disposição à neurose obsessiva'l que tem como sub-
a repetir seu ritual. A origem deste sintoma está ligada, para esta títnlo; contribuiçao ao problema da escolha da neurose. É, por-
paciente, a sua noite de núpcias, que causou o desencadeamento tanto, o caso de uma dama obsessiva que ilustra para Freud o

9o

)
protótipo da escolha da neurose, problema que já o preocupava . 20 trauma: impotência transitória do marido, tomada
desde o século xlx, como atestam as cartas a Fliess. como permanente) neurose obsessiva
Em :.9o6, em 'A sexualidade na etiologia das neuroses", Como já ümos, o ctuioso entrelaçamento entre neurose
Freud abdicara de sua tese inicial que conectava uma experiên- obsessiva e fobia já era bem demarcado antes mesmo de Freud
cia passiva ou ativa do trauma sexual à escolha da histeria ou (Capítulo r). Desde o início da obra deste, o cuidado de demar-
neurose obsessiva. Tratava-se de uma desistência momentânea car os limites entre estas duas manifestações neuróticas esteve
em prol de fatores constitucionais e em 1913, no artigo citado, presente. Freud cunhou o sintagma neurose de angústia para dar
ele retoma o assunto com ügoq atrelando o tema da escolha da conta de uma neurose que teria como sintoma central a fobia. É
neurose à fixação libidinal numa determinada zona erógena. No através da discussão da aniíüse de uma fobia numa criança de
texto, ele examina a fixação da neurose obsessiva no sadismo e no cinco anos, o caso Hans, que Freud nos dá a descriçáo mais com-
erotismo anal, e deixa em aberto a questão no que diz respeito à pleta da histeria de angústia, e é também através do caso de uma
histeria. Porém, já no caso Dora, ao comentar a masturbação da criança, uma dama de dois anos e quatro meses, que vamos nos
moça bolinando o irmão (ela chupava o dedo, acariciando-lhe o interrogar sobre a histeria de angústia da "dama das lavagens'l
lóbuio da orelha), deixava entrever a conexão entre a fixação oral Trata-se de um caso clássico da literatura psicanalítica: o
e a histeria. caso Piggle, de D. W. Winnicott. Piggle é o apelido carinhoso de
Para Freud o
aspecto mais interessante do caso de sua Gabrielle, cuja tradução literal em português, Porquinha, não
paciente, gue chamarei 'â dama das lavagens", era o fato de que tem o cunho que tem na língua original: alguém pequeno, gordu-
esta senhora apresentara inicialmente uma histeria de angústia cho e fofinho. Tal como Hans, Gabrielle é tomado por uma fobia
e em seguida um quadro de neurose obsessiva. Coloca-se aqui que se desencadeia a partir do nascimento de uma irmã, quando
uma questão crucial da qual não podemos nos evadir: houve uma a criança tinha um ano e onze meses. Sua fobia se centrava em
mudança de neurose? qual o tipo clínico autêntico desta mulher: torno do "bebê-car", significante coringa que, tal como o cavalo
histeria ou obsessão? É possível passar da linguagem da histeria de Hans, vai ter multiplas significações no decorrer da análise,
para o dialeto obsessivo? Trata-se de uma histérica com traços mas que vai sobretudo apontar para a angústia encoberta pela
obsessivos, que se acentuam? fobia. O nascimento da irmã a colocara frente à questão ameaça-
Freud dá ao caso o u7)or de um 'Uocumento bilíngue'l e dora do desejo do Outro e a menina, do mesmo modo que Hans o
embora faie desta passageín da histeria da angústia à neurose fizera diante do nascimento da Hanna, reage com a fobia, criando
obsessiva, o que há, naverdade, é que'hneurose obsessiva náo era o significante "bebê-car". Há nestas fobias um claro apelo ao pai
uma reação posterior frente ao mesmo trauma inicial, provocador
- que poderia ür barrar o gozo ameaçador da mãe - e a denún-
da histeria de angústia, porém frente a uma segunda üvência que cia da falha paterna.
haüa desvalorizado completamente a primeira'l Temos assim: Um paciente psicótico resume assim a sua relação com a
. 10 trauma: desejo de ter fiIhos, frustrado pela infertü- mãe, que por duas vezes tentou matá-lo: 'Aquela que deu a úda
dade do marido] histeria de angustia pode dar a morte." A meu ver, esta frase, cunhada pelo incons-

92 93

)
ciente a céu aberto, enuncia o segredo da fobia. O pai é falho em suplantada em seguida por rituais que denunciam seu tipo clínico.
sua tarefa simbólica de metaforizar o desejo da mãe; algo resta Quero, entretanto, chamar a atenção para um aspecto clínico pri-
que escapâ ao significante e que leva Lacan (t96g-tg7o) a des- vilegiado, que Piggle nos ensina: o encontro com o analista é sem-
crever a posiçáo do sujeito frente ao desejo enigmático do Outro, pre um encontro traumático. O estabelecimento da transferên-
como estando dentro da bocarra aberta do crocodilo, com ape- cia é sempre a reediçáo do trauma; quer sob a forma de um bom
nas um pedaço de pau (o falo) para impedir que a boca se feche. encontro (eutiquia) ou de um mau encontro (distiquia), é sem-
A fobia é isto; suplência ao pedaço de pau, escora para manter pre o encontro com o real(tiquê). Lacan nos fala das duas formas
aberta a boca insaciável do gozo do Outro. de repetição no Seminário xI: a repetição significante, própria da
Não é, entretanto, pela üa da fobia que Gabrielle entra em inércia pulsional da associação liwe (automaton), e a repetição ao
análise com Winnicott. Â fobia era o sintoma que afligia os pais; acaso do encontro faltoso, que desvela oreal(tiquê),
ela, Piggle, apresenta sua demanda numa faia: "eu sou tímida
demais"! ,No decorrer do tratamento, a timidez vai ser associada
Às TENTAçÕES DAS RELTGTOSÀS DO FALO
ao complexo de Édipo, ao amor ao pai e à rivalidade com a mãe.
É isto que revela uma carta escrita pelo pai da criança a Winnicott Tomando a dama das lavagens como uma obsessiva, vamos exa-
Ggtil, minar mais de perto o seu caso. Freud (r9r3) nos diz que esta
mulher havia sido - até o desencadeamento de sua neurose -
Um padre, muito paternal e amigo, veio tomarchá conosco algumas sema-
nas atrás, e Piggle estava rnúto tímida. Ontem, quando conversávarnos
"uma esposa feliz, quase plenamente satisfeita" (p. 3ao). Tinha
sobre ele, ela falou: eu estava muito tímida. Disse-lhe então, que aquele o desejo de ter filhos de seu marido muito amado, e quando o
padre era um homem muito papai (palawa que tiúa usado antes para soube estéril reagiu com uma histeria de angústia que a impe-
descrevê-lo). Ela âcou em silêncio g depois de muito tempo, falou: Dr.
dia de sair de casa. Este sintoma é prontamente interpretado: tal
Winnicott, calando-se em seguida- E isso foi tudo. (p. 3a)
como a dama do tapete, que mesmo separada do marido há anos,
O encontro com o analista faz eclodir a neurose de trans- não saía de casa, também esta senhora freudiana tinha medo de
ferência, e num segundo tempo temos desvelada a estrutura de sair e se expor às tentações. No caso da dama do tapete, ela ainda
Piggle: é uma histérica. À-emelhança da dama das lavagens, hesitava na dúvida de pedir o divórcio, e enquanto duvidava,
podemos ler o caso em dois tempos: mantinha-se fiel ao marido, que sustentava com seu ritual.
. 10 trauma: nascimento da irmã, confronto com o desejo
Esta outra senhora, que merece o nome de'h dama das lava-
gens'] pelo ritual que descreveremos a seguir, temia que seu desejo
do I histeria de angústia
de ter um filho a levasse a cair em tentação com outro homern,
. 20 trauma: encontro com o analista, repetição na trans- caso saísse à rua. O caso tem um desfecho complexo, pois embora
ferência] histeria
a mulher fosse uma obsessiva e protegesse seu homem, não lhe
Acreditamos, assim, poder sustentar que a "dama das lava- apontando a falha como uma histérica faria, mesmo assim, o
gens" é uma obsessiva que apresentara uma reação fóbica inicial, marido desconfia da verdadeirarazáo dos seus sintomas. Aíligido

94 95

I
por causar sofrimento à mulher que amava, reage com uma crise fazem sofrer, por outro lado 'devolvem também algo do prazer
de impotência nas vésperas de uma üagem. Sua esposa, tomando que estão destinadas a prevenir", ou seja, satisfazem, por deslo-
a impotência passageira como definitiva, embrenha-se num com_ camento, a pulsão. Assim, o obsessivo, subornado pelo gozo que
plicado ritual de lavagens. Tinha compulsão a se lavar e a limpar obtém a contrabando de seus sintomas, resiste ao inconsciente,
tudo, e Freud cita também umas medidas protetoras, extrema_ Ademais, para os "religiosos do significantd' admitir a existência
mente enérgicas, frente ao mal que os outros deüam temer dela. da Outra cena é sempre uma ferida narcÍsica, por se dar conta da
Freud vê aí claramente "formações reativas contra moçóes anal- faiha na potência do pensamento.
eróticas e sádicas" (p. s+o). A compulsão a se lavar deüa custar a Lacan nos diz que a onipotência do sujeito é na verdade a
esta senhora bastante trabalho: acreditando que o marido estava onipotência do Outro, e como vimos no caso da jovem adoles-
impotente, as 'tentaçôes" devem ter recrudescido, levando-a a cente, é a onipotência, ou a plena-potência da máe que a moça
lavar o corpo culpado, cuja lavagem despertava novas tentações, tenta garantir com seu trabalho intelectual. Deste modo, o "sofrer
no carrossel infinito de gozo próprio aos rituais obsessivos. do pensamento" libidinizado do obsessivo, não só the traz um
As damas obsessivas protegem-se, então, das ,tentações,, pro_ gozo deslocado como também é uma estratégia de garantir a con-
venientes de sua hiperestesia sexual o gozo excessivo
- - através sistência do Outro. Ninguém melhor do que as damas obsessivas
dos rituais religiosos, dos seus cerimoniais eclesiásticos que lhes para dar uma demonstração desta tarefa impossível. Ao susten-
servem de defaa, medida protetora e reasseguramento. Em ,âtos tar a potência de seus maridos impotentes estas mulheres põem a
obsessivos e práticas reügiosas" Freud (r9o7) diz que ,h neu- nu, sobretudo, o que a sua neurose se dedica a camuflar - a faita
rose obsessiva oferece uma caricatura meio cômica, meio triste, no Outro.
de religião particular'l É uma religião feita não só de mandatos,
ritos e ordenamentos, como de urn sistema complexo de proibi-
nrrenÊNcns srsrrocRÁrrcA.s
ções e impedimentos que oscilam com permissões, condiciona_
das a determinadas prescrições, que devem ser obedecidas ao pé Fp.xuD, s. "Las neuropsicosis de defensa" (r8s+). In: Obras completas.
como resultado temos o isolamento e a xcrupulosidade
da letra. Buenos Aires: Amorrorhr Ed., 1996, v. rrr.

cercando o obsessivo no seu \stado de sítid,particular. "Obsesiones yfobia" (r8gs). ln: Obras completas. Buenos Aires:
Amorrortu Ed., 1996, v. rrr.
O resultado de toda esta articulação complexa, que traz mui_
'Acciones obsesivas y prácticas religiosas" (tgoz).In: Obras
tas vezes um sofrimento tão grande que já espantava Falret, é
completas. Buenos Aires: Âmorrortu Ed., 1996, v. tx.
uma vida cerceada e martirizada pelo sentimento de culpa e pela ',4, proposito de un caso de neurosis obsesivd' (rgos), In: Obras
autoügilância. No entanto, já observamos que, na clínica, o psi_ completas. Buenos Aires: Ainorrortu Ed., 1996, v. x.
canalista encontra maiores resistências no tratamento da neurose "La predisposición a la neurosis obsesiva" (rsrl). ln Obras
obsessiva do que no da histeria, e Freud nos dá a chave para com- completas. Buenos Aires: Amorrortu Ed., 1996, v. xII.

preender este paradoxo. Os sintomas obsessivos têm um cará- "Un caso de paranoia que contradice la teoria psicoanalitica'l
(rsrS). Inl- Obras completas. Buenos Aires: Ârnorrortu Ed., 1996,
ter de compromisso, de modo guê, se por um lado torturam e
. v. xlv.

g6
"r7o conferência: El senüdo de los síntomas', (r9r7). Ín:
Obras
completas. Buenos Aires: Amorrortu Ed., 1996, v. xvr.
LA.AN, t. O semínário livro z: O eu na tuorta de Freud e na técnica da psi_
canálise OgS+-tSS1). Rio de /aneiro:lorgeZahx Ed., r9g5.

a seminário livro q: O avesso da psicanálise (1969_197o). Rio


de Janeiro: lorge Zahar Ed,, t992.
"Conferência en Genebra", Interyenciona
Seu único e inesquecível homem: Deus
y textos. Buenos
Aires: Manantial, 1988.
MÂssoN, 7. u. Corrupondência completa de S. Freud para 14{ F/iess. Rio
de |aneiro: Imago, 1986.

e, Bola de sebo e outros O AMOR NO HOMEM E NA MULHER


MAupAssÀNT, contos. porto Alegre, Globo,
r986.
wrNNrcorr, *.N.
A dama do tapete, quando não estava correndo de um cômodo
The Piggle. Rio de Janeiro, Imago, 1979.
para outro de sua casa, bancando o seu marido, tinha o hábito de
sentar-se sempre numa mesma poltrona. Separada já há muito
tempo do marido, idoso e impotente, hesitava ainda em pedir o
divórcio. Um dia confessa a Freud, aludindo ao marido e à pol-
trona: "É tao difícil separÍu-se de alguma coisa sobre a qual a
gente já sentou..l' (Freud, ryry,p. ro4).
Outra múher obsessiva não se permite falar sobre o marido
em análise, pois considera que "isto seria uma traição'l já que 'ãs
questões não foram previamente discutidas com ele, o único inte-
ressado" (Martiúo, $96). Nos seus artigos intitulados conjun-
,y tamente Contribuiçõa à psicologia da amor (r9ro-r9rz-r9r8),
Freud acentua a dessimetria existente entre a modúdade de amar
do homem e da mulher: O homem superestima seu objeto amo-
roso, e na medida em que este investimento libidinal se dirige a
uma mulher que lhe evoca o amor incestuoso à mãe, se divide
entre a mulher amada e superestimada e a mulher degradada, a
quem pode desejar. Em contrapartida, "na mulher se nota ape-
nas uma necessidade de degradar o objeto sexual; isto tem a ver
sem dúvida com o fato de que, por regra geral, não se produz nela
nada semelhante à superestimação sexual característica do varão"

p8
99

)
(Freud, tgr2, p. r8o). Como então entender a fidelidade espan- da idealização que o objeto eleito será amado e resume: 'Ama-se
tosa, a dedicação canina da mulher obsessiva a seu homem? sensualmente o objeto somente em virtude de suas excelências
Na Introdução ao narcisismo (tgt4), Freud elabora ainda anímicas; e o certo é que ocorre o contrário, a sabet unicamente
mais detalhadamente a comparação entre homem e mulher com a complacência sensual pôde conferir ao objeto tais excelências"
relação ao írmor. O pleno amor de objeto, segundo a modalidade (p. ro6). Estas observações nos permitem retornar à Introdução
anaclítica ou de apoio, é próprio do homem. A superestimação do ao Narcisismo onde Freud, entre as modalidades de escolha nar-
objeto sexual é derivada do narcisismo infantí, transferido agora císica de objeto, classifica como as do tipo c. (p. 8z) a escolha
ao objeto eleito. A libido é retirada do eu e investida no objeto. É o "do que o sujeito queria ser". Mais adiante, esclarece: "Se ama ao
que ieva Lacan a dizer, n O s eminário I que o amor é uma forma de que possui o mérito quefalta ao eu para alcançar o ideal" (Freud,
súcídio: no amor o eu se suicida no objeto. euanto às mulheres, L9L4,p. g7). Em outras palawas, o sujeito ama a partir da falta.
com o desenvolvimento dos caracteres secundários sexuais, há Em 196o, Lacan retoma estas premissas freudianas nas
um acirramento do narcisismo infantil. "This mulheres só amam, "Notas diretivas para um congresso sobre a sexualidade femi-
a rigor, a si mesmas, com intensidade semelhante à do homem que nina'l Diz ele, a propósito da escolha de objeto: "Se a posição do
as ama. Sua necessidade não se sacia amando, porém sendo ama- sexo difere quanto ao objeto, é devido à distancia que sePara a
das, e se prendem ao homem que thes satisfaá essa necessidade" forma fetichista da forma erotomaníaca do amor" (p. z:f). Do
(Freud, 1914, p. 8S-86). Freud entretanto admite que "um número lado do homem a forma fetichista do amor é marcada pela rea-
indeterminado de mulheres amam segundo o modelo masculino pafição, no inconsciente do sujeito, da questão sobre o desejo do
e também demonstrern a correspondente superestimação sexual', Outro: "Ou seja, o falo desejado pela Mãe" (p.lli. É o que leva o
(p. 86). Sáo as mulheres que antes da puberdade erÍun como meni- homem a se dividir, como Freud o haüa apontado, entre amulher
nos e que, com o amadurecimento da feminilidade, anseiam por que ele designa como sua ("Tu és minha mulher"), herdeira da
um ideal masculino no quai encarnariam" (p. 8Z). corrente terna que marca a eleição do objeto, ou seja, do investi-
Temos aí a formula freudiana que nos permite ler a inveja do mento infantil incestuoso na mãe, mulher superestimada como
pênis com nostalgia do falo, e etender por que Lacan vai dizer objeto de amor, à qual se contrapõem as mulheres do desejo.
que amar é dar o que não se tem. No modelo masculino de amor Lacan inventa um novo nome para descrever uma topologia fan-
freudiano, o homem investe na mulher a libido antes investida tástica onde habitariam, para o homem, as mulheres do desejo
no seu eu, ou seja, a torna o falo que ele teria sido no amor e no - é a cidade de Vênus -, local para onde se dirige acorrente sen-
desejo de sua mãe. Do mesmo modo, a mulher que antes era um sual do sujeito, povoada pelas mulheres-falo que segundo Freud
pequeno varão, anseia pelo falo que lhe dará o homem ideal. É a seriam degradadas por isto mesmo, desejadas.
e,
ciranda em torno do objeto que ninguém tem - o falo - mas que Do lado da mulher, Lacan coloca uma questão: será que o
no amor, por magia da iiusão narcísica, se dá. apego sexual ao pênis do parceiro vota a mulher a urna relação
NaPsicologia das Massas e Análise do Eu (tgzt) Freud retoma sem duplicidade? É aí que Lacan vai introduzir uma sutileza que
a superestimação do objeto amoroso para dizer que é pela via nos permite compreender o narcisismo feminino descrito por

100 Lo1

I
Freud, em contraposição às inúmeras mulheres que amam como Na bula papal que desencadeou a perseguição às feiticei
homens. Lacan vai apontar que, para as mulheres, a virüdade ras, Inocêncio vrtr diz que "muitas pessoas de ambos os sexos, a
do homem só se consagra na castração, ou seja, que para Írmar negligenciar a própria salvaçáo e a desgarrarem-se da Fé Católica,
um homem e desejá-lo, desejando inclusive seu órgão sexual, um entregaram-se a demônios, a Íncubos e a Súcubos, e pelos seus
ponto de falta tem que estar marcado para a mulher no homem. encantamentos, pelos seus malefícios e pelas suas conjurações, e
Freud já haúa chamado a atenção para este ponto ao falar da por outros encantos e feitiços amaldiçoados e por outras também
degradação do objeto sempre presente para a mulher. É o que amaldiçoadas monstruosidades e ofensas hórridas, têm assassi-
expüca a devoção da dama do tapete a seu marido idoso e impo- nado crianças ainda no útero da mãe, além de novilhos e têm
tente: ela havia sentado nesta poltrona, e a idade e a impotência arruinado os produtos da terra, as uvas das vinhas..." (Kramer,
não anulavam automaticamente seu amor erotômano. 1484, p. 43) e por aí vai enumerando os horrores do diabo. O
Pois na verdade, por trás da virilidade explícita do parceiro, demônio podia possuir homens e mulheres, porém sua vítimas
a mulhet nos diz Lacan, adora o homem morto, ou o amante eram predominantes femininas, pois
castrado cuja falta ela completa. É este o "íncubo ideal" que por
[...] a razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem,
detrás do véu do parceiro sexual faz a mulher gozar. Em outras
no que se eüdencia por suas muitas abominações camais. E convém
palawas, para além da satisfação genital que umâ mulher possa observar que houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter
encontrar em um homem, ela goza da falta, do mais além do sido ela criada a partir de uma costela recurva ou seja, uma costela do
véu, que ele possa presentificar. A erotomania feminina advém peito, cuja curvatura é, por assim di"e1, 6oo*5riu à reüdão do homem.
(xnelcn, 1484, p. r16).
daí, deste para além, deste buraco inominável, desta dor da falta,
desta atração de abismo, que um homem pode trazer à vida de
Estas sábias palawas foram escritas em 1484, por dois
uma mulher.
Inquisidores da Igreja Católica, no que veio a se constituir durante
quatro séculos no manual oficial da Inquisição para a caça às bru-
xas. O diabo atacava as mulheres por ser este sexo mais próprio a
ser tentado: "E tal é o que indica a etimologia da palawa que the
O íncubo é um demônio masculino que possui as mulheres à designa o sexo, pois Femina, vem de Fe e Minus, por ser a mulher
noite, deitando-se por cima delas e provocando-lhes pesadelos. O sempre mais fraca em manter e fá' (p. rrZ).
preservÍu a sua
demônio feminino, que se deita por baixo dos homens, é chamado Sobre os íncubos, o Malleus Maleficarum tem uma interes-
de súcubo. Na Europa medieval, da união de uma mulher com sante informação a nos dar: "[...] S. Isidro, no ultimo capítulo
um íncubo, nasciam feiticeiras, demônios e crianças deformadas. de seu oitavo liwo, afirma: os Sátiros sáo chamados de Pãs pelo
Segundo a lenda, o mago Merlin, da saga do Rei Artw, seria filho grego e de lncubos pelos latinos. E são chamados de Incubos por
de um íncubo com uma mortal. A palawa íncubo deriva do latim se deitarem sobre algo - a entregarem-se a orgias" (p. 8a). São
incubus (pesadelo) e de incubare (deitar por cima). É a mesma Isidro está rnuito mal informado sobre os gregos. Pã é um deus,
r aiz da paiawa incubadeira. embora um deus menor, e os Sátiros erÍrm os companheiros de

LO2 103

I
Dioniso. Os sátiros são seres mistos, como os centauros. Têm ore- marido mais uma tarefa impossível ou a morte, convoca por fim
lhas pontudas e pés de bode, "sexo tão comprido como o de um o demônio e cede dizendo;
jumentd' (p.zZi. A satiríase é uma das loucuras sexuais dispen-
- Âi de miml tomais meu corpo e minha carne miserável, para salvar meu
sadas por Dioniso àqueles que queria castigar: "Quando o ato
pobre marido [...]. Mas meu coraçâo, não. Ninguém jamais o teve, este náo
sexual é entregue a ele mesmo, seguido de um dispêndio infinito, vos posso dar.
com gozo, por§m exagerado, excessivo, até o esgotamento mor-
taI" (p. z7z). Se os lncubos são sátiros, encontramos de novo aqü O demônio aceita o trato e lhe dá a palawas mágicas que
as mênades e creio quejusto suspeitar que as bruxas medievais
é contêm a salvação sua e de seu marido.
erarn, na verdade, urna nova forma assumida pelas companhei-
No mesmo instante ela arrepiou-se e, horrorizada, sentiu-se empalada
ras do Deus-Falo. com um dardo de fogo, inundada por uma onda de geio [...]. Deu um
A possessâo demoníaca, segundo o Malleus,'hão é um con- grande grito. Encontrou-se nos braços do marido, espantado, que inun'
tato material e sim virtual, e se dá dentro de uma relação de propor- dou de lágrimas.

cionalidade entre o que move e o que


é movido; desde que o corpo
Vemos aí, como já em 1862, Michelet sabia que era o marido,
movido não suplante, em proporção, o poder do diabd' (p. 8Z).
em cujos braços a possuída desperta do seu gozo além das pala-
Em 1862, em seu liwo Á feiticeira, ]ules Michelet (1992)
was, que serve de conector entre a mulher e o demônio que, para
narra, da seguinte forma, a possessão de uma mulher por um
além dele, a possui.
íncubo:
Âfastou-se dele bruscamente, levantou-se, [...]. O marido estava assus-
MaI se deita, sente um grande peso sobre o peito, ofega, pensa que vai tado, pois ele já nem sequer o via e lançava às muralhas o olhar agudo de
sufocar. O peso desce, pesa sobre o ventre e os braços, ela sente como que
Medeia. |amais fora mais bela. No negro e no branco amarelado dos olhos
duas máos de aço.
flamejava um clarão que não se ousaria encarar, um jato sulfuroso de vul-
- Tu rue desejaste... . Áqui estou. E então, rebelde, teúo agora, finalmente, cão (p. 8r).
a tua alma?

