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Intimidade versus Interesse Público:


a Problemática dos Arquivos

Célia Leite Costa

Pelo fim da época dita augusta, os romanos puseram-se a considerar


a vida pública como uma pura obrigação fOlmaJ. (m)
A vida pública tornou-se moribunda em Roma, e no domínio privado
procurou-se 11m novo foco para as energias afetivas.
Ocorre que, desde o século XIX, os ocidentais se assemelbam
a estes romanos do Império; também perderam o seu espaço público.
Não possuem mais ágora onde debater os negócios da cidade.
Não possuem mais coffee houses, ou clubs, onde comentar as últimas novas.
As ruas e praças são meros lugares de passagem, trilhados pela "multidão
solitária"; passamos pelo desconhecido, mas já não o encontramos.
(R. Sennet)

O trecho de Sennett, citado por Lebrun (1983: 255), remete à velha


dicotomia público/privado, presente no Ocidente desde a Antiguidade. Preten­
demos siruar a discussão sobre esses pólos antagônicos no mundo contem­
porâneo, observando particularmente as repercussões dessa polaridade na prática
arquivística. Cronologicamente, interessa-nos acompanhar a evolução desse

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binômio a panir do século XVIII, quando começa a se formar a idéia de


construção de um espaço público, separado do privado, como uma conseqüência
do Estado burguês em fOImação. Isso não significa dizer que o conceito de
público, por oposição e em complemento ao privado, tenha surgido pela primeira
vez na história da humanidade no século das Luzes. Ao contrário: a idéia é antiga
e os relatos e estudos que se tem dapolis grega constituem mais uma "prova" do
resgate feito pelos modernos da experiência da Grécia clássica.
Contudo, o conceito antigo de público, enquanto espaço onde os homens
se expressavam livremente através de palavras e atos, não encontra uma corres­
pondência direta na era moderna. Público hoje está muito mais próximo da idéia
de social e de coletivo do que da idéia intrinsecamente política atribuída pelos
gregos, que excluíam de sua definição tudo o que se relacionasse às necessidades
vitais (ArendI, 1981: 46).
O novo sentido atribuído ao público resultou de um processo lento para
o qual contribuiu, como nos lembra Hannah Arendt, o alargamento da esfera do
privado, que gradativamente passou a abarcar atividades antes próprias da esfera
pública, como por exemplo a elaboração das leis e a administração da justiça. Esse
fenômeno iniciou-se provavelmente no final do período romano e atingiu sua
plenitude na Idade Média, em função da ampliação do domínio do senhor feudal,
muito maior do que o do chefe de família na Antiguidade. A transferência de
todas as atividades humanas para o domínio do privado aniquilou a esfera política
e transfollllOu o sentido anterior de bem comum (Arendt, 1981: 44).
Na modernidade, na medida em que a economia deixa de ser um assunto
doméstico e começa a ser regida pelo mercado, as relações econômicas passam a
ter uma imponância pública, exigindo um espaço próprio. A esfera pública, nos
moldes do século XVIII, surgirá em decorrência de uma opinião pública que se
fOlma a partir das conversas nos clubes e cafés, de início em tomo dos assuntos
domésticos e das anes. Aos poucos os negócios públicos e a política se impõem.
Inicialmente restrita aos círculos burgueses e intelectuais, a esfera pública
estende-se, no século XIX, às massas urbanas, que pressionam no sentido de
exigir maior participação nos assuntos de interesse social, tais como ensino
gratuito, sufrágio universal etc., imprimindo ao espaço público um caráter mais
social (Lebrun, 1983: 250-252).
A ampliação pelmanente dessa esfera social, abrangendo atividades
antes próprias dos domínios do público e do privado, e a interpenetração desses
domínios, resultam na dificuldade em estabelecer os limites entre essas duas
esferas e na fragilização do público, enquanto espaço reservado aos grandes temas
da política. O público aproxima-se do social, enquanto o privado restringe-se ao
círculo da intimidade (Arendt, 1981: 47-48).

