Você está na página 1de 47

EDIÇÃO ESPECIAL

ESCOLA MARX
ANO 10 / Nº 37
MAIO DE 2020
EDITORIAL
Felipe Simoni,
Sara Soares e
Camila Souza
Acompanhe o Juntos
DIAGRAMAÇÃO nas Redes Sociais!
Erick Andrade

COLABORADORES
Camila Barbosa,
Douglas Gonçalves,
Eduardo Carniel,
Vem
Erica Coletti,
Fabiana Amorim,
com o
Iolanda Barbosa, Juntos!
Israel Dutra,
João de Paula,
Júlio Câmara,
Kathleen Magina,
Luana Alves,
Natalia Pennachioni,
Renata Moara,
Theo Louzada,
Thiago Aguiar,
Victor Hugo Louzeiro.
SUMÁRIO

3 EDITORIAL AGENTES DA
PRÓPRIA HISTÓRIA
4 DESENVOLVIMENTO
DESIGUAL E 22 MARXISMO E
COMBINADO E A SAÚDE
ATUALIDADE DA
REVOLUÇÃO 25 JUNTOS
PERMANENTE ENTREVISTA!

8 POR QUE O 32 A QUESTÃO


IMPEACHMENT É EDUCACIONAL EM
NECESSÁRIO? MARX E ENGELS

10 O AMANHÃ NÃO 35 A ARTE DA


ESTÁ À VENDA RESISTÊNCIA

13 LITERATURA 38 REFLEXÕES
REVOLUCIONÁRIA NO SOBRE O
BRASIL E NO MUNDO FEMINISMO
MARXISTA
17 MOVIMENTOS
NEGROS 42 MARX E FREUD
REVOLUCIONÁRIOS
DO ATLÂNTICO:
Nº 37 / Edição Especial 3

EDITORIAL
Por
Felipe Simoni (USP), Camila Souza (UFRJ) e Sara Soares (UFMG), as
três do Grupo de Trabalho Nacional do Juntos.

Em meio à uma das maiores que a geração que está enfren-


pandemias da história humana, tando o aprofundamento da
o Brasil se encontra em uma barbárie capitalista, tem a tarefa
dura batalha na guerra do coro- histórica de construir uma alter-
navírus, a batalha da ciência nativa que rompa com esse sis-
contra a ignorância, defendida tema individualista, desigual e
pelos bolsonaristas. O presiden- opressor.
te, seus ministros e seguidores já
declararam inúmeros vezes suas Somos impulsionadores de uma
ideias medievais de aversão à grande iniciativa de formação
ciência e à educação e, agora, co- política gratuita e aberta, cha-
locam em risco a saúde e a vida mada Escola Marx, que contou
do povo brasileiro, em nome com milhares de inscrições de
dessas ideias retrógradas. pessoas de todo o Brasil. Por
isso, essa edição do Jornal
Mais do que nunca, é hora de de- Juntos! pretende apresentar o
fender a ciência, e fundamental- marxismo como ele é: a ciência
mente, a ciência que não se da totalidade, da crítica, do mo-
limita às técnicas, mas uma ciên- vimento e da síntese. Reunimos
cia crítica e transformadora. O textos que relacionam o marxis-
marxismo vêm ganhando a mo às diversas áreas da ciência,
atenção do Brasil há alguns anos, das artes, da literatura, a fim de
seja por seus adversários, em que essa ferramenta, que é o
especial os lunáticos da escola nosso jornal, contribua ainda
de Olavo de Carvalho, que mais a leitura e formação de
ocupam cargos importantes, cada vez mais marxistas no
como o de Ministro da Educa- nosso país.
ção, mas principalmente por
uma juventude, que entendeu Boa leitura.
Nº 37 / Edição Especial 4

Por
Júlio Câmara
(Diretor de
ME da UNE))

O
DESEN
VOLVI
MENTO
DESIGUAL E
COMBINADO E
A ATUALIDADE
DA
REVOLUÇÃO
PERMANENTE
Nº 37 / Edição Especial 5

No mês de abril celebramos 150 o DNA internacionalista, mun-


anos do nascimento de Vladimir dial, do movimento comunista:
Ilyich Ulianov, o revolucionário Proletários de todos os países,
russo Lênin. Celebrar a vida e a uni-vos!
obra de Lênin é reivindicar um
legado revolucionário e a luta De lá pra cá, o desenvolvimento
pelo socialismo mundial. Lênin do capitalismo mundial atestou
era um grande internacionalista; a veracidade das tendências
considerava a classe proletária apontadas por Marx. Trata-se de
russa e o seu partido como um um problema internacional que
destacamento do exército mun- exige uma luta internacional.
dial de trabalhadores e do movi- Mas o programa do partido co-
mento operário internacional e munista, suas táticas e estraté-
encarava todas as questões gias passaram por ferozes polê-
essenciais da revolução e da micas durante a história.
construção do socialismo na
Rússia a partir dos interesses do No calor dos acontecimentos na
movimento internacional de Rússia, foi aberta a polêmica
libertação dos trabalhadores. sobre a revolução. Os menchevi-
ques defendiam um processo
Para Lênin e o núcleo dirigente por etapas, em que era hora de
bolchevique, o marxismo era apoiar a burguesia para derru-
uma bússola. Por isso, sempre bar o czar, desenvolver o capita-
tiveram consciência de que a lismo e depois lutar pela revolu-
felicidade completa da revolu- ção socialista. O contraponto
ção russa estava relacionada ao defendido pelos bolcheviques, e
avanço da revolução socialista corretamente escolhido pelos
em outros países. revolucionários, era a teoria da
revolução permanente. Foi o
Ao lançar o Manifesto Comunis- próprio Marx que, em 1850,
ta, Marx e Engels estavam inau- lançou os fundamentos desta
gurando um movimento científi- teoria, quando disse que o inte-
co capaz de analisar o funciona- resse do partido proletário não
mento da sociedade com o ob- pode ser satisfeito com a revolu-
jetivo de transformá-la. Este do- ção democrática burguesa
cumento foi o ponto de partida porque é preciso “fazer a revolu-
para o programa defendido ção permanente, mantê-la em
pelos comunistas ao longo da marcha até que todas as classes
história. A última frase expressa proprietárias e dominantes
Nº 37 / Edição Especial 6

sejam despojadas do poder”. organização internacional. Não é


possível consolidar o socialismo
O revolucionário Leon Trotsky, num só país, como ensinou a
membro do núcleo dirigente experiência russa que teve os
bolchevique com Lênin, apro- caminhos fechados com a der-
funda a teoria da revolução per- rota da revolução alemã.
manente através da lei do de-
senvolvimento desigual e com- Leon Trotsky levou adiante a
binado dizendo que a revolução bandeira da revolução interna-
democrática seria um episódio cional lutando contra a burocra-
da revolução socialista. O que cia até ser assassinado a mando
quer dizer que a derrubada do de Stalin em 1940 no México. Em
czar teria continuidade até a certo sentido, os capangas de
expropriação da burguesia. E foi Stalin chegaram atrasados, pois
isso que aconteceu. Trotsky já havia fundado uma
nova organização internacional
A linha etapista, recusada pelos de partidos revolucionários e
revolucionários russos, foi reci- anti burocráticos: a IV Interna-
clada por Stalin após a morte de cional.
Lênin. Stalin burocratizou o par-
tido e o Estado soviético, atuan- A fundação da IV Internacional,
do a favor da contrarrevolução e considerada o maior legado de
perseguindo os revolucionários Trotsky, baseou-se no método
que seguiram fiéis ao legado de do programa de transição, da
Lenin e à ciência marxista. Com teoria da revolução permanente
Stalin no comando, foi abando- e, claro, na tradição internacio-
nada a estratégia da revolução nalista. O Programa de Transição,
mundial e a União Soviética ficou em linhas gerais, é um documen-
à disposição dos interesses dos to que busca fazer a relação
burocratas e não mais dos tra- entre o programa mínimo (rei-
balhadores do mundo que Marx vindicações imediatas) e o pro-
apelava para unirem-se. grama máximo (a tomada do
poder) para orientar a atividade
A juventude que se engaja para revolucionária diante das con-
construir uma organização revo- tradições entre as condições
lucionária no Brasil precisa saber objetivas para a revolução e a
que é fundamental que esta imaturidade das condições sub-
organização seja internacionalis- jetivas (o nível de consciência de
ta e um destacamento de uma classe e a fragilidade da direção).
Nº 37 / Edição Especial 7

O grande feito de Trotsky foi da natureza pelo homem. É pre-


salvar o fio de continuidade da ciso dar um passo firme, consis-
história do partido e do progra- tente, para construir um novo
ma revolucionários desde a programa a partir do método
redação do Manifesto Comunis- do programa de transição. Preci-
ta, passando pelas polêmicas da samos conectar as lutas ecológi-
revolução russa, entre outras, cas, as lutas raciais, a luta das
até a sobrevivência durante a mulheres, dos imigrantes, a luta
contra revolução stalinista. por direitos humanos e sociais
para avançar na unidade das
Para apagar essa história e elimi- lutas nacionais que só podem
nar este fio de continuidade, a ter um fim no cenário mundial.
ideologia burguesa insiste em
dizer que não existe mais uma
classe operária internacional,
um proletariado mundial. Trata-
-se de uma mentira para des-
montar e desmobilizar qualquer
entusiasmo com a revolução
mundial.

Durante a pandemia do novo co-


ronavírus fica nítida a divisão da
sociedade em classes e como os
proletários enfrentam os
mesmos problemas em maior
ou menor medida, são sempre
mais explorados pela burguesia
e ficam mais suscetíveis à falta
de saúde pública.

