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Luiz Antonio Ferraro Júnior, Marcel Bursztyn

DAS SESMARIAS À RESISTÊNCIA AO CERCAMENTO:


razões históricas dos Fundos de Pasto1

Luiz Antonio Ferraro Júnior*


MarcelBursztyn**

O artigo recupera as razões históricas para o surgimento da categoria dos fundos de pasto. Nele,
são utilizados dados secundários recolhidos de relatórios governamentais e obtidos em entre-
vistas com técnicos, agentes pastorais e comunidades pastoris. Os fundos de pasto eram apenas
áreas não-cercadas de Caatinga, utilizadas para pastoreio comunal. Esse padrão de ocupação,
que se desenvolveu em todo o semiárido nordestino, foi progressivamente usurpado em um
processo similar aos enclosures ingleses. Na Bahia, com os avanços do capital sobre essas áreas,
a partir da década de 1970, houve articulações regionais e apoios institucionais que estimula-
ram resistências diversas. Assim, “Fundo de Pasto” passou a designar não só as áreas, mas os
grupos sociais que as defendiam por delas depender. O termo Fundo de Pasto, antes regional,
generalizou-se por todo o estado, principalmente após sua citação na constituição baiana. Os
vínculos familiares dessas comunidades também concorreram para a resistência dessa forma
de ocupação.
PALAVRAS-CHAVE: fundos de pasto, enclosures, grilagem, terras comunais, caatinga.

Neste artigo, busca-se compreender os pro- exemplo de outros grupos sociais que vivem nas
cessos históricos que ensejaram o desenvolvimen- suas “dobras” e “intervalos”.
to, no sertão baiano, de um conjunto de aproxima- A tendência mundial ao desaparecimento
damente 20.000 famílias, distribuídas por 500 co- de sistemas comunais, iniciada no século XIII com
munidades, que vivem do pastoreio comunal. Tra- os enclosures ingleses, coincide com o avanço da
ta-se da categoria dos Fundos de Pasto (FP). A his- mercantilização da terra e do trabalho (Polanyi,
tória matricial dos FP refere-se ao longo período entre 2000). A cobiça de grileiros e latifúndios sobre áre-

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a criação das sesmarias, em 1534, e a generalização, as comunais da caatinga decorre da mercantilização
na década de 1980, dessa alcunha como modo de da terra. Os sistemas comunitários remanescentes
designar essas comunidades pastoris do sertão estão normalmente associados a situações de fraca
baiano. Sendo o latifúndio o mainstream da forma- inclusão no mercado e à conservação dos biomas
ção do Brasil, formas como os FP se configuram em dos quais dependem.
diálogo com seus fluxos e influxos. Esses povos O sertão nordestino foi ocupado de modo
vivem em conflito com o avanço dos latifúndios e rarefeito, subordinado economicamente à econo-
em relativa autonomia quando eles arrefecem. Ain- mia açucareira, inicialmente pujante e que decaiu
da assim, fazem parte do sistema latifundiário, a durante os séculos XVIII e XIX. O esfacelamento
1
A pesquisa que subsidiou este artigo foi desenvolvida das grandes sesmarias – como das Casas da Ponte
com o apoio de uma bolsa de doutorado do CNPq. e da Torre –, entre o final do século XVIII e início
* Doutor em Desenvolvimento Sustentável. Professor
adjunto da Universidade Estadual de Feira de Santana. do século XIX, decorrente da queda da economia
Avenida Transnordestina, s/n Bairro Novo Horizonte.
Cep: 44036-900. Feira de Santana - Bahia - Brasil. do açúcar, permitiu o estabelecimento e a forma-
ferraroluiz@yahoo.com.br ção de um campesinato advindo de famílias de
** Doutor em Desenvolvimento Econômico e Social e
em Economia Pós-doutor em Políticas Públicas. Profes- vaqueiros, agregados e outros recém-chegados,
sor associado da Universidade de Brasília, junto ao De- num processo de acampesinamento relacionado
partamento de Sociologia e ao Centro de Desenvolvi-
mento Sustentável. marcel@unb.br ao apossamento comunal das terras. O descontro-

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le do Estado sobre essas terras, o desinteresse eco- BRASIL PLANTATION S.A.: marcas no campo
nômico por elas e seu relativo isolamento geográfi- e sertão brasileiros
co são aspectos que favoreceram seu desenvolvi-
mento. No sertão, essas condições perduraram sem Na formação histórica das condições
alterações bruscas e exógenas até as décadas de socioeconômicas brasileiras, os processos de ocu-
1970 e 1980, quando o cercamento de grandes áre- pação foram organizados pelo mercado externo e
as criou choques com os usos costumeiros. A par- não por projetos endógenos. Assim, o espaço tor-
tir daí, atos mais ou menos isolados de resistência nou-se tão somente o local de produção para ex-
comunitária e o “reconhecimento” desses usos portação, independentemente dos custos
costumeiros por parte de uma fração do Estado ambientais e sociais.
criaram as condições que transformaram um pa- Há, no Brasil, uma submissão histórica do
drão de ocupação e uso da terra em uma nova ca- projeto de país aos interesses dos países centrais.
tegoria social. A formação social ocorre em função da acumula-
Existem poucos estudos históricos sobre os ção comercial europeia (Wanderley, 1979a). A for-
FP. Há diversas teorias sobre a sua origem. Ou- mação do Brasil como empreendimento econômi-
vem-se várias versões: “sempre houve os FP”, “os co da Europa estabeleceu a classe dos que estão
FP é coisa nova”, “têm origem portuguesa”, “isso aqui a negócio, senhores de terras, e a dos que
de criar solto é coisa que vem dos índios”. Há, estão como insumo do negócio, trabalhadores que
também, pistas mais precisas como: “os FP daqui servem aos objetivos dos primeiros. Os que che-
eram todos área da Casa da Torre”. As versões e garam (ou estão) no Brasil a negócio são aventurei-
razões para a sua existência serão aqui discutidas. ros (Holanda, 1978) que, de fato, assumem poucos
Por que surgiu e persiste o fundo de pasto? Adici- riscos, pois estão “subterraneamente” sustentados
onou-se a essa pergunta um conjunto articulado pelo forte “fio da rede mercantil que devora o mun-
de relações compreensivas: do” (Faoro, 1997, p.105). Repetem, em ciclos, pa-
§ as comunidades nasceram a partir dos currais drões comerciais subordinados (Prado Jr., 1989).
das Casas da Torre e da Ponte; A ideia do país como empreendimento co-
§ há razões econômicas, fundiárias, ambientais e mercial está explícita na expressão “A empresa
culturais para a persistência dessas comunida- Brasil”, de Ribeiro (1995). A sociedade se origi-
des, combinadas às relações de parentesco e nou e se organizou em função do negócio do açú-
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compadrio como elementos facilitadores; e car. A coletividade instalada é expressão desse ne-
§ desde 1980, a persistência dos FP está associada gócio (Prado Jr., 1989). Não foi a colonização que
à organização política, à articulação com institui- empreendeu a exploração canavieira, mas sim a
ções, ao apoio governamental e ao seu reconhe- empresa canavieira que deu origem à colonização.
cimento legal. Interesses “alienígenas” prevalecem e ori-
A pesquisa, desenvolvida entre 2006 e 2007, entam a exploração primária da terra para atender
fundamentou-se na busca por dados secundários à “vocação oceânica” do Brasil colônia, exportan-
contidos nos relatórios das instituições estatais, do sua riqueza em favor dos interesses da Europa
em entrevistas com técnicos que participaram do (Castro, 1967, p.265). A prática de servirem-se da
projeto Fundo de Pasto, com agentes pastorais e terra como usufrutuários (Holanda, 1978), o senti-
com as comunidades de FP. Orientou-se pela re- mento de não-pertencimento dos empreendedo-
dução sociológica de Guerreiro Ramos, na qual a res em relação ao Brasil e os deslocamentos huma-
busca pelas conexões de sentido da realidade so- nos internos pela sobrevivência acabaram por se
cial não pode, de modo algum, ser tratada como tornar aspectos constitutivos do país.
um conjunto de fatos desconexos (Ramos, 1965). O interesse reside em compreender que,
durante tais ciclos, principalmente ao final de cada