- Mas, senhor, acaso ela me p"i"n pobre marido! Gostais dele... .


"lMeu Tomada por seu gozo indizível, possuída pelo íncubo ideal,
Disseste isso... . Tinheis prometido... .
surge a verdadeira mulher, com seu olhar de Medeia, ornamen-
- Teu marido? Esqueceste? [...] Tens certeza de lhe ter sido sempre 6el em
lua vontade? [...] Tua alma! Eu a peço por gentileza, mas já a teúo [...] tada da beleza que está para além dos traços fisionômicos. Nesta
(p. 8r). possessão, nem sequer vê mais o marido, a quem trai, ligando-se
através dele e para além dele, ao demônio que desperta o seu gozo
Tiata-se de uma jovem bwguesa que havia sido humilhada
misterioso.
no dia de suas núpcias, pois o senhor medieval exigira o seu No seminário xx, de tgTz,Lacan vai se utilizar também da
direito às primícias. Desde então a partir de seu desejo de ün- metáfora do dardo penetrante para falar deste Outro gozo das
ganÇa, vem sendo tentada pelo demônio, que quer a sua alma. para além das palawas, que ele Freud
mulheres, gozo misterioso e
Confrontada com mais uma exigência do senhoç que impõe ao a nos dizer que, para saber dele, devemos nos dirigir aos poe-

LO4 105

I
tas. Na capa do seminário Mais, ainda... Santa Teresa de Ávila, na nos limites da üda: é uma experiência moilífera, como Santa
escultura de Bernini, goza no êxtase, em vias de ser trespassada Teresa descreve, ao transformar em poema um transe místico de
por um anjo, com um dardo da rnão. 1521. Cito apenas algunsversos dopoema Vivo semviver emmim:

Ai, que vida táo amarga,


A SANTA GOZA DE DEUS sem se gozar o Senhor!,
porque, se é doce o amoc
É própria Santa Teresa que consagra a metáfora da seta de fogo
a nãoéaesperançalarga.
Tire-me Deus esta carga,
como instrumento divino que propicia o gozo místico:
pesada a mais náo poder,
que fiorro por não moner.
Quando o doce caçador
me atirou, fiquei rendida,
entre os braços do amor
6cou minha alma caída.
Olha que o amor é forte:
E ganhando novaüda,
üda, não sejas molesta;
de tal maneira hei trocado,
para ganhar-te só te resta
que é meu Amado para mim,
perder-te, sem que me importe.
e eu sou para meu Amado.
Venha já a doce morte,
venha já ela a correr,
Atirou-me com uma seta
que fiofto Por
não morrer.
envenenada de amor, (rrnrse oe Ávrle, 1988, p. 7)
e minha alma ficou feita
una com seu Criador.
Eu já não quero outro amor,
que a meu Deus me hei entregado, O capítulo em que descreve este transe, da terça-feira
meu Amado é para mim, da Páscoa (Capíflrlo xr, Moradas sextas, Moradas do Castelo
e eu sou para meu Amado. / Interior), tem um título bem sugestivo; "Trata de uns desejos de
(rrnrsa »r Ávlle, 1989, p, rr) gozar a Deus por Ele dados à alma, tão ardentes e impetuosos que
a põem em perigo de vida e do proveito que ela tira desta mercê
Este poema é inspirado no versículo do Cântico dos cânti_
do Senhor 1988" (p. 16z). Novamente aqui ela volta a se referir à
cos que diz: "Meu amado é meu e eu sou dele, do pastos das açu_
seta de fogo:
cenas." Angel Custódio Vega e Victor Garcia de la Concha, dois
especiústas na obra de Santa Teresa, opinam que o poema está um golpe ou como que uma seta de fogo; não digo que seja mesmo sete
relacionado com a üvência de transverberação, experimentada mas, seja lá o que for, bem se vê que nunca poderia proceder da nossa
por Santa Teresa a partir de t56o (Rossi, :.9gg, p. gg). Nesta expe_ natureza; e tão pouco é um golpe, embora eu diga golpe; fere mais fundo
náo onde cá sentimos as dores - p.uece-me * mas no mais Íntimo da alma,
riência mística o sujeito é atravessado por uma claridade divina e
onde este raio, pelo qual é repentinamente varáda, desfaz em pó tudo que
transverbera luz. É uma üvência de exaltação que lança o sujeito acha de humana argila. (p.r6z-ú3)

ro6 La7

,
TaI como a feiticeira medieval de Michelet, Santa Teresa suplementar ("eu disse suplementar. Se tivesse dito complemen'
goza. Goza diretamente de Deus, goza deum gozo que excede às tar, aonde é que estaríamos!" [Lacan, L972, P.gg]), as mulheres
palavras. Diz Lacaa: "Basta que vocês vão olhar em Roma a está_ excedem o limite do todo, todo significante.
tua de Bernini para compreenderem logo que ela está gozando, Teresa Sánches de Ahumada nasceu em Ávila em z8 de
não há dúvida. E do que é que ela goza? Eclaro que o testemunho março de r5r5. PassouemÁvilatoda suaüda até tornar-se monja
essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o experi- no mosteiro carmelita da Encarnação. Por parte de mãe, Dofla
mentam, mas não sabem nada dele" (Lacan, L972, p. ro3). Santa Beatrtz de Ahumada, era de sangue fida1go, portanto inclusive o
Teresa confuma as palavras de Lacan escrevendo: "Não gostaria nome da avó materna, Teresa, Por parte de pai, descendia de Juan
que isto parecesse exagero, quando na verdade estou a ver que fico Siínches, negociante de Toledo, que haüa fugido de sua cidade
aquém, pois se trata de algo indizível' (Teresa de Ávila, t9gg, p. natal por ter sido condenado pela lnquisição por "muitos e graves
163). Deste gozo indizível, as mulheres nada sabem, nada podem crimes e delitos de heresia e apostasia", tendo sido obrigado a usar
dizer. "Então a gente chama como pode, esse gozo, vaginal,fala_se durante sete sextas-feiras o sanbenito - a caphha amarela que
do polo posterior do bico do útero e outras babaquices, é o caso na Espanha renascentista antecedeu a estrela de Davi, também
de dizer" (Lacan,r97r, p. ror). amarela, do rtto Reich. Por parte de pai, Santa Teresa, doutora da
Ássim, a contribuição dada pelos escritos de uma mística, igreja Católica, era mlrrana, descendentes de cristãos-novos, de
como Santa Teresa, que goza diretamente de Deus, dispensando judeus recentemente convertidos, Luna "porca infiel'l 'h capinha,
o intermediiírio - o homem-conector pendurada na igreja paroquial com o nome do condenado, ali
- tem, antes de tudo, a fun_
ção de fazer calar as "babaquices". Como reduzir a ,,receptividade ficava como sinal de uma infâmia pública que revertia inteira-
de abraçd'e a "sensibüdade de cinta,, (Lacan, 195g) da mulher mente sobre os filhos, os filhos dos filhos e as gerações seguintes;
em relação ao pênis de seu parceiro sexual a um ,.polo poste- não havia limite para o tempo de desonra" (Rossi, p. 5).
rior do bico do úterol quando Santa Teresa geme de amor sem Porém Juan Srinches, mercador de lã, seda e moeda, não
um pênis que a trespasse, como metonímia da seta de fogo, do era run homem de se abater por um anátema. Nele a resignação
dardo mortífero do íncubo angeliul? Não seria ante's o reverso, judaica transmutou-se em ato: mudou-se de Toledo para Ávila e
razão pela qual'b orgasmo vaginal guarda sua treva invioladd'? comprou um certificado falso de 'frdalguia", "um certificado de
b. Zzil Ern outras palawas, não seria este encontro misterioso pertença à classe nobre, isenta de sequestros, de prisão por dÍü-
com o amante castrado, com o Cristo crucificado, com o íncubo das e da tortura" (p. il.Ironicamente, Ávila era a cidade onde
ideal, que permitiria haver uma "sensibiüdade de cinta,, ali onde vivera e atuara Torquemada, ele próprio maÍrano inimigo tres-
nenhuma sensibilidade é esperada? loucado dos ditos "porcos infiéis (Rossi, 1988).
Na verdade, Santa Teresa está mais próxima da feiticeira Marrana, mulher e mística, Santa Teresa esteve, durante
medieval do que seria cômodo para a história oficial da lgreja. toda sua vida de religiosa, às voltas com a lnquisição. Talvez ela,
Aliás, as mulheres, inimigas da civilização, nunca são cômodas melhor'que ninguém, encaroe a figura do santo, designado por
para as histórias oficiais. Dotadas da possibilidade deste gozo Lacan como o paradigma do psicanalista (em Televisao). Santa

ro8 109

)
não pelo gozo sempre Outro, que experimenta e descreve emver_ Baseada em ]ones, |oan Riviêre expõe o caso de uma
sos canhestros, sem valor de arte, mas comoventes na sua falta de paciente, erroneamente diagnosticada como homossexual a par-
pudor e perplexidade sincera. Santa por encarnar a excluída, sem- ür de sua reivindicação viril. Trata-se de uma paciente, de origem
pre Outra, a incômoda, a desgarrada. Santa por nunca ter cedido norte-americana, casada, com excelente relacionamento com seu
aos supostos homens de fé que tentaram arbitrar sobre seu desejo:
marido, perfeita dona de casa. Seu sintoma era bastante curioso:
confessores e padres medíocres que, diante daquela que era tres-
por força de sua profissão, era obrigada a proferir palestras, o que
passada por Deus, se embaraçavam com o que a eles se excedia,
fazia muito bem. Após estâs, no entanto, era tomada de um sen-
por não saberem que "sublime quer dizer o ponto mais elevado
timento de apreensão etemor de haver cometido um erro ou dito
do que está embaixo" (Lacan, ry72,p,4). algo de torpe ou sujo. Isto a levava a chamar a atençáo e provo-
E o que está embaixo é a "humana argila,, da qual somos fei_
car a corte de homens na saída das reuniões nas quais haüa sido
tos -
seres de linguagem. Pois se a mulher, feiticeira ou santa,
o personagem principal. A autora chama a atenção para o fato de
pode gozar de um gozo indizível, para ser sujeito, sujeito da lin_
que a atitude coquete e sedutora que a paciente assumia nestas
guagem, do iaconsciente, do desejo, ela tem que dizer.Não de seu
situações contrastava fortemente com seu comportamento obje-
gozo Outro, fora da cadeia significante. Mas dizer daquiio que
tivo, eficiente e impessoal durante as conferências.
compartilha da humana argila e é neste dizer que a mulher, tal
Joan fuviêre, ernbora considere sua paciente uma homosse-
como Dioniso, só pode avançar mascarada.
xual latente, dá-lhe o diagnóstico de neurose obsessiva, avaliando
sua conduta como uma verdadeira compulsão. Este diagnóstico é
À MASCARADA FEMININA ratificado por um sonho que repete uma fantasia infantil: sendo
originária do sul dos Estados Unidos, na época do máximo pre-
Em r9z9 Joan Riüêre, psicanústa inglesa, colaboradora de conceito racial, esta mulher imagina estar sendo atacada por um
Melanie Klein, escreve um artigo, 'A feminiüdade como más_ negro, que ela termina por seduzir e entregar à polícia. No sonho,
cara'l que se tornará, a partir de sua releitura por Jacques Lacan, o negro invadia para roubar a casa, onde ela estava só lavando
um clássico da literatura psicanalítica sobre a questão feminina. roupa, corn as mangas do vestido arregaçadas e os braços nus.
O ponto de partida da autora é um artigo de Ernest Resiste, mas com a intenção de seduzi-lo. Aos poucos, ele passa
]ones de
1922, severâmente criticado por Freud (segundo o próprio a adrniráJa e lhe acaricia os braços e os seios. A analista inter-
Jones)
e que faz parte da já citad,a 'Querela do Fald, do final dos anos preta o sonho dizendo que ele realíza o desejo de eliminar o pai e
zo, início dos 3o. O artigo em questão é "O desenvolvimento pre_
a mãe, matando-os (estar na casa sozinha), surgindo daí a neces-
coce da sexuúdade feminina'l em que ]ones, muito politica_ sidade de lavar a culpa (lavar a roupa), a sujeira e o sangue do
mente correto, rnas muito freudianamente incorreto, faz eqúva_
crime, disfarçando-se de mulher castrada (seduzindo o negro).
Ier o falo ao pênis e, reduzindo o psíquico ao biológicq equivale
A partir deste sonho, J. Riviêre interpreta o sintoma de sua
avagina ao pênis, na determinação dos destinos da vida psíquica
paciente como "uma anulação obsessiva de sua proeza intelec-
de uma mulher.
tual" (Riviêre,1979, p. 15).Tratava-se não apenas de reassegu-

110 111

)
rar do amor dos homens (pela sedução) mas de .hdotando a más- de massas, etc.) e o pai com uma queixa precisa - a filha, múto
cara da inocência, de asseguar sua ingenuidade,, (p. rS). .h
Âssim inteligente, só tirava notas baixas.
feminüdade podia deste modo ser assumida e revada como uma Ela tinha sua própria queixa: náo podiaviver sem namorado.
máscara, ao mesmo tempo para dissimular a existência de
mas_ Quando não tinha um, perdia o sono, a fome, parava de estudar
culinidade e eütar as represálias que temia se se chegasse a des_ (daí as notas baixas), tinha terríveis crises de angústia, falta de ar,
cobrir o que ela possuía; exatamente como um ladrão que revira um horror! O pior era que, por precallção, üatava de namorar
os bolsos e exige que o revistem para provar que não
tem os obje- três ou quatro meninos ao mesmo tempo, pois se um deles termi-
tos roubados" (p. r5).
nasse o narnoro, teria os outros. Porém acontecia com frequência
A questão gue se coloca a partir daí é: como distinguir .,ver_
a deles descobrirem que ela estava namorando vários e acabarem
dadeira feminilidade" da "mascarada feminina,,? Riviêre diz que
J. com ela ao mesmo tempo, lançando-a no desespero.
de fato não sustenta que tal diferença exista: ',A. feminilidade,
seja Nas entreüstas preliminares, enquanto ela narra à analista
fundamental ou superficial, é sempre o mesmo,, (p. 16).Cita em
seus infortúnios, os pais constroem o que eles consideram sua
seguida casos de mulheres perfeitamente aptas e capazes que
se pré-história. A mãe, uma mulher amarga, narra o abandono do
comportavam como idiotas diante dos homens, para obter o que
marido logo que a soube grávida: "Ele me abandonou por causa
queriam. Porém será que a mascarada feminina pode ser redu_
daquela piranhat" De qual piranha?, nos perguntamos. Da outra
zida a um artifício ou a um sintoma? Ounão será daprópria
con_ mulher com quem ele mais tarde casa, ou da pequena piranha
dição de não-toda que advém a inevitabilidade da máscara? que ela carregava no ventre? Mulher sombria, moralista, a mãe
A mulher obsessiva crê rro significaate, crê na palawa do
nunca mais refez sua vida afetiva e ainda vive presa ao homem
outro. Ali onde a histérica se interroga sobre o desejo e a sexua-
que a deixou.
Iidade, a obsessiva faz um curto-circúto. O que é uma mulher?
É O pai dá sua versão própria à história. Nunca haüam sido
a mulher de um homem, que a chama de.minha
mulher,,. Daí ser felizes: desde a lua de mel haüa se desiludido sexualmente da
tão difícil, para a mulher obsessiva, se separar de sua poltrona.
esposa, que não sabia ser "puta na cama'l Abandonou-a, indig-
nado, quando a soube grávida, pois interpretou a gravidez como
À PEQUENA PIRANHÁ uma artimanha para prendê-lo, já que havia anunciado ante-
riormente sua decisão de se separar. Â1ega ter dado sempre todo
A máscara da feminilidade era exibida numa profusão esvoaçante
apoio, atenção e conforto à menina, que amava múto. "Afinal, ela
de cachos, minissaia, corpete justíssimo, salto plataforma,
unhas é minha fiIha!" Segundo seu relato, sua atual esposa só apareceu
longas e vermelhas e, sobretudq um batom vermelho vivíssimo
em sua vida dois anos após a separação - o casal tem um filho três
que emoldurava urna boca ornamentada por desconcertantes
anos rnais novo do que a minha paciente.
aparelhos de dentes. Ela tinha onzê anos quando seus pais
me Sua entrada em análise se dá de forma escandalosa. Numa
demandaram anáüse: a mãe com uma queixa vaga, em que falava
entreüsta em que está narrando seus dissabores amorosos, fixa o
dos rumos sombrios da civüzação ocidentaj (sexo, droga,
cultura olho numa correntinha que a analista usava no tornozelo e per-

lL2 113

)
gunta: "Você üu o capítulo de ontem de Tieta?,, (novela que pas_ suposição de saber (você que sabe destas coisas, me diga) e sua
sava na época, no horiírio nobre na televisão). .,por quê?,, porque equivocação - ela não aguarda minha resposta, que não viria - e
aparece um c/ose do pé de Tieta, na rede com o sobrinho prossegue desfiando o que não sabe que sabe, em associação livre,
[...],i
arregala muito os olhos e faz suspense ..[...] e ela usava uma pul_ Temos assim uma ilustração precisa do algoritmo da transferên-
seira de pé!" Pergunto-lhe o que quer dizer isto, e ela deflagra a cia, proposto por Lacan na Proposição de g de outubro de ry67,
mríxima "Nem toda piranha usa pulseira de pé, mas toda mulher como índice matêmico de uma entrada em análise:
que usa pulseira de pé é piranha!"
lnterrompo a entreüsta e na sessão seguinte o caos está ;5;{--*'o
armado. Ela não sabe como todos, no colégio religioso onde
estuda, estão chamando-a de "piranhd: A6nal, só havia contado Em que S (significante da transferência) é o significante atra-
para quatro melhores amigas, d,e toda confiança, que havia üdo, vés do qual o sujeito se representa para o significante que, para

nas ftrias passadas, uma relação sexual com um menino. EIa náo ele, representa o analista- no caso, "pkanhd' e llpulseira de pé'l O
entende o que aconteceu! significante que representa o analista é um significante qualquer,
O pai e a mãe acorrem, desesperados, ao consultório, ten_ pois não é o significante pelo qual o analista se representa, já que
tando entender algo. Ápós vrírias entrevistas, a mãe consegue ter ele não está no dispositivo analítico como sujeito. No caso, o sig-
uma conversa sensata com a filba, que esta me narra com horror. nificante qualquer foi a "pulseira de pe'l através da qual atribui à
Ao ser interrogada sobre se tinha havido penetraçãq a menina analista um saber suposto sobre o sexo. O resultado, o significado
exclama: "Claro que não, que nojo!" Narra-me então que a famosa obtido deste encontro significante
relação sexual havia consistido nos dois ela e o menino tira_ piranha + pulseira de pé
- -
rem a roupa e nus "pularem na cama', da avó, que tinha um ótimo é o desenrolar da cadeia significante, desvelando o amor
colchão de molas. Se a mãe não sabe ser.puta na cama,] a fiIha incestuoso pelo pai, a interdição (parente não pode) e o gozo (o
histérica 'pula na cama" para sustentar o desejo do pai. arrepio). Perpassando todo este processo, está a questão susten-
Na sessão seguinte, esta pequena Dora moderna faz sua tada pelo sintoma (não poder üver sem namorado), no qual a ana-
entrada em anáüse, numa sequência de frases em que articula o lista é incluída como aquela que tem a resposta (como a prostituta
lugar designado à analista, a questão que se articula no seu sin_ do conto de Guy de Maupassant). A mulher que tem - a pulseira
toma e o início do deciframento do inconsciente. ,.Você, que de pé - deverá saber a resposta sobre "O que é uma mulher'l A
entende destas coisas, me diga, a Tieta é piranha ou não é? Eu pequena piranha, entretanto, não louca de todo, sabe que o Outro
acho que é! Se embolando na rede daquele jeito, e ainda por cima náo existe: a mulher que tem é fabricada por ela. Sabendo disto,
com o sobrinhol Sobrinho é parente, não pode. Eu nem deixo não testa sua suposição e se põe ao trabalho, fazendo sua análise.
meu pai me dar um beijo direito. Beijo de homem grande dá arre- No decorrer desta, decanta os significantes da demanda,
pio. Deve ser o bigode!" nos quais se articula a pulsão. Comentando o efeito provocado
Temos aí a partir de um detalhe tomado da imagem da ana_ por seu visual, digamos assim, exuberante, sobre os rapazes diz:
lista, um significante qualquer (pulseira no pé), a construção da "Parecem moscas de padarias. É como se eu fosse um doce, um

