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CIRCUITO ESPACIAL DE PRODUÇÃO E LUGAR

Aldo Dantas1

Resumo
O presente ensaio tem por objetivo frisar a necessidade de se levar em consideração a
categoria lugar ao se fazer a análise de um fenômeno econômico tomando-se por base o
conceito de circuito espacial de produção. Tomando com pressuposto a ideia de que somente
podemos falar em circuito espacial a partir da mobilidade e suas duas faces: a circulação e a
comunicação, o texto passa a analisar os fluxos matérias e imateriais levando em consideração
a base material que dá sustentação a tais fluxos. Essa base material permite se falar em
configuração territorial e singularidade dos lugares, o que nos remete ao que Milton Santas
chama de lei do lugar.
Palavras-chaves: Circuito espacial de produção; Lugar; mobilidade.

SPATIAL PRODUCTION CIRCUIT AND PLACE

Abstract

The paper aims at highlighting the need of taking into account the place category when
analyzing an economical phenomenon based on the concept of spatial production circuit.
Assuming that we can only mention spatial circuit starting from mobility and its two features
– circulation and communication –, the text analyzes both material and immaterial flows
considering the material baseline that sustains these flows. Such a material basis allows us to
talk about territorial configuration and place singularity, referring to what Milton Santos calls
place’s law.

Key-words: spatial production circuit, place, mobility

CIRCUITO DEL ESPACIO DE LA PRODUCCIÓN Y LUGAR

Resumen

El artículo tiene como objetivo discutir la necesidad de se considerar la categoría lugar en las
análisis del fenómeno económico con base en el concepto de circuito del espacio de la
producción. Suponiendo que sólo podemos hablar del circuito del espacio teniendo en cuenta
la movilidad y sus dos facetas – la circulación y la comunicación - , el texto pasa a analizar
los flujos materialies y inmateriales teniendo en cuenta la base material que soporte a los
flujos. Esta base material nos permite hablar de la configuración territorial y la singularidad
de los lugares, que se refiere a lo que Milton Santos llama la ley del lugar .

Palabras clave: Circuitos de los espacios de la producción, lugar, movilidad.

1
Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP), Professor do Departamento de Geografia (DGE)
e do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (PPGE) da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Email: aldodantasufrn@gmail.com

Sociedade e Território – Natal. Vol. 28, N. 1, p. 193 -199. Jan./Jun. de 2016


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Nosso objetivo neste texto é tão somente chamar a atenção para a importância da
categoria lugar na compreensão dos circuitos espaciais de produção e dos círculos de
cooperação. Recomendamos, portanto que seja complementado com a leitura da bibliografia
citada.
O que nos autoriza, o que nos dá fundamento para falar em circuito espacial na
geografia é a mobilidade, que tem na circulação e na comunicação as suas duas faces
indissociáveis. Essas duas faces nos permitem analisar os fluxos materiais e imateriais de
qualquer ordem. No caso em tela e considerando a sociedade em que vivemos é pertinente
falarmos em circuito espacial produtivo.
Como nos chama atenção Castillo e Frederico (2010), uma das marcas do nosso
período é o crescimento dos fluxos relacionados à mundialização da produção. A base
material que viabiliza esse crescimento é o desenvolvimento dos sistemas de engenharia
relacionados às telecomunicações e aos transportes, o que nos remete mais uma vez à ideia de
mobilidade, circulação e comunicação.
Quando falamos em mobilidade estamos nos referindo a um conjunto que envolve
valores, regras, condições geográficas (aqui compreendido os dispositivos tecnológicos),
econômicas e sociais, ou seja, um conjunto que possibilita o deslocamento de bens materiais e
imateriais.
A mobilidade é, sem dúvida, um dos fundamentos da existência humana. Ela está na
origem da organização dos grupos e sempre se constituiu em um domínio estratégico. Na
atualidade o papel da mobilidade se acentua. O número de objetos materiais e imateriais em
movimento cresce desde que a sociedade industrial modificou radicalmente as condições de
velocidade e de deslocamento. Chegando mesmo a quase instantaneidade de deslocamento
quando se trata de bens imateriais.
O deslocamento de bens imateriais (capitais, informações, imagens, ordens, dados) é
uma das faces da mobilidade e um dos elementos da organização espacial. Mesmo
considerando sua “virtualidade” e quase instantaneidade, trata-se de um potente elemento
espacial, portanto nos permite discuti-lo a partir do lugar. Essa é justamente a posição que
sustentaremos neste texto: o lugar é incontornável em se tratando de análise geográfica. A
despeito da velocidade precisamos lembrar que as redes ou as redes de redes são as bases
materiais que asseguram a mobilidade de todos os bens. Esse dado não nos autoriza a
negligenciar o lugar. Quando falamos de redes temos necessariamente que nos referir a nós, a