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um deles, se desenvolveram ideias, formas de vida do como a primeira razão histórica da concentra-
e de produção distintas, opostas e ou complemen- ção de terras e da falta de controle sobre terras
tares aos projetos hegemônicos. Formas diversas públicas (Drummond, 1999).
de vida, de produção e de pensamento surgiram Há crônicos descontrole e desconhecimen-
nas entrelinhas dos canaviais, nas ruas dos cafe- to de todos os governos do Brasil, do império aos
zais, nos currais dos sertões, nas hortas, nos dias de hoje, de suas terras, as chamadas terras
mocambos, nas roças de subsistência, nos públicas (1999). A Coroa ignorava a maior parte
quilombos, nas fronteiras agrícolas, nos seringais, das terras mantidas sob seu domínio. Por outro
nos babaçuais, nas “Gerais”, e também ficaram nas lado, abdicava de qualquer controle sobre elas, na
entrelinhas da história oficial. medida em que cedia a súditos de posses, em tro-
ca de contribuições anuais, imensas áreas e todo o
poder fiscal, militar, judiciário e político exigido
CONCENTRAÇÃO, DEGRADAÇÃO E DESCON- para administrá-las. Com a falta de recursos da
TROLE DE TERRAS Coroa, a forma de exercer o seu poder e de garantir
a sua parte no negócio se fundava nesse sistema
A grande propriedade é o corolário da ex- de concessões (Faoro, 1997).
ploração em larga escala (Prado Jr., 1989) que, por O papel desempenhado pelos senhores de
sua vez, é um desdobramento da “Empresa Bra- terras, a crescente dependência da coroa em rela-
sil”. Nos 300 anos de colônia, o Brasil se funda- ção a eles e a hipertrofia de suas funções e poderes
mentou, principalmente, na grande propriedade têm como uma das suas consequências a
fundiária, na monocultura de exportação e no tra- postergação da reforma agrária (Burstyn, 1990). As
balho escravo (Freyre, 1994; Szmrecsányi, 1990). doações de terras chegaram a unidades de até 100
A coroa portuguesa transferiu para o Brasil, léguas quadradas, com diversas delas sendo feitas
em 1534, o mesmo regime jurídico da repartição a um mesmo requerente (Faoro, 1997). A liberali-
fundiária em sesmarias, instituído em 1375 no rei- dade desse processo foi tamanha, que, em 1822,
nado de D. Fernando I. Seu objetivo era promover já não havia porções de terra para distribuir nas
o cultivo e o povoamento das terras incultas ou regiões próximas à costa, principalmente no Su-
retomadas dos árabes que ocuparam a península deste e Nordeste do país (1997). Esse fato, associ-

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por séculos (Neves, 1998; Garcez, 2001). Em Por- ado à decadência dos engenhos, culminou com o
tugal, a intenção do regime de sesmarias era o de fim daquele regime, decretado ainda antes da in-
repartir terras. No Brasil, o seu efeito foi inverso: dependência (Resolução Imperial de 17 de junho
concentrou terras e poder. de 1822).
No Brasil, os capitães donatários recebiam No que se refere ao domínio de terras, hou-
gratuitamente 50 léguas de costa, obrigando-se ve um vazio constitucional entre 1822 e 1850.
apenas ao pagamento de um dízimo à Ordem de Nesse período, coexistiram sesmarias e posses, o
Cristo. O período de sesmarias criou a figura dos que levou à pressão dos latifundiários sobre os
sesmeiros, senhores e proprietários de terras. posseiros. Em áreas distantes ou de menor inte-
Sesmeiro é a denominação dada aos donatários resse do latifúndio, o vazio legal permitiu também
das sesmarias, e também é o mesmo nome dado, a acomodação de usos costumeiros associados à
em Portugal, aos agentes públicos responsáveis pela posse da terra. A possibilidade de obter direito
repartição de terras (Neves, 2005). Em terras brasi- sobre terras por meio da posse e do uso ruiu em
leiras, no entanto, esses agentes não eram públi- 1854, com a regulamentação da Lei Imperial n. 601,
cos e podiam agir movidos por interesses própri- conhecida como Lei de Terras. Com ela, as terras
os. Esse sistema, denominado enfiteuse romana, ganham caráter de mercadoria e surge a possibili-
durou todo o período colonial e pode ser entendi- dade de um choque de capitalismo sobre a propri-

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edade fundiária (Wanderley, 1979b), o que, entre- grande proporção de terras no Brasil nas quais o
tanto, não ocorre em virtude da reacomodação do campesinato se reproduz. Na Bahia, Oliveira (2007)
sistema em suas práticas de privilegiar os “bem- estima 22 milhões de hectares de terras devolutas,
nascidos”. A lei, que visava a modificar as rela- 39% dos 56,7 milhões de hectares do estado, qua-
ções com a terra e incentivar a produtividade, tor- se o dobro da média nacional.
nou-se um simples retrocesso fundiário.
Sem gerar o impacto econômico necessário
à transformação dos latifúndios, ela reduziu a pos- OCUPAÇÃO DO NORDESTE
sibilidade do acesso popular à terra. A Lei de Ter-
ras institucionalizou a ilegitimidade da posse as- A faixa litorânea, de terras úmidas e férteis
sociada ao trabalho e à ocupação. Só eram reco- (Zona da Mata), presente em todos os estados nor-
nhecidas as propriedades que tivessem registros destinos, penetrando em média 80 km do litoral,
paroquiais (Decreto Imperial n.1318, de 30/01/ foi a área ocupada pelas plantações, pelos enge-
1854), “embrião capaz de separar o senhor da ter- nhos e pelas suas casas-grandes e senzalas.
ra, do mero pretendente ao usucapião” (Faoro, A introdução da cana-de-açúcar no Nordes-
1997, p.408-409). A noção de propriedade man- te data de 1526, e a paisagem nordestina está im-
tém o significado associado à proximidade com o pregnada dessa história de “paixão do coloniza-
poder e torna ainda mais distante a ação do Estado dor” pelo açúcar (Castro, 1967). Em 1584, já havia
na democratização do acesso à terra. A terra per- na região 166 engenhos e, em 1852, apenas na pro-
manece como simples elemento da natureza, e a víncia de Pernambuco havia 642 dessas unidades
propriedade fundiária é abolida em sua expressão de produção (Wanderley, 1979a).
econômica (Wanderley, 1979b, p.37-38). As práticas agrícolas dos grandes engenhos
As constituições nunca conferiram grande do Nordeste eram pouco eficientes, um dos fato-
poder ao Estado para desapropriar terras priva- res de sua decadência. Em um ensaio de 1834,
das, fato que contribuiu para a impossibilidade de Miguel Calmon Almeida alertava que os engenhos
se enfrentar sua concentração. baianos estavam em decadência e que a indústria
Ainda no século XXI, chama atenção a gran- ruiria pela baixa qualidade do produto, escassez
de quantidade de terras devolutas. Nessas áreas, de mão de obra, competição internacional e falta
geralmente vivem posseiros e outros povos, muitas de combustível (Pádua, 2002).
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vezes em tensão com outros grupos interessados na A produtividade dos engenhos das Antilhas
sua ocupação. São territórios da desconstrução e e do Sul dos EUA era de 350 a 400 arrobas de açúcar
reconstrução do campesinato, nos quais surge um por enxada/ano, enquanto, na Bahia, ficava entre 100
padrão camponês de ocupação. e 120 arrobas. No século XVIII, ocorre uma baixa de
As terras devolutas, indígenas e em unida- preços, da ordem de 50%, causada pela competição
des de conservação representam 47,12% das ter- oferecida pela produção das Antilhas holandesas
ras disponíveis, cifra pouco inferior aos 49,45% (Galeano, 1994) e Cuba. A renda média per capita
dos imóveis particulares. Das propriedades com teria caído de 30 libras ouro em 1600 para 3 libras
menos de 200 hectares, consideradas como de “agri- ouro em 1800 (Faoro, 1997). Esse cenário se agravou
cultura familiar”, 64,4% estão nas regiões Norte, entre 1840 e 1880, com o avanço do derivado de
Nordeste e Centro-Oeste, nas quais se encontra uma beterraba, que passou de 8 a 48% do açúcar consu-
“grande diversidade de formas de reprodução do mido no mundo (Wanderley, 1979a).
campesinato” (Carvalho, 2005, p.68-69). Ainda que Outro fator determinante para a decadência
muitas dessas pequenas propriedades sejam orga- dos engenhos foi a interrupção do tráfico negreiro
nizadas como empresas familiares (principalmen- (Lei Eusébio de Queiroz) e a transferência de es-
te nas regiões Sul e Sudeste), o fato é que há uma cravos para as regiões auríferas de Minas Gerais e