lL4 115

)
sonhol" Já na época do escandalo na escola, repetia: ,.Estou na Lacan diz que o privilégio dado ao objeto oral e ao anal,
boca do povo!" Mais adiante, em anáIise, interpela um ad.mira- por estes analistas, se deve ao fato de que estes são os objetos da
dor: "O que é que você pensa que eu sou? Vai tomar um gosti- demanda, posição "muito propícia à intervençáo corretiva" (p.lZ),
nho e se maÍrdar, é?" Finalmente, confrontada com um,,homem enquanto que nos outros não se pode desconhecer que está pre-
muito mais velhd' de dezoito anos (!), que se tornou seu nÍrmo- sente 'â diüsão que é o suporte do desejo", divisão que não se
rado firme, diz à mâe: "Não se preocupe porque ele me convidou pode reduzir apenas pela boa intenção. O olhar e avoz são os
para jantar. Eu não vou ser a sobremesa!" objetos do desejo ao Outro e do Outro, e presentificam no camPo
Esta é a posiçáo através da qual a pequena piranha avança: do percebido e parte elidida do sujeito, como libidinal.
mascarada em doce, sobremesa, com um gostinho particular, que Em outras palawas, os objetos da demanda podem ser reco-
cai na boca do povo: bertos pela relação imaginária especular, enquanto que os obje-
,fr oe tos do desejo resistem a este recobrimento. Lacan nos diz, já em
É fantasiada de objeto oral, o docinho do Outro, que ela se 196o, ao propor o matema da fantasia no grafo do desejo, que "no
nega, se firrta e trafega, trêfega, parafazer o Outro existir quando neurótico o (- q) desliza sob o S da fantasia, favorecendo a imagi-
bem quer, se assegurando de ser a guardiã (a que velando, vela) narização que lhe é própria, aquela do eu i
de sua castração. Os matemas da fantasia da histeria e da neurose obsessiva
Porém, o objeto em causa em sua fantasia funda- decantam a relaçáo do sujeito à demanda ao Outro (histeria) e do
mental - 80a - desvelado phlo acting out qrre rnarcou sua OuÍro (neurose obsessiva) e daí deduzimos a pregnâLncia imag-
entrada em análise é outro: o olhar. No seminrírio xrrr, O nária destas fantasias. A fantasia fundamental não se orienta pela
objeto da psicanálise, Lacan distingue os objetos do desejo demanda; ela é uma resposta à questáo imposta pelo desejo do
- d- dos objetos da demanda - D. Outro, e não é à toa que Lacan toma de empréstimo o Chê vuoi?
do diabo do conto de Cazzotti.
Demanda (D) desejo (d) O desejo é sem dúvida diabólico e se faz presente, no caso
ao Outro objeto oral (seio) olhar da pequena piranha, desde sua escandalosa entrada em aná-
do Outro objeto anal (fezes) voz lise, como objeto do olhar de toda a escola, objeto de escândalo.
Posteriormente, quando interrogada sobre a famosa "relação
Na resenha deste seminário, Lacan faz notar. que a corrente sexual'l confessa o verdadeiro crime pelo qual deúa ser punida: o
psicanalítica pós-freudiana da chamada relação de objeto pro- olhar fascinado no pênis do menino, que subia e descia nos pulos
move e privilegia as relações do sujeito aos objetos oral e anal, às sobre o colchão de mola. Pula na carna = puta na ctuna: olha na
custas de outros objetos que neste tipo de teorização ..permane- cama.
cem incertos" (Lacan, ry65-t966,p. 37). Este objetos são o olhar e Sob transferência, compartilha com a analista um segtedo
a voz, destacados por Lacan da própria obra de Freud (por exem- sexual: as revistas com homens nus que comPrava e nas quais se
plo, o olhar dominante no artigo sobre O
fetichismo e a voz, que comprazia em olhar a diferença. (Importante: não se masturbava
atravessa toda a construção teórica do supereu). com as revistas.)

r16 !L7

I
I
Tal como a adolescente obsessiva, era o olhar que movia o "El objeto del psicoanüsis" (1965-1966), À esefras de ensefranza.
desejo da pequena piranha. A obsessiva escamoteava o olhar em Buenos Aires: Manancial, 1984.

os objetos brilhosos e/ou esmerdalhados da pulsão anal: nota Proposition du 9 de octobre ry67'Paús: Ânalytica, v' 8, 1978,
cem, cabecinha de ouro, etc... Ambas, a histérica e a obsessiva, O seminárt0 livro xx: Mais aínda (:-glz-rglz). Rio de Janeiro:
procuravam neste jogo de ocultamento, dizer do impossível de lorgeZahar Ed., 1982.
sua posição feminina pelo possível de dizer. Manchas no qua- MÂRTINHo, u. n. "Um caso de neurose obsessiva feminindi rr |ornada
dro da fantasia, borróes caídos do olhar do Outro, seres .â mercê de Ca*éis da Escola Brasileira de Psicanálise. Petrópolis: 1996.

de todos" como explicita o inconsciente a céu aberto de Lol V. MTcHELET, I. A Feiticeira. Rio de |aneiro: Nova Fronteba, rggz.
Stein. Como a cabecinha de ouro ou merda da mamãe, como o RrvIÊRE, l.'La femineidad como máscara'. Int Lafemineidad como más'
docinho de coco ou a falta de gosto na boca do Outro, o objeto cara. BarceTona: Tusquets Ed, :.g7 g,

da demanda é dizível, e é através deles que as companheiras de Rossl, R. Teresa de Ávíla. Rio de faneiro: Ed. José Olympio, 1988.
Dioniso avançam mascaradas.

nmrnÊNcmssrsrrocRÁrrces X

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(rSf 8). Ínl. Escritos. Rio de Janeiro:lorgeZahar Ed., r99g.
"Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freu-
diano" (196o).In: Estitos. Rio de ]aneiro: ]orge Zúar Ed., 1998.

rr8 119

)
Uma máscara de mulher

o sEcRrDo oo enuÁmo

No decorrer da anií[se de uma mulher obsessiva, sou informada


de que ela estava com o armário desarrumado, o que muito a
aborrecia. Interrogando-a sobre esta queixa soube entáo que a
"gaveta das calcinhas" era sempre escrupulosamente arrumada,
separando primeiro três tipos de calcinhas: as de ficar em casa
(mais usadas), e as de sair, separadas em dois subgrupos; as de sair
de dia (para compromissos de trabalho) e as de sair à noite (para
a diversão, sofisticadas e enfeitadas). Estes três grupos de calci-
nhas eram cuidadosamente organizadas por cores, em dégradé,
e a desordem que a afligia era a de não conseguir mais manter
sua perfeita organização. A anrálise havia produzido a revolta das
calcinhas!
Outrapaciente obsessiva não conseguia mexer em seu armá-
rio para usar as roupas que tinha por temer os efeitos nefastos que
traria a desorganização do armário: morte de parentes próximos,
desgraças viírias. Em contraste à gaveta desarrumada, a "mulher
das calcinhas" se apresentava sempre escrupulosamente arru-
mada, enfeitada e perfumada. O detalhe do perfume era enfati-
zado como "para esconder a merda que está lá dentro'l
A jevem, que se dizia "uma tábua'i lidava de maneira pecu-
liar com os instrumentos da mascarada feminina: aparentemente
usava o uniforme adolescente de'Jeans" e camiseta, porém a cada Nós damos a seguir as observaçóes de três mulheres que experimentavam
escolha da calça jeans e da camiseta exata paia o momento, lon- uma atração mórbida, principalmente sexual, por certos tecidos, a seda
sobretudo e por ocasião desta paixáo, impulsos deptomaníacos. As três
gas horas de dúüda e hesitaçáo correspondiam. Diante do desa-
observações superpõem. (on cr.Énervraeurr, [rgo8] 1995, P' 19)
fio de ir a uma festa, uma tragédia se esboçava. Ali onde uma
adolescente histérica diria que não tinha a roupa adequada, que São três mulheres classificadas por Clérambault como histé-
nenhuma servia, a jovem hesitava, duvidava, sofria e frequente_ ricas, todas corn tendências depressivas, duas alegando frigidez
mente desistia de ir à festa, pela absoluta impossibilidade de saber sexual e duas com tendências suicidas. O ponto realmente inte-
como poderia se apresentar, se mascaraÍ aos olhos do Outro. ressante é a forma como as mulheres descrevem o seu gozo com
As vestimentas, os véus que recobrem o vazio d, mulher são, o pedaço de tecido:
também para a mulher obsessiva, um tormento. Digo também,
pois que para as histéricas eles o sã\de outra forma, porém na Quando eu consigo pegar o tecido, eu o esftego e isto me produz um
aperto particular no estômago, e em seguida eu exPerimento uma espécie
mesma intensidade. saber-se presa ao ãrtifício da máscara leva as
de gozo que para comPletamente minha respiraçáo; eu fico como bêbada,
mulheres aos mais curÍosos extremos. eu não consigo mais me segurar, eu tremo, mas não de medo, se você qui-
Gaêtan Gatian de Clérambault, mestre em psiquiatria de ser, muito mais por agitação, eu não sei. (op. cit , p. ql)

Jacques Lacan, dedicou um curioso estudo à relação pecúar das


mulheres com os artefatos da dita sedução feminina. Este cava- As três mulheres conÍ.rmam que a excitação de roubar as
theiro, psiquiatra famosà, nasceu em tgTz,descendente de Vigny peças de seda contribui para o gozo, mas é na manipulação do

pelo lado materno e de Descartes pelo lado paterno, segundo tecido, no contato, que está o segredo do gozo:

Elisabeth Roudinesco (1988, p. r23). Foi a síndrome do automa_ Eu gosto de tudo que é suave. Eu gosto ainda as sedas grossas que íazem
tismo mental, detectada por Clérambault que forneceu a Lacan "fru-fru': Mas usá-las no meu corpo eu não poderia, isto me enerva
os primeiros elementos para afinar seus critérios de diagnóstico demais. Deitar com a seda, eu até gostaria, mas isto náo dá, não faz meu
gênero, é para mulheres que são üstas na cama. Eu não dormiria, aquilo
diferencial entre neurose e psicose. clérarnbault, era urn apaixo-
me queimaria; um pedaço Pegueno já me enerva, tenho que me levantar,
nado dos tecidos, dos drapeados, das roupas femininas. solteirão me refrescar com água de colônia, para ter paz. (ibid., p. +z)
e misógino vivia cercado de bonecas de cera, nas quais vestia
tecidos bizarros. Este grande clínico da psiquiatria do olhar e da Clérambault se refere à relação erótica destas mulheres com
observação se matou com um tiro ao perder a visão (ibid., p. rz5). o tecido como runa forma de perversão (ibid., p. r9). Porém, na
Clérambault era urn apaixonado pela fotografia e suas obser- descriçáo da relação destas mulheres com os tecidos, sobretudo a
vaçóes clinicas "evocam a técnica da fotografia científica, dos cli- seda, há uma ausência de referência do fetiche .Diz o mestre:
chês instantâneos" (ibid, p.tz6). No liwo paixão erótica dos teci_
Nossos casos são caracterizados pela procura do contato com determina-
dos na mulher, descreve briihantemente três casos de mulheres
dos tecidos, pelo orgasmo venéreo devido apenas ao contato cutâneo' a
que gozam sexualmente com tecidos. Na sua introdução o mes_ preferência deste tipo de afrodisíaco a qualquer outro, mas sem exclusiü-
tre psiquiatra diz: dade absoluta; a indiferença à forma, ao passado e ao valor evocador do

1,22 L23

I
fragmento de tecido em questão, o papel muito apagado da imaginação, a vamente decorrem do desmentido e da admissão da castração"
ausência de apego ao objeto depois do uso, a ausência comum de evoca_
(ibid., p. r5z). Compreendemos assim a observação de Lacan em
ção ao sexo oposto, a preferência pela seda, a associaçâo com a cleptoma_
nia, en-fi.m o encontro deste quadro completo, ta[to quanto sabemos, nas 1958 sob a modalidade erotômana do amor feminino em oposi-
mulheres somente (e na espécie de histéricas). (p. trz) ção ao fetichismo masculino. O fetichismo próprio da mulher é
o investimento f.ílico no órgâo sexual do parceiro ou no fiIho a
Ora, para Freud, o fetichismo, protótipo da perversão, apre_ lhe ser dado pelo homem que a deseja. Pelo menos no que diz
senta características bem diversas das observadas pelo mestre respeito à perversão, as mulheres estão mais cômodas do que os
psiqúatra de Lacan. Em primeiro lugar, Freud observa que os homens: são perversas por serem mulheres e sua forma de amar é
fetichistas estão, na maioria das vezes, ,,múto contentes com ele sempre marcada pela per-versão do desejo. Versão ao pai (pàre),
[o fetiche] e até se saüsfazem das facilidades que ele lhes brinda que enquanto interdito do gozo, instaura a lei do desejo' É muito
na sua úda amorosa" (Freud, [tgzZ] t994,p. r47). Esta satisfação a conüagosto que temos que concordar com os perversos auto-
não se assemelha em nada ao'hpertsno estômago,, ou ao ..gozo resdo Malleus Maleficanum,pois a mulher é mesmo uma sem fé,
que para a respiração" ou à "enervaçãd'dos casos citados. Freud sem fe no significante, e uma Perversa, adoradora do falo.
observa que o fetiche promove o pÍazer sexual e as mulheres de Porém, o que as pacientes observadas por de Clérambault
Clérambault quando gozam, sofrem do gozo. revelam é uma relação com o gozo que zomba do falo. Uma das
Para Freud o fetiche é o substituto do falo, mas ele se apressa mulheres, que se dizia sexualmente frígida, revela os seguin-
em acrescentar que não é um faio qualquer; o fetiche ,.é o subs- tes sonhos: "IJma vez era uma besta feroz enorme, como um
tituto do falo da mulher (da mãe) no qual o menino acreditou e leáo por exemplo. Eu gritava de dor e eu estava fehz ao mesmo
tempo. A dor persistia após o despertarl'E adiante ela completa:
ao qual não quer renunciar - sabemos por que
-" (ibid., p. 14g). "Foi a mesma coisa com os dois homens que me violentaram
Assim sendo, o fetiche tem sobretudo um valor evocador e uma
referência clara ao Outro sexo. O fetiche, tal como a memória [no sonho], eu sofri horrivelmente; mas nesta sensação horrí-
vel, havia felicidadd' (p, zs). "Morro por não morrer" dizia Santa
na amnésia traumática, se detém no meio do caminho, retém .h
Teresa. As histéricas loucas do submundo do fin de siêcle obser-
ultima impressão anterior à traumática,' (ibid., p. t5o) ao unrei_
vadas por Clérambault parecem mais próximas da santa e das fei-
mlich, oa seja, ao estranho, ao desconhecido que é a descoberta
ticeiras medievais do que da perversão masculina.
do Outro sexo. Assim o feüche se detém nos pés, nos tornozelos,
Seja como for, as observações do mestre Clérambault nos
nas meias, nas ligas, nas calcinhas, em suma em tudo que detenha
permitem apenas especulaçôes, por mais interessantes que sejam.
o olhar antes da verificaçâo da falta frílica na mulher. É evocador
Certamente foi sua própria paixão pelos tecidos que o fez detec-
e referente ao Outro e por isso mesmo tem um grande valor para
tar uma síndrome tão curiosa, mas nosso interesse pelo segredo
o sujeito que "venera o fetiche" (ibid., p. 15r). do armário que liga as mulheres aos artefatos da sedução vai além
Nada mais oposto à ausência de apego ao objeto após o uso do segredo do armário do mestre de Lacan.'
descrita por clérambault. Áo contrário, para Freud o objeto feti-
che recebe do sujeito 'h ternura e a hostilidade To bring out ofthe closel - tirar do armário, é uma exPÍessão corrente em inglês para
[...] que respecti_ see referir à revelaçâo dos segredos íntimos dos homossexuais enrusüdos. Foi o que

L24 L25

I
A FRIGIDEZ FEMININA Por outro lado temos os sonhos de uma destas mulheres em
que ela é gozadapor uma "besta feroz" ou por dois homens que a
Eüdentemente, o que estava em questão para as histéricas de
estupravam. Os sonhos têm a estrutura do segundo temPo lógico
clérambault não era o gazo místico de santa Teresa. Tlatava-se
da fantasia decantado por Freud: o Outro goza de mim como
de um gozo mastubatório: as mulheres descritas esfregavam o
objeto. Podemos então levantar a hipótese de que estas mulheres,
pedaço de seda em suas partes íntimas, ou gozavam do mero con_
histéricas e frígidas, recusavam o homem e o órgão fálico mascu-
tato da seda sobre seus corpos erogeneizados.
lino como conector para o Outro gozo, tentando extrair do con-
O gozo masturbatório dispensa o corpo do Outro, mas tato do macio pedaço da seda com seu corpo um gozo Outro para
guarda sua referência ao Outro na fantasia, de onde obtém sua
além da excitação clitoridiana.
sustentaçáo frílica. Em L1TS,na"Conferência de Genebra sobre o
É importante ainda ressaltar a conexão da cleptomania com
sintoma'l Lacan diz que um dos poucos pontos em que discorda
esta forma particular de gozo. A cleptomania visa dacompletar o
de Freud é sobre o autoerotismo, e que se assim o Íaz éem nome
Outro, ao passo que o fetiche desmente a castração de Outro. A
do próprio Freud. É pelo Outro, so\a forma dos cuidados mater-
histérica descompleta o Outro para fazer surgir o desejo. É esta
nos primiírios, que o sujeito é introduzido na sexualidade bem
a excitação produzida pela cleptomania. O gozo masturbatório
como na cadeia significante. Assim sendo, 'hada mais hetero,,
com a seda é de outra ordem, mas aponta igualmente para falta,
(Lacan, bgZil 1986, p. rz8) do que o autoerotismo. Hetero por-
ao rebaixar o valor fríüco do pênis masculino, substituindo-o por
que veio do Outro e se dirige ao Outro.
um Pano.
Em 'A terceira", Lacan (':97S] rgg6) se refere ao escritor A frigidez, nos diz Lacan, não é sintoma, embora pressu-
Mishima que descreve sua primeira ejaculação, tendo se mas_
ponha "toda a estrutura inconsciente que determina a neurose"
turbado pensando na imagem de São Sebastião: .,Deve ter_ (1958, p. 74o). O que está em jogo é a castração, e Lacan nos
lhe deixado bem espantado esta ejaculaçãd' (p. gr). Ainda na
avÍrnça duas hipóteses, não mutuamente excludentes:
Conferência de Genebra, Lacan relembra que foi o encontro com
as primeiras ereções de seu pênis o fator desencadeante da fobia - a frigidez como defesa frente ao gozo, na dimensão da mascarada. Ern
do pequeno Hans: "O gozo que resúa deste wiwimacher lhe é outras palavras, a mulher aqui se fixa na máscara fálica, não condescen-
dendo à posifro de objeto e não podendo tomar o pênis do parceiro como
estranho ao ponto de estar no princípio de sua fobia,, (p. rzg).
objeto írílico de seu gozo (ibid., p. 741).
A particularidade do gozo fiílico masturbatório destas mulhe_
res observadas por clérambault era a de que não estava referido - o próprio enigma do gozo feminino que faz da mulher "Outra para ela
ao sexo masculino, o que não quer dizer que não estivesse refe_ mesrna" (ibid., p. 741) e creio que podemos a partir deste ponto conceber
a frigidez com uma recusa em aceitar o homem como'tonector" para este
rido ao Outro sexo, À Muther que não existe. Clérambault tam-
gozo Outro.
bém ressalva 'b papel múto apagado da imaginação,,, ou seja, a
diminuição ou ausência de atiüdade fantasiosa,
]á que a frigidez não é sintoma (se o fosse seria sintoma con-
acoDteceu na imprensa sensaciooüsta, na época da morte de clérambault, com versivo no corpo, ou seja, sintoma histérico), é possível conceber
a
descoberta das bonecas de cera e dos tecidos drapeados (p. r4r.). mulheres obsessivas frígidas, já que o próprio Lacan nos diz que

rz6 r27

)
"em sua forma úansitória" o império da frigidez é Esta paciente aPresentavâ uma curiosa fixaçáo Por saPatos,
quase gené_
rico. Na clínica, no entanto, só encontramos formas episódicas o que a levava a se queixar muito do encargo financeiro que sua
de frlgidez em alguns poucos casos de müheres obsessivas que, anáIise representava, impedindo-a de comprar coisas para ela,
seguindo a moda-lidade masculina de amor, separavam o objeto especialmente sapatos. "Os homens", dizia ela, "são muitos sensí-
de amor (o homem com quem eram frígidas) do objeto de
deseyo veis à vista de uma mulher bem calçada" (P.zzl).
(os homens com os quais gozavam). É, entretanto, Antes, porém, de nos determos na "múher do sapato'l gosta-
urn ponto em
aberto, já que foi possível verificar em dois casos que a ria de retornar a uma referência que abandonei no Capítulo III, ao
identifi_
cação da mulher obsessiva ao falo levou, uma delas, a encarnaÍ mencionar pela primeira vez este caso. Trata-se de um persona-
a vírgem durante toda a vida, e a outra a uma opção religiosa gem de Eça de Queiroz, uma beata atormentada por seus escrú-
na
qual o apelo mistico estava fora de questão. por fim, não está pulos, que o autor assim descreve, ao lhe dar palawas diante de
teo_
ricamente excluído que a frigidez seja uma forma possível de sus_ um novo confessor:
tentação do desejo impossível.
Pobre D. fosefa! Logo na primeira noite em que chegara a Ricoça (con-
 segunda hipótese nos parece mais claramente circuns_
tava ela), a começar o rosário à Nossa Seúora, lembmr-lhe de repente
crita à histeria: a denúncia de que o pênis não é o falo e de que o que esquecera o saiote de flanela escarlate, que era tão e6caz nas dores das
homem nada sabe do gozo suplementar das mulheres. as histeri_ pernas... Trinta e oito vezes em seguida recomeçara o rosário, e semPre o
cas de Clérambault parecem demonstrá-lo com maestria: saiote escarlate se interpuúa entre ela e Nossa Seúora!... Entáo desistira,
gozaÍ\
de exausta, de esfalfada. E imediatamente sentira dores vivas nas Pernas e
sem o pênis, jogam fora o objeto momentaneamente falicizadq
e
tivera uma voz de dentro a dizer-lhe que era Nossa Senhora por üngança
porém, não fetichizado, que lhes serviu para o gozo. É como a espetar-Ihe alfinetes nas Pernas,..
se,
cinicamente, dissessem: "eualquer semblante é semblante e nada
diz do gozo d'mulher". Não param aí os sofrimentos da pobre D. ]osefa: além de
sofrer quando the vinha o catarro à boca, numa exPectoração, em
dúvida se cuspiria o nome de Deus ou se o engoliria, misturando-o
OUTRÂ OBSESSIVÀ LACANIÂNA
às fezes, sofria mais:

No capítnlo xxlrr do Seminário da Transferência, intitulado .A Mais isto não era o pior: o grave era, que na noite antecedente, estava toda
presença real", Lacan retoma run caso de neurose obsessiva sossegada, toda em virnrde, a rezar a São Francisco Xavier - e de repente'
em
nem ela soube como, pôs-se a Pensar como seria São Francisco Xavier nu
uma mulher, já comentado por ele no Seminrírio V Esta é uma
em pêlo!
paciente de Maurice Bouvet, e Lacan critica o manejo da trans-
ferência da técnica do rapprocher de Bouvet, baseada na cor_ A paciente de Bouvet, além de imaginar que a hóstia consa-
rente da relação de objeto,-mas reforça que o autor ,,era um grada era um pênis introduzido em sua boca, tinha a seguinte fan-
clí_
nicd' (Lacan, 1995, p. 25il e não discute o diagnóstico dado a tasia: "Eu passo toda manhã, para ir ao meu trabalho, em frente a
sua paciente. Pelo contriirio, ele o endossa ao citar uma loja funeriiria, onde estão expostos quatro Cristos. Olhando
um caso seu,
de neurose obsessiva mascúna, com uma fantasia sacrflega para eles eu tenho a sensação de andar sobre seus pênis. Eu e;pe-
aná_
loga, como vimos na Capítulo rn. rimento uma espécie de prazer agudo e de angustia" (p. zzil.

rz8 L29

I
Vemos então que nos casos das duas obsessivas, na da ficção guido por um cavaleiro de armadura com uma bomba de inseti-
e na da realidade, o gozo proibido que causa sofrimento e angus- cida na máo. Como objetivamente, na realidade, seu pai era uma
tia está mais do que bem referido ao falo: ao saiote escarlate que frgura frágil e sua mãe forte e intromissora, a analista vê aí uma
se enrola nas pernas, aos dotesfiilicos de S. Francisco Xavier nu representaçáo da "mãe frílica'l
em pêlo, ou aos pênis dos quatro Cristos. Como já ümos ante- Ora, neste mesmo capítulo em que comenta o caso de Bouvet,
riormente, Lacan usa deste exemplo para sublinhar a degradação Lacan mostra como o objeto da fobia a esta função de evitar a
do Outro como uma temática central de neurose obsessiva. AIém aproximaçáo do sujeito à questão do desejo. "O que o sujeito
disto, trata-se também da degradação do falo enquanto signifi- teme encontrar é uma espécie de desejo, que seria de natureza a
cante do desejo, como o próprio signo do desejo. Lacan evoca o fazer voltar, antecipadamente, ao nada toda criaçáo significante,
exemplo do Homem dos Ratos que entre o clarão do relâmpago e todo o sistemâ significante" (op. cit., p. 2Si. Nesta perspectiva,
o ruido do trovão, tenta preencher o espaço contando, para mos- podemos entender o sonho com o cavaleiro da armadura como
trar que é esta a fórmula exata da conjuração do obsessivo: preen_ um apelo do sujeito ao pai (e à analista, já que era um sonho de
cher o espaço entre dois significantes com os objetos degrada- entrada em anrílise) para impedi-lo de se aproximar deste abismo
dos de sua fantasmagoria, para impedir que neste espaçôo desejo ameaçador. Ao interpretar aí justamente a máe fálica, a analista
possa ser üslumbrado. precipita outro sonho: o de uma mulher com três pênis. Lacan
O falo, como o próprio significante do desejo, ..só pode vol- observa então que desde Freud sabemos que quem tem três não
tar por arüfício, contrabando e degradação" (Lacan, op. cit., p. tem nenhum.
25il. A fantasia de pisotear o pênis de Cristo é assim um exem- O mesmo podemos dizer dos quatro pênis dos quatro Cristos:
plo claro deste evitamento do desejo na neurose obsessiva, de sua nenhum pênis de nenhum Cristo! Trata-se, sim, de uma forma
conjuração. Não é entretanto assim que Bouvet vai conduzir o particular de degradar o falo enquanto significante do enigma do
caso. Segundo Lacan, Bouvet promove, ele próprio, uma bana- desejo do Outro, e de falar da angústia desta mulher diante de
h,zaçáo do falo ao reduzi-lo à objetalidade do pênis (op. cit., p. seu próprio desejo. Poís embora atormentasse seu marido - um
256). Deste modo, tal como no caso de Fairbairn, todo drama homem doce e submisso - com inúmeras queixas, embora ata-
da mulher obsessiva com o seu desejo impossível é reduzido a casse os homens em geral com graves acusações e declarasse se
uma inveja do pênis, esta por sua vez reduzida a ataques ima- entender melhor com sua amigas mulheres, não nos esqueçamos
ginarios aos pênis objetivos do homens. Há em todo este pro- que o que esta mulher üsa é ser atraente para os homens. É cal-
cesso reducionista uma tal ênfase
no imaginário, na objetalidade çar lindos sapatos, pois os homens náo resistem a uma mulher
do objeto em questão, que não é de admirar que na fantasia da bem calçada!
paciente o pênis de Cristo se multipiique em quatro. É curioso Nada disso élevado em conta pelo analista que, preocupado
relembrar aqui o caso de Ruth Leboüci comentado por Lacan por uma reação transferencial extremamente hostil, não tem a
na "Direção do Tratamento", caso supervisionado justamente por finura clínica que levou Freud a dissolver a agressividade trans-
Bouvet. Trata-se de um obsessivo com sintomas graves de fobia ferencial'do Homem dos Ratos com uma observação aparente-
e que, no sonho que marca sua entrada em análise, vê-se perse_ mente simples, mas que é o paradigma de uma interpretação:

130 131

)
"Eu não sou o Capitão cruel". Tal como o Homem dos Ratos,
a brava o analista. O chefe do serúço era ao mesmo temPo amado
paciente de Bouvet também se recusa a falar, alegando gue, por porque era justo (como seu pai) e temido pelo seu renome e por
ter uma proâssão paramédica, conhece bem os médicos e sabe toda a importância que o cercava.
que eles comentam o caso dos pacientes entre si, fazendo fofoca. O analista interpreta o sonho, já interpretado pela sonha-
A interpretação de Freud visou exatamente tirar o Homem dos dora, e vemos aí aparecer com clareza todos os seus preconceitos:
Ratos da posição de objeto do gozo do Outro, para que pudesse ele lhe mostra como só consegue se revoltar contra a injustiça da
prosseguir sua anáüse. A paciente de Bouvet (em cuja história a mãe depois de comprar os saPatos que eram os acessórios de que
mãe exercia o papel do capitão cruel) coloca seu analista neste ela alegava ser privada pelo analista, que além do mais se pare-
mesmo iugar transferencial. cia com o sapateiro. Donde ela desejava obter do analista algo
O que Freud contornou com uma interpretação, Bouvet pro_ que a permitisse se liwar do temor que tinha de sua mãe, e este
cura sanar com uma endoutrinação ideológica. Tal como ,lgo - era alguma coisa que a tinha levado a Pensar
os sapatos -
foan
Riviêre, vê na dificuldade de sua paciente com os homens uma nos sapatos do pai. Bouvet acrescenta que não foi mais adiante,
homossexualidadelatente e, tal àmo Fairbairn, trata de demons- se contentando apenas em acrescentar: "Que esta mesma parte da
trar-lhe sua inveja do pênis a f,m de promover uma evohl$o favo_ roupagem feminina a ajudava a vencer seu sentimento de inferio-
rável dos fenômenos da transferência. ridade e lhe permitia de exercer uma Pequena vingança antimas-
culind' (p.zr+).
Mas que vingança antimasculina? lnsúar o chefe do serüço?
Á MULHER DO SAPÂTO
Mas própria paciente já haüa interpretado esta figura como um
a

A "mulher do sapato'faz o seguinte sonho, que o próprio Bouvet substituto do pai amado e temido, e se lhe dirigia insultos certa-
toma como a marca de sua entrada no dispositivo analítico, já mente era por ele náo ter-lhe dado o que ela pedia agora ao ana-

que observa que a partir dele a análise iria por flrn progredir ..se lista: algo que a protegesse do gozo sádico da máe. Ali onde a
e
paciente, tomada pelo amor de transferência, exPressa o desejo de
engajar numa nova via'l Eis o sonho: ..Eu estou no serviço hospi_
talar no qual trabalho, miúa mãe vem no serviço: ela fala mal receber do analista, no lugar do pai, o amor e a proteção, o ana-
lista escuta "um desejo de possessão fáüca" para suplantar a mãe
de mim com a supervisora. Eu fico furiosa e saio. Eu entro numa
e se admira de que paciente nunca tenha expressado "um desejo
a
loja em frente ao hospital e compro um par de sapatos; depois, de
mais sexualizado de dominação da mãe" (ibid., p. zz4). Sorte dela
repente, abrindo a janela começo a injuriar violentamente
minha não ter dito nada que o induzisse a lhe mostrar isto, já gue mesmo
mãe e o chefe do serviço" (Bounet, 1950, p. z4). O analista for_
sem expressá-lo ele já a tachava de homossexual!
nece as associaçóes da paciente: ela odiava a supervisora que
ela Ao meu ver este sonho nos ensina, e muito, sobre a relação
achava injusta mas a quem jamais ousaya responder (tal como
na da mulher obsessiva com os apetrechos da mascarada feminina e
relação com a mãe). Os sapatos escolhidos eram muito pontudos
com o homem. É pela via da identificaçáo imaginaria ao pai, cal-
e ela entra em seguida numa digressão sobre os sapatos do pai.
pode reagir à mãe,
Fala depois do sapateiro que era jovem, moreno e que lhe lem_ çando séus sapatos, travestida no pai, que ela
porém só depois de receber dele o falo. Temos aí o lugar que o

L32 L33

)
homem ocupa para uma mulher obsessiva, e que explica o apego ciar Penisneíd da mulher, deixando escaPar a sua relação ambi
e a fidelidade espantosa de algumas delas a seus homens. gua com o falo.
É bem diverso do que se passa na histeria e, no entantq bem Lacan retoma então o aspecto quase feüchista da relação
semelhante. Tanto a histeria quanto a neurose obsessiva deno- desta mulher com os sapatos. Na perversão masculina o sujeito
tam uma posição do sujeito com relação à linguagem, ao recal- afi.rma que a mulher tem o falo, sob o fundo da ausência dele
que. São, portanto, duas formas (dois tipos clínicos) do sujeito, (que o objeto fetiche substitui). No caso em questáo ela também
enquanto ser falante, se localizar frente à linguagem e frente ao úrma que tem, tem os sapatos e quer ter as roupas que exci-
desejo que nela desliza. tem o desejo dos homens, piua decepcionálos. "Na aparência
Ahistérica denuncia os semblantes, denuncia que o pai é a mesma coisa'l diz Lacan, "mas é uma coisa completamente
é impotente em dar à mulher um significante que dê conta de diferente [...]" (ibid., p. 466). Trata-se, na verdade, aqui também,
seu gozo suplementar. A obsessiva é uma crente: aposta no pai, da mascarada feminina, mais uma vez explicitada em um caso
crê no pai e espera do homem sua salvação. A histérica banca o de neurose obsessiva em mulher. Porém temos aqui uma mas-
homem para melhor denunciar sua falha, enquanto qu.e a obses- carada diferente da descrita por Joan Riüêre. No caso desta, a
siva, sabendo de sua falha, o sustenta, b*.. à fro*.-àrd qu" paciente tinha uma habüdade especial (dar conferências) que ela
ela, não sendo louca de todq sabe que não existe. Dois tipos clí- falicizava (como a mulher qae tem), e precisava se mostrar frágil
nicos, dois destinos de mulher. e abobalhada para despertar o desejo dos homens, já que como
todas as mulheres sabem, só a falta desperta o desejo.
No caso de Bouvet, há uma pequena nuança diferentel 'A
O CIRCUITO DO DESE]O
partir do fato de que o falo é para ele o significante do desejo, tra-
ta-se de ela apresentar sua aparência, de parecer sê-lo. Tiata-se de
Três anos antes, no Seminrírio Á sformações do Inconsciente, Lacan
ela ser o objeto de um desejo, e de um desejo que ela sabe múto
já haüa comentado este mesmo caso de Bouvet, salientando o seu
bem que só pode decepcionar" (Lacan, op. cit., p, +66).
interesse, pois "não dispomos de tantas anáüses assim da neurose
Duas faces da mascarada feminina: despertar o desejo exi-
obsessiva na mulher" (Lacan, 7999, p.4do). Neste sentido o caso
bindo a falta ou despertar o desejo encarnado o significante da
tem o valor de demonstrar claramente como o sexo biológico nâo
falta. Sao estratégias de mulher e no jogo da sedução não se pode
interfere decisivamente na escolha da neurose. O próprio Freud
distinguir o que é da obsessiva ou da histérica, e nem se pode
já o haüa demonstrado ao ilustrar seu artigo sobre a escolha da
generúzar, pois da posiçáo de objeto de desejo as mulheres só
neurose com o caso da "dama das lavagens".
podem ser tomadas urna a uma.
Nesta sua primeira abordagem do caso de Bouvet, Lacan
Face a tudo isto, o analista insiste em suas interpretações que
centra suas críticas em torno da interpretação dada por ele à
üsam minorar o sofrimento pela suposta inveja do pênis, ofe-
relação de sua paciente com o falo. "O analista orientou a aná-
recendo-o sirnbolicamente à paciente. Naturalmente isto não
lise inteira pelo seguinte: que a paciente quer ser homem" (Lacan,
resolve nada: as ideias obsessivas permanecem, e apenas a culpa
op. cit., p.467). Deste modo concentra seus esforços em denun-
parece aliviada.

L34 L35

)
Um acting out qu.e marca o final desta aniíüse vem dizer,
como todo acting ouf, o que o analista náo havia escutado. Ela
encaminha ao analista o filho mais velho, único homem a quem
temia, pois não conseguia controlar. Por quê?

Justamente porque, neste nivel, essa mulher faz do falo um uso estrita_
mente equivalente ao de um homem, ou seja, por intermédio do filho, A dor de Medeia
considera-se perigosa. Ela o apresenta, nessa ocasião, como seu prolon-
gamento, o que equivale a dizer, por conseguinte, que neúum penisneid
a detém. Ela tem o falo sob a forma desse 6.lho, possui de fato esse fala,
uma vez que nele se cristaliza a mesma obsessão dos doentes masculinos
(Lacan, op. cit., p. 5:.4). MATÂ.SE UMA CRIANçA

No início do relato de seu caso cIínico, Bouvet (P. ztZ) nos dá a


üsta das principais obsessões de sua paciente:
RÊFERÊNCIÂS BIBLIOGRÁFICÀS \
. temor obsessivo de haver contraído sÍfilis;
BotrvET, rvr. "Incidences úerapeutiques de la prise de conscience de . obsessões infanticidas misturadas com obsessões religiosa§;
l'envie du pénis dans Ia néwose obsessionnelle feminindl Revue
française de psychanalyse, t. xrv, n. 1, jan.-mar. 1950.
. obsessões por envenenamento de toda a família por las-
cas de unha caídas na comida ou pelo simples contato da
os cr.ÉRáMnaulr, c. c. Passíon érotique des étofes chez lafemme. paris:
Synthélabo, :.995. mão com os alimentos;
DE euErRoz, t. O cime do Padre Amaro. São paulo: Ed. Áüca, 1996. . na puberdade, obsessão de estrangular o Pai;
FREUD, s. "Fetichismci' Q9z7). Ín: Obras completas, Buenos Aires: o âos sete anos, aparição de fobias quanto à segurança dos
Arnorrortu, 1994 v. xxl. pais.
LACAN, J. ';4, direção da cura". Ín: Estitos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1998.
Contra estes pensamentos, a paciente emPregava recursos
i4. terceira'l ln Interyenciones y textos n. z. Buenos Aires:
Manantial, r986. lógicos (verificação e precaução) e mágicos (rituais de repetiçáo
e anulação). A intensidade dos pensamentos agressivos e mortí-
"Conferência de Genebra'i ln: Intervencionx y textos n. z.
Buenos Âires: Manantial, r986. feros desta mulher está bem de acordo com as observações feitas

Seminrírio áslormaçõu do inconsciente. Rio de ]aneiro: Jorge por Freud no caso do Homem dos Ratos sobre o fato do obsessivo
5:
-__:Zahal tgg9. necessitar da possibilidade da morte, e sobretudo da morte de
Seminario 8: A transferêncla. Rio de |aneiro: lorge Zahar, ry95. uma pessoa significativa e até mesmo amada, para resolver seus
RouDrNESco, s. Histoia da psicanálise na França. Rio de |aneiro: conflitos. Trata-se na verdade de uma trapaça: o obsessivo oferece
Jorge
ZúarEd., rg88. o outro à Morte em seu lugar, fazendo-se de morto e se multipli-

u6 t37

I
cando nos outros que sacrifica no pensamento, repetindo desta Uma mulher obsessiva, por exemplo, pensa sem parar que
forma o'truque de Paris". seu fi.lho será atropelado por run carro, com requintes de mor-
Há, entretanto, um aspecto particúar e curioso revelado bidez: o corpo esmagado, o sangue, etc. Se parar de pensar nisto,
pela clínica da neurose obsessiva em mulheres: a obsessão infan- acha que o filho será de fato atropelado e, ainda mais, por um
ticida, observada por Bouvet em sua paciente. Ou, para darmos o caminhão. Ao falar de si mesma, define-se como "um trator".
nome mais verdadeiro, a obsessão filicida. Freud já haüa mencio-
z) Excessiva preocupação com a saúde física do filho, levando
nado este tipo de ideia obsessiva em 1894, em Oüsessões e Fobias.
a mãe obsessiva a interprétar pequenas doenças ineütáveis
No mesmo ano, em As neuropsicosa de defesa, retoma o caso
na infância como risco iminente de vida, transformando
da mulher do faire la fenêtre para observar que esta ideia obses-
crianças saudáveis em doentes crônicos, oü seja, matando-as
siva de bancar a prostituta era acompanhada por outra bem mais
aos poucos por excesso de medicação indeüda. Nestes casos
dolorosa: a de esfaquear seu filho único.
é interessante notar gue o tratamento psicanalítico da mãe
A senhora em questão tinha uma vida sexual bastante insa-
resulta em melhoria do estado de saúde física da criança.
tisfatória e esta situação se iniciara após o nascimentXdo filho
Em todos os casos citados, as mulheres em questão têm em
com as medidas contraceptivas precárias do século passado, que
comum o fato de que seus maridos perderam, pelas mais varia-
inclüam o coito interrompido ou a ausência, ptua e simples, do
das razões, o interesse sexual por elas. Estas manifestações clíni-
comércio sexual entre os parceiros. Assim, uma primeira possi-
casnos fazem interrogar nosso primeiro deciframento apressado
biiidade de deciframento deste sintoma (que Freud, no seu texto,
do sintoma descrito por Freud. Propomos então que.as fantasias
não decifra) poderia ser a de que esta mulher atribuísse incons-
mortíferas em relação ao filho independem de qualquer atribui-
cientemente a causa de seus males a este filho e desejasse des-
truí-lo. Porém
a clínica com mulheres obsessivas nos faz observar
ção causal àquele filho da privação sexual da mulher obsessiva,
mas que estas fantasias decorrem da perda do lugar de objeto de
que este mesmo sintoma, com algumas variações, aparece mesmo
desejo do homem. Assim então, em lugar de:
quando o elo causal - filho -+ privação sexual - não aparece clara
ou ocultamente. filho -+ privação sexual -+ morte do filho,
As variações deste sintoma encontradas na clínica são as temos:
seguintes: privação sexual -+ morte do filho.
r) Excessiva preocupaçâo com a segurança e o bem estar
Temos ainda que considerar que, embora não se furte como
do filho, eüdenciando-se na ideia obsessiva de que tlgo de
a histérica à posição de objeto sexual do Outro, no caso o homem,
mal" pode lhe acontecer. Estes pensamentos tornam-se insis- a mulher obsessiva mantém, como é próprio ao seu tipo clínico,
tentes e torfurantes.
o desejo como impossível. Daí as relações com o parceiro ten-
Uma sutil variaçáo desta formula é indicada pela ideia: "Se derem com frequência ao tédio e à monotonia, principalmente
eu pensar nisto (no mal que vai acontecer), não acontece, Se eu se o homem em questão for, como é na maioria das vezes na clí-
me esquecer de pensaç acontecerá." nica, um outro obsessivo. Configura-se aí então a parceria estra-

138 139

,
nha de dois mortos-vivos, mantendo uma relação ,perfeita,, da do leito conjugal, ela se torna, então,
qual o desejo está excluído. de todas as criaturas a mais sanguinária!