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E exatamente contra a exacerbação do social que começa a se desenvolver,


em fms do século XVIII, com os românticos, a preocupação com a privacidade.
O século XIX será caracteristicamente marcado pelo retomo ao privado; mas não
mais o privado no sentido doméstico greco-romano, ou mesmo medieval. A
crescente valorização do indivíduo e do intimismo, que tem em Jean Jacques
Rousseau seu primeiro grande teórico, imprimirá à nova concepção jurídica do
privado características especiais. A tônica será dada agora à busca da subjetivi­
dade, do intimismo, do singular, da identidade pessoal.
A nova dicotomia que se instala será então entre o privado, visto da
perspectiva do subjetivo, e o social, nesse momento já identificado com a
comunidade nacional. Ao lado da busca da identidade pessoal há também, nesse
momento, uma grande preocupação com a recuperação do passado visando a
construir uma identidade nacional. Nesse contexto, o documento escrito, antes
privilégio dos sábios, monges e reis, e que a partir do século XVI era utilizado
como instrumento de legitimação do Estado, passa a ter um novo significado,
sendo utilizado como testemunho da história (Le Goff, 1984: 95-96). Esse novo
sentido que a ciência histórica imprime ao documento dará uma nova dimensão
aos arquivos - a dimensão histórica, que ultrapassará a sua natureza jurídica.
Públicos ou privados, pouco importa, os arquivos interessam porque são históri­
cos (Camargo, 1988: 63).
Herdeiros do pensamento oitocentista, estamos presos ainda hoje às
contradições entre o público e o privado. Se, por uma lado, continuamos a assistir
ao esfacelamento do espaço público, enquanto arena destinada ao debate político
das grandes causas, por outro, o contínuo alargamento da esfera social e a
exacerbação do privado fazem proliferar os direitos da sociedade e do indivíduo.
O espaço das liberdades públicas e o interesse pelo bem comum, retomados no
século XVIII, começam a ser substituídos pelos interesses sociais dos grupos,
classes, associações e partidos políticos, entre outros, próprios da sociedade
moderna.
Essa contradição repercute na realidade dos arquivos públicos e pri­
vados, tanto no que diz respeito à sua conservação quanto no tocante ao acesso
às infOImações neles contidas. Desde o surgimento dos Estados nacionais, a
preservação do patrimônio documental da nação foi, na maioria dos países,
prioritariamente uma tarefa do Estado. Apesar do enfoque histórico dado ao
documento pela disciplina histórica a partir do século XIX, eram sobretudo as
razões administrativas que deteIlJlinavam a interferência do poder público nos
arquivos. Isso significa dizer que, para além do papel que os arquivos passaram
a desempenhar na construção da memória e na escrita da história, o fornecimento
de provas jurídicas necessárias à consolidação e legitimação do novo Estado
continuava sendo a função primordial dos arquivos públicos. Ainda hoje a

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utilização dos documentos públicos pela administração do Estado ou pelo ci­


dadão, para fins probatórios, pelmanece como função fundamental dos arquivos.
Com relação ao acesso aos documentos, os arquivos de Estado cujo
modelo vigorou até o [mal do século XVIII eram secretos e existiam exclusi­
vamente para servir à administração monárquica, particulatmente aos reis. A
Revolução Francesa iniciou uma nova era para os arquivos com a criação dos
Arquivos Nacionais e a noção do arquivo a serviço do cidadão. Isso significa dizer
que, além do caráter nacional do Arquivo, uma outra inovação iria marcar a ,