Hoje não temos uma organiza-


ção internacional com capacida-
de de mobilização massiva. Por
outro lado, estão evidentes os
elementos que internacionali-
zam a necessidade de lutar por
outro futuro, digno, sem explo-
ração do homem pelo homem e
Nº 37 / Edição Especial 8

POR QUE O
IMPEACHMENT
É NECESSÁRIO?
Por
Theo Lozada
(UEE RJ) e
João de Paula
(DCE UFRJ)

Enquanto há uma pandemia que sistema: a forma jurídica e a


mata centenas de pessoas por forma política.
dia, em especial nas regiões mais
pobres, temos um presidente Em essência, esta possibilita que
que apresenta desprezo pela os sujeitos sejam considerados
vida de milhões e promove ma- como iguais, para que possam
nifestações fascistas com frequ- contratar livremente. Se no perí-
ência. Diante disso, uma polêmi- odo em que a escravidão predo-
ca toma centralidade: é possível minava as pessoas eram presas
derrubar o Bolsonaro da presi- por correntes a seus explorado-
dência? Se sim, o impeachment, res; hoje essas são dependentes
um processo político e jurídico, daqueles que a exploram através
é o meio adequado para tanto? do contrato. Por sua vez, o
Para respondermos a essas Estado, serve ao explorador apa-
questões, devemos compreen- recendo como terceiro impar-
der o papel do direito e do cial que está acima das classes
estado no modo de produção para garantir a manutenção do
capitalista, à luz do marxismo. capitalismo. Assim, direito e
Com o desenvolvimento do estado são essenciais ao capita-
capitalismo, surgem formas lismo, visto que permitem a
sociais que decorrem e ao reprodução do ciclo de explora-
mesmo tempo sustentam esse ção. Logo, para a superação
Nº 37 / Edição Especial 9

desse sistema, elas teriam que necessário fazê-lo”. Uma de suas


ser extintas. principais lições é a compreen-
são de que é preciso contribuir
Evguiéni Pachukanis é considera- para a luta com todos os méto-
do o mais importante teórico dos fornecidos pela legalidade.
marxista do direito. Caiu no
esquecimento por anos, sendo Portanto, o uso tático do direito
assassinado em 1937, devido a não é incompatível com a noção
suas posições contrárias ao de que o direito e o Estado deri-
regime stalinista. Aos 33 anos, no vam das relações que sustentam
ano em que faleceu Lênin, o o modo de produção capitalista.
jurista escreveu um artigo anali- Entender a natureza capitalista
sando as posições do líder revo- da forma jurídica e da forma po-
lucionário sobre o direito. A lítica não impede a utilização
visão de Lênin sobre o uso tático tática destas na luta anticapita-
do direito é fundamental para lista. Lênin nos ensina que pode-
analisarmos a questão do impe- mos utilizar das ferramentas de-
achment. correntes do próprio capitalis-
mo como meio para o avanço da
Pachukanis expõe que a “incom- luta revolucionária.
parável dialética de Lênin talvez
não apareça em lugar algum No atual cenário, no qual não po-
com mais força do que nos pro- demos reunir milhares de pes-
blemas do direito”. Sua tática soas nas ruas, temos que fazer a
nunca partiu de uma negação da luta de classes avançar por
legalidade, da qual considerava outros meios. Principalmente,
de caráter não revolucionária. O quando Bolsonaro se torna o
jurista russo descreve como maior perigo ao combate a CO-
Lênin caracterizava o uso tático VID-19 no Brasil. Coloca a econo-
do direito como algo necessário mia em primeiro lugar, dando
em certas ocasiões. Principal- mais importância aos CNPJs do
mente, quando este fosse o que aos CPFs. Impede a existên-
único caminho possível de luta. cia de um plano de emergência,
Lênin, ao ser questionado sobre podendo levar à fome e à morte
as possibilidades do uso do milhões de brasileiros. O impea-
direito por revolucionários, des- chment é o meio viável para que
taca que os socialistas são a possamos derrubar Bolsonaro e
favor do uso da legalidade: “É ne- salvar a vida da população.
cessário saber como fazê-lo e é
Nº 37 / Edição Especial 10

O AMANHÃ
NÃO ESTÁ A
VENDA,

VAMOS
RES
SIGNI
FICAR
O HOJE.

Por
Victor Hugo
Louzeiro
(DCE UFRN)
Nº 37 / Edição Especial 11

"[O capitalismo] É um modelo dade de consumo e o consumo


insustentável, que visa o cresci- da necessidade, instituindo um
mento infinito em um planeta ciclo vicioso e alienante à classe
finito, que ultrapassa todos os mais pobre, somado ainda à
limites da Terra, criando uma uma obsolescência programada
alienação ecológica e uma de- dos produtos gerados, de modo
manda de consumo incompatí- que as instituições capitalistas
vel com o uso racional de bens preservem institucionalmente a
comuns". (Bureau da IV Interna- riqueza e a exploração. Dentro
cional,2020) dessa dinâmica, a demanda é em
grande escala e produzir produ-
As décadas iniciais do século XXI tos necessita de recursos a
foram marcadas por um levante serem explorados e transforma-
popular que teve como ponta dos. A fonte está na terceira
de lança a juventude e os povos pessoa da dialética capitalista,
tradicionais da periferia global. vista como objeto a ser explora-
Com o aprofundamento da crise do e infinito, mas se finito, pelo o
capitalista, que teve o seu ápice que vemos na história, não im-
em 2008 e agora segue acirrada portaria para eles. Essa fonte de
pela pandemia de COVID-19, a recursos é um organismo vivo
percepção da degradação, em escala global, o próprio pla-
exploração e desigualdade em neta Terra.
todos os âmbitos se explicitam
de maneira mais latente entre o Após revolução industrial o sen-
mundo. Como resposta à ela tido de desenvolvimento foi se
estão os exemplos dos atos firmando com base em uma
pelas mudanças climáticas em estrutura que favorecia o acú-
2019 e o levante dos povos origi- mulo de bens e serviços dos que
nários e tradicionais na defesa eram donos da produção. Os
de suas terras e direitos no Chile centros urbanos organizados
e Equador. para receber a mão de obra
(contratados para fazer os pro-
O sistema global demandou e duto ou bens nas fábricas), as
organizou o modo de vida, estradas de ferro para o trans-
sonhos, instituições e nações porte, o desmatamento e as
com a finalidade de acumular minas de metais para construir
riquezas. Uma cultura individua- estradas e cidades. Se afastando
lista para estabelecer o acervo em grande escala do campo e da
de bens aos patrões, a necessi- terra, transformando o territó-
Nº 37 / Edição Especial 12

rio completamente em empre- como resposta das vantagens


endimento humano, mas dei- do capitalismo, atua na contra-
xando para sobreviver ao entor- -mão do materialista-histórico
no das cidades os trabalhado- nos levando a pensar que preci-
res. Essa linha de pensamento samos também ressignificar. Se
desenvolvimentista se consoli- a tecnologia é produzida a partir
dou por todo o globo, em da exploração da mão de obra e
tempos distintos, do Oriente à do material, beneficiando sobre-
América do Sul. Como projeto tudo o dono dos meios de pro-
dos grandes centros capitalis- dução (o capitalista), nos levan-
tas, transformar essas nações do a um inevitável cenário de co-
nesse mesmo modelo favorecia lapso planetário, algo está
os grandes grupos no centro errado. Repensar a tecnologia
industrial, agora em escala com princípios baseados na
global. não-exploração, no novo pensar
sobre o trabalho, na inteligência
Hoje vemos as consequências do uso equilibrado-integraliza-
desse modo de produção e “de- do com a natureza (reconhecen-
senvolvimento”. Um aparato do e valorizando sua própria
global que tem como único ob- tecnologia) com objetivo de que
jetivo o acúmulo de bens e não haja uma obsolescência
riquezas para poucos, em detri- programada e destruição da
mento da vida planetária e de terra, se trata do verdadeiro de-
animais humanos e não-huma- senvolvimento.
nos. Está sujeito à contestação o
próprio sentido de “desenvolvi- Por fim, vale lembrar uma cita-
mento”. A filosofia e modo de ção desse importante filósofo
vida dos povos originários em brasileiro, dos povos originários:
todo globo é uma grande fonte
de inspiração e de ressignifica- "Esse pacote chamado de huma-
ção. Os seres fazem parte de um nidade vai sendo descolado de
todo, um grande organismo vivo maneira absoluta desse organis-
onde nossas ações repercutem mo que é a Terra, vivendo numa
na vida. Se desfaz individualismo abstração civilizatória que supri-
e da propriedade privada, em me a diversidade, nega a plurali-
valor do coletivo e solidário, de- dade das formas de vida, de
senvolvendo assim a sociedade. existência e de hábitos". (Airton
Krenak, 2020)
A tecnologia, muito utilizada
Nº 37 / Edição Especial 13

LITERATURA
REVO
LUCIO
NÁRIA
NO BRASIL E
NO MUNDO

Por
Iolanda
Barbosa
(UFU) e
Eduardo
Carniel (USP)
Nº 37 / Edição Especial 14

O que marxismo co literário Matthew Arnold, a


tem a ver com cultura seria um reino de
cultura? “doçura e luz”.