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para as regiões cafeeiras. As rebeliões de escravos ros e de bois de serviço. Foi sempre uma econo-
mia pobre e dependente (Ribeiro, 1995, p.307).
foram outro motivo de decadência. “Morre o açúcar,
destruído pelo peso de sua principal força, o escra- Ainda que, na Bahia, agreste e cerrado tam-
vo” (Faoro, 1997, p.417). No final do século XIX, o bém tenham sido afetados por essa expansão pecu-
Recôncavo Baiano encontrava-se em franca decadên- ária, foi na caatinga que ela se firmou. Apesar de
cia (Pádua, 2002). Para relacionar esse processo de algumas semelhanças, uma diferença crucial entre
ascensão e queda da agroindústria canavieira ao as ocupações do agreste e da caatinga foi o forte e
surgimento das comunidades pastoris, é preciso com- permanente contato do agreste com os engenhos,
preender a face sertaneja desse período. enquanto que, nos sertões (caatinga), a pecuária se
desenvolveu de modo relativamente independente
e isolado. A dependência da ocupação em relação à
OCUPAÇÃO DO SERTÃO pecuária é exemplificada na frase de Andrade (1973,
p.46) sobre o sertão: “O gado cria o homem aí, em
Há poucos registros históricos do processo lugar de o homem criar o gado”.
de ocupação do interior nordestino. Antonil (1982) A Carta Régia de 1701, segundo Cunha
dedica menos de 5% do texto à pecuária na caatin- (2002), teria sido uma medida supletiva desse iso-
ga. Entretanto, apesar da centralidade econômica lamento imposto pela distância. Punia severamen-
do açúcar, a vastidão dos sertões e a sua ocupação te comunicações e qualquer troca comercial daque-
associada à pecuária permitem dizer que há dois las partes dos sertões com as regiões ao sul. Visa-
nordestes, o agrário e o pastoril (Freyre, 1961). va a reforçar a relação de subordinação desses ser-
A criação de gado sempre foi uma atividade tões aos senhores habitantes da faixa atlântica.
econômica subsidiária à cana-de-açúcar (Andrade, Os vaqueiros eram homens dos senhores.
1973). A pecuária, em um primeiro momento da Lideravam alguns poucos ajudantes (em algumas
exploração açucareira, foi vizinha aos engenhos, regiões chamados de “fábricas”) para cuidar da fa-
mas, com o tempo, foi adentrando pelo agreste e, zenda. Entre vaqueiros e “fábricas”, havia forte
finalmente, pelo sertão. O impulso em direção ao hierarquia. Aspecto similar à maior parte dos sis-
interior nordestino teve por base a pecuária, che- temas pastoris conhecidos no mundo (Ribeiro,
gando ao sertão principalmente nas regiões tribu- 1995).

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tárias dos grandes centros produtores de açúcar, Havia duas diferentes formas de relação entre
Pernambuco e Bahia (Prado Jr., 1989). Em 1701, sesmeiro e vaqueiro nos currais. Nos melhores
reforçando uma tendência de interiorização da pontos, os sesmeiros mantinham um vaqueiro pago
pecuária, a Coroa proibiu a criação de gado numa com a quarta de bezerros e potros, sistema tam-
faixa de 10 léguas a partir da costa. A ocupação bém denominado “sorte”. Nesse sistema de pro-
dos sertões relaciona-se à entrada pelos vales para dução, cada vaqueiro tinha o direito de apartar para
estabelecimento de currais. A partir da primeira si uma em cada quatro crias (Andrade, 1973), po-
década do século XVII, seu número cresce (Dantas, dendo apascentar os seus animais sem distinção
2002). No início do século XVIII, os currais baianos de tratamento ou área em relação aos animais do
se estendiam pela margem direita do São Francis- patrão. Esse sistema de pagamento contribuiu para
co e pelos vales dos rios das Velhas, das Rãs, Ver- que muitos acumulassem recursos para se torna-
de, Paramirim, Jacuípe, Itapicuru, Real, Vaza-Bar- rem eles mesmos “fazendeiros”. A segunda forma
ris e Sergipe (Andrade, 1973). de relação era o sistema de enfiteuse, no qual os
sítios com uma légua em quadro eram cedidos em
No agreste, depois nas caatingas e, por fim, nos
cerrados, desenvolveu-se uma economia pasto- troca de 10 mil réis ao ano, pagos pelos foreiros
ril associada, originalmente, à produção (Antonil, 1982).
açucareira como fornecedora de carne, de cou-

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No Nordeste, as concessões coloniais de as fronteiras (Carvalho, 2005). Quando da deca-