Uma jovem obsessiva recém-casadâ, gue haüa procurado a


análise por nâo conseguir manter uma gravide z até o seu Com estes belos versos da Medeia de Eurípedes, Lacan introduz
termo
e dar um fiIho ao homem amado, dizia que sua vida sexual seu texto de 1958, "Juventude de Gide ou a letra e o desejo", ori-
era
ótima, "quando acontecia'l pois tanto ela como o marido tinham ginalmente publicado na revista Critique e que faz parte de seus
dificuldade de tomar a iniciativa. Assim a iniciaüva era deixada Escritos (p.z+il. É uma estudo baseado nos liwos de Jean Delay,
ao acaso, "quando a gente se esbarra de noite na cama,l A juventude de Gide e de Jean Sctúumberger, Madeleine e André
Este frag_
mento clínico nos leva a supor que a privação sexual de que se Gide, através dos quais Lacan interroga a relação do desejo à letra,
queixam estas mulheres é em grande parte provocada por sua do amor ao desejo e da verdade à mulher.
modalidade clínica de evitamento do desejo, na medida em que André Gide nasceu em Paris, em 22 de novembro de 1869,
deixam a iniciativa à mercê da demanda do outro, da qual depen_ frlho único de Paul Gide e de sua esPosa Jüette Rondeaux. Com
dem para pôr em jogo, a contrabando, o seu desejo. rápidas pinceladas, tiradas do liwo admirável de Delay, Lacal nos
Porém, o que significa para a mulher obsessiva imàar o filho traça a pré-história do desejo no qual se inscreve o genial escritor.
no altar do Outro da Morte? Não negamos a hipótese da emer- Descende por parte do pai de uma família burguesa, de tradição
gência de um ódio mortífero de um homem obsessivo contra acadêmica. Paul Gide morre quando seu filho tem somente onze
seu
filho. chama-nos a atenção porém a frequência desta ideia obses- anos e Lacan comenta que'ãpenas uma morte Prematura o sePa-

siva em mulhera tendo em üsta que uma das saídas freudianas rou de uma aliança ingrata" (p.z S6), deixando clara a infelicidade
do Édipo feminino é a maternidade, em que a mulher se saüsfaz, conjugal do pai do autor.
ao receber do homem amado Morto o pai, Gide passa a ser o objeto dos cuidados sufocan-
substituto do pai _ o filho, equiva_
-
lente simbólico do falo, do qual se sentira privada pela mãe,lue tes de sua mãe, só tendo "do amor a fala que protege e a que inter-
a
parira mulher, ou seja, castrada. dita" (p. 764), pois a fala do desejo ele não a poderia receber desta
Como entender o sacrifício [mental que seja, não é menos mulher e a morte lhe havia levado de seu pai 'ãquela que huma-
sacrifício] do filho-falo ao altar da Morte, para uma mulher? Em niza o desejd' (p. z6+).Lacan se interroga "Que foi Para esse
quê esta dor de Medeia - a gue sacrifica os fi.lhos amados para menino sua mãe, e aquela voz pela qual o zlmor se identificava
atingir o coração do ser do homem que a despre zaÍa _pode nos aos mandamentos do dever?" $.16o). Juliette Rondeaux descen-
elucidar sobre este tipo chnico especial e frágil de mulher? dia de uma família camponesa que enriqueceu no comércio de
mercadoria colonial. Lacan descreve uma famflia dominada pela
hipocrisia que se entrelaçava com o desejo de enriquecer a qual-
 DOR DE MÁDÊLEINE quer custo, Juliette, religiosa, moralista e reprimida é primeira-
mente descrita como a "mocktha tão pouco receptiva aos Preten-
O mais das vezes a mulher é temerosa,
covarde para a Iuta e fraca para as armas;
dentes".que se consola na espera do casamento que tarda 'tom
se, todaüa, vê lesados os direitos uma paixão por sua preceptora'l paixão de vestal, mas onde 'b

140
t4r

)
ciúme eo despotismo não são de se relegar" (p.76o).Mãe e viúva, comparece, estamos no terreno da pulsão de morte. Não é à-toa
faz do filho e da saúde dele, o objeto de cuidados de sua vida. portanto que Gide designa Madeleine pelo nome de Morella, per-
Âos treze anos de idade, passando ferias em Rouen na casa sonagem de Edgar Allan Poe que morre quando a chamam pelo
de sua tia, Gide atravessa uma experiência que o marcou para nome, pois seu nome não deveria ser Pronunciado (p. 766).
sempre. Encontra um dia sua prima Madeleine, dois anos mais A verdade, o desejo é em si mesmo mortífero, o que explica
velha do que ele, rezando e chorando. Ela lhe conta então que por que "a forma ingrata" da "mãe do amoy''vem se sobrepor à
haüa descoberto que sua mãe traía seu pai e que ela deüa guar- 'tegunda mãe, a do desejo'l No entanto, até aí estamos no terreno
dar segredo sobre isto (p.15il. dapsicologia davida amorosa descritapor Freud, e Lacan diz que
Este momento foi para ele 'b encontro do seu destind, (p. se trata'te um fenômeno banal mas que ganha relevo aqui pela
764). Amou sua prima com o amor que disse ter sido o único de devastação em que se inscreve" (P.166, nota :Z).
sua vida e que ele descreveu em A porta estreita. Lacan sublinha Apaixonado por Madeleine, porém dilacerado por desejos
este momento decisivo em que o menino Gide "entre a morte e o secretos, Gide escreve Cadernos de André Walter e em seguida
erotismo masturbatóriol ou seja, entre os fantasmas in)hntis que Narcíssus. Ern 1893, viaja pela primeira vez PaÍa o Norte da
assombravam de culpa a emergência de sua jovem sexualidade, África, onde encontra em seu corPo, no encontro dos corpos
alimentados pelo rigor repressivo de sua mãe, descobre o amor. dos jovens adolescentes árabes, o calor do desejo de sua tia por
O amor se manifesta no desejo de cuidar e de proteger Madeleine, ele. Durante uma convalescença, começa a escrever os louvo-
contra a dor, contra a vida, mas principalmente contra sua mãe res pagãos dos Frafos da Terra. Retorna no ano seguinte, 1894,
Mathilde, a tia em cujos braços o menino haüa experimentado os ao Norte da África onde encontra Oscar Wilde e Lorde Alíred
'talores de Fedra" da primeira sedutora (p.16+). Douglas, que o animam a assumir seus desejos homossexuais.
Lacan chama a atenção para o fato de que 't na mulher que Tem que retornar, entretanto, às pressas, para Paris onde sua mãe
o sujeito se descobre transmudado como desejante" (765) e que a agoniza. Ela morre em maio de 1895 e Gide abandona a reda-
ção dos Frutos daTena. Em outubro do mesmo ano, casa-se com
cena de sedução descrita por Gide em A porta utreita reverbera
em eco nas cenas de homossexuaiismo que ele narra em Et nunc Madeleine, que antes já o havia recusado (p. ls8).Lacan dá razão
manet in te, nas quais ele próprio ocupa o papel de sedutor. O a Jean Delay por atribuir a Madeleine o desejo do 'tasamento
desejo emerge assim do encontro com a tia e depois com a prima brancdl do casamento casto, o que aliás é também o mais con-
"mas", nos diz Lacan, "essa transforrnação vem apenas como veniente para Gide no impasse em gue estava em relação ao seu
resíduo de uma subtração simbólica" onde 'b desejo deixou ali desejo (p.266-26il. Temos aí os elementos-chaves que transfor-
somente sua incidência negativa" (765). Confrontado com o amor muun o fenômeno banal da duplicidade entre o aÍnor e o desejo,
ideal da mãe, aÍnor sem desejo, responde com o ideal do anjo '!ue na vida de Gide, numa devastação.
não poderia ser roçado por um contato impurd' (765). Segundo De um lado temos Madeleine com sua conveniente opçáo
Lacan, o próprio Gide chama este amor ao qual o desejo é subtra- pela castidade, de cuja motivação inconsciente Lacan nos dá duas
ído de "amor embalsamado'lmarcando que ali onde o desejo não pistas:

142 L43

)
. sua atitude para com a mãe, negando-se mesmo a olhá-la, segundo Lacan, "um horror teologal" em François Mouriac, por
após esta ter abandonado o lar, o que impede qualquer iden- sua falta de graça, sua falta de vida (p. encontro com os
z6).O
tificação a ela, enquanto mulher desejante. corpos adolescentes no Norte da África, embora o remetesse a
Aqui Lacan sublinha que por esta atitude fica claro que .b recuperar aigo do desejo da cena de sedução, na medida em que
desejo salutar pelo qual o menino sem graça (Gide) vira impri- recuperava nele próprio os ardores sensuais da tia, era acomPa-
mir-se nele uma imagem de homern' jamais retorn aria (p.76), úado de culpa, do medo, do pecado, e da clandestinidade.
. Após o drama da separação dos pais, fica fixada ao pai Gide, homem, não era incapaz de consumar o ato sexual com
para além da morte deste, para além do casamento, ou seja, uma mulher, o que é comprovado pelo fato de que, no temPo
como nos dtzLacan "entendendo-o no sentido próprio: do em que esteve separado de Madeleine Ogzl), teve uma filha,
aléri'(p.76). Catherine, cuja mãe, Elizabeth von Bysselberghe, era feminista
e filha de um grande amigo. Lacan se pergunta o gue teria acon-
Ássim, Madeleine, presa ao pai morto (amante castrado,
tecido se Gide tivesse encontrado em Madeleine, que se parecia
incubo ideal) pela dor de pura perda, dispensa do marído seus
fisicamente com sua mãe Mathilde, "uma figuta que a cor do sexo
préstimos f;íiicos de conector do gozo.
houvesse reanimado?" (p.26il. E o próprio Lacan responde que
Necessita, entretanto, do "amor embalsamado,,, o amor ideal,
acredita que "para abraçar essa Ariadne teria sido preciso matar
do amor sem desejo. É isto que mantém esta mulher, Morella,
um Minotauro surgido de entre seus braços" (p. Z6l). Pois se
presa ao falq presa à vida: as cartas de amor, as mais belas cartas
Madeleine fora a Ariadne em cujo encontro, ao treze anos, Gide
de amor dirigidas a ela por Gide, seus bens mais preciosos.
descobrira o fio do amor e do desejo, ela era tambérn aquela que,
Do lado de Gide, casado com o eternamente virginal amor
em sua seca recusa dos prazeres do sexo, reeditava as marcas seve-
de sua üda, a devastação vem da divisão entre o amor e desejo. O
ras da mãe Minotauro, da mãe fáüca. É a completar a falta flílica
desejo, ele o reencontrou nos corpos morenos do Norte da África.
de Madeleine, da mãe ideal, que Gide se dedica. A Madeleine,
Madeleine "fina, culta e bem dotada'l soube muito conveniente_
com o passar dos anos, cada dia mais sombria e desbotada, é a
mente'hão ver aquilo que queria ignorar" (p.lzt).É do lado da imortalidade que Gide dará sob a forma das mais belas cartas de
letra, da carta de amor, que a devastação ürá.
amor, dom único justamente porque delas não havia cópias.
Desde o início Gide escreveuparaMadeleine. Foiparaimpres-
É pelaüa daletra da carta que Gide üsa a imortalidade. Não
sioná-la que publicou seus primeiros liwos (p. rS8). Dedicou-lhe
só como autor célebre, mas como sujeito. O liwo de |ean Delay,
'b mais precioso legado que destinava à posteridade,l levando-o a
expõe notas pessoais de Gide Para suas memórias (Se o grão
escrever: "talvez nunca tenha havido correspondência mais bela"
não morre), trechos inéditos de seu dirírio, um caderno de leitu-
(p. zzi. "Se amar é dar o que não se tem" nos diz Lacan, ..ele lhe
ras "subjetivd', a imensa correspondência com sua mãe e várias
deu a imortalidade" (p. 266).Dar a imortalidade através de carta
outras cartas inéditas (p.Zs1). São documentos cuidadosamente
de amor, desmentir a morte, cultivando-a em üda, eis o ponto
preservados por ele para sua futura biografia. Há, portanto, um
crucial da questão perversa de Gide. Taciturno, mortificado pelo
cuidadoespecial em garantir, pela letra, sua própria imortalidade,
amor severo e sem desejo da mãe, sua foto de menino provocou,
po1ém é no endereçamento ao futuro biógrafo por ele escolhido,

L44 L45
Jean Delay, que "se deve procurar a diferença das notinhas" (p. o fetiche com o qual completava Madeleine, elevando-a à digni-
75à.Iean Delay é um escritor, e Gide o sabia bern, mas era tam- dade dA Mulher, que não existe.
bém um psiquiatra eminente e 'huma palawa, era no psicobió- Nas suas escapadas clandestinas, nos encontros ç'rlFados
grafo que suas notinhas encontrariam sua destinação de sempre" com os rapazes, Gide exibia aPenas a típica divisão masculina
(p. zsà.Segundo Lacan, através do liwo de Delay há um con- entre amor e desejo. Pois 'hão é apenas por virar mais à direita do
fronto empolgante entre a psicologia e a literatura: uma liçáo na que à esquerda que o desejo, no ser humano, cria dificuldades'l
qual "vemos ordenar-se em seu rigor a composição do sujeitoi nos diz Lacan (p. z6Z). Náo é portanto no homossexualismo que
É como sujeito, sujeito do significante, da letra, que Gide quer está sua perversão. É no amor heterossexual não consumado com
permanecer vivo após a morte e daí seu cuidado em endere- Madeleine que a estruflrra perversa de Gide se desvela: suas car-
çâr suas pequenas notas ao psicobiógrafo que o faria reviver no tas são o fetiche que desmente a castração, desmente a morte, ao
texto. Morto-vivo, ostentando desde a infância a máscara frinebre preço de diúdir Madeleine neste gozo absoluto da letra. Morta-
que assustara François Mauriac, Gide sabe que o ser;io sujeito, viva, Morella, a ela não era endereçado o olhar de desejo cujo bri
sua falta a ser, só vive
no significante, no semblante,na persofla lho anima o sopro da vida e investe faiicamente uma mulher. Ela
que cria para si. Lacan nos diz que Gide sabia '!ue não está em era amada, tal como ela própria amava seu pai, no para-além da
outro lugar senão nessa máscara que se oferece a nós o segredo üda. Mas, na letra das cartas o desejo, a libido em que pulsa avida,
do desejo, e com este, o segredo de toda nobreza" (p.l6z).Assim escorria; e ao desferir o golpe que atinge o âmago do ser do homem,
como as mulheres, Gide avança mascarado, e não é de admirar ela abre nele o firro'ho lugar ardente do coração" (p. zz à.
que seja com o gemido "de uma fêmea de primata ferida no ven- "Pobre ]asão'i Lacan escreve "que, tendo partido Para a con-
trd' (p. 772) que ele prateie o crime hediondo da destruição da quista de Tosão dourado da felicidade, não reconhece Medeia!"
imortúdade de seu amor. (p.tzi.
Em r9r8, o relacionamento de Gide com o jovem Marc
Allégret rompe a barreira do 'hão ver aquilo que queria ignorar"
usada por Madeleine e a crise se instala no casal. "O amor [...] ela A DOR DE MEDEIA

o reconhece pelo que lê no rosto deld' (p. 772). Aquela mulher


que havia renunciado ao sexo, é a traição do amor que se torna A lenda de Medeia é bastante nebulosa e contraditória. Hesíodo
intolerável. Lacan, citando Schlumberger, diz que ela alega ape-
(p. 159-16r) canta "Medeia de belos tornozelos, subjugada em
nas 'ter tido que fazer alguma coisa" (p. 772).8 num ato único, amor à áurea Afrodite'l dizendo-a filha do rei Aietes da Cólquida
ato de "uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher" (p. com uma "virgem do Oceano no circular". Medeia seria assim,
neta do Sot (Hélio), pai do rei Aietes e sobrinha de Circe, a feiti-
772), quetma as cartas de amor, únicas, sem cópia, seu bem mais
precioso. Gide, inconsolável, exibe ao mundo, aos prantos, sua ceira que seduziu úisses. Hélio, o Sol, é uma divindade que Per-

devastaçáo. Chora a perda'do desdobramento de si mesmo que tence à. geração dos Titás, sendo portanto anterior aos deuses
era.m suas cartas" (p. ZZz) a que ele chamava de filhos, na verdade olimpicos, e não se confunde com Apolo (Grimal, p. zoz).

L46 L47

;
Medeia é tida como sacerdotisa da deusa Hécate, a miste- Chegado, após inúmeras aventuras, a Cólquida, ]asão é mal
riosa deusa das trevas e dos poderes mágicos da feitiçaria. Em recebido por Aietes. Porém, persuadido Por sua filha Medeia, em
aigumas lendas, Hécate teria desposado o tio, Aietes, e seria, ela quem Afrodite inflamara uma grande paixão por |asão, Aietes
própria, máe de Circe e Medeia (Grimal, p.37i.Como jávimos, concorda em lhe conceder o tosáo de ouro, se |asáo realizasse
o paÍentesco dos deuses é intrincado, mas desta multiplicidade de algumas tarefas impossíveis:
lendas é importante destacar a origem divina de Medeia [os auto- . subjugar dois touros mágicos, forjados por Hefaistos, o
res (Grimal, p. zg4 e Graves, p.254) concordam que ela não mor-
deus dos metais, e que lançavam fogo pelas ventas;
reu, mas foi levada ao Campos Elísios onde desposou Âquiles]
e que esta origem divina remonta à noite dos tempos, ou seja, ' arar os campos de Ares e neles semear alguns dentes do
ao tempo impreciso e mítico dos deuses pré-olímpicos. Segundo dragão que Cadmo havia matado e que haviam sido guarda-
Robert Graves (p. zSo v. 2, nota 3) o carro de Medeia era puxado dos por Atenas. Do chão nasceriam os Spartóis armados, que

por serpentes aladas, o que indicava que ela era ao mesmo tempo certamente destruiriam os Argonautas.
deusa da terra e deusa da lua, já que as serpentes são criáturas do Com a ajuda de Medeia, que the dá um unguento mágico,
Mundo Subterrâneo e as asas pertencem às criaturas do céu. O feito de uma flor nascida do sangue de Prometeu, e çlue o prote-
autor interpreta assim o encontro da feiticeira com as três filhas geria do fogo das ventas dos touros, Jasão os subjuga, ara a terra,
do rei Pélias, como os três nomes da Deusa Branca: a menina, e age como Cadmo, inspirando a discórdia entre os Spartói que
a ninfa e a mulher velha (primavera, verão, inverno), perséfone, sematam, toma do tosão de ouro e foge com Medeia - Mimoso-
Deméter e Hécate (p. zSo). É somente no período clássico que Rúz (p. 6r4), no Dicionário dos mitos líterários, assim se refere a
HéIio, o sol, se torna o dono da carruagem alada e a empresta a Medeia:
sua neta, quando ela corre perigo de vida (ver o fina1 da peça de
 feiticeira, detentora do Tosâo de Ouro, objeto simbólico da riqueza
Eurípedes).
agrária, da fecundidade e da autoridade real está ligada ao draSão, ema-
As diversas lendas seguem, com poucas variaçóes, os princi- nação dos poderes ctonianos (infernais) cujos segredos Medeia guarda.
pais temas que vão ser desenvolüdos por Eurípedes em sua tragé- Face a Jasão, na busca da hegemonia real e da instauração de uma ordem,
dia, que é a referência citada por Lacan no texto sobre Gide. fasão Medeia é a imagem do caos e das forças maléficas. Quando a feiticeira se
mostra aliada de }asão, suas boas ações se manifestam através da Pedra
era filho de Éson, rei de lolco, despojado de seu trono por seu
da Discórdia que atira no meio dos gigantes armados, nascidos dos den-
meio-irmão, Pélias. O menino ]asão é criado longe de sua terra tes de um dragão.
e, adulto, retorna para reclamar o trono. Pélias o persuade a ir ern
busca do tosão de ouro, a pelagem mágica de um carneiro voador, Embora os autores por vezes discordem sobre o conteúdo do
cuja lã era do metal precioso, e que estava na posse de Âietes, rei juramento feito por Jasáo a Medeia em troca de sua ajuda, uma
da Cólquida. Os autores divergem nos detalhes da razáo pela qual coisa é clara: foi um juramento sagrado aos deuses, e é por isto
Jasão concordou com â aventura, mas'são unânimes em narrar a que todos os crimes são perdoados a Medeia, mas |asão não será
construção do grande navio por Argo, que lhe deu o nome e bati- perdoado jamais e será, na velhice, execrado por todos (Graves,
zou de Ârgonautas os jovens aventureiros, companheiro de |asão. v. z,p.254),

148 L49
Hesíodo assim confirma que foi pelo desígnio dos deuses vem-no e - surpresa - nada acontece. O velho usurpador está
que ]asão, filho de Ésen, e portanto, o Esonida, levou Medeia da morto, assassinado por suas filhas!
casa de seu pai: Jasão, temendo a üngança de Acasto, filho e herdeiro de
Pélias, foge com Medeia para Corinto, e aqui, novamente, as ver-
Virgem do rei Estes [Aistro], sustentado porZeus,
o Esonido por desígnios dos deuses perenes sões divergem. Segundo Robert Graves (P. zst, v. z) Medeia era
levou-a de Eetas após cumprir gemidosas provas [..,]. (p. 16S) a única herdeira viva de Aietes, o verdadeiro rei de Corinto. O
filho do usurpador, Corintos, morre muito apropriadamente, e
A viagem de volta a Iolco é cheia de aventuras, onde, mais Medeia reclama o trono para ]asão, no que é prontamente aten-
runa vez, os autores divergem nas sutilezas. No conjunto, entre- dida pelo povo de Corinto que aceita Jasão como rei. Reinam em
tanto, concordam todos no assassinato de Apsirtos, irmão de paz durante dez anos, até que |asão finalmente começa a descon-
Medeia. Descrito ora como uma criança, sequestrada por Medeia,
fiar de que Medeia pudesse ter algo a ver com a morte de Corintos.
ora como um jovem guerreiro que perseguira os Argonatltas,
Esta desconfiança tardia coincide com o desejo de se casar com a
Apsirtos é morto e picado em pedaços, eü€r por Medeía, quer
filha de Creonte (o nosso velho amigo Creonte, irmáo de |ocasta),
por Jasão, por ela instigado. Os pedaços do corpo de Âspsirtos
rei de Tebas, pai de Glauce ou Creusa. Estipuiada a traição do
são lançados ao mar para retardar a viagem de Áeites, que deve
homem, o palco está armado para todas as vinganças.
pescar, urn a urn, os restos mortais do filho, para lhe dar uma
Segundo Robert Graves (p.rsr) a versão de que a própria
sepultura humana.
Medeia rnata seus filhos para punir Jasão foi feita sob encomenda
É o que fez a Medeia, da tragédia de Eurípedes, soluçar de
por Eurípedes, comprado pelos Corintos (os verdadeiros assas-
remorsos, ao se confrontar com a traição de seu marido:
sinos) por qúnze talentos. Na verdade, a maior parte das len-
Traí meu pai, eu, sim, e traí a famÍlia das diz que Medeia deu a Jasão guatorze fi1hos (sete homens e
para levar-te a lolco (foi maior o arnor sete rnulheres) e alguns destes frlhos foram reis (como, Por exem-
que a sensatez); fiz Pélias morrer também
plo, Thessiflos que reinou em Iolcos e deu seu nome à Thessalia).
da morte mais cruel, imposta pelas filhas,
liwei de todos os receios, Se a peça de Eurípedes foi de fato escrita Por encomenda, não é
e te Jasão (p. aZ).
urn caso raro na literatura, pois, por exemplo, muitas peças de
Sim, chegados a Iolco após o crime abominável e já uni- Shakespeare foram escritas para agradar os soberanosr como no
dos como marido e mulher, é por um estratagema que derrotam caso de Macbeth, composta em 16o6, três anos após a sucessão
Pélias, o usurpador. Chegada a Iolcos (só ou acompanhada pelos de Elisabeth I por ]aime vt da Escócia, descendente de Banquo,
Argonautas) Medeia fascina as filhas do rei Pélias com suas artes o bom rei tragicamente morto por Macbeth, e que numa de suas
mágicas. Pica a faca um velho carneiro (o tema do tosão de ouro falas prevê a glória de sua linhagem. Isto mostra que o valor de
retorna no mito) e após fervê-lo em poção mágica, o tira do cal- uma obra de arte está para além das melhores ou das piores inten-
deirão de bruxa um lindo cordeirinho üvo, novo em folha. As ções de seu autor. O valor está no que da verdade a obra revela
filhas de Pélias, animadas, picam o corpo de seu velho pai, fer- sobre o sujeito do inconsciente.