Feche os olhos e pense na per- Essa concepção se alinha ao que


gunta: o que é cultura? Pode ser chamamos de “idealismo”, ou
que tenha passado pela sua seja, a crença de que o mundo
cabeça as obras de arte dos das ideias é que tem o poder de
grandes museus. Dizemos moldar a realidade e de que ele é
também que uma pessoa “tem composto de Absolutos que são
muita cultura”, querendo dizer sempre válidos, não importa as
que ela já leu, ouviu e assistiu a transformações sociais. Os críti-
muitas dessas obras. Uma possí- cos literários marxistas introdu-
vel resposta então é: cultura é ziram uma observação: de que
tudo que já foi produzido de os supostos valores “universais”
“melhor” pela humanidade. São recebiam esse nome não por
as obras que ascendem para dizerem respeito de fato a todas
além de uma realidade específi- as pessoas, mas porque diziam
ca, produzidas por “gênios” e que respeito a um setor específico-
ganham o direito de serem não à toa, o setor que domina
transmitidas de geração em politicamente a sociedade, que
geração. no capitalismo é a burguesia. Os
tais “gênios” então, em que
Pode-se dizer que essa concep- pesem seus talentos, ganham
ção de cultura é o nosso senso esse título pelo mesmo grupo
comum. Mas ela não veio do de pessoas que decidem quais
nada. Os primeiros teóricos mo- valores são universais ou não -
dernos da cultura enxergavam a guiados pela ideologia, a falsa
cultura como uma esfera autô- consciência, que essa classe do-
noma, separada da realidade co- minante impõe na sociedade.
tidiana. As obras que habitavam
essa esfera “não se misturavam” O que o marxismo ajudou a
com a realidade vulgar, cheia de mudar nessa visão? Marx nos
conflitos. A cultura poderia, ensina que as superestruturas
então, coesionar a anarquia do da sociedade (as instituições)
mundo real por meio dos gran- são formadas a partir da sua
des valores universais que esta- estrutura (as relações de produ-
riam preservados nessa esfera ção, o jeito que ela se organiza).
autônoma. Nas palavras do críti- Isso significa que a cultura, longe
Nº 37 / Edição Especial 15

de ser autônoma, é na verdade estado de coisas e permite, de


uma expressão do movimento certa forma, a elaboração e o
da realidade. Por isso existem vislumbre de novas formas de
culturas diversas, representati- dinâmica social.
vas de diferentes projetos. Ray-
mond Williams, um dos primei- É evidente que existem obras
ros críticos literários marxistas, que se encaixam naquilo que po-
traz essa discussão quando demos chamar de “literatura en-
reflete sobre o modo de viver da gajada”, ou seja, obras que se de-
sua família de trabalhadores, dicam conscientemente a de-
que expressava valores diferen- nunciar a realidade social e a de-
tes do que era conhecido como fender a necessidade de sua
cultura. Essa cultura não-hege- transformação. Mas o que se
mônica traz consigo uma manei- torna evidente à medida que
ra de ver o mundo que também temos contato com a Literatura
é diferente da dominante, e que é que, pela simples operação de
pode abrir caminho para outras descrever a realidade, a obra
maneiras de ver a sociedade literária cria uma narrativa que
como um todo. A cultura, por- estrutura uma visão do mundo,
tanto, não é privilégio dos o que pode tornar visível contra-
“gênios” de dentro dos museus e dições que antes estavam ocul-
academias. Como Williams sinte- tas.
tiza num de seus ensaios mais
belos: a cultura é de todos. Nas palavras do filósofo Jean-
-Paul Sartre, “a Literatura é, por
Existe uma essência, a subjetividade de uma
Literatura sociedade em revolução perma-
revolucionária? nente” assim como também é
uma “tomada de posição”, pois
Trazendo a discussão pro campo toda obra se orienta de alguma
da literatura, podemos dizer forma no contexto sociopolítico
que, independentemente de sua em que surge.
forma ou conteúdo, ela carrega
um potencial revolucionário. Sartre defende ainda que “a obra
Isso porque ela possui a capaci- de arte como fim absoluto se
dade de captar e reorganizar os opõe, por essência, ao utilitaris-
elementos da realidade, a partir mo burguês”, uma vez que, como
da linguagem. A Literatura, assim dito anteriormente, a Literatura
como a Arte, re-configura o guarda em seu bojo o registro
Nº 37 / Edição Especial 16

(ainda que reorganizado) da rea- dela.


lidade e de suas contradições,
escapando a qualquer tentativa De toda forma, não faltam
de “aparelhamento”. Uma visão exemplos históricos de escrito-
similar é defendida por Trotsky res engajados e que colabora-
na sua obra Literatura e revolu- ram sobremaneira na luta eman-
ção, e também no manifesto cipatória do povo. Alguns, de
escrito junto ao escritor surrea- forma mais incisiva, defendiam a
lista André Breton em defesa da necessidade de utilizar a Litera-
construção de uma “Federação tura como campo de disputa
Internacional da Arte Revolucio- ideológica, tal como o próprio
nária e Independente”, uma res- Sartre, quando escreve que
posta às propostas autoritárias “[nós, escritores] em nossos
de Stalin acerca da Literatura e escritos devemos militar em
da Arte. favor da liberdade da pessoa e
da revolução socialista”, e mais
E os escritores, além: “a cada dia é preciso tomar
estão partido, em nossa vida de escri-
comprometidos tor, em nossos artigos, em
com a luta do nossos livros”. Tomemos partido
então, com a arma da cultura e
povo?
da Literatura. Pois como disse
Leminski: “En la lucha de clases/-
Assim como qualquer outro
todas las armas son buenas/pie-
setor da sociedade, os escrito-
dras/noches/poemas”!
res, como grupo, são permeados
de contradições. Ainda que pen-
sadores como Sartre defendam >> 3 livros pra ler
que a escrita compele ao engaja- na Quarentena
mento, assim como a leitura
compele à reflexão, sabemos * Que é literatura? /
que diversos escritores se dedi- Jean-Paul Sartre
caram à defesa da manutenção
da classe dominante e de seus * Literatura e
privilégios. Para o escritor Revolução /
Osman Lins, a indústria cultural León Trotsky
promoveria a alienação do escri-
tor, ainda que não consiga alie- * Literatura e
nar completamente a sua obra e Sociedade /
as reflexões elaboradas a partir Antonio Candido
Nº 37 / Edição Especial 17

MOVIMENTOS
NEGROS
REVOLU
CIONÁ
RIOS
DO ATLÂNTICO:
AGENTES DA
PRÓPRIA
HISTÓRIA
RECUPERAR O MARXISMO
NEGRO É CONSTRUIR NO
PRESENTE A
EMANCIPAÇÃO GLOBAL

Por
Douglas
Gonçalves
(Historiador
e Rede
Emancipa)
Nº 37 / Edição Especial 18

Thereza Santos (1930-2012) foi maior parte a partir da metade


uma atriz e militante feminista e do século XX, todas essas figuras
comunista carioca, tendo compartilham de uma mesma
atuado na União Nacional dos ferramenta para compreender o
Estudantes e também no Minis- mundo e transformá-lo: o mar-
tério da Educação e Cultura da xismo, sob a ótica antirracista e
Guiné-Bissau nos anos de 1970, anticolonial.
auge da Ditadura Militar brasilei- A Revolução de 1917 abalou as
ra; o Frantz Fanon (1925-1961) foi estruturas de todo o mundo.
um importante psicanalista e Não significou apenas a mudan-
intelectual da Martinica que ça de regime de um território,
atuou no guerra de libertação da mas a concretização de décadas
Argélia, iniciada em 1957, sendo de elaborações vindas de expe-
um expoente no pensando riências práticas e teóricas e
sobre as consequências do uma nova esperança para os
racismo na subjetividade dos povos das mais diversas regiões
povos colonizados; o ganense do globo. A vitoriosa ofensiva
Kwame Nkrumah (1909-1972) foi protagonizada pelos trabalha-
um importante panafricanista e dores e trabalhadoras organiza-
a principal liderança do proces- dos(as) contra um poder esta-
so de descolonização do seu belecido, causador de desigual-
país, tendo uma importante dade e péssimas condições de
contribuição no entendimento vida, foi um evento aterroriza-
sobre o Neocolonialismo e dor para os poderosos — mas
sobre Socialismo Científico; a também um exemplo para
estadunidense Angela Davis é muitas populações que, nas difí-
uma filósofa feminista marxista ceis realidades particulares de
nascida em 1944, tendo se tor- seus territórios, passaram a vis-
nado uma importante figura po- lumbrar a revolução como uma
lítica após sua injusta prisão no possibilidade. Após a Segunda
auge luta por direitos civis, no Guerra, com a dada polarização
início dos anos 1970, cuja campa- do mundo entre o comunismo
nha por liberdade movimentou (representado pela União Sovié-
milhares de pessoas. O que essas tica) e o capitalismo (represen-
lideranças todas têm em tado pelos Estados Unidos), o
comum? Para além de serem sistema se readaptou, a geopolí-
grandes militantes negros e tica se transformou e novas hie-
negras inseridos em seus res- rarquias e formas de exercer
pectivos processos políticos, em poder entraram em cena. Mas
Nº 37 / Edição Especial 19

onde há opressão, há resistên- socialismo deveria ser o hori-


cia; e para fazer frente a essa mu- zonte dos movimentos de liber-
dança global, novas lutas emer- tação nacional. Em sua obra A
giram, sendo os movimentos an- arma da teoria publicada em
ticoloniais e antirracistas do 1966, ele afirma:
Atlântico importantes peças
desse cenário. (...) só duas vias são possível para uma
Foi o caso de muitos movimen- nação independente: voltar à domina-
ção imperialista (neocolonialismo,
tos africanos que enfrentaram capitalismo, capitalismo de estado) ou
os regimes coloniais de seus adotar a via socialista. Esta opção, de
países, formando importantes que depende a compensação dos
lideranças nesse período — esforços e sacrifícios pelas massas
como Kwame Nkrumah (Gana, populares no decurso da luta, é forte-
mente influenciada pela forma de luta
1957), Agostinho Neto (Angola,
e pelo grau de consciência revolucio-
1961), Samora Machel (Moçambi- nária daqueles que a dirigem. (p.38)
que, 1964) e Amílcar Cabral
(Guiné-bissau, 1973) e muitos O ganense Nkrumah é um dos
outros. Ao longo de suas trajetó- principais nomes a elaborar o
rias políticas, em diferentes conceito de Neocolonialismo —
graus, a tradição marxista se fez isto é, o entendimento de que os
presente nas formas de pensar e processos de descolonização
agir para transformar a realida- não levaram à independência
de de seus territórios: não como plena dos países, mas a uma
uma leitura externa imposta de falsa noção de soberania que
forma rígida a uma realidade mantém elementos coloniais e
diferente, mas como ferramenta faz com que os sistemas econô-
dialética que se guiava e se reno- mico e político permaneçam
vava de acordo com as deman- sendo dirigidos do exterior, de
das práticas da luta anti-colo- acordo com as regras do jogo
nial. Como afirmava Amílcar imperialista. Seu livro Neocolo-
Cabral, para dar maior aplicabili- nialismo: última fase do colonia-
dade à leitura sobre a história da lismo (1965) serviu de orienta-
luta de classes, seria necessário ção para diversas lideranças do
reconhecer com profundidade continente africano pensarem a
as características das socieda- situação de seus países, tendo
des colonizadas e que estavam uma grande influência da publi-
nas amarras do Imperialismo; e cação de Lênin Imperialismo:
para essa e muitas outras lide- fase superior do capitalismo de
ranças políticas africanas, o 1917, visível na semelhança dos
Nº 37 / Edição Especial 20