terras foram maiores, dando origem a imensas ca- dência, as pequenas propriedades se expandem
sas senhoriais, como Casa da Torre, Casa de Ser- dentro de seus próprios limites (Silva, 1980). Essa
tão, Casa da Ponte, Casa do Sobrado, Casa de João reprodução do campesinato se dá tanto nas pró-
País, Casa de Vieira (Faoro, 1997). “Sendo o sertão prias áreas de fronteira quanto nas áreas menos
da Bahia tão dilatado, como temos referido, quase interessantes para o desenvolvimento da agricul-
todo pertence a duas das principais famílias da tura capitalista (terras áridas, menos férteis, mais
mesma cidade, que são a da Torre, e a do defunto isoladas, menos estruturadas). Os sítios dos pos-
mestre de campo Antonio Guedes de Brito” seiros e o próprio conceito de sítio, em algumas
(Antonil, 1982, p.200). Nessas imensidões, eram regiões do Nordeste, se unificam sob a ideia de
imprecisos os limites de terras entre as Casas. As “terra fraca” (Meyer, 1979).
únicas referências às dimensões alcançadas por elas Das quatro empresas constitutivas do Bra-
são as de Antonil (Neves, 1998). sil, a terceira, na qual se desenvolveram as
As relações entre sesmeiros e vaqueiros re- microempresas de produção de gêneros de sub-
petem os padrões em que um poder central man- sistência e a criação de gado, é, segundo Ribeiro
tém e se mantém em função da reciprocidade com (1995), aquela que gestou as células do povo brasi-
poderes locais (Faoro, 1997; Bursztyn, 1990). Com leiro. Elas constituíram, sobretudo, um criatório
a decadência da pecuária, essas relações se torna- de gente (p.161).
ram mais instáveis e voláteis. Os movimentos des- As relações não-capitalistas produzidas e
ses poderes locais sempre foram determinantes para produtoras do contexto camponês brasileiro sem-
a relativa autonomia dos posseiros; quanto mais pre estiveram subordinadas à dominação do capi-
presentes e poderosos os senhores, tão mais difí- tal. As estratégias de subordinação, que se dão no
ceis e incertas as suas condições. sistema econômico, são a cessão das áreas margi-
nais (terras menos férteis e locais com climas secos,
“naturalmente” deixados de lado pela agricultura
TERRAS E GENTES: formação de um capitalista) e a comercialização de seus produtos a
campesinato sertanejo preços aviltantes. Em uma cadeia agroindustrial, o
camponês sempre se insere no elo menos rentável.
A formação do Brasil como empreendimen- Há também a subordinação pela via do tra-
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to econômico movido por interesses exógenos (Pra- balho, com as diárias mal pagas que o camponês
do Jr., 1989; Holanda, 1978; Freyre, 1994; Ribeiro, vende, sazonalmente, nas safras das grandes fa-
1995) passou por inúmeros ciclos, ao fim dos quais zendas de sua região ou mesmo migrando.
sempre restava uma massa de gente que a eles “ade- Subconsumo, jornadas ampliadas, trabalho gratuito
rira” (livre ou forçosamente) como insumo da pro- da família são estratégias que viabilizam a repro-
dução. Esta massa dá origem aos grupos sociais do dução social desse campesinato que se torna, as-
campo. Há processos de criação do campesinato, sim, semiproletarizado (Cotrim, 1991).
pois, ao mesmo tempo em que o capital o destrói No Nordeste, o termo camponês tem duas
em um lugar, o recria em outro (Fernandes, 2001). acepções. Uma que inclui os assalariados rurais e
As mudanças e avanços do capitalismo no campo outra, mais restrita, que se refere àqueles que não
sempre deixam espaços, dobras e intervalos nos foram totalmente expropriados dos seus meios de
quais famílias continuam ou passam a viver, pou- produção (Andrade, 1989). A gênese do sertanejo
co participando do sistema econômico. se ajusta a essa segunda acepção do campesinato
Em um primeiro momento, quando da as- nordestino que, em algumas regiões, manteve a
censão de um ciclo econômico, grandes proprietá- posse da terra em comunidades pastoris, nas quais
rios engolem pequenos e empurram posseiros para se incluem os Fundos de Pasto.

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O semiárido nordestino é o contexto de for- tões, além, é claro, dos pequenos cercados dos ro-
mação do sertanejo, povo associado ao pastoreio çados dos vaqueiros. Entretanto, desde aquelas dé-
do gado trazido de Cabo Verde e que foi desenvol- cadas, o advento do arame farpado tem facilitado a
vendo vestimentas, culinária, modos de vida, or- prática dos grandes fazendeiros de cercar as melho-
ganização familiar, estrutura de poder, visão de res áreas para formar as “mangas” para o seu gado.
mundo e religiosidade típicos (Abreu, 1963; Durante os séculos XVIII e XIX, a decadên-
Andrade, 1973; Cunha, 2002). A interiorização da cia dos engenhos esvaziou progressivamente a eco-
pecuária pelo sertão gerou uma verdadeira “civili- nomia do sertão. Os senhores de currais, diferen-
zação do couro” (Abreu, 1963). temente dos senhores de engenhos, não moravam
A relativa liberdade desses vaqueiros, ain- em suas terras. O vazio econômico reforçou o iso-
da que em regime de servidão, diferia em muito lamento dos currais dos sertões entre o século XIX
das condições dos engenhos. Provavelmente, se- e a segunda metade do século XX. O fracionamento
gundo Ribeiro (1995), ela atraiu brancos pobres e das grandes sesmarias das Casas da Torre e da Ponte
índios mestiços vindos das faixas litorâneas. Jun- iniciou-se no final no século XVIII (Cotrim, 1991).
to ou próximos aos vaqueiros, havia também al- O período entre 1830 e 1844 é marcado pela rápi-
guns poucos rendeiros, gente livre, sem acesso à da comercialização das terras das sesmarias da Casa
terra, que criava seus animais nas propriedades da Ponte, justificada pelos altos custos de manu-
de outros (Dantas, 2002). Eram grupos de dez a tenção da família, que passara a viver na Inglater-
doze homens, índios, mestiços, escravos em fuga, ra. O desmanche da Casa da Torre iniciou-se ain-
foragidos da justiça, aventureiros procurando “li- da na segunda metade do século XVIII, com as
berdade e desafogo” (Prado Jr., 1989 p.45). vendas feitas pela viúva do Capitão Garcia D’Ávila
Pereira para diferentes compradores (Dantas, 2002).
Assim como não eram rigorosos os limites
APOSSAMENTO COLETIVO E PASTORIL DAS entre as duas casas e entre as sesmarias, as escri-
TERRAS DEVOLUTAS DO SERTÃO turas que decorreram de sua dispersão são igual-
mente imprecisas. Essas áreas eram vendidas em
E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, termos de contos de réis e os formais de partilhas
sem dono. (Cunha, 2002, p.43). Abriram-se des-
de o alvorecer do século 17, nos sertões valiam frações de contos de réis. São essas refe-
abusivamente sesmados, enormíssimos campos,

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compáscuos sem divisas, estendendo-se pelas
rências que se encontram entre os raros documen-
chapadas em fora. [...] Esta solidariedade de es- tos em mãos das comunidades pastoris do sertão.
forços evidencia-se melhor na “vaquejada”, tra-
balho consistindo essencialmente no reunir, e Muitas posses estabelecidas por vaqueiros e
discriminar depois, os gados de diferentes fazen- foreiros foram mantidas sem contestação de
das convizinhas, que por ali vivem em comum,
de mistura, em um compáscuo único e enorme, sesmeiros. Durante o século XX, nas áreas mais fér-
sem cercas e sem valos (2002, p.83). teis, povoadas e próximas ao litoral nordestino, a
tendência foi a total expropriação e o assalariamento
Nessas afirmativas de Euclides da Cunha, dos trabalhadores. No entanto, o avanço do capi-
veem-se duas percepções diferentes sobre o mesmo talismo não foi pleno nas terras nordestinas
processo de ocupação, a do sertão sem dono e a devolutas e pouco povoadas (Andrade, 1989). É
dos pastos sesmados e partilhados em compáscuos. sobre essas terras que se estabeleceram comunida-
A falta de explicitação da diferença entre “sem dono” des pastoris e onde persistem, no século XXI, for-
e “partilhados em compáscuos” é uma das geratrizes tes processos de grilagem.
da indefinição em que ainda se encontram as áreas Até 1850, predominava, na caatinga, o
apossadas coletivamente nos sertões. pastoreio comunitário, regrado pelo direito costu-
Registre-se que, até 1930-1940, os travessões meiro, no qual o conceito de posse era igual ao de
eram as únicas divisões de terra de todos os ser- domínio. Os limites entre as fazendas e sítios eram

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DAS SESMARIAS À RESISTÊNCIA AO CERCAMENTO ...

