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cia e na legislação. Por essa razão, antes mesmo de ser incluído na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, ou seja, antes de integrar a legislação interna
cional, o direitoà informação já constava na Constituição sueca de 1766, no
decreto revolucionário francês de 1794 e na legislação de vários outros países. No
Brasil, esse direito é hoje garantido constitucionalmente, além de aparecer em
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outros textos legais. Se considerarmos o direito à informação como um correlato
do direito de liberdade de expressão, poderemos inclusive inferir que ele estava
implícito na Constituição Política do Império, que determinava que todos
poderiam comunicar os seus pensamentos por palavras e escritos e publicá-los
na imprensa, sem dependência de censura, desde que respondessem, perante a
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lei, pelos abusos que cometessem no exercício desse direito.
A legitimidade e a universalidade do direito à infOlmação não impedem
que ele sofra restrições de outros direitos igualmente importantes para o in
divíduo e para a sociedade, como por exemplo o respeito à vida privada e a
garantia da soberania do país (um dos aspectos do segredo de Estado). O direito
ao respeito à vida privada é o limite na um à liberdade de informação. Integra um
conjunto de "direitos da personalidade" considerados intransmissíveis e irre
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nunciáveis, e que englobam o direito à vida e à integridade fisica, o direito ao
nome, à honra e à imagem, à liberdade de ir e vir e à inviolabilidade do domicílio,
além dos direitos autorais (Dotti, 1980: 22-23).
Existem várias classificações de direitos privados adotadas pelos autores
que trabalham com essa questão. Uma das mais abrangentes, utilizada pelo
Bureau de Droit Civil Général, do Ministério da Justiça francês, enumera oito
categorias de direitos relativos à vida privada, cujo sigilo deve ser respeitado: vida
sentimental, conjugal e familiar; direito ao nome; à saúde, incluindo informações
sobre a causa da morte; eventos familiares; emoções; lazer; opiniões políticas,
filosóficas e religiosas; e patrimônio (Hunaud, 1996).
Do ponto de vista legal, os direitos privados começam a surgir a panir
de meados do século XVIII, mas a existência de uma jurisprudência internacional
atesta a preocupação com alguns desses direitos desde o século XlV, tendo sido
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o primeiro caso localizado na Inglaterra em 1348. Existe uma enorme variação
na enunciação desse direito, na legislação dos diversos países, devida à própria
dificuldade em determinar o conteúdo da noção de vida privada. Na legislação
brasileira, observa-se a presença dos direitos à vida privada em todas as consti
tuições do período republicano. Mesmo a Constituição do Império, no seu já
citado artigo 179, do título VIII, esboça a formulação desses direitos quando se
refere à inviolabilidade dos direitos civis e políticos do cidadão brasileiro,
incluindo entre eles a liberdade de expressão, a segurança individual e a pro
priedade.
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Exatamente por entender que a vida privada e a vida pública penencem a mundos
diferentes, Hannah Arendt ressalta a "diferença entre aquilo que pode e deve ser
mostrado - o visível - e aquilo que pode e deve ser ocultado" (Lafer, 1988: 261),
sem prejuízo do direito à informação. Na realidade, por ser muito tênue a linha
divisória entre a liberdade de infollnação e o respeito à intimidade, toma-se quase
impossível estabelecer a priori qual dos dois direitos deve prevalecer, indicando
o bom senso que, na maioria das vezes, as soluções devem ser buscadas no exame
de cada caso. Penso, contudo, que sempre que a infollnação seja necessária ao
exercício do bem comum, o interesse público deve prevalecer.