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ligação entre lugares. Quando falamos da transferência de dados, falamos do albergamento


dos mesmos. Estar nas nuvens é apenas uma metáfora. O desafio aqui, não é a invenção de
novas categorias, o desafio é como discutir hoje o lugar. A velocidade contemporânea dá ao
lugar outra substantivação. E nos parece que a pergunta que os geógrafos têm que se fazer é:
como discutimos o lugar hoje? Cabe lembrar que essa discussão passa pela discussão da
noção de escala, da qual não trataremos.
Ao contrário do que se possa imaginar, quanto mais velocidade, mais o espaço tem
importância. Pois o espaço não se reduz a uma distância a ser percorrida. A velocidade, assim
como o tempo, é um dado dos objetos, portanto um dado geografizado, empiricizado. “O
tempo empírico existe apenas pelos lugares, permitindo a transformação de um tempo geral –
o tempo do mundo – em um tempo particular” (SANTOS, 1983, p. 1078). Esse tempo diz
respeito ao tempo de cada pessoa, de cada empresa, de cada instituição e se realiza em função
das condições técnicas e organizacionais de cada lugar. “É, pois o lugar que determina o
tempo e não o tempo que determina o lugar” (SANTOS, 1983, p. 1078). Essa possibilidade
(porque não é para todos) real da hipermobilidade da sociedade contemporânea se efetiva em
função da diferenciação dos lugares, que são a fonte de todo deslocamento. A diferenciação
dos lugares se define pelas densidades técnica, informacional e comunicacional (SANTOS,
2006, p. 257-258).
Como anunciamos desde o início, a mobilidade implica em circulação e comunicação.
Faremos a partir de agora uma diferenciação entre circulação e comunicação apenas para
tornar a explicação mais compreensiva. Entendemos que todo deslocamento implica em
circulação-comunicação.
De maneira geral considera-se circulação o deslocamento de bens materiais e de
pessoas (circuito espacial produtivo) e comunicação os fluxos de informações (círculos de
cooperação). O que coloca os primeiros mais relacionados às redes de transportes e o segundo
às redes de telecomunicações. Essa separação não deve ser rígida, pois tanto objetos como
pessoas portam informações. Lembramos que além de falarmos de circulação e comunicação,
ao tratarmos de circuito espacial produtivo, devemos nos reportar também à logística. Ver
texto de Castillo e Frederico nesta mesma coletânea.
A circulação é a base para o funcionamento do circuito produtivo, é ela que permite as
trocas e transferências, que dinamiza os processos e possibilita as interações entre os lugares
nos autorizando a falar em circuito espacial. No entanto a condição necessária para todo esse