150 151

)
Eurípedes encenou sua Medeia pela primeir avez em 431 a.c. Ao encontrá-la para bani-Ia, no diáIogo forte que se segue,
em Atenas, e tirou um modesto terceiro lugar no concurso trágico Creonte exclama: "Só aos meus filhos eu estimo mais que à
em que se apresentou. Na peça, a ação se passa em vinte e quatro pátria!" (p. rr). O próprio Jasáo invoca o interesse dos filhos
horas: é o tempo que Medeia pede a Creonte paÍa se preparâr para como a razão principal de sua traição. O coro, ao cantaÍ as dores
o exíIio com seus filhos (aqui reduzidos a dois). Creonte na peça é dos pais, comparando-as às vantagens dos que náo têm fi1hos diz
o rei de Corinto, onde Medeia e ]asão haúam se refugiado e cuja que a morte de um filho é para um sujeito" esse castigo mais cruel
filha Jasão haüa desposado, abandonando Medeia. A peça se ini_ de todos" (p. 6:).Numa cena em que Medeia PrePara sua fuga,
cia com Medeia tomada pela dor, pelo desespero e pelo ódio. É na encontra Egeu, o rei de Ática, que üera consultil o oráculo de
primeira cena em que aparece, que ela pronulcia os terríveis ver- Delfos por ser estéril. Medeia o faz jurar que a acolheria em seu
sos que Lacan usa como epígrafe do seu texto sobre Gide. A ação reino dizendo:
se precipita com um encontro entre Jasáo e Medeia, cena de ,rqg
Não imaginas quão afortunado foste
força assustadora, em que a mulher traída evoca o juramento:
em vir ao meu encontro aqui; graças a mim
não ficarás sem filhos, logo senás pai;
Maior dos cínicos! (É a pior injúria que miúa língua
tem para estigmatizar a tua covardia) [...]. (p. :6) conheço filtros com essavirtude mâgica(p. +l).

e acrescenta: É depois deste encontro, em que assegura o seu futuro, que


Medeia revela sua terrível resolução:
[...] dissipou-se
a fé nos juramentos teus e nâo sei mú devo matar minhas crianças e ninguém
se crês que os duses de outro tempo já não reinarn pode liwá-las desse Êm [...] (p. st).
[...] (p. 37).

]asão cinicamente argumenta que ao se casar com a filha de No dialogo com o Corifeu revela sua verdadeira intenção:
Creonte, pensava apenas no bem-estar de sua famflia, que depen_
Matando-os, frro mais o coração do pai.
dia da boa vontade da casa real de Corinto, por serem meros refu-
giados. Casando-se com a princesa, tornaria seus filhos irmãos Ao que Corifeu retruca:
dos príncipes reais que üessem a nascer. Este cinismo reforça o
desejo de vingança de Medeia. E tornas-te a mulher mais infeliz de todas.

O autor vai armando sutilmente a teia; nesta tragédia a morte


E Medeia conclui:
alunciada é a dos filhos de Medeia. ]á na primeira cena, quando
se ouve apenas sua voz dentro da casa, diz: Terá de ser assim. Deste momento em diante
quaisquer palawas passaráo a ser supérfluas (p. 5z).
Pobre de mim! Que dor atroz! Sofro e soluço
demaisl Filhos malditos de mãe odiosa
por que não pereceis comvosso pai? [...] (p. z+).
O ato, o terrível ato de Medeia, advém aí do lugar onde
todas as palawas passam a ser supérfluas. Tanto Medeia como

t52 L53
Madeleine sabem o que estão fazendo e por que o estáo fazendo, As relações do ato com a verdade e o saber são, entretanto,
mas no ato terrível que perpetram, estão abolidas enquanto sujei- bastante complexas. A verdade, como .A Mulher, nos diz Lacan
tos. Medeia resume este paradoxo exclamando: no Seminário xvII, é não-toda. Deste ponto de vista o sintagma
'verdadeira mulher" seria redundante. No entanto, é no particu-
Esquece por momentos de que são teus filhos,
lar da não-Ío da que a verdade e a mulher estão presas ao signifi-
e depois chora, pois lhes queres tanto bem
mas vai matá-los! Ah! Como sou infeliz (p. 67). cante. O que delas escapa na não é inapreensível, mas no que elas
tocam o todo flíiico é possível se falar, tanto da verdade quanto
Esquece por momentos de que tens fiIhos, que tens as cartas das mulheres. E o ato, ao estabelecer o tIM, a fronteira entre o real
e passa ao ato insano do lugar da despossuída, da pura falta, da do nao inapreensível com o todo, apreendido no significante, nos
que não tem. Esquece, não pensa! dâtalvez a chave para uma reflexão sobre a verdade e a mulher.
No ato sintomático e no acting ouf há uma verdade em ques-
Y
tão: uma verdade do sujeito, desconhecida Para ele próprio e
ACTTNG OUT, PASSAGEM ÂO ATO E ÂTO SINTOMÁTICO
revelada ao Outro, ao qual o ato é endereçado. É o que Freud nos

"O ato diz algdi relembra Lacan, "foi daí que partimos" (p. Sl). revela no caso da jovem homossexual que, desfi.lando com sua
dama de péssima reputação, sob o olhar de censura do pai, ihe
É por isto que as palawas de Goethe - No princípio era o ato -
demonstra, dá a ver no ato, como ele, o pai, deveria amá-la e cor-
não contradizem as de São |oão - No princípio era o Verbo -,
tejáJa. É, como já disse, uma verdade desconhecida para o pró-
mas uma fórmula completa a outra. "Um ato é ligado à determi-
prio sujeito. Na "nova alienaçãdl proposta por Lacan a partir do
nação do começo, e muito especialmente, ali onde há a necess!
Seminário A lógica dafantasia o acting out, como o ato sintomá-
dade de fazer um, precisamente porque não existe" (p. 7B). Ou
tico, está do lado do "eu não sou] em contraposição ao "eu não
seja, o ato é ligado ao urn, o um do significante, demarcando a
pensol Chamo aqú de ato sintomático o ato que está do lado do
fronteira entre o real e o simbólico. Assim, todo ato verdadeiro é
sintoma, o ato que é formação do inconsciente, como Por exem-
um ato inaugural e portanto transgressor. É somente neste sen-
plo, o ato obsessivo, o ritual. No Seminrário da Angústia Lacan
tido que se pode entender que o ato faz um, inaugura uma nova
acentua a proximidade do acting out e do sintoma na medida em
série contável, contabilizável, onde nada existia. É também neste
que ambos obedecem às coordenadas simbólicas, mas o acting
sentido que podemos compreender que o ato modifica o sujeito:
out náo é sintoma, é demonstração.
tudo muda, nada será como antes, inaugura-se uma nova conta-
gem, instala-se o um a partir do zero. É por isto que Eurípedes,
]á a passagem ao ato está do lado do "eu não pensdl não
porta uma mensagem dirigida ao Outro, precisamente Porque
o poeta, faz aparecer Medeia, transmutada em deusa, num carro
abole o Outro. O ato suicida é o exemplo mais preciso da pas-
flamejante, na parte superior do palco, fora do alcance do ódio de
sagem ao ato: cair fora do Outro, executar no real a operação de
Jasão, no final da tragédia. Do mesmo modo, a apagada e lúgubre
separação, em que o sujeito, reduzido ao seu ser de dejeto, cai do
Madeleine é aIçada por Lacan, após seu ato, à dignidade da "ver-
Outro. Isto não impede que a passagem ao ato passa ser lida a
dadeira mulher".
posteriori como Freud o faz com a tentativa de suicídio da jovem

t54 L55

)
homossexual, lançando-se nos trilhos do trem. É a partir do sig- abismo da pulsão de morte, do qual os semblantes não as podem
nificante niederkommen (cur, parir) que Freud decifra a identi- proteger.
ficação da jovem ao filho que o pai dera à mãe e que ela própria Assim sendo, ao qualificar o ato de Madeleine de ato de uma
desejava receber do pai. verdadeira mulher, fazendo-o eqúparar-se ao horror do ato de
Lacan nos dá o exemplo do ato de Iúüo César ao atraves- Medeia, Lacan aponta Para a verdade que a mulher obsessiva,
sar o rio Rubicáo (p. 8o). Esta travessia era proibida na medida melhor do que a histérica, denuncia: o filho não é o falo. Disto
em que demarcava justamente um limite, uma fronteira: a fron- sabia a paciente de Bouvet, ao entregar o fiiho-falo ao analista,
teira da República Romana em que nenhum general podia ousar numa devoluçáo derrisória que dava o justo valor às interpreta-
entrar com seus exércitos. Segundo Lacan, ultrapassar a fronteira ções desastradas.
demarcada pelo Rubicâo era "entrar na terra-mãe [...] aquela que Liwe de seus atos sintomáticos, porém não de suas obses-
abordar era violar" (p. 8o-8t), fazendo alusão a um soúo incq- sões, resume na ironia de um acting out o que ela, como mulher,
tuoso, narrado por Plutarco, que César teria tido na véspera do sabia. O fiIho-faio tinha tanto valor quanto o falo que, simboli-
seu ato. camente, o analista pensava doar-Ihe no equívoco de sua com-
Este exemplo mostra bem o aspecto inaugural e transgressor preensão do caso.
do atq que faz tlm. Ngo foi uitrapassado, nos diz Lacan. César já O filho-falo era o filho temido, objeto de uma relação ambi-
não era o mesmo, após o Rubicáo. É interessante lembrar que o valente de amor e ódio. Amor e orgulho Por sua masculinidade,
fato de que no ato o sujeito está abolido náo impüca que ele não e ódio por não poder controlá-lo. Deste modo ele presentificava
tenha pensado em "ter gue fazer alguma coisa,', como Madeleine, o alvo do Tu és (Tuer) mortífero do desejo enclausurado de sua
ou refletido no crime como Medeia, ou sonhado com o que estava mãe, que, por sua vez, com seu ato de entregá-lo ao analista, era
prestes afazer, como César. Porém no próprio ato, que ultrapassa ao mesmo tempo Medeia e mãe protetora.
o sujeito e o modifica, as coordenadas do 'tu penso', estão aboli_
das e o que está em jogo éo gozo,o puro gozo dapulsão de morte, nrreRÊNcIas rIaLIocRÁrtces
o gozo proibido, o gozo incestuoso, porque não passa pelo signi_
ficante, pelo Náo do pai. O ato sintomático das mulheres obses- BouvET, Maurice. "Incidences úerapeutiques de Ia prise de conscience
de l'envie du pénis dans la néwose obsessionnelee féminine', Ret'ue
sivas (os rituais), bem como os pensamentos mortíferos citados
Françaíse de Psychanalyse, t. xIV n. r, jan.-mar. , r95o'
no início do capítulo tem também uma outra função. Digo tam-
r,uúpro Bs. Me de i a. Rio de ]aneiro : I or ge Zahar Editor, r 99 3.
bém pois já vimos gue eles têm o valor de proteger estas mulhe-
FREUD, s."Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade femi-
res das tentações da carne, decorrentes de sua hiperestesia sexual.
nina'i in: Obras completas, vol' xvltl. Buenos Aires: Amorrtu,
Aqui, ganham a tarefa de proteger os filhos do ato da..verdadeira L996.
mu1her".
cRAvEs, Robert. Les mythes grec§, v. rI. Paris: Libraire Fearyard, 1967.
Despojadas do investimento fálico que lhes outorga o desejo
cruueL'Pierre. Dictionnaire de la mythologie grecque et romaíne, pul,
que despertam no homem, estas mulheres são lançadas no L976.

156 L57

)
ríEsÍoDo. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 1995.
LÂcÂN, I. A Juventude de Gide.In: Escitos. Rio de ]aneiro: |orge Zúar
Editor, 1998.
O Semináio, lhtro t5: o ato analítico. Inédito.
O Seminário, livro q: o ayesso da psicanálise. Rio de |aneiro:
Zahar Editor, r99z
I or ge Um pouco de poesia e beleza
O Semínário, livro rc: a angústia.Inédito.
sHÂKEseEARE, William. Macbeth. London: Penguia, 1994.
srARKrE, E. "Gide, André (verbete)", Encyclopaedía Bitannica, v. g,
p. tS7-t6o, r985. METÁFORÀ E METONÍMIA
suÊToNro. A vída dos doze césares. Rio de ]aneiro: Ediouro, 1992.
O retorno a Freud, promovido a partir de 1953, Por Jacques Lacan,
se inscreve dentro do projeto cientifi.cista de Freud. Homem de
ciência de seu tempo, o mestre de Viena nunca abandonou o
desejo de que suas descobertas fossem reconhecidas no âmbito
do corpo científico. Lacan abraça o mesrno projeto, de início,
buscando alinhar a psicanríüse ao lado das ciências conjecturais,
assim chamadas em oposição às ciências ditas exatas' Recorre à
antropologia estrutural (vide capítulo z, p. 36 a 4z) e à linguística
para retornar ao texto freudiano, munido dos instrumentos cien-
tíficos de sua época.
É somente a partir de ry66, com o texto 'A ciência e a ver-
dadd' (Escrifos, p. 869), aula inaugural do seminario O objeto da
psicanálise, que Lacan abandona este Projeto reconhecendo que,
embora mantenha com a ciência áreas de conexão, a Psicanálise
se constitui numa área de saber autônoma, que com a ciência náo
se confunde.
Porém, antes, em 1957, no escrito 'A instância da letra ou a
razão desde Freud I Lacan aproxima as leis do inconsciente, des-
cobertas por Freud na Interpretação dos sorthos, condensaçáo e
deslocamento das leis da linguagem, metáfora e metonímia'
Âpresenta então a fórmula da metáfora:

158 159

)
r(S)s=s(+)s por causa da sífilis e supunha; fantasisticamente, que ele mante-
A substituição de um significante - S - por outro signifi_ ria com a Sra. K., sua amante, relações de cunho oral, daí a tosse.
cante - S'- produz um significante tal que no significante há um D ry{te111g:eç{sr§ Pe$ç"lg--
aumento de significação - S (+) s -. Este aumento de significação mente bem estabelecido, o que produz, paradoxalmente, como
pode inclusive produzir efeitos de poesia. por'exemplo, se cha- .f.itq ,-";;ia. áberturà püãõiniôn1êiente na hisieria.
---trla-neuro e obs iva o h á e sta ab ertur a'-O-_
marmos uma jovem hipotética -lvlaria - comparando_a, por sua s es s n ã - ob.scs§i-v-o

beleza, com uma flor, ao nos dirigirmos a ela por este epÍteto resist ..*ç1ça(t
- pãaãlhã_@ p-àt"r"ãq"ç Pfol* o recal-
Oi, flor - damos margem a que as pessoas que nos escutem pos_
sam pensar que se assim a chamamos é porque além de bela, ela é @çáo metonímica dos significantes, o
cheirosa, viçosa, rosada, etc. Há, evidentemente, um aumento de que não garante qo. o@ãG Pt"rd-
ál-dãããEnom"";ló*i* a" obt"stiru co* aparanoia e a
significação, produzindo um efeito poético.
melancolia,
""*"*
que levou a psiquiatria clássica a enquadrá-la como
N4 metonímia temos a fórmuja:
urna psicose (vide capítulo I).
f (s... s')Tãs (.) s
o- (S...S,) -produz
um significante no qual há uma perda de significação _ S (_) s -. nwureçÃo E rsoLÂMENTo
O exemplo priviiegiado desta perda de significação, que produz
o efeito de dialeto na fala do obsessivo, está no caso de Homem No capitulo vt,Inibição, sintoma e angústia, Freud (1926) nos diz
dos Ratos. Em suas equivalências simbólicas o sujeito desliza do que, deúdo a esta fragüdade do recalque na netuose obsessiva,
o sujeito recorre a mecanismos auxiliara do recalquet arul1ç"atp-e
significante RaÍ (rato) para Ratten (díüda), e para Spil rat (rato - g
dejogo, o pai devedor) para asfezes que estâo no esgoto com os lsolamento.

ratos finalmente p ara a criança, que morde como um rato, como


e
rm_4 P arli Çtüsryrqs.-4gg. gbEg_
sivo-!, @ q eitoJaz-edesfaz-um-ato, - anul and o sua- si gci.
ele próprio haüa mordido uma empregada, sendo repreendido -e-m -s-uj

fi cação. Assgmelh;gpç.-49 d-esmentido- da- p ervelsão, mas com ele


O desmentido incide-s-obre a-castração ç*a-di[e-..
escuta o ry9§ i-q@qg.
rençasexual,epjll!{*rS-di.Zq-d.t-ÍêSc[e*,J[g-ge-ur-qse-úses-
rys§_çgllp o, L4!e*.s§_t3!§&Imgqgg*:i3l5g9r. *3I'ró& silq-ã"ilül-açãoincid.e-rsp-ssrâIrnc$q§eb.r.sas$qç§-epp_{!igq§-
sujgrlojsls e 4ralg!o. ' _ _-!--.,

Na histeria temos uma dupla operação metafórica _ a metá_ Uf..."§*Enquanto aguarda a üsita de sua amada, 9- Homem
dos Ratos passeia ansioso pela estrada por onde a cârruagem
fora paterna (recalque) e a metáfora do sintoma (condensação
dela viria. Encontra uma pedra e a retira do caminho, temendo
no corpo de uma fala censurada). No caso Dora (Freud, 1905),
que a carruagem, ao esbarrar na pedra, Provoque um desastre.
a tosse que surgia toda vez que o senhor K. se ausentava era a
metiifora do desejo de Dora pela sra. K. a partir da identificação
com seu pai. Dora sabia que este ficara sexualmente impotente

r6o

)
$yq O ir-e-vir da incremento dg angústia que pode assumir um úÉs particulsl-
pedra üsaria anular a fantasia de desastre iminente que cercava mente trágic o nanetrose gbsetsivaEm InibiÇão, sintoma e angús-
seu investimento libidinal na moça. ç-a-ç n'rrqÂp o s i çêqjqêg;
g$4e" uÉpqiÉg ft*Alae_fr"ufe à ç4s!r_1-ç,1-9.,.-
lg1?lgp4g_falr- A paciente já mencionada, que se intitulava um Para o menino, a ameaça de castração leva ao sePultamento
trator e pensava obsessivamente na morte do filho único, tiúa do Complexo de Édipo. De início, Freud associa a ameaça de cas-
por hábito iniciar sua fala na associação liwe com um sonoro tração à vociferaçáo do Outro, em seguida, à verificação da dife-
NÃo. Como, em geral, eu apenas a cumprimentava ao entrar no
rença sexual (as meninas náo têm pênis). É somente em Lg27,no
consultório, o efeito daanulação sonoraeraumpouco bizarro.
, 3PIel91!3.9-1o!ç,e-it-o-@4r-
4 4nulação comparece-ernbora-não_exclusivamente. coú cisismodo-í-rgao,que4?-gqlggqg331191ga_9ç..çL.Jt3ç&'v:g9le,
a91$agqidere,!.o-4o-otsessiyo.Jágitqlamento-ss-dásgtggnte
i@{$.-qrge{!.ar-ierrsutg!esç-iá-s-4e-r:4"a:9-bj.!r1o
40. pblp_§!tr!&o. O significante proibido pode ter acesso
óigáo peniano parece ter vida própria, mexe-se sozinho ao sabor
à consciência, contanto que seja esvaziado de significação. Em
do desejo. É um brinquedo maravilhoso que produz prazer.
outras palawas, a conexão entre este significante e os demais é
No menino, a ameaça de casiração está na ProPorção dire!-1
cortada, isolando-o numa falta de sentido que torna sua emer-
gência na consciência desprovida de ameaça. Na clínica, escuto
do narcisismo do órgão. ,

há o que Freud chama de inveja do Pênis,


um paciente obsessivo adulto, comerciante, que tralalha há anos
r-e-ve]ês§g e Cgqgj e i3-Edher..Âssim sendo,
no negócio fundado por seu pai, agora idoso, impücante e cheio
de manias. 'Meu pai anda táo chato que às vezes tenho vontade Freud nos adverte oue embora as mulheres esteiam referidas
de matá-Io." A analista aponta para a gravidade do fato da,fala a-o complexo de castraçáo, elê§. nêqlêminruli"-4gSg§Lr3-ÇLo=-

que e4pressa na consciência o parricídio proibido pelo recalque. Permanecem na forma mais primitiva da angústia, no desam-
"Ora", responde ele "eu disse matar como todo mundo diz. Isto paro em que vigora --7- tro.i no-
não quer dizer nada. É brincadeira!" a4q*o1ggg_uma mulher, seja ela histérica qu obsessiva' busc-a-sua
Isolado da cadeia significante, "matar o pai', pode ser dito, subsistência. Sem o amor do Outro não qe lem9-p--erderum-objeto
com a garantia de que isto não significa nada. Tanto no isola- -------
- ----é':'-
valioso: teme-se peãer-a si própria, tragada pelo não-ser.
mento como na anulação, a faiha do recalque aparece claramente,
porém este - o recalque - é mantido pela força de seus mecanis-
ÁMULHEREAMORTE
mos auxiliares.

Em seu artigo de tgt3, O tema dos três escríníos, Freud se refere às


eNcúsrle DE cÁsrRÀçÃo s orsarupeno antigas religiões europeias em que a Deusa era venerada. Trata-se
da mesma Deusa Branca, tematizada por Robert Graves, citado
Nas mulheres obsessivas o uso dos mecanismos auxiliares do por Lacan na introdução d'O despertar da primavera de'\'Vedekind
recalque se dá como nos homens. Porém há nas mulheres um (capítulo 3, p. 5o).