reconhecidos por consenso entre os ocupantes e POSSEIROS E BODES NA CAATINGA


os confrontantes (Cotrim, 1991). A partir desse BAIANA: formação dos fundos de pasto
período, desenvolve-se uma dicotomia entre os
grandes pecuaristas que constituíam grandes fa- A compreensão entre as comunidades pas-
zendas de gado e os caprinovinocultores baseados toris da Bahia é de que sua realidade é imemorial.
em sítios camponeses (1991). No dizer de um de seus integrantes: “Nem sei falar
Os conflitos se deram, até as primeiras dé- quando começou, existiu toda a vida. O que acon-
cadas do século XX, sem que houvesse grandes teceu foi que as áreas foram diminuindo, mas Fun-
cercamentos de áreas. Prevalecia o sistema da “sol- do de Pasto sempre existiu, as terras eram
ta” para bovinos e caprinos. Há várias referências devolutas, criavam bode que é duro na queda e
aos tempos em que os animais pastavam sem qual- aguenta seca”.
quer limite, usando todas as terras da região. Apesar da exclusão ou subordinação dos
Os cercamentos de áreas do sertão inicia- camponeses, a não-ocupação, de facto, pelos
ram-se somente a partir dos anos 1920, pela “mo- sesmeiros permitiu que remanescentes desses va-
dernização” da pecuária extensiva e especulação queiros e “fábricas” fossem progressivamente ocu-
de terras. Foi um dos processos de transformação pando essas terras como posseiros, reconhecidos
localmente mais significativos, pois avançou so- ou não. Aos vaqueiros dos currais sempre foi per-
bre áreas ocupadas por posseiros. A pressão mitido criar pequenos animais: cabras, carneiros e
fundiária mediante a grilagem, por meio da porcos. A divisão entre fazendas e sítios, sitiantes
privatização de terras comuns e do fechamento dos ou posseiros e proprietários, fortes e fracos, nasci-
espaços da “solta” do gado, tem ameaçado os gru- da após a Lei de Terras de 1850, era também repre-
pos de tradição pastoril (Carvalho, 2005). sentada na caatinga pela dicotomia gado e bode.
A indução pelo Instituto Nacional de Colo- Em algumas regiões, entre o século XIX e a primei-
nização e Reforma Agrária (INCRA) do ra metade do século XX, essa dicotomia pendeu
parcelamento individual das terras foi um dos prin- para bode, sítios e posseiros.
cipais fatores de extinção das formas de apropria- Entre 1970 e 1980, enquanto a pecuária não
ção coletiva no vale do Guaporé, em Rondônia avançou, tendo mesmo decaído, a caprino-
(Carvalho, 2005). As singularidades dos vinocultura cresceu significativamente. A área de
apossamentos de várias populações, como serin- pastagem decresceu, uma vez que caprinos e ovi-
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gueiros, quilombolas e ribeirinhos, são ignoradas nos são criados em sistema extensivo, sem limites
nos processos de regularização fundiária (Benatti, de áreas de estabelecimentos. Freyre (1961, p.80)
2005). A preocupação com as peculiaridades das parece descrever um Fundo de Pasto: “a cabra do
comunidades pastoris compôs a justificativa do nordestino, criada como é, sem a mínima vigilân-
primeiro projeto de regularização fundiária volta- cia, num território onde as cercas não são feitas
do para elas (CAR, 1982). para dividir terrenos, mas unicamente para res-
De um modo geral, esses apossamentos co- guardo dos cercados ou pequenas plantações”.
letivos enfrentam sérias ameaças à sua reprodu- Uma descrição feita por Andrade (1973) sobre o
ção. Tratando-se de áreas marginais para a agricul- modo de vida sertaneja coincide com o padrão de
tura capitalista, muitas vezes a grilagem de terras ocupação atual das comunidades pastoris do ser-
tem fins meramente especulativos. No trato do tão da Bahia:
problema fundiário do sertão, ainda que, em algu-
mas regiões, a agricultura irrigada tenha tomado As grandes distâncias e as dificuldades de co-
municação fizeram com que aí se desenvolvesse
áreas com perspectiva moderna e capitalista, pre- uma civilização que procurava retirar do pró-
domina a especulação de terras. prio meio o máximo, a fim de atender às suas
necessidades. [...] Lavouras de ciclo vegetativo
curto – feijão, fava, milho, etc. – eram confinadas

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Luiz Antonio Ferraro Júnior, Marcel Bursztyn

por cercas de varas ou de pedras a fim de impe- RAZÕES DA CONFIGURAÇÃO E PERSISTÊN-


dir a danificação provocada por animais.
(Andrade, 1973, p.183) CIA DAS COMUNIDADES PASTORIS
BAIANAS
É importante observar que, entre Freyre e
Andrade, não se encontra a expressão Fundo de Por que essa ocupação se configurou e per-
Pasto, mas, repetidamente, eles se referem à criação
sistiu após o fim dos currais? As razões explicativas
de cabras “à solta” na caatinga, o que permite inferir
são dúbias e não-excludentes. O estudo da litera-
ser essa uma condição comum na região, ao menos tura e de relatórios, as entrevistas com técnicos
no período em que fizeram seus estudos, entre 1920
das instituições próximas e com as famílias das
e 1950. Na Bahia, destacadamente no Sertão Norte,
comunidades pastoris sugerem sete diferentes in-
além das áreas de pastoreio, registra-se o uso de terpretações:
outros recursos comuns como as aguadas e áreas
§ Razão ambiental: a baixa densidade populacional,
para extrativismo de frutas, madeira, mel e caça. A
no contexto de pobreza dos recursos naturais,
comunidade sertaneja, em geral, possui laços de reforçada pela baixa pluviosidade, teria condu-
parentesco, compadrio ou proximidade e realiza o
zido a formas de exploração extensivas e sobre-
manejo desses recursos comuns de modo partilha-
postas (Andrade, 1973; CAR, 1982; Sabourin;
do, com trocas de favores e mutirões. Marinozzi, 2001). Para muitos, essa forma de
A relação das atuais comunidades pastoris
ocupação seria mais preservadora, mais econô-
com os antigos currais fica evidente ao se compa-
mica, mais estável e resistente às variações cli-
rar o mapa das casas senhoriais com os municípi- máticas. Acrescenta-se o argumento da adequa-
os onde hoje se encontram Fundo de Pasto. Um
ção genética do gado pastoreado pelos sertane-
dos documentos de terra mais antigo em posse
jos que, vindo de Cabo Verde, adaptava-se ao
dos moradores descreve o desmembramento da regime extensivo, procurando a própria comida
área no livro de Tombo da Casa da Torre, de 27 de
e as aguadas, prescindindo de estabulação (Ri-
agosto de 1828 (Garcez, 1987). São muitas as áreas
beiro, 1995). O mesmo se aplica ao desenvolvi-
de Fundo de Pasto que pertenciam à Casa da Tor- mento do bode “pé-duro”, adaptado às condi-
re, e sua ligação com os currais é descrita por
ções de pastoreio solto na caatinga. A adaptação
Antonil como sempre instaladas em paragens com
do bode foi experimentada longamente nos cur-
disponibilidade de água, o que é reforçado pelos

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rais, uma vez que a propriedade e a criação de
nomes das comunidades, quase a metade deles
pequenos animais eram autorizadas aos vaquei-
associados a esse elemento: tanque, lagoa, poço,
ros pelos sesmeiros.
barreiro, riacho, olho d´água, várzea, alagadiço, § Razão ibérica: a persistência estaria na matriz
bica, brejo, vereda.
cultural, fruto da herança da forma comunal de
A maior parte das comunidades pastoris
ocupação das terras em Portugal e Espanha. As
localiza-se em terras devolutas, originadas de gran- comunidades pastoris do sertão baiano se rela-
des fazendas desmembradas ou compradas das
cionariam aos “baldios”, áreas de terra livre dis-
sesmarias originais. Essas comunidades, frequen-
poníveis para os camponeses em Portugal.
temente constituídas por famílias de descenden- § Razão antieuropeia: idealiza o caráter indígena e
tes dos herdeiros dessas “fazendas-mãe”, não pos-
negro como solidários, em oposição ao caráter
suem qualquer documentação que registre a pos-
europeu. Refere-se às tradições comunitárias in-
se, exceto raros recibos de compra e venda ou dígenas, reforçadas pelos laços de solidariedade
formalizações de partilha de heranças. Esses do-
intrínsecos aos quilombos. Parte da ideia de que
cumentos, quase sempre em mãos de pessoas mais
a noção de propriedade privada era estranha aos
velhas, são os únicos existentes de comprovação não-brancos e teria, assim, se reproduzido entre
de posse das terras.
a população mestiça dos sertões, a partir de seus