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processo é espacial. “Para que determinadas ações se produzam, é necessário que um certo
arranjo físico-espacial seja concomitantemente produzido” (GOMES, 1997, p. 37). Esse
arranjo físico-espacial é a configuração territorial, é o conjunto de objetos geográficos. Esse
arranjo, essa configuração participa da hierarquia entre os lugares e configura diferenciações
espaciais, daí a importância do lugar para a análise.
Grosso modo quando falamos em circulação devemos considerar pelo menos três
aspectos articulados: a ligação entre os lugares, os modos de deslocamento e a natureza dos
elementos. A circulação permite o funcionamento de um sistema de troca entre pessoas e
entre lugares – portos, aeroportos, cidades, regiões, países (ligação). Essas trocas se efetivam
através de rodovias, ferrovias, hidrovias, aerovias (deslocamento). A natureza dos elementos
diz respeito às características do que é transportado. Todo esse conjunto implica em rede de
transporte. Lembramos que toda rede é por natureza possibilidade de ligações, mas também é
fechamento, restrição. Isso requer da análise territorial elementos para além das redes.
Comunicação é fluxo de informação. Antes de tudo, esse par (comunicação-
informação) é constituído por um conjunto de objetos concretos e está intimamente ligado à
produção stricto sensu contribuindo para especialização dos lugares e induzindo a troca. Esse
fato requer análise espacial. O mito da abolição das distâncias gerou a falta de interesse,
principalmente dos geógrafos, das implicações espaciais das TICs (tecnologia de informação
e comunicação). Vale a pena lembrar que “um dos problemas fundamentais inerentes a
qualquer estudo sistemático da organização do espaço é determinar: por que cada coisa está
situada num determinado lugar em vez de em outro qualquer” (SANTOS, 2003, p. 56). Neste
sentido um estudo sobre circuito espacial produtivo e os círculos de cooperação deve indagar
sobre qual é o impacto das redes de telecomunicação sobre a concentração de pessoas e de
atividades, sobre a circulação e sobre a localização das empresas e da mão-de-obra. Qual o
seu impacto nos lugares?
Feitas essas breves considerações nosso intuito, a partir desse ponto, é mostrar a
importância do lugar na análise sobre circuitos espaciais produtivos. Santos (2008a, p. 53)
chama a atenção para o seguinte fato: “quanto mais os lugares se mundializam, mais se
tornam singulares e específicos, isto é, únicos”. Se isso é verdade o elemento que dá
singularidade ao circuito é o lugar. É no lugar que se dá a combinação única entre produção,
circulação, troca e consumo. Cabendo ao pesquisador fazer uma análise situacional
entendendo a localização não como um ponto, mas como um recurso. A configuração

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territorial dá aos lugares especificidades, criando diferenciações espaciais e dotando os


lugares de aptidões que permitem a instalação, ou não, de determinadas atividades. Essa
dotação, que dá característica própria a cada lugar, é o que Milton Santos vai chamar de Lei
do Lugar.
Os circuitos produtivos se estruturam sempre em função de uma dada atividade que
envolve a produção propriamente dita, a circulação, a distribuição e o consumo. “Só a
produção propriamente dita tem relação direta com o lugar e dele adquire uma parcela das
condições de sua realização” (SANTOS, 2008b, p. 13). A produção propriamente dita é a face
mais evidente de todo o processo, é ela que lhe dá corporeidade e significação. Essa
corporeidade produz uma topologia que permite a análise da distribuição das áreas de
produção e dos lugares de produção.
Ao fazer a análise do lugar o pesquisador não deve se esquecer de levar em
consideração outra categoria importante qual seja aquela de evento, “porque permite unir o
mundo ao lugar; a História que se faz e a História já feita; o futuro e o passado que aparece
como presente” (SANTOS, 1999, p. 15). A combinação entre evento e lugar cria o novo, o
único. O mundo é um feixe de variáveis que contém todas as possibilidades, o evento é o
portador de algumas dessas possibilidades. A realização dessas possibilidades somente é
possível no lugar. É o lugar que dá existência ao evento enquanto possibilidade, é o lugar que
revela o evento e o torna único. “Cada lugar é uma combinação única qualitativa e
quantitativamente de vetores” (SANTOS, 2006, p. 151). Os lugares podem ter conteúdos
parecidos, mas nunca idênticos. Podemos mesmo dizer que o lugar se define pela combinação
única da realização e corporificação de algumas das possibilidades que existem no mundo
apenas como possibilidades: que são os eventos. O lugar é também “funcionalização do
mundo e é por ele (lugar) que o mundo é percebido empiricamente” (SANTOS, 2005, p. 158).
É importante frisar que cada variável, que compõe um determinado evento, “é inteiramente
desprovida de significação fora do sistema ao qual pertence” (SANTOS, 1990, p. 254) e do
lugar no qual se instala.
A empiricização do mundo permite falar em área de ocorrência de determinado evento
que se realiza no lugar e se superpõem à área de ocorrência de outros eventos. Cada evento
apresenta uma escala de origem e uma escala de realização. A primeira se refere às forças
operantes que produzem os eventos, a segunda é a escala do fenômeno que se remete à área
de ocorrência e é dada pela extensão do evento. Os eventos são individuais, mas não isolados,