L63

)
Segundo Freud, a Deusa se manifestava em três aspectos, Certa vez, uma paciente histérica, no curso de suas associa-
ções sobre o sintoma que a fu41qilg ry cg1d1rytP-ar-a-co:m
versões das três estaçóes do ano, então conhecidas: primavera, seu§
verão, inverno. Na primavera a Deusa era a jovem adolescente, a famiüares e diz: "Isto é táo cansativc-Às-ye-zeslenho-sau-
lqigog,
ürgem promissora de todas as virtudes. No veráo, era a mulher dades de mim mesma!" Ela não estava deliberadamente fazendo
núbil, fértil, produtiva e doadora. No inverno, a velha, a Morte, po esi r" gg *m, pfq,I.alênci-dã:rneJáfo@ -
ultima encarnação da Deusa. Freud nos diz: "O homem velho em a@ frgefeitos poéticos em sua .tal a e. P -e-trnlte-à-d-e§gauada-
vão procura pelo amor da mulher, como o recebeu primeiro da histéri 94 re cobrir sua alop-i a s! gryr§çig1!9-c!Sl-p-o esia.
mãe; somente a terceira das mulheres do destino, a muda deusa Prse 34g!s.e9b9§'v1g9g!9 +Jlgs.rtLÂ clínica
da morte, o acolherá em seus braços" fFreud (rgrE), p3:7l. "gsg
que, diferentemente dos homens obsessivos,-o dia-
nos mostra
{q 4guose obsessiva, onde a questão do sexo é substituída leF-rrprco-dest&ne-Ur-q-s-ç-o165g-malifesla-nas-rnulhe$q2er]una
.
ElI{§I3t" !:l1g::!i9da-morte -esta-vertents lrágÇê !L fala curta, entrecortada e Por vezes monossilábica como celqfle;-
feminino é particularmente aparente. A mulher obsessiva joga q c{fp{{atoPia das
.o*-a-*õ mr:üãies leva muito mais do que os
a obsessiva a necessitar faiar
niço, pogém a9: mesmo
lempo a encarna, poço 9.. anggstix e-gg_ homens, embora este tipo de mulher não tenha o gozo da intriga
culpa, abismo d.a pulsão de morte. amorosa ou do falatório, como na histeria. A-mulher.,obses.siva
&stiZeg1-fü-qlL contando lo4gas .h-rs!ó-rix§-sobre
{n.:tgl11ga,
BELEZA E POESI c9§?-.Lq+gn aüSrgggrlç:gí çsçisJÍup§§irgL§slfu !qê "EI:
- ticular de se localizar 4ê Ulggre!g-419--h.s-P-ermiÍç-.re.cobtir:-'se-
No Seminário livro wL A ética da psicanálíse,Lacannos fala deste
9qPo-ççia.-
espaço entre-duas-mortes, que é o próprio espaço da tragédia: Resta-lhe recobrir-se então com os instrumentos concretos,
entre a morte anunciada e a morte consumada. É o espaço e- . t ao**áãfolãr, di mnCcàiàãã-femiaináq qô úér1í ve§ti{õs, j@.{s
que a beleza vem velar o horror da emergência do real intolerá- e-afitrechos, qqç t4rllo a faqem sofrer, mas quq lbe§ dão a ilusão,
vel. É neste espaço que üve o sujeito obsessivo, seja ele homem
.,,
de carnuflar a morte com a beleza.
,'..... -\
ou mulheç o que não o leva, forçosamente, a se recobrir com o A paciente de Bouvet diz que sabe o que o homem deseja
manto de beleza. numa mulher: belos sapatos e rouPas, que mascaram a falta e a
Porém para certas mulheres obsessivas, esta proximidade tornam bela e irresistível.
continuada com a morte, aliada à exacerbação narcísica de seu Ao contrário, uma Pequena histérica de dezanos, brincando
tipo clínico, cria uma curiosa máscara gue mistura o patético à com seus bonecos, Barbies e Kens, durante uma sessão de análise,
beleza (vide o capítulo anterior). produz um baile semelhante ao de Cinderela. Uma das possíveis
Por vezes, Lacan se refere às mulher es como da-gglaclgrrefe- noivas do príncipe é desmascarada: seu vestido não é de ouro, é
pintado de dourado. A moça chora e confessa que é pobre, não
como tem dinheiro para comprar um belo vestido. Pergunta-me: "Quem
tem sua específica de ser d aedes da. você acha que o príncipe escolheu?" ,{ anüsta confessa sua igno-

L64 L65

)
rância e e\a díz: 'A do vestido falso. Os homens gostam de mulher
pobre'l e acrescenta, reflexiva "e além do mais, chorando..ll
gê!rcr-ffihg
A pequena epistemóloga sabe, sem saber, qus
@Igsqú-{Lqqe.za,-co-Í_nocomenta-Só_cr_ates
no Banquete de Platão_, cita4{*o co_mo foqte urya mulher, D_i,otímia
(Lacan, O seminário,livro vnt).
Um'Quâ' de melancolia
É isto que torna patética a buqAda-b-eleza pela mulher obqp,s-
tjYq.'I ).9 recurso ima-
gr4q io dos artifícios da mascarada falham, e a beleza só está no
oQg-{e :moç_e/_ou-desejo com-que um Outro pode revestir uma
mulher.
_____,-_\
ÁMULHEREoAMoR

\- Só seu amor me cura \


)eu qlggc-ulgggêlqu. r.,. J
REFER-ENCrÂs s tsr,rocnÁrrcas
Cantarola uma pequena histérica de cinco anos,' ao entrar no
LACAN, l. GSSZ) i{. instância da letra e o inconsciente desde Freud,'. In:
consultório da analista, revelando o que sabe, sem saber que sabe,
Escitos. Rio de |aneiro: forge Zúar Ed., r99g.
sobre o amor e sobre a realidade sexual do inconsciente.
(1966) "A ciência e a verdade'l In: Escritos. fuo de
|aneiro: |orge "Falar de amor", diz Lacan no Seminário Mais Ainda (fu972-
Zúar Ed., r998.
(r913) "EI motivo
ry72) ry81 p. rrz),'tom efeito não se faz outra coisa no dis-
FREUD, s. de laelección del cofre." IntObras Completas,
Buenos Aires: Amorrortu, t 994, v. xu,
curso analítico. E como náo sentir que, em relaçáo a tudo que se
pode articular depois da descoberta do discurso cientÍfico, tra-
ta-se, pura e simplesmente, de perda de tempo? O que o discurso
analítico nos traz - e é esta talvez, no fim de tudo, arazão de sua
emergência num certo ponto do discurso científico - é que faltr
dS r&o1-é, errl simesng*um- go-zo-,
O discurso analítico emerge num certo ponto do discurso
científico justamente quando Freud pôde ler, para além da fala de
amor da histérica, a realidade paradoxal do inconsciente, que se
sustenta na fantasia.
"O discurso da histérica" dizLacan, "lhe ensinou esta outra
substância que se esteia inteiramente no fato de haver significante.

Ç35e rlínige de Á::a Cristina Valeote, apresentado em 4fu199 na Ofcina Clínica


da Rede de Pesqúsas sobre Psicanálise com crianças.

r66 167

I
Ao recolher o efeito desse significante, no discurso da histérica, resistência - resistência à verdade, que paradoxalmente ela revela
ele [Freud] soube fazê-lo girar desse quarto de volta que o tor- ao fazer existir o Ínconsciente na associação liwe.
nou o discurso analíticd' (ibid., p. 5il. O discurso analitico surge "Diga tudd] enuncia o mandato impossível da regra firnda-
então do giro de quarto de volta produzido por Freud no discurso mental, o sujeito diz o que pode, já que é impossível dizer tudo.
e
dahistérica.NA_§g!únarlg j%E§-s_q_da.p-s-iça4rílisd'[r969-197o] E o que o sujeito pode dizer é, segundo Lacan, a besteira,-p-ojs.'b,.,
queE di go d o amor é cert aur e.r.ttç-qqg ão se p-o!çJal ar delell (ibid.,,
B:ggÉ_dg$9g_rtr""aque_o_{iq-c-qgsodahistéricatiúa.o_valor.de r-r

a!g!!g justlggl]!9_pglaq.qtrç.s_ereferea-qqqqr,ao{gman_(arjg p. 3=!. Psrém se3ag_sggq.de falar de amo.r,toda fala


(-em si mes.[t1
.

qggo-_! Ig.i,o-Te- - um mestre - que pudesse produzirum sabgr demandadeqgr5!ggrgy$e_.qç-U!idp,defn4rr$-a-de--queo-,Outtq


sofuç q_eu gozo (Lacan fu96g-t97o);-t§96,p. 87).. . .*pry."!grq$-el4a:-ç!§g!9pllqlQs-o-quç-§e-qq§-{-dleçÍ.-.-.
Ogr.p_d9"ggêgq{ç
-ye,,Jtg;i5rtroduzido por Freud transforuqq a e simplesmente perda de tempo, pois é uma demanda
raqpgtruçia-quç ss.prqdsanp*djssgllqge!§tâú_G ruU.. uoU-i. -Pura de ser atendida mesmo que aquele que ocuPe o lugar
impossível
o gozo) numa impossibilidade que, no entanto, opera: do analista possa apostar - por equívoco ou ignorância - na pos-
s ib ü d ade do encontro h armonio s o. D-g"
.111rppSÉfeldg&Zer lE geq

discurso da histérica discurso do analista reinq._o:bl.ç19_C.g-.que.9-aqq!sta-ouv.enão-qap.os-d-i!q-s-dg.3n?,,

ImPossibilidade li*!.,-!0g§_gg" -d..,-r. "tl-que-náo-se-confunde-com--osç!Éido-49s--


s:+§
ã^^§ ^ , iõíãitos. E é o dizer do anúsante que não diz, mas escreve, uma
imp otên ci a''
-., Á1_-.
"'À'1--24;ro §Ft carta de amor. "lJm sonho", nos diz Lacan,'háo nos introduz a
nenhuma experiência insondável, a nenhuma mistica, isso selê do
Em primeiro iugar, há a impossibilidade subversiva de ter-
que dele se dii' (Lacan, ibid., p. rz9, o grifo é meu).
mos o objeto como agente do discurso. Lacan sublinha esta
Assim, para além dos ditos da demanda de amor, o anali-
impossibiüdade ao apontar que 'hão devemos crer que sejamos,
sante escreve um texto que cabe ao analista ler, pontuar e cortar
de modo algum, nós mesmos que suportamos o semblante. Nós
pela üa,da interpretação,'e que se poderá ir mais longe ao tomar
nem mesmo somos semblantes. Somos, ocasionalmente, o que
seus equívocos no sentido mais anagramático do termo" (ibid., p.
pode ocupar o seu lugar, e nele fazer reinar o quê? - o objeto
rz9). Ou seja, se o dizer do analisante escreve uma carta de amor,
a" (Lacan fug7z-rgry), 1982, p. 129). Esta é a tarefa.impo_ssív.el
é uma carta enigmática, escrita em ânagramas e é como tal que
do analista: ao gcup?r o:casionalment-e
ffiar de semblante de deve ser decifrada.
objelo causa de desejo, revelar simultaneamente sua natureza de
Curiosamente, própria manobra do analista que produz a
éa
s-e-q1b.lg4!q_e lll$tg.1rggalçolqg qlbgl_g qge é da verdade,, (ibid.). E
histericização do discurso. Em outras palawas, se o discurso ana-
o
B9r&".ygldee ii: .{: tp-qltq- -ae. g9z*9. lítico surgiu do giro de quarto de volta que Freud introduziu no
Âqui temos mais uma impossibilidade lógica: o discurso do
discurso da histeria, o discurso do analista, operando sobre a divi-
analista produz a fala de amor - amor de transferência - que visa são subjetiva do analisante, pela üa do sintoma analítico, no qual
justamente tamponar o que é da verdade, ou seja, o desencontro
o próprio analista está incluído, conduz o analisante à posição his-
inevitável entre os sexos. É nesta dimensão que a transferência é
térica a partir da qual ele pode produzir seu texto de amor.

r68 r69

)
Não nos enganemos, porém. Lacan, nos relembra, atra- Assim sendo, a carta de amor que o analisante produz sob
vés de uma referência de Freud a Empédocles, de que a+úpilg transferência visa o sentido que desvela a natureza sexual do
psicaniíüse revela que qêo bá.aqor sem o ódio. Segundo Freud, inconsciente apontando para seu limite. Ou, como diz Lacan, "nele
Empédocles dizia que Deus deüa ser o mais ignorante de todos se fala de foder - verbo, em inglês tofuck- e se diz que a coisa não
os seres, por não conhecer de modo algum o ódio. Lacan propõe vai" (ibid., p. 45). E a coisa náo vai justamente pelo fato de sermos
então um significante novo, a hainamoration, enamoródio para seres constituídos pela linguagem e que consequentemente, para
esta enamoração feita de amor e ódio, que 'É o relevo que a psi- gozarmos do corpo, temos de nos posicionar frente ao falo.
canálise soube introduzir para nele inscreveÍ azonade sua expe- O gozo do corpo como tal é assexuado ou, "dito de outro
riência" (Lacan fu972-tg73l, t91z,p. rzz). Na neurose obsessiva, modo, o que há sob o hábito e que chamamos de corpo,talvez
a zunDrvarenqa, caracrerrs.ca do trpo .t-iãJffit. seja apenas esse resto que chamo de objeto a" (ibid., p. 14-15),
muitos casos. o suieito Lacan se vale de um pequeno apólogo encantador sobre a peri-
e.l§gsganátisnp-e-i-a^d.a jp-ó-dio_p-egruascarar.-q-utgt qúta que ama Picasso, para demonstrar a impotência do amor. A
Ao produzir a histericização do discurso do analisante a periquita não ama Picasso e sim o hábito, a rouPa, o casaco que
psicanálise inscreve a zona da sua experiência no enamoródío recobre o corpo de Picasso. Do mesmo modo, no encontro sem-
por produzir uma frustraçáo inevitável. O discurso da histérica pre falho entre os sexos, ama-se a imagem, o hábito que recobre o
demanda a produção de um saber sobre o gozo e, nesta medida, monge. O amor amor pela imagem, semPre narcísica e encobre,
é
institui o sujeito-suposto-saber. Porém o sujeito-suposto-saber é na aspiração de fazer Um corn o outro, que "quancio a gente ama,
um equívoco: nenhum saber é produzido pelo discurso do ana- não se trata de sexo' (ibid., p. 37).
lista. No discurso do analista o saber está no lugar da verdade Porém o que sustenta a imagem e Provoca o amor é um resto,
e o que se produz são os significantes meshes, os significan- o objeto 4, que paradoxalmente causa o desejo e é o "esteio de
tes-sêlo nos quais está colada a falta-a-ser do sujeito. Ora, o S. sua insatisfação, se não de sua impossibilidadd' (ibid., p. r4).
é justamente "esse significante do qual não há significado e que, Pois ao objeto causa de desejo só podemos ter acesso pela via do
quanto ao sentido, simboliza seu fracassd' (ibid., p. ro7). Deste significante.
modo, o discurso do analista frustra não só a demanda de amor, "O significante é a causa do gozo'l nos diz Lacan. "Sem o sig-
a demanda de um saber, como a demanda de sentido que o pró- nificante, como mesmo abordar aquela parte do corpo? Como,
prio discurso instaura. E a frustração, sabemos, gera o ódio pela sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a causa mate-
via da decepção. rial?" (ibid., p. 36). No corpo está, em termos aristotélicos, a causa
"Um discurso como o analíticoi nos diz Lacan, ,.üsa o sen- material do gozo, mas o significante é sua causa final. Sem ele não
tidol mas 'b que o discurso analítico faz surgir é justamente a há acesso ao corpo, mas é também ele, o significante, que dá o
ideia de que esse sentido é aparência'i e 'te o discurso analítico limite ao gozo, gue faz aito ao gozo e dá o sinai de pare.
indica que esse senüdo é sexual, isto só pode ser pata dar razão É o.falo, significante que náo tem significado, que ao mesmo
de seu ümitd: (ibid, p. ro6) tempo viabiliza e faz obstáculo ao encontro entre os sexos. É o sig-

r.70 L7r

I
nificante fiflico que determina o sentido sexual do inconsciente e, sexo na transação' (p. r r:). Temos assim, em sequência, o encor)-
simultaneamente, aponta para a falta de sentido. por habitar a lin- tro sexual sempre malogradq o ato falho do qual pode ou não
guagem só resta ao ser humano se posicionar com relação ao falo, resultar um filho, que se interrogará semPre sobre o desejo que o
como homem ou como mulher, ou seja, como pertencente ao gerou. Causando o encontro falho está, portanto, o desejo - insa-
conjunto delimitado pelo falo - todo fálico - ou como não-toda, indestrutível e insaciável- pois não é isto,
tisfeito ou impossível -
"-Tais são as únicas definiçOes possíveis'l diz Lacan ,ãa parte edificio de desencontros,
é o que ele aponta. E para suportar este
dita homem ou bem mulher para o que quer que se encontre na
o arnor vem recobrir, alentar e dar alívio - o almor, onde a alma
posição de habitar a linguagem' (p. toz). Tendo o significante
se saciaentre os corPos que se debatem.
como sua única referência, ao ser de linguagem. resta então se
Para uma mulher para além de seu desejo de falo ou de sua
posicionar em relação ao falo para ascender ao pouco de gozo
vocação para ser hagada pela devastação, resta sustentar-se como
que o significante the viabüza e gue o objeto lhe acena como
- sujeito da linguagem e do desejo. Â todo ser falante, diz Lacan,
desejo impossível ou insatisfeito.
qualquer que seja ele, provido ou não dos atributos da masculi-
Do lado masculino temos o sujeito dalinguagem, o sujeito do
nidade, é permitido, pela teoria freudiana, inscrever-se do lado
desejo, que busca no Outro seu complemento de ser
- o objeto a. da não-toda, no conjunto aberto das mulheres (p. ro7). É aí que
Freud vai localizar o rochedo da castração, momento decisivo do
final de anáüse: abandonar sua posição de sujeito e poder sus-
tentar para um outro o objeto causa de desejo. Esta é a posição
do analista, posição feminina, em que o analista se abstém como
sujeito, e não fala, recebe, lê, pontua e corta a escrita que trans-
borda do texto do analisante,
Porém as mulheres Íunaln, falam e desejam. Se o analista é
convocado ocasionalmente a este lugar de fazer reinar o objeto
a, é um lugar de exceção, de dejeto, de resto, resto mudo, difícil
Temos aí, no impossível encontro entre dos sexos, o matema
de supbrtar. Para que alguém possa tolerar se colocar na posição
da fantasia escrito do lado do homem, na busca do parceiro (g 0 a).
feminina, não sendo um analista, que atravessou e comProvou às
Porém do lado feminino - Á- as mulheres só buscam no parceiro
suas próprias custas a existência do inconsciente e o impossível
o falo, seu fetiche, ou sáo aspiradas pelo vazio da significaçáo
da relação sexual, é necessário se sustentar como sujeito.
- S (e) - onde nada se escreve sobre um gozo que não pode ser dito. E como sujeito, todos se localizam do lado masculino das
Lacan descreve então a natureza homossexual do amor que
fórmulas da sexuação. Se Freud nos diz que a libido, Eros, é mas-
vem em suplência à impossível relação entre os sexos. O amor,
culina é porque Tanatos, a Morte, está escrita do lado feminino
sendo narcísico e especular, ama a alma, e aqui Lacan inventa
como o abismo que nos lÍaga a todos, seres mortais, nascidos de
mais um significante novo - o almor, amor da alma, onde ,não há
umamulher.

L72 L73

)
Isto conduz as mulheres a um traço que Lacan chama de tenta-o numa posiçáo paradoxal de onde extrai sua força e onde
'termo uitimdi que é o substrato de histeria que está sempre pre- se revela sua fraqueza.
sente nas mulheres. Ao inventar a neurose obsessiva, retiran_ Discurso do mestre
do-a do quadro das manias e melancolias Freud sempre apon-
tou que mesmo nesta neurose, que ele destacou da loucura, por $*$*outro
referi-la ao pai, havia uma base histérica. Lacan sublinha que esta
Ocupando o lugar do escravo hegeliano, a mulher obsessiva
base histérica, sempre presente nas mulheres, está em .,bancar o
obtém a contrabando um gozo que a mantém nesta posição dis-
homeml
cursiva: ela acredita ter deter os meios de gozo do mestre. Crê no
e

signif,cante, crê na palawa de amor e é a partir desta crença gue


BANCAR O HOMEM pode sustentar, bancar seu homem, por impotente e combalido
que seja, como nos casos das damas do tapete e das lavagens.
Para se sustentar como sujeito da linguagem e do desejo, uma Bancar o homem, sustentando-o no lugar do mestre, não equi-
mulher não tem outra saída do que "bancar o homem,' , e como vale a encontrar o Homem, o (lue segundo Lacan só seria possívei
homem, amar e desejar. O sujeito do inconsciente é sempre mas- para a mulher na psicose. Bancar o homem Para a mulher obses-
culino, obsessivo ou histérico. A neurose é masculina porque ela siva é camuflar sua falta se pondo a seu serüço como escrava e
fala. Isto não impede que haja uma estratégia feminina, onde na buscando preenchê-Io com os objetos fiílicos que supõe que tem:
fala a falta é desvelada, e uma masculina onde a falta na fala é
Á 0 q (ai dl a":...).
camuflada. Uma muiher, fora da psicose, só pode amar um homem
Um homem, não um analista, pode se sustentar apenas no enquanto este está marcado pela castração. Este é o termo ultimo
todo-frílico. Mas às mulheres que se inscrevam na partilha dos de histeria presente nas mulheres: do lugar da não-toda elas só
sexos como não-todas só resta frequentar o lado mascúno para podem suportar ocupar o lugar do semblante de objeto causa de
falar: como histéricas ou obsessivas. desejo [a] na medida em que o homem esteja, para ela, marcado
Este é o teatro histérico próprio ao feminino, mas nas suas pela falta [8]. É a isto que Freud se refere como a degradação
encenaçôes, nas máscaras gregas que encobrem o fundo de tris_ do objeto amoroso própria das mulheres, e que Lacan aponta ao
teza qr:';e está presente, de forma acentuada, em todas as rnulheres, falar do amante castrado que surge, Para a mulher, por trás do
histéricas e obsessivas não se confundem. véu, no encontro amoroso.
Por dispor de um discurso que lhe é própriq a histérica não Isto não impede que algumas mulheres obsessivas se ins-
só introduz no laço sociai a faia de arnot como busca subverter crevam do lado do todo-frílico. É o caso de uma mulher homos-
o discurso do mestre apontando seus limites. "Ela reina e ele não sexual que, tal como a jovem adolescente, se dedicava em sua
governa'] dizLacaa. fantasia obsessiva a preencher a falta falica da máe. Porém, ao
A obsessiva, escrava, adapta-se muitas vezes facilmente no contriirio da jovem, a escolha dos objetos amorosos desta mulher
lugar do outro no discurso do mestre, não desafia o homem, sus- incidia sobre pessoas do mesmo sexo, nas quais longe de adorar o