fase superior do capitalismo de muitos dos principais quadros


1917, visível na semelhança dos do movimento negro brasileiro,
nomes das obras. especialmente no entorno do
A efervescência dos processos Versus, jornal da imprensa alter-
revolucionários africanos inspi- nativa que passou a incluir a
rou muitos movimentos na partir de 1977 uma seção chama-
América, que não só se solidari- da Afro-Latino-América. Discu-
zavam com os movimentos anti- tindo sobre a situação da popu-
-coloniais, como se inspiravam lação negra no Brasil, nos Esta-
em suas leituras para aperfeiço- dos Unidos e no continente afri-
ar suas leituras de mundo. O Par- cano, essa seção e outros veícu-
tido dos Panteras Negras, funda- los da imprensa negra foram
do em 1966 em reação à violên- fundamentais para a formação
cia policial nos Estados Unidos, de muitos militantes negros e
abarcava militantes de muitas negras no auge da Ditadura Mili-
orientações marxistas, de mao- tar, desaguando na fundação do
ístas à leninistas, forjando e Movimento Negro Unificado em
influenciando as principais lide- um grande ato nas escadarias
ranças do movimento negro do Teatro Municipal de São
estadunidense no imediato pós- paulo em 1978.
-Direitos Civis. Outro exemplo Todos esses movimentos
pouco conhecido foi o Com- tinham em comum a leitura de
bahee River Collective, uma que a problemática do racismo
organização de lésbicas feminis- era intrinsecamente ligada à
tas negras socialistas fundada problemática do capitalismo.
em Boston (1974) que foi pionei- Defendiam o socialismo como
ra em utilizar o termo “intersec- meio para superar os problemas
cionalidade” para caracterizar raciais, de gênero e de classe, em
como estruturas de gênero, raça um momento onde esse tipo de
e classe se combinavam no capi- leitura não tinha grandes apoia-
talismo. No Brasil, existiu o dores dentro da esquerda tradi-
Núcleo Negro Socialista, verten- cional. Partia desses movimen-
te da Liga Operária, criada em tos negros o esforço de atualizar
1974 por militantes brasileiros as leituras insuficientes, bem
exilados na Argentina que como o de superar teorias que
vieram posteriormente fundar a não visavam a transformação
organização trotskista Conver- radical da sociedade — mesmo
gência Socialista em 1978 em São aquelas oriundas de intelectuais
Paulo. Neste núcleo circularam periféricos. Obras de marxistas
Nº 37 / Edição Especial 21

negros negros caribenhos, como dos militantes dos movimentos


do historiador trinidadiano Cyril aqui citados foram assassinados
Lionel Robert James e do psica- por forças imperialistas ou por
nalista martinicano Frantz emboscadas de organismos
Fanon, circulavam por todo o como o FBI. E mesmo dentro das
Atlântico negro: do Caribe ao próprias bolhas progressistas,
Brasil, dos Estados Unidos aos ainda há um desencontro na
países africanos. E muito das hora de caracterizar, por exem-
teorias revolucionárias africanas plo, a relação dialética entre raça
chegaram ao Brasil, especial- e classe — e outras estruturas,
mente a dos países lusófonos como a de gênero — que não são
Angola, Guiné-Bissau e Moçam- meras “partes” ou questões
bique. Todas elas abordando a “identitárias”, mas sim uma tota-
construção do partido, o traba- lidade muito bem articulada e
lho de base, a teoria como arma em constante aperfeiçoamento
política, leituras sobre o impe- para a manutenção do sistema
rialismo, nacionalismo e muitas capitalista. Recuperar as ações e
outras questões pertinentes os pensamentos de negros e
para uma época onde a revolu- negras revolucionários(as) é
ção estava na ordem do dia. uma tarefa fundamental para
Essas trocas de referenciais acabar de vez com esse atraso e
davam uma dimensão interna- para recuperar o fôlego revolu-
cionalista ao movimento negro, cionário. Principalmente porque
que já era característica desde o essas elaborações, como mar-
início do século XX; para um pro- xistas que são, não visavam a
blema coletivo que, mesmo nas resolução unicamente dos pro-
suas especificidades, ultrapassa blemas dos povos colonizados,
barreiras geográficas, é necessá- ou dos povos racializados. Ao
rio pensar uma movimento de contrário, visavam uma emanci-
emancipação que também seja pação global. Como Frantz
coletivo. Fanon enfatizava, o fim da estru-
Em um mundo pautado pela tural racial depende de uma
ideologia neoliberal, onde é mais tomada de consciência também
possível imaginar o fim do econômica e social; afinal, a
mundo do que uma mudança de liberdade que se busca é, funda-
regime, é sintomático que hoje mentalmente, o fim da servidão
todos esses pensadores do Ter- do homem pelo homem.
ceiro Mundo estejam esqueci-
dos no pó da história. A maioria
Nº 37 / Edição Especial 22

MARXISMO E
SAÚDE: O
DIREITO À VIDA
E À SAÚDE
UNIVERSAL
Por
Kathleen Magina (UEE RJ), Luana
Alves (Psicóloga e Rede Emancipa) e
Natália Pennacochionni (UFSCAR)

O materialismo histórico é ne- pura concessão burguesa. Foram


cessário para compreender muitas as movimentações pres-
como se configura a saúde pú- sionaram desembocando nessa
blica brasileira, e também com- conquista. Os movimentos da
preender como os atores sociais Reforma Sanitária Brasileira
e contribuíram para a organiza- (RSB) e reforma psiquiátrica dão
ção das coisas. O conhecimento início, no final dos anos 70, a uma
vindo do marxismo se dá pela mudança de perspectiva pela
análise da dinâmica e transfor- disputa do conceito de saúde.
mação. O horizonte da luta de Vieram de movimentos de tra-
classes nos orienta na compre- balhadores e ativistas da saúde,
ensão de saúde e como ques- universitários, sindicalistas e
tões-limite de vida e de morte movimentos comunitários/de
são escancaradas, e as tensões bairro. Não chegou a ser um mo-
em relação à diferença entre as vimento político organizado,
classes no viver, adoecer, morrer com direção e programa global,
e se curar. mas erupção de movimenta-
Historicamente, temos um siste- ções sociais de expressão políti-
ma universal e gratuito de saúde, ca relativamente centralizada;
ainda que incompleto, não é tinham como bandeira melho-
Nº 37 / Edição Especial 23

res condições sanitárias para o considerando a diversidade, a


povo, uma abordagem mais co- necessidade de integralidade e
letiva e menos biológica/indivi- maior democratização no
dual no campo da saúde e refor- acesso aos serviços. Essa é,
mas na forma da assistência à porém, uma lógica ainda social-
saúde no Brasil. Também eram -democrata, colocando a saúde
anti-ditadura militar. Apesar de como política pública de um
não se organizarem partidaria- estado burguês que oferece o
mente, haviam lideranças parti- mínimo necessário.
dárias marxistas importantes,
como Sérgio Arouca, e outros. Para os marxistas da RSB, a
Toda essa organização desaguou saúde era um campo estratégico
na 8ª Conferência Nacional de dos revolucionários, onde ques-
Saúde, em 1986, sendo um tionava-se porque os processos
marco na luta pela saúde pública de adoecimento e cura se davam
brasileira, conquistada na lei em de maneira completamente
88. Seu Documento Final foi diferentes entre as classes,
base para a legislação do SUS. Na também as lógicas de financia-
lei lei 8.080/90, vemos a incorpo- mento público e privadas, ques-
ração de teorias sociais para a tionando um sistema econômi-
percepção de saúde, conside- co que inviabiliza o bem estar e a
rando determinantes e condi- capacidade das pessoas de usu-
cionantes para a saúde: alimen- fruírem plenamente de suas
tação, moradia, renda, sanea- capacidades físicas, intelectuais
mento, educação, transporte, e criativas. Mais concretamente,
lazer e acesso a serviços. o marxismo fundamenta o
Apesar da influência da RSB na avanço de uma concepção lati-
configuração do que viria a ser o no-americana de saúde, a partir
SUS, o que ficou de política pú- da teoria da determinação social
blica foi organizado para o clima do processo saúde-doença, co-
da Nova República. Existiram locando o trabalho como deter-
avanços importantes, em espe- minante desse processo, pois é
cial na disputa para que o con- mediador das relações estabele-
ceito geral de serviço de saúde cidas entre indivíduo, a socieda-
deixasse de se relacionar apenas de e natureza. Se comprometen-
a aspectos biológicos, curativos, do com uma classe social espe-
medicalizados e centrado nos cífica, torna-se uma ferramenta
grandes hospitais, para se rela- para a busca da superação das
cionar com a saúde preventiva, contradições da sociedade em
Nº 37 / Edição Especial 24

