Você está na página 1de 4

http://acolhimentoemrede.org.

br/ocastigo/

EDUCAR E DISCIPLINAR
Outro dia, a Daiane trouxe à rede uma pequena grande questão, que permitiu a todos parar
para pensar… De um caso corriqueiro, surgiram várias reflexões. E o mais importante: a
dúvida que a Daiane compartilhou acendeu luzes e suscitou interrogações em diversos
membros da rede, que puderam se desligar por um momento de sua prática para refletir
sobre a mesma. Obrigada, Daiane! Para quem não acompanhou o que #rolounarede, aí
vai a sistematização:

Trabalho em um abrigo e tenho


uma dúvida. Esses dias um
adolescente furtou um celular da
casa de seus candidatos a
padrinhos afetivos. Ele passou as
férias super bem na casa deles,
contudo no último dia levou o
celular da neta do casal. Como essa
candidata trabalha no abrigo,
descobriu que o celular estava
lá. O casal o questionou e o
repreendeu. Na casa não temos
histórico semelhante do adolescente e ele geralmente tem um bom comportamento. Ele
relatou seu “erro” (SIC), demonstrou arrependimento e tomou iniciativa de contar a
história para a Equipe Técnica. Iríamos tomar uma atitude educativa junto ao casal,
contudo uma das educadoras, que é filha do casal, proibiu o garoto de sair do abrigo
durante 36 horas. Achei o castigo excessivo, e não educativo. Gostaria de saber a
opinião de vocês.

Os profissionais da rede fizeram diversas colocações tentando destrinchar este caso… A


primeira delas foi pensar no que significaria o ato de retirar um objeto de um
ambiente específico. A Tânia diz que apesar de não ser uma atitude adequada, é algo que
vê com bastante frequência entre as crianças e adolescentes, seja dos abrigos nos quais
trabalha, seja seus filhos, sobrinhos, e crianças da escola. Ela coloca que “levar algo
concreto para o abrigo tem o significado de permanecer, estender um tempo bom,
aproximar-se daquela pessoa que os acolhe”. Mas lembra que, “como não é correto
devemos ter uma postura sensata”.

Laura também foi por esta linha, citando um texto do psicanalista D. Winnicott chamado
“Delinquência como sinal de esperança”. Ela explicou que neste texto o significado do
roubo, do furto e de ações agressivas são entendidos como um pedido da criança para
reaver algo que acredita lhe ter sido tomado (como o direito a uma família,
exemplifica). “Nesse sentido, uma atenção maior já pode dissolver o “sintoma” antes
que o adolescente se torne de fato um “anti-social”, termo que o psicanalista gosta de
usar. Toda essa compreensão, no entanto, não culmina na ausência de repreensão.
Apenas nos lembra que nossa intervenção não se restringe ao “pôr limites“”.
Ana Paula concorda com tais reflexões, lembrando que “entender o porquê do roubo
não atenua a falta cometida e que deve ser reparada através de reflexões e medidas, mas
é importante para um entendimento mais global do histórico de vida desse adolescente e
para ajudar a nomear as angústias desse adolescente, que age intempestivamente e
não sabe o porquê”.

Mas, afinal: O que fazer? Qual atitude é a mais educativa?


A Tânia acha importante valorizar o fato de que o adolescente relatou o seu erro, e pensa
que o mais adequado seria ajudá-lo a resolver a situação – ajudá-lo a fazer a devolução,
apoiá-lo neste momento, pensando o que dizer para o casal e como dizer. Ela questiona:
“quem nunca desejou algo alheio? Mas alguém precisa ensinar à criança que nem tudo
o que se deseja, se terá, não é mesmo?”. A Melissa também se colocou, dizendo que não
discorda da atitude que restringe ao adolescente sair de casa, mas destaca que se retratar
com os padrinhos pode ser uma boa medida.

A Silvana lembra-nos que estamos em um abrigo preparando crianças e adolescentes para


serem adultos responsáveis: “o mundo é assim, quando agimos de forma errada temos
um tipo de punição, seja ela uma multa, uma repreensão, um afastamento da pessoa que
gostamos (amigos, namorados, etc). Quando a pessoa se mostra arrependida, o castigo
pode ser atenuado, mas sempre há algum…”. Claudia também lembra: “estamos
preparando estes adolescentes para a vida, que lá fora é muito cruel”.