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eles fazem-se numa combinação interdependente, formando uma trama complexa,


compreensível a partir da totalidade, que requer se levar em consideração materialidade e
sentido.
Entender essa totalidade requer levar em consideração as noções de verticalidade e de
horizontalidade, de materialidade e de sentido. As horizontalidades estão vinculadas ao lugar
e dizem respeito ao local de produção e de consumo, aos espaços justapostos, constituídos de
pontos contínuos, espaço da racionalidade e da contrarracionalidade; o que faz do lugar o
palco das tensões entre o mundo e o cotidiano. As verticalidades relacionem-se com o global,
ligam pontos remotos, são veículos de uma racionalidade exterior e estranha ao lugar, tende a
impor a lógica da “modernidade”, dizem respeito ao interesse de poucos que tende a regular a
vida cotidiana. As tensões entre verticalidades e horizontalidades dão aos circuitos produtivos
uma “forma desagregada, embora não desarticulada” (SANTOS, 2008b, p. 14).
Cabe ao pesquisador imbuído do raciocínio geográfico (aquele que tem em sua base a
ordem espacial de objetos e ações e a trama relacional das localizações e lugares) situar o
conjunto de variáveis que compõe o circuito produtivo estudado, estabelecendo entre elas
suas ligações e nexos. São nestas ligações e em seus nexos que consiste a explicação
geográfica. Lembrando que “a escolha das variáveis não pode ser, todavia, aleatória, mas
deve levar em conta o fenômeno estudado e sua significação em um dado momento, de modo
que as instâncias econômica, institucional, cultural e espacial sejam adequadamente
consideradas” (SANTOS, 2008b, p. 14). O resultado dessa análise nos permite falar de uso do
território e de lugar. O conjunto de variáveis que viabiliza uma determinada produção, como
por exemplo, a produção de cana, implica na noção de uso do território. A combinação
específica para esse uso é o lugar. Grosso modo poderíamos dizer que a produção de cana é o
uso do território e a especificidade de cada produção é dada pelo lugar. O Território é uso, o
Lugar é a combinação para esse uso.
O lugar dá diversidade às variáveis, “cada elemento do espaço tem valor diferente
segundo o lugar em que se encontra” (SANTOS, 2008b, p. 21). Uma usina de açúcar montada
no Rio Grande do Norte e outra montada em Pernambuco pela mesma firma, ao mesmo
tempo e com as mesmas condições técnicas, darão resultados diferentes, mesmo considerando
igual quantidade de produção de açúcar. Essa diferença somente pode ser explicada pelo
lugar.

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REFERÊNCIAS

CASTILLO, Ricardo; FREDERICO, Samuel. Espaço geográfico, produção e movimento:


uma reflexão sobre o conceito de circuito espacial produtivo. Sociedade & Natureza,
Uberlândia, v. 3, n. 22, p. 461-474, dez. 2010. Disponível em:
<http://www.seer.ufu.br/index.php/sociedadenatureza/article/view/11336>.

GOMES, Paulo C. da C.. Geografia fin-de siècle: O discurso sobre a ordem espacial do
mundo e o fim das ilusões. In. CASTRO, I; GOMES, P.C.C; CORRÊA, R.L.. Explorações
Geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

SANTOS, Milton. Posface: Les nouveaux mondes de la géographie. In: BAILLY, A.;
FERRAS, R.; PUMAIN, D.. Encyclopédie de Géographie. Paris: Economica, 1983.

_______. Por uma Geografia Nova. 3 ed. São Paulo: Edusp, 1990.

_______. O território e o saber local: algumas categorias de análise. In: Cadernos do IPPUR,
Rio de Janeiro, 1999, Ano XIII, n. 2, p.15-26.

_______. Economia Espacial. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2003.

_______. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2005.

_______. Natureza do Espaço. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2006.

_______. Metamorfose do Espaço Habitado. 6. ed. São Paulo: Edusp, 2008(a).

_______. Espaço e Método. 5. ed. São Paulo: Edusp, 2008(b).

Recebido em Março de 2016

Aprovado em Maio de 2016

Publicado em Junho de 2016

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