que se vive pelos trabalhadores passadas, com o movimento


da saúde e sociedade civil orga- sanitarista e o SUS, perdemos
nizada muito recentemente. É necessá-
Atualmente, mesmo no SUS rio criatividade e organização
“abrandado” -pela mediação da para agir rumo a emancipação
Nova República- por estar amea- humana, pela livre autodetermi-
çado, é natural levantarmos sua nação, por maior participação
bandeira como garantidor da pública nas decisões coletivas,
vida. Mas é preciso, também para que hábitos saudáveis não
saber de suas contradições, pois sejam uma decisão individual,
pela sua própria legislação, ofe- mas um conjunto de condições
rece brechas para o avanço sociais e econômicas viabiliza-
constante do capital. Como das a partir de uma verdadeira
disse o próprio Sérgio Arouca, revolução no modo de vida.
idealizador da RSB e do SUS: “O Espaços de discussão comunitá-
modelo assistencial é anti-SUS. rias sobre saúde precisam ser
Aliás, o SUS como modelo assis- estimulados. A produção de
tencial está falido, não resolve saúde emancipadora é um tra-
nenhum problema da popula- balho de práxis marxista, não
ção. Esta lógica transformou o sendo uma tarefa exclusiva dos
governo num grande compra- profissionais ligados ao cuidado.
dor e todas as outras institui- É um constante movimento de
ções em produtores. A Saúde atos coletivos, com reflexo nas
virou um mercado, com produ- individualidades. A formação
tores, compradores e planilhas nos cursos da área precisam de-
de custos. O modelo assistencia- bater cada vez mais seu papel
lista acabou universalizando a dentro da sociedade, não como
privatização.” detentores de saberes, mas no
Existe um distanciamento entre papel de estar a serviço dos co-
a construção do nosso sistema letivos. E, num momento como
de saúde o processo de emanci- o da atual pandemia, fica clara
pação humana pelo qual luta- essa necessidade histórica. A
mos. Ainda em 2005, um ex-eco- saúde passa a ser uma trincheira
nomista do FMI disse que “a pró- fundamental, de onde, se agir-
xima grande batalha entre o mos de forma organizada, pode
socialismo e o capitalismo se emergir globalmente um movi-
dará em torno da saúde humana mento de questionamento à
e da expectativa de vida”. Mesmo ordem barbárica do neolibera-
ganhando posições nas décadas lismo.
Nº 37 / Edição Especial 25

JUNTOS
ENTREVISTA!

MARXISMO E
ECONOMIA

Com Essa é a era da atualização tec-


Thiago Aguiar, nológica constante, do fluxo de
diretor da informação, da globalização,
Revista mas também da busca, dos mais
Movimento ricos, por novas maneiras de
explorarem e ficarem ainda mais
ricos. O capitalismo se mostra
cada vez mais predatório. Ou o
capitalismo acaba, ou ele acaba
com a humanidade. O marxismo
é uma ciência contestadora, mas
fundamentalmente da mudan-
ça, por isso, o Jornal Juntos! pre-
parou uma entrevista sobre o
marxismo e a economia, nos
nossos tempos, com o Thiago
Aguiar, doutor em Sociologia e
diretor da Revista Movimento.
Nº 37 / Edição Especial 26

Jornal Juntos: 202 anos após o são muito importantes, mas


nascimento de Karl Marx, como que, eventualmente, são a apa-
você acha que o marxismo con- rência desse fenômeno. Na rela-
tribui para o pensamento eco- ção entre China e Estados
nômico na sociedade da globali- Unidos, que vocês mencionam,
zação e das disputas entre gran- há conflitos geoestratégicos,
des potências econômicas, mas é preciso também conside-
como os EUA e a China? rar um aspecto fundamental:
estas duas economias são pro-
Thiago Aguiar: Eu mencionaria fundamente interligadas e inter-
três aspectos. Em primeiro lugar, dependentes. Na realidade, a
o marxismo legou um conjunto produção espraiada globalmen-
de ferramentas para a interpre- te serve aos interesses da classe
tação crítica do capitalismo que burguesa, independentemente
seguem vigentes e fundamen- de sua origem nacional, e da
tam a nossa compreensão da lucratividade de corporações
crise atual. Em segundo lugar, a transnacionais que têm o
fórmula que Marx e Engels esco- mundo inteiro como seu espaço
lheram para encerrar o Manifes- de acumulação, muito além das
to Comunista de 1848: “Traba- fronteiras nacionais.
lhadores de todo o mundo, uni-
-vos”. O que ela significa? Signifi- JJ: Marx e os marxistas, no
ca uma compreensão de que o debate econômico, sempre
capitalismo, pela lógica da acu- expressaram as diversas contra-
mulação de capital, tende a dições do sistema capitalista,
mundializar-se, a globalizar-se, seus ciclos críticos e seu inevitá-
como também as classes sociais. vel colapso. Como se expressam
Esta é a marca da situação atual, essas contradições no século
com uma polarização de renda XXI, diante de uma economia
global entre uma ínfima minoria financeirizada e na qual o desen-
de bilionários e uma vasta maio- volvimento tecnológico acom-
ria de bilhões de trabalhadores, panha uma busca desenfreada
que dependem de seu trabalho, pelo lucro?
diariamente, para sobreviver. Em
terceiro lugar, eu diria que o TA: A crise atual é muito intensa,
marxismo oferece, para nós, e as contradições se expressam
uma compreensão muito útil, de várias formas. Eu não diria
que nos permite ir além dos que há um colapso inevitável do
conflitos entre os Estados, que capitalismo, mas é possível dizer,
Nº 37 / Edição Especial 27

acompanhando alguns autores, mas não só já foram alcançados,


que se trata de uma “crise da hu- como superados. A atividade
manidade”, ou seja, a própria humana tem trazido modifica-
reprodução da espécie humana ções climáticas gravíssimas, com
está em risco. É possível mencio- impactos sociais, como mos-
nar alguns aspectos dessa crise. tram as enchentes, a erosão, o
Em primeiro lugar, uma crise deflorestamento ou o aumento
econômica, que se arrasta desde da emissão de gases estufa. A
2008, e tem relação com o fato crise social causada por ativida-
de que nunca antes a produção des predatórias, como a minera-
foi tão socializada, tão espraiada ção, como se viu em Minas
pelo planeta, enquanto a apro- Gerais nos últimos anos, é um
priação da riqueza nunca esteve exemplo eloquente dessa reali-
tão concentrada nas mãos de dade. Em terceiro lugar, uma
tão poucas pessoas: um punha- crise política, uma crise de legiti-
do de bilionários que controla as midade dos Estados nacionais e
alavancas da acumulação global, dos regimes políticos. As massas
enquanto bilhões de trabalha- não reconhecem mais legitimi-
dores e de despossuídos veem dade nos Estados e nos regimes
sua reprodução ameaçada. Essa políticos porque estes estão, em
crise não tem solução porque o geral, controlados por uma
capitalismo não encontrou fração de classe burguesa, a
formas de recuperar a lucrativi- fração transnacional da burgue-
dade, nos patamares anteriores, sia, que – em aliança e subordi-
como, por exemplo, por meio de nando as frações nacionais e
uma inovação que ampliasse locais – controla as instituições
enormemente a produtividade políticas e as coloca a serviço
do trabalho, ou com uma grande dos seus interesses, da acumula-
queima de capital, por exemplo, ção globalizada de capital. E eu
com uma guerra que permitisse, poderia mencionar, em quarto
no período seguinte, uma recu- lugar, uma crise subjetiva e ideo-
peração da lucratividade. Obvia- lógica da classe trabalhadora e
mente, se isso acontecesse, os das massas populares. Ou seja, a
custos humanos seriam dramá- ausência de projetos alternati-
ticos. Em segundo lugar, uma vos, capazes de expressar os
crise ambiental, já que os limites interesses dessa maioria de
do planeta para a expansão da bilhões de trabalhadores explo-
ampliação de capital e para rados que, diante da crise capi-
prover insumos e matérias-pri- talista e da crescente perda de
Nº 37 / Edição Especial 28

legitimidade dos Estados nacio- ou seja, ampliar a exploração do


nais, precisariam entrar em cena, trabalho num contexto de difi-
oferecendo uma saída supera- culdade da classe capitalista
dora e popular. para manter os níveis de acumu-
lação e a lucratividade em pata-
JJ: A “ubererização” do trabalho mares ótimos, isto é, aqueles
vem se desenvolvendo de forma que permitem que a acumula-
muito acelerada. Você acha que ção de capital siga, satisfatoria-
essa é uma característica do mente, para o capitalismo. É evi-
capitalismo, neste século, que dente que os custos, para a
pode contribuir para o seu co- classe trabalhadora, são muito
lapso? grandes: o ataque à previdência
social, a diminuição dos salários,
TA: Há muitos novos e interes- o aumento das jornadas de tra-
santes estudos sobre o que tem balho, a intensificação dos
sido chamado de “uberização” ritmos, o aumento do adoeci-
do trabalho. Eu diria que este mento, as dificuldades organiza-
fenômeno tem relação com uma tivas – porque o trabalho por
questão mais ampla: a busca, plataformas individualiza a ativi-
pelos capitalistas, da ampliação dade laborativa e dificulta a
da exploração do trabalho, organização coletiva. Portanto,
reduzindo os custos diretos e esses fenômenos todos são
indiretos do trabalho, ou seja, muito graves, mas trazem o de-
tanto os salários como também safio de que os trabalhadores
a responsabilidade estatal pela busquem formas de auto-orga-
reprodução social por meio, por nização a partir desta transfor-
exemplo, de serviços públicos mação profunda na produção
de previdência, saúde, assistên- de mercadorias ocorrida nos
cia e educação. A “uberização” últimos anos.
também tem, obviamente, rela-
ção com a crescente digitaliza- JJ: Desde 2008, o capitalismo
ção da produção e dos serviços vive uma crise mundial que
como forma de ampliar a produ- extrapolou, inclusive, o próprio
tividade do capital. Todas as campo da economia. Você acha
novas formas de produzir, na que a construção de um progra-
realidade, visam a um objetivo, ma alternativo a este sistema
por parte dos capitalistas: fazer tem novos desafios? Quais?
com que a classe trabalhadora
produza mais e receba menos, TA: Sem dúvida, a crise atual
Nº 37 / Edição Especial 29