Além de ser cerceado pelas questões relativas à intimidade, o direito à
informação encontra, como já foi dito, nas prerrogativas da segurança do Estado
outra limitação significativa. Entretanto, com as pressões cada vez maiores no
sentido de assegurar a transparência administrativa dos poderes públicos, existe
hoje, em nível internacional, uma forte tendência em favor do acesso às infor
mações de arquivos. A polêmica sobre essa questão tem gerado efeitos positivos,
que podem ser observados nas mudanças ocorridas nas legislações especificas de
diversos países. Na França, por exemplo, o governo criou uma missao intelminis
terial encarregada de estudar O assunto, que propôs mudanças urgentes e signi
ficativas na legislação sobre o acesso, no sentido de fixar prazos mais cunos para
a liberação de documentos, sob a justificativa de que "o segredo de Estado
envelhece rapidamente" (Braibant, 1996).
Algumas observações finais sobre a realidade dos arquivos brasileiros.
No Brasil, o acesso às informações de arquivo sempre foi uma questão compli
cada, apesar da liberdade de informação constar de dispositivos constitucionais
desde o Império. O Arquivo Público do Império, criado em 1838, liberava os seus
documentos apenas para uso do governo ou para pessoas indicadas diretamente
pelo imperador. A política de sigilo, imposta à Colônia por Ponugal e adotada
posteriormente pelos imperadores brasileiros, transformou o Arquivo Público
em uma instituição guardiã do segredo de Estado, constituindo-se na antítese
dos arquivos nacionais europeus, engajados na construção da consciência
histórica, característica do século XIX (Costa, 1997: 118).
O período republicano foi mais democrático, apesar dos interregnos de
obscurantismo e de censura. Além de as constituições republicanas assegurarem
o direito à informação, o acesso aos documentos de arquivo foi gradativamente
institucionalizado, ou seja, regulado por nOImas internas às instituições deten
toras de acervos arquivísticos. Mesmo assim, a precariedade dessas instituições
dificultava enormemente o trabalho dos pesquisadores. O fato de não possuir leis
específicas regulamentando as condições e os prazos para a consulta dos docu
mentos, deixava a critério dos diretores de instituições ou responsáveis pelos
acervos a decisão de tomar ou não os documentos disponíveis. O acesso à
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1997: 181). E preciso, portanto, criar uma nova mentalidade com relação à
importância e à utilização das informações provenientes de documentos de
arqUIvos.
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Por outro lado, faz-se necessária uma ampla divulgação, nos meios
acadêmicos e na sociedade em geral, dos instrumentos legais relativos ao acesso
arualmente disponíveis. Com a criação do Conselho Nacional de Arquivos -
Conarq, órgão vinculado ao Ministério da Justiça e que· integra, na sua com
posição, representantes das entidades governamentais e de instiruições culturais
vinculadas à pesquisa, esse trabalho foi timidamente iniciado.
No que tange aos arquivos privados, isto é, àqueles que não resultam das
atividades geradas na esfera pública, o binômio público/ privado se expressa não
só através do conflito entre a intimidade e o interesse público, mas, mais ainda
entre esse último e a propriedade privada, assegurada na Constituição em vigor.
A Lei de Arquivos brasileira instituiu, no seu capítulo lII, a figura
jurídica da "classificação de arquivos privados como de interesse público e
social", a exemplo de outros países como França, Canadá, Itália e Espanha. A
intervenção do Estado decorrente do ato c1assificatório não elimina os direitos
de propriedade que o titular do arquivo ou seus herdeiros possuem sobre os
documentos, mas lhe faculta o direito de controle sobre o arquivo, em nome do
interesse público.
Tal dispositivo implica sobrerudo a obrigatoriedade da parte do pro
prietário ou detentor do arquivo de preservar os documentos considerados
relevantes para a história do país ficando, nesse sentido, proibida a sua destruição,
perda ou exportação. Convém ainda lembrar que, em alguns países, inclusive no
Brasil, a legislação prevê o direito de preferência do Estado nos casos de alienação
por venda.
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exemplo, a Hist6ria da vida privada no Brasil, com dois volumes já nas livrarias.
Sendo a pesquisa histórica uma atividade que visa ao bem comum e ao interesse
público, sempre maiores do que os interesses individuais e singulares, torna-se
um imperativo preservar e facultar à consulta as fontes privadas, sem que com
isso se tenha que ultrapassar as fronteiras da intimidade.
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