O Renato acredita que a privação do direito de ir e vir pode ser necessária, “desde que
isto seja uma consequência que provoque incômodo ao adolescente. Muitas vezes, além
do diálogo que é sempre necessário, é preciso estabelecer consequências de atitudes.
Como disse uma das colegas, ninguém morre por ficar sem sair vez ou outra”.

Lúcia também acha que deve haver alguma punição, defendendo que se isto não
acontecer, a tendência é a repetição do ato. “Aconteceu aqui em nosso abrigo: uma
criança de 09 anos pegou o celular de uma Conselheira Tutelar. Após muita luta, o
entregou. Conversamos, a psicóloga conversou bastante, ela pediu desculpas, relevamos.
Algum tempo depois, foi ocorrendo uma sucessão de pequenos furtos na instituição e
comprovamos que nossa atitude infelizmente foi falha”. Mas, o que seria a atitude correta
então?

Luciana nos trouxe um novo ponto de vista quando reflete que todas as nossas ações
junto às crianças e adolescentes têm de ter caráter protetivo e educativo. “Nesse caso
acredito que não houve nenhum dos dois. Seria muito mais benéfico solicitar que esse
adolescente se retratasse com os padrinhos, do que mantê-lo “preso” por 36 horas”.

Simone pondera os dois lados da moeda, lembrando que “se a intenção da educadora era
retirar os privilégios do passeio no final de semana por conta do que aconteceu, é super
válido. Até porque é algo grave e poderia gerar consequências maiores. Mas nunca se
esquecendo da conversa e conscientização, porque se não, independente do que é usado,
não haverá significado para a criança”.
Alice sugere que os próprios padrinhos
reafirmem seu amor incondicional ao
adolescente e que lhe deêm a punição, “pois os
limites mais eficazes são aqueles dados por
pessoas que nos amam. Dar o devido limitador
e com a proporcionalidade devida”.

Além da questão prática do que fazer, os


membros da rede apontaram algumas questões
da dinâmica institucionais importantes.
Mariana lembra que “o mais importante é que
a equipe discuta a ação e possa se apoiar. O
pior é o garoto sentir que há discordância e
contradições na postura da equipe. Isso o deixa
confuso e com pouca segurança para avaliar
que fez. Fica com raiva de uns e querendo fazer
conchavo com outros. Enfim, acho que a
coerência é que ajuda crianças e adolescentes a terem segurança nos adultos e querer
ser um deles um dia”.

A Simone contou que, na instituição na qual trabalha, a equipe técnica dificilmente toma
uma atitude como esta sem a discussão em equipe, pois “isso tira a autoridade dos
educadores que estão diariamente com os acolhidos. Orientamos, conversamos e
discutimos sobre o que seria ou não adequado, com crianças e funcionários”.

E por último, mas não menos importante, surgiu o questionamento da duplicidade do


papel da educadora, que é também parte da família que apadrinha o
adolescente. Luciana dispara várias reflexões: “qual é a real intenção do castigo, o
porque de funcionários do próprio serviço serem os padrinhos, como será a relação desse
adolescente com a educadora, visto que ela tem ligação pessoal com o fato ocorrido”. A
complexidade das relações humanas e do acolhimento institucional é grande, mas
podemos usar este caso como um exemplo para pensarmos e trocarmos experiências.

Simone, por exemplo, conta que na instituição na qual trabalha, já tiveram muitos
problemas quando educadores levam as crianças para suas casas, e “pelo envolvimento
afetivo que gera, atualmente é proibido. Focamos que eles são tão importante quanto os
padrinhos e por isso devemos focar na qualificação do seu trabalho”.

A Isabel também não recomenda a combinação de papel dos educadores com família de
apoio, e entende que este tipo de relação faz com que haja confusão de papéis,
influenciando nas tomadas de decisão acerca das ações com as crianças e adolescentes.
No caso, ela percebe que a educadora se sentiu no direito de fazer a represália, mas que
isto deveria ter sido discutido em equipe previamente.

Por fim, a Alice sugeriu que educadores e padrinhos não sejam a mesma pessoa,
esclarecendo: “o objetivo do padrinho/madrinha é ser um afeto diferenciado e especial
na vida do acolhido. Como o educador do dia a dia poderá diferenciá-lo em atenção,
sem misturar as coisas no trabalho? É difícil para a criança/adolescente entender isto.
É difícil ao educador fazer esta diferenciação no dia a dia. As situações se confundem.
Os outros acolhidos não entendem. Cria-se uma situação embaraçosa e desnecessária
que poderá ficar confusa e difícil sem necessidade”.

Enriquecidos com tantas reflexões, seguimos!!

Você também pode gostar