requer um programa alternativo profundamente internacionalis-


e isto, entre outras coisas, tem ta do problema. Não só para
relação com um aspecto men- compreender a escala das trans-
cionado anteriormente a respei- formações ocorridas nas últi-
to da falta de legitimidade dos mas décadas, da disseminação
Estados nacionais e dos regimes global da produção, mas
políticos, que têm sido captura- também para ampliar as respos-
dos por frações transnacionais e tas transnacionais para os pro-
nacionais da burguesia utilizan- blemas comuns aos trabalhado-
do tais instituições a serviço dos res de todo o mundo. Em segun-
seus interesses e da acumulação do lugar, tal resposta programá-
de capital. O que se tem visto em tica precisa arrancar da mão da
todo o mundo é uma agenda de classe capitalista uma série de
ataques aos salários dos traba- aspectos da vida social que vem
lhadores, aos direitos previden- sendo mercadorizados, privati-
ciários e aos direitos sociais que zados, por exemplo, os serviços
precisa ser revertida. Diante de educação, saúde, transporte
dessa crise de legitimidade, e saneamento. Estas atividades
temos assistido a uma resposta não podem ser privadas, não
distorcida, uma tentativa de podem estar a serviço da produ-
canalizar a indignação popular e ção de lucros, mas devem estar a
a revolta para respostas de serviço da garantia da reprodu-
extrema-direta, até mesmo neo- ção da vida humana. Em terceiro
fascistas, no Brasil e em vários lugar, esse programa precisa ter
países do mundo. Isto não signi- um aspecto democrático radical
fica que não tenha havido resis- intenso, que garanta às maiorias
tência. Nos últimos 10 ou 15 anos, o poder de se autodeterminar,
houve uma jornada de rebeliões retirando das mãos desses seto-
e insurreições contra a classe res burgueses, que operam nos
capitalista, os governos e contra bastidores e publicamente,
o empobrecimento das massas sabotando a soberania popular,
trabalhadoras em todo mundo. para transformar as instituições
A questão é que há uma dificul- políticas numa mera engrena-
dade para organizar um polo, gem da acumulação de capital. É
uma resposta subjetiva, que ofe- um desafio grande, mas certa-
reça uma saída popular para a mente é o que cabe a nossa
crise. Na minha opinião, essa res- geração.
posta deve passar, em primeiro
lugar, por uma compreensão JJ: A pandemia de coronavírus
Nº 37 / Edição Especial 30

colocou, também, a economia ou mesmo para recuperar as


em alerta. Existem vários econo- economias que colapsaram, já
mistas e sociólogos, inclusive os que a pandemia do novo coro-
ligados aos grandes capitalistas, navírus impede os trabalhado-
que apresentam uma perspecti- res de produzirem – e, portanto,
va de aprofundamento da crise há uma crise na oferta –, mas
econômica mundial. Como você também derruba dramatica-
enxerga o futuro da crise? mente a demanda, uma vez que
os orçamentos públicos estão
TA: A pandemia de Covid-19 tem sob estresse, a renda dos traba-
relação intensa com as tendên- lhadores está em risco e a pró-
cias que nós estamos discutindo pria circulação de mercadorias e
nessa entrevista. A disseminação consumidores fica impossibilita-
rápida e global do vírus só foi da.
possível porque a circulação de
mercadorias e de pessoas cres- Esta me parece uma esperança
ceu dramaticamente nas últi- ingênua. O esforço, coordenado
mas décadas. A revelação destes pela classe capitalista transna-
graves riscos sanitários decor- cional e pelas burguesias nacio-
rentes da globalização mostra nais a ela vinculadas, tem sido o
mais um limite à acumulação de mitigar a crise econômica,
capitalista global. Fica claro que utilizando o Estado para garantir
essa forma de produzir merca- a solvência das empresas – basta
dorias e de organizar as relações ver a quantidade de recursos
sociais não é sustentável do disponibilizados no Brasil e no
ponto de vista social, econômi- mundo aos bancos e às grandes
co, ecológico, como também do empresas – e mitigar seus efei-
ponto de vista sanitário. Isso faz tos sanitários, isto é, de algum
com que a crise tenha caracte- modo reduzir a escala da infec-
rísticas mais dramáticas do que ção e diminuir o número de
crises anteriores. Muitos, na im- mortes, porque estes impedem
prensa e nos círculos burgueses, a manutenção da produção
têm especulado sobre o possível capitalista. No momento seguin-
“fim do neoliberalismo” por te, no entanto, está claro que se
conta da pandemia de Covid-19 pretende aprofundar as tendên-
e de seus efeitos, ou seja, pela cias vistas anteriormente. Se nós
necessidade, de algum modo, de acompanharmos as posições de
ampliar a intervenção do Estado Paulo Guedes, dos grandes bur-
para garantir serviços sanitários gueses e dos economistas a eles
Nº 37 / Edição Especial 31

vinculados – e isso não é uma lheres. Tudo isto mostra a gravi-


exceção brasileira –, a agenda da dade da crise e a responsabilida-
burguesia pós-crise ou, melhor de que nós temos nesse mo-
dizendo, a agenda da burguesia mento histórico.
na crise é, depois deste primeiro
momento de garantia da solvên-
cia da atividade econômica, am-
pliar as privatizações e o ajuste A
estrutural do Estado, ou seja, disseminação
diminuir impostos para empre- rápida e global
sas, desmontar serviços públi-
cos e dilapidar direitos dos tra- do vírus só foi
balhadores. Portanto, a repro- possível
dução dos trabalhadores e das porque a
massas populares em todo o
mundo está em risco. A agenda circulação de
da classe capitalista, em escala mercadorias e
global, não é de liquidar o neoli- de pessoas
beralismo e, quase como um
esforço de “racionalidade”,
cresceu
reconstruir Estados de bem-es- dramaticamen
tar social. Na realidade, seu obje- te nas últimas
tivo é justamente o oposto:
d é cadas. A
recuperar e ampliar a lucrativi-
dade por meio da mercadoriza- revelação
ção de aspectos fundamentais destes graves
da vida humana, como os servi- riscos
ços de saúde, educação e trans-
porte, privatizar empresas esta- sanitários
tais e dilapidar os orçamentos decorrentes
públicos, seja por meio de deso- da
nerações fiscais para os burgue-
ses ou de ampliação do endivi- globalização
damento, além de intensificar a mostra mais
exploração da classe trabalha- um limite à
dora e a instrumentalização do
trabalho de reprodução social
acumulação
não remunerado, exercido capitalista
quase integralmente pelas mu- global.
Nº 37 / Edição Especial 32

QUESTÃO
EDUCACIONAL
EM MARX Por

E ENGELS
Erica Coletti
(Pedagoga)

Marx e Engels não escreveram em 1875.


obra alguma sobre a questão
educacional, tampouco se pro- Nestas obras, argumentaram
puseram a compreendê-la sobre quatro elementos: o prin-
como tema geral. Suas contri- cípio da união entre trabalho
buições à educação se deram produtivo e instrução; a crítica à
poucas vezes em meio às análi- instrução no modo capitalista
ses sobre a evolução dos modos de produção; a legislação fabril
de produção, a propriedade e a inglesa e o trabalho infantil; e a
divisão do trabalho. proposta comunista de educa-
ção omnilateral.
As obras nas quais Marx e Engels Aqui, buscarei sintetizar as con-
teceram considerações específi- tribuições de Marx e Engels à
cas sobre a questão da educa- questão educacional em cinco
ção (ou instrução naquele con- teses que permeiam suas obras
texto) foram: 1- “Princípios dos de forma difusa.
Comunistas”, escrito em novem-
bro de 1847 que se tornaria o 1- A educação é produto mate-
“Manifesto do Partido Comunis- rialmente determinado, históri-
ta” em janeiro de 1848; 2- “Instru- co, contraditório e não pode ser
ções aos Delegados do Conselho analisada estancada do modo
Geral Provisório” de 1866 para a I de produção que a enseja. A pri-
Associação Internacional dos meira grande contribuição de
Trabalhadores; 3- “O Capital” de Marx e Engels ao debate educa-
1867; 4- “Crítica ao Programa de cional, é anterior à sua própria
Gotha” para o Primeiro Partido formulação sobre o tema e se
Operário Unitário na Alemanha refere à compreensão da educa-
Nº 37 / Edição Especial 33

ção como uma necessidade ma- 2- O ensino burguês apresentou


terialmente engendrada por avanços no que diz respeito ao
cada modo de produção, ou rompimento com o ensino esco-
seja, de que ela não pode ser lástico à medida que difundiu os
pensada deslocada da realidade ideais de modernidade, quais
material. Tal compreensão sejam, universalidade, laicidade,
advém da sua concepção mate- gratuidade, conteúdos científi-
rialista dialética, bem explicitada cos, articulação com o trabalho,
n’A Ideologia Alemã, segundo a e educação infantil. Porém, não
qual, o ser humano se constitui conseguirá elevar a classe traba-
como tal, à medida que produz lhadora à condição necessária
sua própria existência por meio para sua emancipação, uma vez
do trabalho, transformado a na- que os princípios acima elenca-
tureza de forma planejada com dos são postos em prática a fim
vistas à sua manutenção e à da de manter única e exclusivamen-
sua prole. O modo como ele te a hegemonia e a acumulação
produz essa existência, é o que de capital da classe burguesa.
Marx e Engels chamam de modo Marx e Engels compreendiam
de produção, que por sua vez, que a instrução fornecida pela
exige o relacionamento do ser sociedade capitalista, era dual:
humano com outras pessoas. uma propedêutica, intelectual,
Assim, o modo de produção já é, conteudista, técnica e tecnológi-
ele próprio, um modo de vida. À ca para a classe burguesa que
medida que os homens produ- dominava a parte “espiritual” do
zem sua própria existência e se processo produtivo; e uma ele-
relacionam entre si, constituem mentar, moral e restritiva desti-
sua consciência, e também a ne- nada à classe operária, encarre-
cessidade de aprender e educar, gada do trabalho físico enquan-
a fim de que este conhecimento to acessório das máquinas que
se estenda a novos membros de funcionavam independentes
determinada comunidade. dela.
Concluímos a partir disso, que a
educação é, em última instância, 3- A educação do proletariado
determinada pelo modo de pro- para a superação da sociedade
dução vigente, mas também capitalista pode se dar ainda
como veremos adiante, exerce sob a hegemonia burguesa. A
papel importante na sua cons- educação dual e fabril burguesa
trução e superação. é produto da própria evolução
do modo capitalista de produ-
Nº 37 / Edição Especial 34