arquivística francesa - a substituição do segredo de Estado pelo princípio da


publicidade. A abertura dos arquivos ao público, determinada pela Lei Messidor,
ano 11 (decreto de 1794), representou um primeiro passo no sentido de se
considerar a infollIlação como um direito civil (Bauthier, 1961: 1121-1266, e
Duchein, 1992: 67-80).
Durante o século XIX os historiadores, inspirados no modelo francês de
arquivo, começaram a pressionar os depósitos centrais de arquivos no sentido de
torná-los acessíveis à investigação. Dessa forma, às funçóes já existentes - a de
uso administrativo e a de portador da memória da nação -, os historiadores
acrescentaram uma nova função aos arquivos, a de fonte para a história, pensada
como disciplina autônoma, regulada por princípios (Costa, 1997: 22-23). Apesar
das pressões no sentido de liberar à consulta os documentos públicos, os progres­
sos foram lentos. Países como França, Inglatella, Bélgica e Itália, mesmo ad­
mitindo o acesso aos arquivos, impunham muitas restrições e fixavam prazos
longos para a abertura dos documentos ao historiador e ao público em geral.
Só após a Segunda Guerra, com a emergência do direito à inflJlmação na
l
Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, o acesso aos arquivos
passou a ser regulado por legislação específica, deixando de ser prioritariamente
privilégio dos historiadores. O direito à informação é, portanto, um dos mais
novos direitos do homem. Consiste em poder receber informações e difundi-las
sem restrições, e também na possibilidade de opinar e de se exprimir livremente.
Como se pode observar, tal direito está vinculado à liberdade de opinião e
expressão, que integra as liberdades públicas tao caras à Grécia antiga e que foi
posteriormente restaurada pela ilustraçao. Dar acesso à infOlmação signífica
tornar público, transparente, visível, algo antes obscuro, secreto ou simplesmente
ignorado pela coletividade. Nesse sentido, o direito à informação é fundamental
ao exercício das liberdade públicas e ao pleno desenvolvimento dos sistemas
políticos democráticos (Lafer: 1988).
Acompanhando o embate entre o público e o privado, o tema dos direitos
humanos e da cidadania surge no Ocidente como uma demanda da burgnesia (e
de seus filósofos) em face dos privilégios das monarquias Oelin, 1996: 17). Ao
longo dos séculos XVIII e XIX esses direitos foram se firmando na jurisprudên-

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cia e na legislação. Por essa razão, antes mesmo de ser incluído na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, ou seja, antes de integrar a legislação interna­
cional, o direitoà informação já constava na Constituição sueca de 1766, no
decreto revolucionário francês de 1794 e na legislação de vários outros países. No
Brasil, esse direito é hoje garantido constitucionalmente, além de aparecer em
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outros textos legais. Se considerarmos o direito à informação como um correlato
do direito de liberdade de expressão, poderemos inclusive inferir que ele estava
implícito na Constituição Política do Império, que determinava que todos
poderiam comunicar os seus pensamentos por palavras e escritos e publicá-los
na imprensa, sem dependência de censura, desde que respondessem, perante a
3
lei, pelos abusos que cometessem no exercício desse direito.
A legitimidade e a universalidade do direito à infOlmação não impedem
que ele sofra restrições de outros direitos igualmente importantes para o in­
divíduo e para a sociedade, como por exemplo o respeito à vida privada e a
garantia da soberania do país (um dos aspectos do segredo de Estado). O direito
ao respeito à vida privada é o limite na um à liberdade de informação. Integra um
conjunto de "direitos da personalidade" considerados intransmissíveis e irre­
4
nunciáveis, e que englobam o direito à vida e à integridade fisica, o direito ao
nome, à honra e à imagem, à liberdade de ir e vir e à inviolabilidade do domicílio,
além dos direitos autorais (Dotti, 1980: 22-23).
Existem várias classificações de direitos privados adotadas pelos autores
que trabalham com essa questão. Uma das mais abrangentes, utilizada pelo
Bureau de Droit Civil Général, do Ministério da Justiça francês, enumera oito
categorias de direitos relativos à vida privada, cujo sigilo deve ser respeitado: vida
sentimental, conjugal e familiar; direito ao nome; à saúde, incluindo informações
sobre a causa da morte; eventos familiares; emoções; lazer; opiniões políticas,
filosóficas e religiosas; e patrimônio (Hunaud, 1996).
Do ponto de vista legal, os direitos privados começam a surgir a panir
de meados do século XVIII, mas a existência de uma jurisprudência internacional
atesta a preocupação com alguns desses direitos desde o século XlV, tendo sido
5
o primeiro caso localizado na Inglaterra em 1348. Existe uma enorme variação
na enunciação desse direito, na legislação dos diversos países, devida à própria
dificuldade em determinar o conteúdo da noção de vida privada. Na legislação
brasileira, observa-se a presença dos direitos à vida privada em todas as consti­
tuições do período republicano. Mesmo a Constituição do Império, no seu já
citado artigo 179, do título VIII, esboça a formulação desses direitos quando se
refere à inviolabilidade dos direitos civis e políticos do cidadão brasileiro,
incluindo entre eles a liberdade de expressão, a segurança individual e a pro­
priedade.