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DAS SESMARIAS À RESISTÊNCIA AO CERCAMENTO ...

elementos indígena e africano. ção pelo simples crescimento vegetativo. Em vir-


§ Razão indígena: a configuração das comunida- tude da natureza da produção pecuária e dos
des pastoris do sertão seria uma adaptação dos modos de repartição de benefícios, esses indiví-
territórios de caça das aldeias. Os caprinos teri- duos nunca reuniram razões para dividir as terras
am tomado o lugar da caça quando do por unidades familiares. A não-divisão seria uma
aldeamento de indígenas. A tradição indígena, estratégia de sobrevivência do grupo e um prosse-
de vida e produção comunitárias, teria sido re- guimento do modo de produção dos currais.
forçada por missionários da Igreja (Cotrim, 1991), Dentre todas, a explicação clânica (socio-
que talvez buscassem reeditar as primeiras co- cultural) parece dominante frente às outras que,
munidades cristãs. Essa hipótese não encontra em geral, estão subordinadas a ela. A manutenção
apoio em Ribeiro (1995), que reconhece ter havi- das terras indivisas só aconteceu porque os confli-
do uma “substituição” dos territórios tribais de tos internos eram (e continuam sendo) passíveis
caçadas por áreas de pastoreio pelos vaqueiros, de solução no âmbito comunitário-familiar; as co-
mas sustenta que essa mudança teria sido de tal munidades são predominantemente formadas por
modo conflituosa e violenta, que marcou mais herdeiros e seus descendentes, parentes em dife-
um afastamento entre vaqueiros e indígenas que rentes graus. As razões ambientais, econômicas e
uma mútua influência. fundiárias também são factíveis, podendo, em di-
§ Razão socioeconômica: a existência de comuni- ferentes graus, terem se somado para fortalecer o
dades pastoris no sertão seria resultante da sua modo Fundo de Pasto de uso e ocupação. As hi-
pobreza. Essas terras teriam sido “esquecidas” póteses de cunho étnico-cultural (indígenas e
por causa do seu baixo potencial produtivo e da antieuropeias) são mais difíceis de avaliar e não
baixa valorização econômica (Cotrim, 1991). Com parecem muito significativas por duas razões: a
a decadência dos currais, “abandonados” à pró- apontada por Darcy Ribeiro quanto à não-assimi-
pria sorte nos sertões, os remanescentes teriam lação, mas sim o enfrentamento dos índios pelos
sido induzidos à vida comunitária e à partilha. vaqueiros; e a configuração aberta dos grandes
Essa hipótese pode assumir uma versão marxis- currais não ter sido opção das comunidades ou
ta, segundo a qual essas comunidades “pré-capi- dos vaqueiros, mas uma contingência das
talistas” não configuraram um sistema de produ- sesmarias. De qualquer modo, pode-se agregar à
ção para acumulação privada e primitiva de capi- explicação o fato de a ascendência ser de campo-
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tal e, assim, não individualizaram suas terras. neses pobres, portugueses, indígenas ou negros.
§ Razão da falta de ordenamento fundiário: a im- Todos eles, camponeses pobres, independente-
possibilidade de reconhecimento, regularização mente de qualquer influência cultural direta, nun-
e titulação da propriedade familiar, seja pela com- ca tiveram propriedade privada de terras e não
pra e venda de terras ou pelo reconhecimento conseguiram superar essa condição.
estatal da posse, induziu a sua não-discrimina-
ção individualizada Após a decadência dos cur-
rais (1750-1850), os vaqueiros e posseiros não CONFLITOS E RESISTÊNCIA AOS
se fizeram donos, mas apenas usufrutuários da ENCLOSURES
terra e, portanto, sem direito à apropriação indi-
vidual. Essa hipótese é reforçada pela ideia de Houve a consolidação de algumas formas
que, além da dificuldade, havia um grau de de ocupação camponesa, tanto por um gap da ação
desinformação sobre direitos, o que induziu a do Estado quanto pela decadência econômica das
apropriação coletiva das terras (Cotrim, 1991); e duas “Casas”: da Torre e da Ponte. A partir do
§ Razão clânica (sociocultural): o relativo isolamento final do século XIX, começa, em escala mundial, o
das famílias de vaqueiros acarretou uma ocupa- avanço do cercamento de terras com a tecnologia

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do arame farpado, o que impactou fortemente as do de Pasto e das organizações associadas referem-
Américas (Razac, 2000). A difusão do arame contri- se ao “Projeto Sertanejo” (década de 1980) e a ou-
buiu para maior apropriação de terras e recursos tros programas do governo da Bahia como proces-
naturais, levando ao fim de sistemas pastoris co- sos de apoio e financiamento para aquisição e
munitários que levavam nomes como “solta”, “lar- cercamento (grilagem) de terras. O aumento da
ga” ou “largueza” (Carvalho, 2005). Esse avanço vulnerabilidade das populações locais e de sua
sobre terras comunais ocorre em todas as regiões consequente desterritorialização decorre também
em que elas persistiram, como nas terras dos dessas ações de governo (Oliveira; Rothman, 2007).
“geraizeiros” do Jequitinhonha, das chapadas do A partir do final da década de 1970, as co-
Espinhaço, no Piauí, nas terras chamadas “solta munidades pastoris estavam sendo impedidas de
larga”, no Mato Grosso, no vale do Guaporé, em criar ovinos e caprinos, base de sua atividade eco-
Rondônia, nos babaçuais e carnaubais de Piauí e nômica e de subsistência, em virtude da crescente
Maranhão (Andrade, 1989; Galizoni, 2000; Carva- apropriação privada da terra, apoiada por leis
lho, 2005). Trata-se de um fenômeno comparável municipais da mesma época, denominadas popu-
ao processo dos enclosures ingleses, quando a larmente de “lei do pé alto” ou “lei dos quatro
mercantilização das terras e do trabalho impulsiona fios”. Elas favoreciam a ocupação de terras por gran-
um avanço sobre as áreas comunais (Polanyi, 2000). des pecuaristas de gado de corte, criado em regime
A “modernização” da pecuária, iniciada nos extensivo, em detrimento da ocupação vigente, no
anos 1920, deflagrou o avanço sobre as áreas ocu- regime de “bode solto”, característico dos Fundos
padas por posseiros do sertão e seu cercamento. de Pasto.
Grande parte dos conflitos agrários envolvendo os A Lei municipal de 4 de maio de 1981 de
Fundos de Pastos surgiu por influência do Estado Paulo Afonso impunha ameaças que se somavam
como agente planejador do território (Alcântara; a outras enfrentadas pelos caprinocultores comu-
Germani, 2004). A partir de 1950, a política de nitários:
integração do interior do governo de Otávio
Art. 1º. A criação de caprinos e ovinos no muni-
Mangabeira (1948-1951) reforçou a pecuarização e cípio deverá ser em área cercada e os rebanhos
a concentração de terras (Freitas; Rocha; Mello, guardados e vigiados com cuidado preciso a fim
de evitar prejuízos em propriedades alheias.
1984). Na década de 1970, a pecuária ganha novo Art. 2º. Aos agricultores e pecuaristas fica assegu-
rado o direito de construírem cercas para a prote-