ção e, por meio dela mesma, a e, por meio do trabalho físico,


educação do futuro seria im- manual, intelectual e fabril,
plantada, assim como a socieda- formar seres humanos livres em
de comunista deveria ser uma todas as dimensões da sua exis-
evolução exigida pelo próprio tência.
sistema capitalista.
Assim, a educação do proletaria- 5- A educação do futuro deve ser
do se constituiria como resulta- um projeto construído pelo pro-
do do processo de desenvolvi- letariado e deve visar a sua for-
mento das contradições forma- mação omnilateral, ou seja, que
das no interior do próprio capi- articule todas as áreas da pro-
talismo: a lei da fábrica que é dução da vida humana individual
resultado do desenvolvimento e coletivamente. Tal formação se
da grande indústria seria o opõe diametralmente àquela
germe do ensino do futuro, unilateral burguesa provocada
porque abre caminho e pode ser pelo modo de produção capita-
utilizada para o processo de lista e sua divisão social do tra-
ruptura com a sua própria lógica balho.
pelos trabalhadores. Para Marx e Engels a formação
omnilateral do ser humano, só
4 - A ruptura dessa lógica bur- poderia se concretizar sob con-
guesa de educação se dá por dições materiais adversas à capi-
meio da conjunção de trabalho talista. Apenas numa sociedade
e educação numa perspectiva comunista, justa, livre da pro-
antagônica àquela lógica, utili- priedade privada dos meios de
zando o trabalho útil como prin- produção e da divisão do traba-
cípio educativo e não como uma lho capitalista, é que tal educa-
ferramenta lúdica de aprendiza- ção poderia se efetivar.
do, como acontece nas perspec-
tivas nas quais os estudantes Em resumo, Marx e Engels defen-
“fazem de conta” que trabalham; deram a instrução elementar e
tampouco como sucessão de técnica-científica da classe ope-
técnicas a serem aprendidas de rária com vistas ao seu cresci-
forma isolada e mecânica. mento e à superação da socie-
Para Marx e Engels, a instrução dade capitalista, que poderia,
deveria estar articulada ao tra- por sua vez, fornecer as condi-
balho produtivo útil e remune- ções materiais efetivas para a
rado, a fim de derrubar as condi- formação omnilateral do ser
ções capitalistas de exploração humano.
Nº 37 / Edição Especial 35
Nº 37 / Edição Especial 36

Por novas demandas de uma socie-


Fabiana Amorim dade urbana e industrial que
(Diretora de Cultura da UNE) surgia. A partir de uma lingua-
gem estética formada pela cons-
trução de formas geométricas,
artes gráficas, fontes e dese-
nhos, a Bauhaus transformou o
papel do artista e da arte frente
Você deve ter visto bastante nos a ideia de “progresso”, construin-
últimos tempos o termo “mar- do uma arte total.
xismo cultural”. Ele tem sido utili-
zado pela extrema-direita que Com o surgimento do sistema
está a frente do governo brasi- capitalista, a lógica da divisão do
leiro para censurar e cortar trabalho passou a se dar por
verbas das universidades e pro- “partes” e funções específicas,
jetos culturais, mesmo que de eternamente retratado em
marxistas pouco ou nada “Tempos Modernos” de Charles
tenham. Porém, não é a primeira Chaplin. Em seu Manifesto, escri-
vez que esse termo é utilizado to por Walter Gropious, a Escola
como forma de atacar a diversi- de Bauhaus defendia não haver
dade da produção artística e diferença nenhuma entre o
intelectual. Com a chegada dos artista e o artesão, e que portan-
nazistas ao poder na Alemanha to todos os arquitetos, pintores
em 1933, uma das principais e escultores devem compreen-
experiências na arte e no design der a estrutura multiforme da
foi duramente atacada: com construção em todas as suas
centenas de torturados e partes. Com sua arte voltada
mortos, a Escola de Bauhaus que para a ideia de totalidade, foi
havia iniciado em 1919, não con- possível descobrir inovações
seguiu ser liquidada, mas das mais simples - como a cadei-
ganhou ainda mais projeção na ra que nos sentamos -, às mais
história. complexas, como a construção
de um projeto de habitações
Quebrando os paradigmas entre populares para famílias traba-
a arte para a contemplação e a lhadoras.
utilidade da vida prática, a Escola
de Bauhaus construiu um Conectado com o mesmo pro-
espaço libertário e de experie- cesso da fundação de Bauhaus
mentação, conectada com as em 1919, assim foi para nós a
Nº 37 / Edição Especial 37

semana de 1922. No seio das popular foi fundamental para


greves multitudinárias que viva o que os povos historicamente
Brasil e o mundo, a Semana de oprimidos do Brasil pudessem
Arte Moderna foi um marco que resistir a partir da manutençã de
permitiu o encontro entre a van- suas culturas, reprimidas desde
guarda da arte e da literatura a capoeira até os bailes funks de
brasileira com nomes como o de favela.
Tarsila do Amaral, Oswald de An-
drade, Mario de Andrade, Anita Passaram-se décadas, mas o fas-
Malfati, fazendo parte do cismo recriado ao século XXI
mesmo momento também o segue sendo inimiga da arte
próprio Oscar Niemeyer. O movi- plural e contestadora. Num mo-
mento que transformou para mento de acirramento da luta
sempre o que conhecemos en- política, os símbolos ganham
quanto Brasil, busca de uma arte importância ainda maior.
total, que fosse para além de um Quando Bolsonaro vai ao ato
reflexo do que se fazia na pelo AI-5 em plena pandemia de
Europa. Ali se abriu caminho coronavírus, ele não precisa dire-
para as literaturas regionais que tamente pedir o fim do Con-
passaram a reencontrar as nar- gresso: a fotografia dele estar ali
rativas de uma realidade brasi- já nos apresenta um significado
leira. para além de suas palavras ditas
ou não ditas. Precisamos estar
O resgaste da Bauhaus, que atentos e disputar os símbolos
completou 100 anos em 2019 é de um mundo novo que se apre-
mais um dos muitos exemplos senta, como a força de uma tra-
ao longo da história do quanto a balhadora da saúde frente aos
arte pode servir como objeto e promoteres da morte que
olhar de transformação. Além de pedem o fim do isolamento
recriar elementos para um social nos EUA. É também para
mundo novo, a arte é sobretudo isso que serve a arte. Mas não só.
uma ferramenta de resistência. Ela pode ir muito além do que
Diz o zika Emicida que uma letra nossa imaginação alcança. Serve
de rap muda “um mundo” para resgatar utopias ou facilitar
quando altera a perspectiva de nosso dia-a-dia. Nas trincheiras
vida de uma pessoa. No Brasil de da vida ou da morte, da moder-
passado escravocrata, pautado nidade ou dos negacionistas, a
entre a eugenia e a “democracia arte livre e a serviço do nosso
racial”, a arte indígena, negra e povo está do lado de cá.
Nº 37 / Edição Especial 38

A LUTA DAS
MULHERES
VOCALIZA A
LUTA PELA
LIBERTAÇÃO
HUMANA:
REFLEXÕES
SOBRE O
FEMINISMO
MARXISTA

Por
Camila
Barbosa e
Renata Moara
(ambas
coordenadoras
do Juntas)
Nº 37 / Edição Especial 39

A história de libertação das mu- que também alivia financeira-


lheres é a história da revolução. mente o capitalismo, fortalece a
As marxistas do século XIX e sua manutenção. É justamente
início do século XX, como Rosa por ocuparem a base da pirâmi-
Luxemburgo, Alexandra Kollontai de de sustentação do
e Clara Zetkin, aportadas pelas capitalismo que as mulheres da
análises de Marx e Engels, cons- classe trabalhadora são a chave
truíram uma estrutura teórica para a mudança de lógica da
ligando a luta pela libertação das sociedade.
mulheres à luta pelo socialismo.
Somente a partir da tradição A primeira condição para a liber-
marxista foi possível chegar à tação das mulheres é a quebra
raiz da opressão às mulheres desses papéis, o que só será pos-
com base em sua localização na sível através de uma revolução
sociedade de classes. Um ponto socialista que compreenda a
de partida para refletir sobre a emancipação xhumana como
inconteste relação entre opres- totalidade. Foi esse o mérito da
são de gênero e capitalismo é, auto-organização das mulheres
então, nos perguntar: qual é o socialistas da Revolução Russa
papel das mulheres na chamada que possibilitaram, pela primei-
sociedade de classes? ra vez na história da humanida-
de, a construção e implementa-
No interior da estrutura da ção de um programa de justiça
sociedade capitalista identifica- de gênero conectado ao com-
mos mulheres da classe domi- ponente de classe.
nante, que reproduzem herdei-
ros, e mulheres da classe traba- Clara Zetkin foi um grande nome
lhadora, que reproduzem força que liderou a secretaria de mu-
de trabalho. Existe, portanto, lheres do Partido Social-Demo-
uma diferença marcada pela crata da Alemanha. Sua contri-
classe no que diz respeito à buição reside especialmente no
opressão de gênero, conside- crescimento da participação
rando que atinge em níveis dife- feminina no partido. Esse movi-
rentes as mulheres a depender mento de trabalhadoras alemãs
do papel que cumprem na foi crucial para o movimento
reprodução social. O trabalho internacional de mulheres socia-
doméstico não remunerado listas da Segunda Internacional,
executado pelas mulheres da que, para além de Zetkin, ainda
classe trabalhadora, à medida contava com a participação de
Nº 37 / Edição Especial 40