L74 L75

)
mistério de sua feminilidade, tratava de cuidar e proteger de sua guem à aniflise diagnosticadas pela psiquiatria como melancóli-
(delas) incompetência feminina.
cas. É como se, mais de cem anos depois de Freud ter separado
Uma outra paciente obsessiva, esta evidentemente heteros_ a neurose obsessiva da melancolia, voltássemos na clínica, justa-
sexual, permanece ürgem, como a paciente de Fairbairn, não só mente pela via das mulheres, à estaca zero.
por atribuir inconscientemente um valor fálico ao hímen, como
por não ter encontrado o "homem perfeito'que ela, não de todo
louca, sabe que nâo existe. FREUD E A3RÂHÀM

O que estas mulheres têm em comum, e que as difere clini-


Karl Abraham foi um dos primeiros e mais importantes discípu-
camente das histéricas, é a recusa de usar a Outra mulher como
los de Freud. Nascido em 1877, morreu prematuramente aos 48
conector para a interrogação sobre a feminiüdade. Uma mulher
anos, em 1925. Entre seus analisantes e discípulos estava Melanie
em entrevistas preliminares, por exemplo, narra que, ao chegar
l1ein, e sua morte foi um dos fatores determinantes da ida desta
inesperadamente de üagem e encontrando seu parceiro na cama
para Londres, dando início à chamada Escola lnglesa. Abraham
com umamulher, pede educadamente à outra que se retire. Antes
de deixar explodir o ataque de furia que a levou, posteriormente,
fundou em 1910 a Sociedade Psicanalítica de Berlim e teve uma
a surrar um homem atlético, com quase o dobro de seu tamanho,
participaçáo importante na IPÂ (lnternational Psychanalytic
Association) desde sua fundaçâo.
explica: "Não tenho nada contra você. Meu problema é com ele.
Foi a partir de um artigo publicado por Abraham em tgrr'
Não suporto a traiçáo palavra dada."
à
que se estabeleceu entre ele e Freud uma rica correspondência,
É na palavra dada, no significante que vem do Outro, do
permeada pela t Guerra Mundial, da qual resultou a publicação,
homem no lugar do mestre, que a obsessiva se sustenta como
mulher. Ela crê na palawa de amor, ela crê no: ..Tu és a minha em 1915, do artigo de Freud "Luto e melancolia". Neste primeiro

mulher", e na ausência desta palawa, explícita ou implícita, uma artigo, Abraham observa que verificou na clínica que sintomas
mulher obsessiva pode ser lançada no mais negro abismo da dor obsessivos se acham presentes nos "intervalos liwes" (fora de

de existir. surto) da melancolia, e que os neuróticos obsessivos são frequen-


temente sujeitos a depressões. No entanto conclui que "embora
Quando digo que esta palawa pode estar implícita é porque,
muitas vezes, devido à inflação imaginrária da neurose, o amor é tenhamos podido verifrcar até que ponto a psicogênese das neu-
suposto ao outro, apesar das evidências contrárias. Uma paciente roses obsessivas e das psicoses cíclicas se assemelham, não temos
a menor ideia da razáo pela qual, nesse ponto, um gruPo de indi-
casada, cujo marido não a procura sexualmente há mútos anos,
hesita, tal como a dama do tapete, em se separar de[e. para sus- üduos toma urn caminho e o outro grupo, um caminho dife-
tentar sua dúvida alega que 'ho fundo, no fundo, eu sei que ele rente" (Abraham, r97o, p. 5o).
me ama'i É somente em t924, num longo artigo sobre o desenvolvi-
A dor de existir das mulheres mento dalibido (ibid.,p.8r-r6o),no qualrelê, aseumodo, o artigo
obsessivas, privadas da pala_
wa de arnor e do brilho fiílico que lhes é supostamente atribuído
Á,BR HÂM, x.'Notas sobre a investigação e o tratamento psicanalltico da psicose
pelo desejo do Outro, faz comque algumas destas mulheres che-
maníaco-depressiva e estados afins" (lsRÁHÀM, r97o, p. 3z-5o).

L76 L77

t
de Freud, que vai tentar postular (em termos) a diferença entre sente, como a pátria, a liberdade, um ideal, etc." (Freud, 1915, P.
estas duas afecçôes. Na verdade, o grande interesse de Abraham z4r). Trata-se portanto da perda de um objeto, porém de uma
neste artigo é o de propor as Fases de Organizaçao Libidinal e as perda simbólica, algo - S, - que representa o objeto perdido.
Fasa do amor Objetal correspondentes. Anteriormente (r9rr) Mais adiante, conflrma isto ao dizer que ao fina1 do trabalho
haüa atribuído tanto à neurose obsessiva como à melancolia, de luto "a representação (coisa) (Dingvorstellung) inconsciente do
uma fxação na fase oral canibalesca, daí não poder determinar objeto é abandonada pela libido' (ibid., P. 2fi).Isto requer um
por que cada uma toma um caminho diferente. intenso trabalho simbólico pois esta representação está ligada
Em r924, reconhece quenamelancolia o sujeito estáfixado na a outras representações (marcas inconscientes) e a retirada da
fase sádico-anal primitiva, o que determinaria uma fase de amor libido tem que ser um processo lento, ao final do que, retirando
objetal do tipo amor parcial com incorporação; enquanto que na a libido das representações, o eu deixa cair o objeto e pode inves-
neurose obsessiva a fixaçáo serianafase sádico-anal posterior em tir em outro.
que predominao amor objetal, marcado pela ambivalência. O 'trabalho melancóIico" (ibid., p. zfi) parece ir na mesma
Abrúam atribú todos estes desenvolvimentos teóricos direçáo, porérn com resultado diverso. O eu se acusa pela perda
a uma inspiração freudiana. "Em primeiro lugar, indicou ele do objeto (o que também ocorre no luto, na neurose obsessiva),
[Freud] que na melancolia o fato de importância fundamental é e termina por'tratar um objetd' (ibid., p. 249).
a si mesmo como
a perda do objeto, que precede o desencadeamento da doença, A ambivalência (também presente no obsessivo) faz com que
o que não acontece nos casos obsessivos. O neurótico obsessivo o melancólico, da posição de objeto, inüsta contra o eu todo o
apresenta, é verdade, uma atitude acentuadamente ambivalente ódio voltado ao objeto perdido - agoÍa o próprio eu -, podendo
em relação ao seu objeto e tem medo de perdê-lo, mas, em ultima leválo ao suicídio. Freud acentua ainda que o automartírio do
anáüse, o mantérnl' (ibid., p. 8:). melancólico "inequivocamente gozozci'e que o objeto prova ser
é
Mais adiante no texto, ilustra a fixaçáo anal sádica do obses- mais poderosos que o próprio eu. "Nas duas situaçôes contrapos-
sivo, com um curioso ritual de uma mulher que não conseguia tas do enamoramento mais extremo e do súcídio, ainda que por
jogar fora objetos sem utilidade. Inventou um meio de "enganar caminhos inteiramente diversos, o eu é subjugado pelo objeto"
a si própria'l Pegava os objetos dos quais queria se livrar e não (ibid., p. z+g-zso).
podia e pendurava-os na parte de trás de sua anágua. Ia dar um Na conclusão, Freud diz que das três premissas da melanco-
passeio no bosque, indo por um caminho e voltando por outro lia (perda do objeto, ambivalência e regressão da libido ao eu),
e "perdia" os objetos. "Dessa forma, a fim de poder abandonar a encontramos as duas primeiras no luto da neurose obsessiva.
posse de um objeto, ela tinha de deixáJo cair da parte de trás de É somente a regressão da libido ao narcisismo que diferencia a
seu corpd' (ibid., p. 9o). melancolia. Porém como o narcisismo (retorno da übido ao eu)
Na verdade, em "Luto e Melancolia" (r9r5) Freud está inte- pode levar o sujeito à morte?
ressado em investigar as semelhanças e diferenças entre o pro- Em tgz3, em "O eu e o isso'i já contando com a elabora-
cesso normal (luto) e patológico (melancolia) diante de uma çáo teórica sobre a pulsáo de morte, Freud retoma a questão dei-
perda: "de uma pessoa amada ou de uma abstração gue a repre- xada em aberto no texto anterior. Na melancolia há uma defusão

L78 L79

)
das pulsôes de vida e de morte e o que retorna sobre o eu não é a O próprio Freud aponta Para o paradoxo do supereu, na
libido narcísica mas a pulsão de morte e o eu se torna pura cul- advertência:'Assim (como o pai) deves ser" e ao mesmo temPo:
tura da pulsão de morte. Partindo, como outros autores (euinet, "r{ssim (como o pai) não te é Lícito ser" (ibid., P. 36). Lacan resume
rygg), da hipótese de que o que garante a fusão das pulsões é a este paradoxo no mandato impossível que diz: goza! Impossível
presença na estrufiira do significante Nome-do-pai, temos que na porque o gozo em questão não é o gozo do pai do sujeito, o que
melancolia, a foraclusâo do significante-sêlo (S,) deixa o sujeito limitaria o supereu a ser a voz que interdita o incesto. É mais!
à mercê da invasão da pulsão de morte. Na neurose obsessiva, Freud nos diz que'Quanto ao suPereu, o fazemos se gerar, precisa-
segundo Freud, a ambivalência cornparece como .,uma fusão pul- mente, daquelas üvências que levaram ao totemismo" (ibid., p. 39).
sional não consumada" (Freud, t923, p.43), o que indica por um Trata-se, portanto, de um resíduo, resto, uma advertência, voz, que
lado a falha da operação do recalque, mas por outro lado a pre- remete aa gozo do pai totêmico, do pai da Horda Primeva.
sença do Nome-do-Pai na estrutura, já que o amor e o ódio são O próprio Freud chama o supereu de 'placa auditiva"
dirigidos ao objeto libidinal (a pessoa amada-odiada) e o sujeito (Hôrkappe),se compararmos a figura que aPresenta em "O Eu e o
está protegido da invasão maciça da pulsão de morte. É o que Isso" (ibid., p. z6) com a sua nova versão apresentada na 3 1'con-
permite Freud dizer gue, ao contrário do melancólico, .b neuró_ ferência (Freud, L932, p. n). F- também nesta conferência que
tico obsessivo nunca chega a se matar" (ibid., p. S+). Freud acrescenta ao supereu a função de 'bbservação de si" (ibid.,
No entanto, a clínica nos mostra que algumas mulheres p. 6z), acrescentando outra vertente do objeto a: o olhar.
obsessivas, do fundo do poço de sua dor, chegam a tentar o suicí-
Temos assim:
dio, podem provocÍr, por ato falho, graves acidentes e podem se
10 TEMPo) O sujeito unido ao Outro pelas 'primeiras elei-
condenar à morte em vida, se abandonando como mulher e não
çôes de objeto do Issoltempo mítico da operação que Lacan
se cuidando.
chamou de alienação.

O SUPEREU

É também em "O eu e o isso" que Freud vai apresentar a instância


psíquica do supereu, como herdeiro do complexo de Édipo, em
suas duas vertentes:
. "resíduo das primeiras eleiçóes de objeto do Isso,, e

. "rrma enérgica formação reativa frente a elas,, (ibid., p, 3 6).


Neste texto Freud usa indiscriminadamente os significantes
supereu e ldeal do Eu. É Lacan que nos permitirá separar o supe_
20 TEMpo) Quando intervém a lei do Pai, o complexo de
reu (na vertente do objeto a) e o Ideal do Eu (marca simbólica _ I
Édipo, o Nome-do-Pai.
(A) - ponto ideal com o qual o eu se compara).

r8o r 8:.

)
30 TEMpo) Como resíduo da operação de separação, resta o dedestruí-ld' (ibid., ibid.). Movida pela inveja do pênis, a menina
supereu, sob a forma do objeto olhar, que observa o sujeito, e abandona a relação original com a mãe "e desemboca na situação
da voz, que comanda o gozo e o proíbe. edípica como em um portd' (ibid., ibid.). Freud acrescenta que
mesmo quando a mulher suPera o complexo de Édipo, se é que
supera, o f.az de maneira incompleta.
'*«».. Como consequência, a formaçáo do supereu nas mulheres
'não pode alcançar a força e a independência que lhe conferem
sua signiâcatividadecultural' (ibid., ibid.). Freud comenta então
que as feministas náo gostarão de saber disto, porém, longe de
ser um desdouro, a fragilidade do supereu feminino permite às
mulheres não estarem totalmente sob as garras, às vezes muito
Ora, na psicose a foraclusão do Nome-do-pai indica que a opressivas, da civilização.
operação de separaçáo edipiana não foi atravessada e, portanto, Porém, nas mulheres obsessivas, observamos um forte sen-
que não houve a extração do objeto a, como o revelam as alucina- timento de culpa, acompanhado de uma angústia desoladora,
ções em que as vozes acusatórias são ouüdas e nas quais o sujeito sinais da presença de um rígido suPereu. Como entender isto? Na
se sente olhado, observado, vigiado pelo Outro. verdade, até o fim de sua obra, Freud nãofazuma distinção cabal
É o que nos permite compreender a distinçáo que Freud entre o supereu e o ideal do eu. Os preceitos culturais ligados à
estabelece entre a autorrecriminação na neurose obsessiva e na moralidade e à civilização, dos quais as mulheres aparentemente
melancolia. Na neurose obsessiva o "sentimento de culpd, é a per- carecem, estão muito mais do lado de ideal do que da ferocidade
cepção que corresponde no eu à crítica do supereu (Freud, 1923, irracional do supereu.
p. 53). Ora, com a extração do objeto a,avozdo supereu é muda, Na neurose obsessiva, o suPereu é particularmente cruel: 'b
e só chega a sujeito no desconforto da cllFa que o eu não aceita supereu se torna particularmente severo e odioso e o eu desen-
e náo reconhece, embora sofra seus efeitos. porém na melanco- volve, em obediência ao supereu, elevadas formações reativas da
lia'b eu não interpõe nenhum veto, se confessa culpado e se sub- consciência moral, a compaixáo, a limpeza" [Freud, (tgz6), tgg3,
mete ao castigd'(ibid, p. 5z).Ou seja, a não-extração do objeto a p. 1091. Freud observa também uma acentuação do sadismo nesta
mantém o próprio sujeito neste lugar estrutural de objeto, algoz e neurose e levanta a hipótese de uma regressão tópica à fase anal
vítima da autorrecriminação. sádica. "Busco a explicação metapsicológica da regressão numa
Freud nos diz que o supereu na mulher tem uma consti- tesfusão das pulsõesl na segregaçáo dos componentes eróticos
tuição diferente daquele do homem. No yarão, o Complexo de que no começo da fase genital haviam se somado aos investimen-
Édipo soçobra diante da ameaça de castração e "se instaura como tos destrutivos da fase sádica" (ibid., ibid.).
seu herdeiro um severo supereu" (Freud, [(r93zb) ry93, p. nof. Com a segunda tópica, a partir de rgzo, e principalmente
Na menina, ao contrário, não encontrÍunos angustia de castração. com o ultimo dualismo pulsional (pulsões de vida, Eros x pulsão
"O complexo de castração prepara o complexo de Édipo emvez de morte, Tânatos), Freud propõe a fusão e desfusão das pulsões'

r8z 183

)
O significante domestica o gozo,nos diz Lacan, ou seja, a entrada "É verdade que chegamos à conclusão de que, na melancolia, o
no simbóiico com a amarraçáo que o significante Nome-do-pai paciente abandona as suas reaçóes psicossexuais com o objeto,
propicia, faz com que o gozo mortífero da pulsão de morte se una enquanto que o neurótico obsessivo consegue, afinal, escapar
à libido, permitindo com que o sujeito ame, trabalhe e também se
deste destino. Mas defrontamos-nos então com o problema da
defenda. Freud não fala do simbólico ou do significante Nome-
razão por que a relação de objeto é tão mais lábil numa determi-
do-Pai, porém argumenta que o sujeito precisa da fusão das pul-
nada classe de paciente do que na outra" (ibid., p. 86).
sões para üver. Até no ato sexual, quando um homem penetra
Mas o problema está justarnente aí, na relação de objeto. Ao
uma mulher, é necessário uma dose de agressividade, garantida
propor suas Fases do Desenvolvimento da Libido, Abrúam deu
pela pulsão de morte.
certamente uma grande contribuição teórica à psicologia do
Na psicose, a ausência da operação da metiífora paterna pro-
desenvolvimento, à pedagogia e à pediatria, ou seja, àqueles que
move a desfusâo pulsional. Na paranoia, a pulsão de morte, o gozo
se ocupÍrm em cuidar de crianças. Porém a questão da psicaná-
mortífero, é projetada no Outro perseguidor, enquanto que o eu
lise é outra.
narcísico inflado do sujeito é todo investido de libido. Na esqui-
Os objetos nomeados e estudados meticulosamente por
zofrenia, o gozo retorna ao co{po, despedaçando a imagem nar-
Abraham nas suas fases são os objetos da demanda, através dos
císica e instaurando o caos autoerótico. Na melancolia, Freud nos
quais o sujeito tenta recobrir sua inqúetante relação corn o desejo
diz que a libido se esvai com o objeto perdido e o sujeito se torna
(dele e do Outro). Por esta üa, não há como distinguir o obsessivo,
pura cultura de pulsão de morte. E na neurose obsessiva? Como
que se apresenta imaginariamente revestido como a merda e/ou o
entender a desfusão das pulsões sob o regime do Nome-do-pai?
ouro do Outrq do melancólico, dejeto merdificado do Outro.
Creio que a fragilidade do recalque, que não se gaÍante na
Não é por acaso, então, que aigumas mulheres obsessivas,
metáfora do sintoma, como na histeria (já abordado no capítulo
privadas do brilho fálico do desejo e da palavra de amor de seus
sete), faz com que na neluose obsessiva possa haver esta desfusão
parceiros, possam ser diagnosticadas como rnelancólicas. Porém
sublinhada por Freud. É o que leva o sujeito às crises de furia des-
isto implica que o discurso da ciência tenha sido invadido por
critas por Pinel e apresentada no fi.lme Um dia defúria (capítulo
uma inflação imaginária que impede uma leitura precisa do texto,
t, p. zo-zt) e é também o que esclarece a fiiria destrutiva de um
da carta de amor, da queixa que a mulher obsessiva dirige àquele
supereu desfusionado da libido. Em "O eu e o isso,, (r9z:), Freud
a quem pede ajuda.
dá como exemplos máximos da desfusão das pulsões a neurose
obsessiva e a melancolia.
Retornando a Abraham, podemos compreender, por outro
REFERENCIAS BIBLIOGfu(FI CAS
*g*lo, por que este grande clínico distingue na prática a melan-
colia da neurose obsessiva, mas não o chega a lograr conceitual- ABRAITÀM, x. Teoia Psicanalítica da Libido. Rio de |aneiro: Imago Ed.,
mente. No seu artigo de Lg24 em que propõe a hipótese de que a L970.

neurose obsessiva e a melancolia correspondem a .dois estágios FREUD, s. "Duelo y melancolia' [r9r5]. Inl' Obras completas. Buenos
da fase sádico-anal da libido" (Abraham, tg7o, p.g5), diz que: Aires: Amorrortu Ed., r.995, v. xlv.

184 185
"El yo y el ello" [rgzil. In: Obras completas. Buenos Aires:
Amorrortu Ed., 1993, v. xtx.
"3ro Conferência: la descomposición de la personalidad psi-
quicdi [rSazl .In: Obras completas. Buenos Aires: Âmorrorhr Ed.,
1993.
LACÀN, I. O avesso da psicanálise bg6g-rglol. Rio de faneiro: ]orge
Zahar,ryg6 Posfácio
Maís Ainda bgZz-tgll). Rio de |aneiro: Jorge Zúar, 1986.
eurNET, A. Ertravios do desejo. Rio de ]aneiro: Marca dÁ,gua, Lggg. Pode parecer anacrônico escrever sobre a neurose obsessiva, além
do mais em mulheres, no início de um século em que os avanços
da ciência se encaminham cada vez mais para a abolição da sub-
jetividade. Isso, porém, é antes de tudo uma aPosta, um voto, na
contribuição que a psicanáIise pode dar ao discurso da ciência.
Vivemos um paradoxo: de um lado, o avanço dos medica-
mentos garante ao homem moderno um sobrevida impensável
há cem anos; do outro, a população se droga cadavez mais na
busca impossível de uma felicidade que não pague o preço pela
dor de existir. Os transtornos obsessivos compulsivos não fogem
a esse modelo. Drogas de ponta prometem seu alÍvio imediato.
Reduzida a uma sigla irônica (toc), a neuÍose descoberta por
Freud em 1896 parece ser apenas o "bater na madeira" de um
ritual compulsivo de autoproteção.
Por sua vez, as histéricas deixaram de existir. Foram abo-
lidas da linguagem oficial por serem politicamente incorretas.
Politicamente incorretas elas sempre o foram e semPre seráo, pois
desafiam o discurso do status quo da civiüzaçáo. Pode-se abo-
lir a palawa histeria de uma classificaçáo nosológica, mas não há
como calar a força inquietante do discurso da histérica no iaço
social.
Por desafiarem o discurso do mestre, as histéricas - ainda
que reduzidas a deprimidas, portadoras da síndrome do pânico,
da lesão do esforço repetitivo etc. * protegem-se da drogadição
generüzada jogando fora os remédios, procurando tratamentos

r86 r-87

)
alternativos, buscando o misticismo ou afundando nas múltiplas
siglas que o Outro social lhe oferece para dar conta de seu ser.
Drogadas compulsivas, as obsessivas, escravas, consomem
obedientemente as drogas que prometem um alívio que nr.rnca
chega. Diagnosticadas como melancólicas em um triste retorno
para anta de Freud, o que é cada vez mais frequente, deterio_
ram-se silenciosamente sob uma medicação pesada que as con_
duz ao Outro absoluto de seu tipo clínico: a morte.
Creio estar aí a contribuição que a psicanálise pode dar hoje
à ciência: a escuta da fala do sujeito, que é efeito da linguagem e
cuja falha estrutural não pode ser suturada por um artefato au
artifício.
Assim, apostar no discurso analítico, na força da contribui_
ção que ele traz para o novo século, é apostar na posição femi_
nina, no não-todo, na iacompietude, no furo do saber. Separado
irremediavelmente do Outro, desamparado, só resta ao sujeito do
inconsciente buscar recuperar na fantasia aquele pequeno resto
- um olhar cego, uma voz inaudível - que seria o complemento
do seu ser. Caso se disponha a pagaÍ o preço de ir ao encontro
de sua verdade, poderá, talvez, encontrar um novo saber e um
espaço para a criação. Apostar na psicanálise também é apostar
na palawa, na escrita, na fala de amor. Sem dúüda, uma aposta
feminina.

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