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impulso, com o crédito subsidiado e a abertura de
ção de suas lavouras ou para o critério do gado
agências bancárias no interior, facilitando e incen- vacum com apenas 3 ou 4 fios de arame farpado.
tivando as transações. A ampliação do crédito e
do sistema bancário coincide com os registros dos O terceiro artigo da mesma lei previa mul-
primeiros grandes conflitos entre os Fundos de tas para os danos causados por animais soltos.
Pasto e os fazendeiros. Leis similares se multiplicaram, no início dos anos
A partir da década de 1970, houve cinco ei- 1980, por todos os municípios onde há ou havia
xos articulados de pressão sobre as comunidades comunidades pastoris.
pastoris do sertão baiano: 1) pressão ambiental, pela A resistência contra essa lei era parte de
degradação da caatinga; 2) pressão política, com a uma luta para a continuidade da criação de caprinos
criação de leis municipais obrigando o cercamento no sistema “bode solto”, cujo fim comprometeria
de áreas (leis dos quatro fios); 3) pressão fundiária, a reprodução social das comunidades. A criação
ocasionada pela grilagem de terras; 4) pressão eco- presa implica em estruturação física (capril) e de-
nômica, pela valorização das terras; e 5) pressão téc- pendência de arraçoamento por ração produzida
nica, em virtude das propostas de modernização na caatinga ou adquirida no mercado.
da agricultura e da ampliação da pecuária. A luta ganhou vários nomes regionais: “bode
Os representantes das comunidades de Fun- solto”, “Fundo de Pasto”, “luta pela solta”. Em

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DAS SESMARIAS À RESISTÊNCIA AO CERCAMENTO ...

muitas regiões, Fundo de Pasto sempre foi a ex- zada para o pastoreio comunitário, com a criação
pressão utilizada para designar o pastoreio comu- “solta” na caatinga, e para o desenvolvimento de
nitário, embora fosse ignorada em várias outras. A atividades extrativas.” (PDRI-Nordeste, 1982, p.48).
expressão se origina no fato de os animais se afas- Uma política de regularização fundiária que
tarem das pequenas áreas individuais, próximas desconheça as peculiaridades e aspirações dessas
às casas, e se embrenharem no interior da caatin- comunidades traria “sérios transtornos à sobrevi-
ga, em amplas e distantes áreas coletivas: os fun- vência das mesmas” (CAR, 1982). A preocupação
dos de pasto. Não havia denominação comum, com essas formas regionais típicas de ocupação
identidade ou organização política dessas comu- justificou o Projeto Fundo de Pasto. Financiado
nidades antes dos conflitos. Foi o avanço das lu- pelo Banco Interamericano para a Reconstrução e
tas que levou à adoção desse nome comum: Fun- o Desenvolvimento (BIRD) e pelo Banco Mundial,
do de Pasto. Em algumas regiões, o nome Fundo visava a identificar áreas comunitárias de pastoreio,
de Pasto é corrente e imemorial. Declara-se existir estudar viabilidade econômica e jurídica e contro-
desde o começo do mundo, ou que existe desde lar as tensões sociais.
antes do tempo dos avós. Ou então que “Fundo Os relatórios produzidos no âmbito do Pro-
de Pasto, com a gente criando solto, todo mundo jeto Fundo de Pasto são, invariavelmente, favorá-
junto, nasceu com o mundo.” (SEPLANTEC/CAR, veis à manutenção dessas áreas comuns. Os re-
1983). Em outras, a denominação é apontada como presentantes do governo baiano, quando identifi-
bem recente. “A gente veio descobrir o que era cam o contexto, demonstram perceber uma urgên-
Fundo de Pasto quando se organizou. [...]. Se or- cia na ação governamental.
ganizou por causa dos conflitos com mineradoras, Assim, a resistência comunitária e a abertu-
latifundiários. [...] A discussão tem só 30 anos”, ra do governo baiano culminaram no reconheci-
declara um representante dos Fundos de Pasto. A mento e na regulamentação de áreas individuais e
depender do grupo, a discussão é ainda mais re- coletivas, situando oficialmente os Fundos de Pas-
cente: “Esta conversa de Fundo de Pasto é nova, a tos como personagem jurídico de legalização de
gente aqui só falava em criar solto; foi de uns 15 terras de comunidades pastoris.
anos pra cá que vieram com esse nome”. Um importante passo na resistência das
A atuação em favor dos Fundos de Pastos comunidades pastoris e consolidação da categoria
por parte de instituições do governo começou no dos Fundos de Pastos foi o artigo 178 da Consti-
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início dos anos 1980. O projeto Programa de De- tuição baiana de 1989, que reconhecia a existência
senvolvimento Rural Integrado (PDRI-Nordeste) re- de formas de uso comunitário da terra. Várias ins-
fere-se aos Fundos de Pastos como áreas de pastoreio tituições, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT),
comunitário e de atividades extrativas, asseveran- declaram que as suas ações em defesa dos Fundos
do a sua importância para sobrevivência em uma de Pastos se fortaleceram a partir desse artigo da
região pobre. Registra também o posicionamento dos Constituição.
grupos de famílias que reclamam a posse das áreas Ao reconhecer que tais ocupações são ca-
e aponta a tendência à sua “extinção” em função racterizadas por uma “atipicidade”, mesmo no Pro-
dos cercamentos com fins especulativos, da des- jeto, já ficava claro que havia necessidade de uma
truição da flora nativa e da carvoagem. “saída legal não-convencional” para o processo de
Os primeiros relatos técnicos descreviam es- sua regularização. Essa saída foi encontrada na re-
sas áreas da seguinte maneira: “a caprinovinocultura gularização coletiva por meio de uma sociedade
[...] é explorada de forma comunitária nos chama- civil, sem fins lucrativos, à qual estivessem filiados
dos FP, onde um grupo de famílias reclama a pos- todos os interessados.
se de uma área mais ou menos delimitada, sem O primeiro passo do Projeto Fundo de Pas-
cercas [...].” e “sendo a grande parte da área utili- to era ao identificar e medir as áreas, discriminar

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Luiz Antonio Ferraro Júnior, Marcel Bursztyn

as terras devolutas e as particulares. O segundo velmente em função das lutas e do surgimento de


era garantir, mediante decreto, a reserva das terras novos atores, as denominações passam a ser “asso-
públicas identificadas para o atendimento dos in- ciação” ou “comunidade”. Não obstante, muitas das
teresses socioeconômicos das comunidades. A base localidades não resistiram aos conflitos e nelas não
jurídica para o estabelecimento desses “condomí- se registra mais a presença de áreas típicas, que pas-
nios de pastagens” foi o compáscuo, modo coleti- sam a ser denominadas de Fundo de Pasto.
vo de ocupação de pastos, previsto e tratado no
artigo 646 do Código Civil Brasileiro. Nessa pro-
posta “experimental”, o compáscuo havia de ser CONSIDERAÇÕES FINAIS
não o modo ou a forma jurídica da atividade, mas
o objeto da sociedade civil sem fins lucrativos que No sertão da Bahia, em vastas áreas, mas com
o assumiria. A fórmula da legalização em nome de populações não tão numerosas, configuraram-se, a
todos já havia sido usada anteriormente para a partir das sesmarias, sistemas agrossilvipastoris com
solução de conflito nascido da reação de uma co- uso comunal de terras. A origem dessas comuni-
munidade a um processo de grilagem em larga es- dades pastoris está relacionada aos currais das
cala (Garcez, 1987). Casas da Torre e da Ponte: há uma coincidência
O processo de regularização prosseguiria, a geográfica, a mesma associação com as aguadas, a
partir daí, mediante duas formas de legalização. antiguidade das comunidades e os formais de par-
Quando da não-existência prévia de sociedade ci- tilha que datam da primeira metade do século XIX,
vil organizada como associação, as áreas ocupadas período de desmembramento das sesmarias. As
comunitariamente eram regularizadas em nome das comunidades são compostas por familiares, e há
pessoas que receberam áreas individuais e que se inúmeras práticas de compadrio. As identidades,
comprometiam à imediata doação de suas glebas os acordos e o diálogo são reforçados por essas
comuns à sociedade à qual se filiariam. Quando relações. A documentação frágil e o pouco interes-
da existência prévia de associações, as áreas co- se em fragmentar as áreas dos “clãs” em unidades
munitárias eram regularizadas globalmente, sob a familiares contribuíram para a manutenção do re-
forma de doação em nome dessas entidades. gime comunal.
Os órgãos de governo introduziram um pa- O desinteresse econômico e estatal por es-