outras dirigentes, como Kollon- divórcio e substituição do casa-


tai e Luxemburgo. mento religioso pelo civil) e, con-
sequentemente, o definhamen-
Alexandra Kollontai, por sua vez, to da família nos moldes bur-
através do livro “A Base Social da gueses. Também a partir dessa
Questão da Mulher”, imprimiu luta firmou-se a legalização do
um aporte fundamental para a aborto, direito que ainda hoje
análise marxista da opressão muitos países mais avançados
sofrida pelas mulheres. Kollontai do capitalismo ainda não efeti-
coloca em debate as diferenças varam. As conquistas logradas
entre as classes das mulheres, pelas revolucionárias marxistas
onde diz que ainda que o mote retrocederam em razão das
seja o mesmo - “libertação das pressões devastadoras da
mulheres” - a largada é diferente Guerra Civil e da contra-revolu-
entre as mulheres da classe do- ção stalinista que burocratizou o
minante e da trabalhadora. Estado soviético (tornando o
Kollontai também emprega aborto ilegal mais um vez e difi-
esforço para colocar a luta das cultando o acesso ao divórcio,
mulheres no debate da classe por exemplo), mas seu legado
em geral, inclusive com os permanece sustentando gera-
homens trabalhadores. ções de lutadoras que disputam
um movimento feminista com
Essas revolucionárias impulsio- uma dimensão estratégica, ou
naram um movimento de mu- seja, comprometido com a
lheres que culminou em 1919 na transformação radical das
criação do Jenotdiél (Departa- estruturas profundas da totali-
mento de Mulheres). Para a dade social.
Rússia pós- revolução, o organis-
mo representava a tarefa da Desde então, a cada fratura his-
construção de uma nova socie- tórica e crise cíclica o capitalis-
dade, debruçada particularmen- mo se reinventa recuperando o
te sob quatro eixos: a socializa- que foi parte de sua queda, fenô-
ção do trabalho doméstico (ali- meno que permitiu o nascimen-
mentação, limpeza, criação e to de tendências como o femi-
educação dos filhos por meio de nismo liberal no movimento de
serviços públicos garantidos mulheres. Nós, que estamos à
pelo Estado), a plena igualdade margem da miséria capitalista e
entre gêneros (direitos políticos na vanguarda das lutas da classe,
iguais), a livre união (direito ao sabemos que de pouco vale o
Nº 37 / Edição Especial 41

acesso aos espaços simbólicos ras, etc. - que sustentam o


de poder sem uma ruptura an- mundo e, sob a bandeira do an-
tissistêmica que garanta a real ticapitalismo, buscam reconec-
justiça de gênero aliada à classe. tar as lutas identitárias às lutas
da classe. Uma noção dialética e
marxista sob a composição da
classe trabalhadora que permite
A primeira enxergar a opressão de gênero
indissociável da opressão de
condição para
raça, ambiental, internacional,
a libertação enfim, capitalista. Em meio a
das mulheres é mais grave crise sanitária das
a quebra últimas décadas e a necessidade
de articular uma rede em defesa
desses pap é is, da vida, um espelho do que
o que só será Nancy Fraser chama do “fermen-
possível to emancipatório dos tempos”.
atrav é s de
uma revolução
socialista que
compreenda a
emancipação
humana como
totalidade.

Por isso, um importante movi-


mento impulsionado por femi-
nistas marxistas como Nancy
Fraser, Angela Davis e Cinzia
Arruzza tem guiado a nossa ela-
boração: o feminismo das 99%.
Se trata de uma referência a
totalidade de mulheres - negras,
LGBTs, imigrantes, trabalhado-
Nº 37 / Edição Especial 42

MARX 202

164 FREUD
Nº 37 / Edição Especial 43

Por morreriam em Londres, em


Israel Dutra séculos diferentes.
(Sociólogo e
Secretário de Karl Marx completaria 202 anos
Relações em 5 de maio. Positivamente, as
Internacionais do redes sociais foram inundadas
PSOL) de declarações, artigos, peque-
nas biografias e informações
sobre esse gigante do pensa-
mento e da ação humana. O
“Mouro”, como era carinhosa-
mente chamado, foi um perso-
nagem do seu tempo. Teve uma
amizade fiel, até o final da vida,
com seu camarada Friedrich
Engels; teve uma torrente histó-
Nossa visão de mundo não per- ria de amor com Jenny Von Wes-
mite concluir correlações for- tephalen, companheira da vida
mais entre as datas de nasci- toda; sofreu com o infortúnio da
mento e as trajetórias e perso- pobreza, perdeu parte da famí-
nalidades dos indivíduos, de lia, ficou doente, amargou restri-
forma pura. As teorias que de- ções pessoais e civis.
fendem a visão a partir do zodía-
co, foram refutadas - e bem refu- Como Engels imortalizou no dis-
tadas - por diversas vezes no curso diante de seu túmulo:
embate do pensamento moder-
no. Contudo, as coincidências “A 14 de Março, um quarto para
podem servir de ponte para as três da tarde, o maior pensa-
acessar temas como um recurso dor vivo deixou de pensar. Deixa-
literário, inclusive para apresen- do só dois minutos apenas, ao
tar outros distintos, vinculando- chegar, encontrámo-lo tranqui-
-os entre si. lamente adormecido na sua pol-
trona — mas para sempre.
O presente caso, dos dias 5 e 6 O que o proletariado combativo
de maio na história, passa de europeu e americano, o que a
uma coincidência para um ne- ciência histórica perderam com
cessário exame da relação entre [a morte de] este homem não se
as ideias desses dois homens, pode de modo nenhum medir.
nascidos no século XIX. Ambos Muito em breve se fará sentir a
Nº 37 / Edição Especial 44

lacuna que a morte deste ciência, aos judeus e ao pensa-


[homem] prodigioso deixou. mento crítico imposta pelo
Assim como Darwin descobriu a regime totalitário de Hitler.
lei do desenvolvimento da Natu-
reza orgânica, descobriu Marx a São belas as biografias de Freud.
lei do desenvolvimento da histó- A mais conhecida é de Peter Gay.
ria humana(...)” E o filme “Freud, Além da Alma”
leva à tela grande o rigor e a des-
Escreveu, também em parceria coberta de Freud. Sua obra
com Engels, o livro que, junto à sempre foi marcada pelo rigor.
bíblia, mais circulou ao longo Neurologista, aplicou critérios
dos últimos dois séculos, o “Ma- sólidos para avançar rumo a
nifesto Comunista”. Abordou, uma nova ciência. Como pionei-
como homem da ciência, temas ro, foi frequentemente questio-
variados, sempre pulsando a nado, sem deixar de acreditar
serviço da estratégia de cons- nas suas convicções. Também
trução de movimentos revolu- encontraria Marx na definição
cionários. Sua obra máxima, “O de que “nada que é humano,
Capital”, é a mais universal das estranha”. Mais que um navega-
explicações sobre a forma como dor que descobre um novo con-
as coisas e o mundo se organi- tinente, o inconsciente, Freud
zam. Marx despertou, nas gera- fundou uma ciência que o
ções futuras, a sede pelo conhe- agrega a Darwin, Galileu e ao pró-
cimento e pela transformação prio Marx. Uma definição plena-
radical e igualitária das condi- mente humana, mas que nos
ções históricas e sociais. Unifi- deixava “nus”. Não éramos capa-
cou a classe trabalhadora com zes de nos governar, senão refle-
seus escritos, traduzidos em de- tir algo que não tínhamos pleni-
zenas de línguas e diferentes tude do comando.
alfabetos.
Foi um passo decisivo para a
Sigmund Freud veio ao mundo racionalidade abraçar, outra vez,
no dia 6 de maio de 1856, em a definição socrática, de que
meio às grandes transforma- nada sabemos, como ponto de
ções que a Europa conhecia. partida da sabedoria e da verda-
Nasceu na República Tcheca. de. Ao descortinar o inconscien-
Faleceu no último ano da década te, Freud lutou com força por
de trinta, em Londres. Desterra- suas ideias, ora mais extrema-
do por conta da perseguição à das, ora mais conciliadoras. Seu
Nº 37 / Edição Especial 45

libelo contra as formas religiosas


e metafísicas de mundo, “O
futuro de uma ilusão”, é também JUNTOS
um manifesto pela emancipação
humana. Suas posições políticas, INDICA
contudo eram incompletas e
conflituosas, refletindo a crise
do modelo capitalista, a deses-
perança e a visão estreita de
mundo da culta aristocracia, dos
círculos de Viena.

Trotsky foi um dos primeiros


líderes bolcheviques a reconhe-
cer a necessária aproximação
com psicanálise. Tanto na sua
visão de Estado quanto no trata- Conheça o
mento das dificuldades emocio-
nais de Zina, sua filha mais queri- canal
da, Trotsky se interessava e dis- Christian
cutia a obra de Freud e a psica- Dunker no
nálise.
YouTube.
Anos mais tarde, na escola fran- Dunker é
cesa, Louis Althusser buscou a psicanalista e
aproximação - sem perder de
vista as diferenças no campo
professor
metodológico e de objeto - titular da
entre Freud e Marx. Universidade
de São Paulo.
O enigma humano só pode ser
desvendado a partir de uma
radical condição humana. Ela
uniu a Marx e Freud. Sob as refle-
xões desses gigantes, nossa
estatura pequena não pode nos bit.ly/
eximir responsabilidades. Os CanalDunker
dados seguem lançados.

Você também pode gostar