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drão de estatuto de associação de Fundo de Pasto. sas áreas, ao longo do século XIX e início do sécu-
Em seus artigos, se estabelecem os mecanismos lo XX, favoreceu a consolidação desse padrão cam-
jurídicos, como a sociedade civil por quotas (con- ponês de ocupação e uso das terras do sertão
domínio), a quota-parte, a vedação do direito de baiano, ainda sem uma identidade ou organização
apropriação individual de aguadas e equipamen- regional. Várias gerações se sucederam, produzin-
tos comuns e a inalienabilidade das terras comuns. do e reproduzindo um padrão de ocupação pasto-
Essa ação do Estado sobre os Fundos de ril e comunal. O longo prazo de maturação dessa
Pasto não deixou de ser tardia. Certamente, eles ocupação – mais de duzentos anos, em alguns ca-
chegaram a ser mais numerosos, sendo progressi- sos – favoreceu um posicionamento firme por par-
vamente ameaçados pela expropriação de terras e te das comunidades, que passam a se perceber e a
pela extração de madeira e de outros itens. São se afirmar como detentoras de direitos históricos.
comuns as declarações: “antes era tudo Fundo de O passado não foi determinístico. A partir
Pasto” ou “todo mundo criava solto”. Relatam-se das décadas de 1970 e 1980, por iniciativa de fa-
conflitos de terras iniciados na década de 1940. É zendeiros estimulados por leis municipais, iniciou-
interessante perceber que, ainda ao final da déca- se um período de conflitos que levaram à organi-
da de 1980, predominava o nome “fazenda” e que, zação das comunidades pastoris e à formulação de
a partir dos anos 1990, paulatinamente, prova- sua categoria. Um projeto do governo (Projeto Fun-

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DAS SESMARIAS À RESISTÊNCIA AO CERCAMENTO ...

do de Pasto) e um artigo da Constituição baiana ção profunda da perspectiva política do Estado.


definiram uma denominação geral que passou a O interessante paradoxo que se revela é que,
caracterizar um grande número de grupos que ocu- a tendência homogeneizante do campo brasileiro
pam vastas áreas. Estavam criadas as condições induz a emergência de novas identidades. Cria-se
iniciais para institucionalização dessa categoria, não a impressão do aumento da diversidade, ainda que
como mera estratégia discursiva ou resultado de- essas novas categorias sejam unidades circunstan-
terminado do passado, mas como a emergência de ciais da resistência.
uma nova identidade.
Trata-se da politização da vida cotidiana e
(Recebido para publicação em outubro de 2009)
das práticas rotineiras no uso da terra que fazem (Aceito em abril de 2010)
emergir novas identidades, como já apontavam
Carvalho (2005) e Almeida (1997), ao se referirem
a articulações e denominações coletivas que de- REFERÊNCIAS
correriam de processos de mobilização política no
espaço rural. ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial: os
caminhos antigos e o povoamento do Brasil. Brasília: Ed.
Assim, três fatores concorreram de modo UNEB, 1963. 402 p.
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399
DAS SESMARIAS À RESISTÊNCIA AO CERCAMENTO ...

FROM SESMARIAS TO RESISTANCE TO DES SESMARIAS À LA RÉSISTANCE AUX


ENCLOSURE: historical reasons for back of pasture CLÔTURES: les raisons historiques des fonds de
pâturage
Luiz Antonio Ferraro Jr
Marcel Bursztyn Luiz Antonio Ferraro Júnior
Marcel Bursztyn
This paper reviews the historical reasons for
the emergence of the category of back of pasture. We L’article récupère les raisons historiques du
made use of secondary data collected from government surgissement d’une catégorie appelée fonds de
reports and obtained in interviews with technicians, pâturages. Des données secondaires ont été relevées
pastoral communities and agents. The backs of pasture dans les rapports gouvernementaux et obtenues par
were just grazing areas not surrounded by Caatinga, des interviews faites avec des techniciens, des agents
used for communal grazing. This pattern of occupation de la pastorale et les communautés d’éleveurs. Les fonds
that has developed throughout the Northeast semi-arid de pâturage étaient tout simplement des terres, dans
region was gradually usurped in a process similar to la Caatinga (savane), qui n’étaient pas clôturées et qui
the British enclosures. In Bahia, with the advances of étaient utilisées comme pâturage communal. Ce type
capital over these areas from the 1970s, there were d’occupation qui s’est développé dans toute la région
regional articulations and institutional support that semi-aride du nord-est a été peu à peu usurpé par un
stimulated various resistances. “Back of pasture” came processus similaire à celui des enclos anglais. A Bahia,
to denote not only the areas, but social groups that avec les avancées du capital sur ces terres, depuis les
depended on them and therefore advocated them. The années 1970, il y a eu des ententes régionales et des
formerly only regional term Back of Pasture, became appuis institutionnels qui ont stimulé divers types de
widespread throughout the state, especially after its résistances. “Fonds de Pâturage” a commencé à
quoting in the constitution of Bahia. Family ties in these désigner non seulement ces terres mais aussi les
communities also contributed to the resistance of this groupes sociaux qui en dépendaient et les défendaient.
form of occupation. L’expression “Fonds de Pâturage”, qui avant n’était que
régionale, s’est répandue dans tout l’état, surtout après
avoir été insérée dans la constitution de Bahia. Les
liens familiaux de ces communautés ont aussi
contribué à créer une résistance face à ce type
d’occupation.

KEYWORDS: backs of pasture enclosures, land grabbing, M OTS- CLÉS : Fonds de Pâturages, enclos, clôture,
communal lands, caatinga. accaparement de terres, terres communales, caatinga.
CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 385-400, Maio/Ago. 2010

Luiz Antonio Ferraro Júnior - Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.
Professor adjunto da Universidade Estadual de Feira de Santana. Sua publicação importante mais recen-
te é Managing the remaining commons: challenges to sustainability in the Brazilian Northeast. Working
papers (Harvard University. Center for International Development. Online), v. 28, p.1-23, 2008;
Environmental education and degraded areas restoration: public policies commited to diversity. In:
Ricardo Ribeiro Rodrigues; Sebastião Venâncio Martins; Sérgius Gandolfi. (Org.). High diversity forest
restoration in degraded areas: methods and projects in Brazil. New York: Nova Science Publishers Inc.,
2007, escrita em parceria com SORRENTINO, M.; SILVA, M. M. R.
Marcel Bursztyn - Doutor em Desenvolvimento Econômico e Social e em Economia. Pós-doutor em
Políticas Públicas. Professor associado da Universidade de Brasília, junto ao Departamento de Sociologia
e ao Centro de Desenvolvimento Sustentável. Senior Research Fellow na Kennedy School of Government
– Sustainability Science Program, Harvard University (2007-2008), com bolsas Harvard, Fulbright e
Capes. Última publicação: Fonseca, I.F. e Bursztyn, M. 2009. A banalização da sustentabilidade: refle-
xões sobre governança ambiental em escala local. In: Revista Sociedade e Estado 24(1):17-46. http://
www.scielo.br /pdf/se/v24n1/a03v24n1.pdf

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