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Mais recentemente, a partir dos acontecimentos relacionados à violação


da privacidade ocorridos durante a Segunda Guerra, de forte repercussão
mundial, um novo tipo de direito da personalidade surgiu na legislação de
diversos países e também na legislação internacional. Trata-se do direito à intimi­
dade da vida privada, que emergiu como um desdobramento do direito à privaci­
dade e que diz respeito ao recôndito mais íntimo do indivíduo. O direito à
intimidade está previsto hoje na Declaração dos Direitos Humanos, no Pacto da
ONU sobre direitos civis e políticos, na Convenção Européia de 1950 e na
Convenção Americana de 1969. Na realidade, o direito à intimidade vem se
constituindo desde o século XIX, também através da jurisprudência. A partir do
final do século passado, muitos pronunciamentos judiciais atestam o reconhe­
cimento desse novo direito. Mas foi novamente a França quem primeiro circuns­
creveu o direito à intimidade a uma esfera mais restrita da vida privada, referida
diretamente aos sentimentos pessoais e na qual ninguém pode penetrar sem
consentimento (Dotti, 1980: 65-68). A referência explícita à intimidade da vida
privada na legislação brasileira aparece, pela primeira vez, na Constituição de
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1988, que considera invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas. Essa referência é confmnada na Lei nO 8.159/91, a Lei de Arquivos,
e no Decreto nO 2. 134/97, que estabelecem, inclusive, um prazo máximo de 100
anos de sigilo para os documentos cujo conteúdo informativo diga respeito à
intimidade das pessoas.
A esfera da intimidade, diz Hannah Arendt, é regida pelo princípio da
exclusividade. Esse princípio não se confunde com o da diferenciação, que marca
a diferença entre os indivíduos, própria da esfera privada, e que seopôe ao público
enquanto espaço do coletivo. A intimidade é a esfera que comanda as escolhas
,

pessoais e que não segue nenhum padrão objetivo. E exatamente a intimidade


enquanto esfera do exclusivo que a autora sugere como limite ao direito à
informação, através da ponderação de que o que constitui a vida íntima das
pessoas não é de interesse público. A intimidade não exige publicidade, porque não
envolve direito de terceiros. E por ser exclusiva, sente-se lesada quando é
divulgada ou invadida sem autorização (Lafer, 1988: 267-268).
Assim como a vida privada e a intimidade são os principais limites à
liberdade de informação, o inverso também é verdadeiro. No confronto entre
esses dois direitos, contudo, não se deve perder de vista o interesse público, que,
especificamente no que diz respeito aos arquivos, se traduz na demanda de
informaçôes e na necessidade de difundi-las em função do exercício pleno da
democracia e da pesquisa científica. Por se referir à coletividade, o interesse
público ultrapassa o horizonte temporal limitado da vida dos indivíduos, con­
siderados na sua singularidade (Lafer, 1988: 236). Tal assertiva, entretanto, não
justifica a invasão e o desrespeito à privacidade e à intimidade das pessoas.

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Exatamente por entender que a vida privada e a vida pública penencem a mundos
diferentes, Hannah Arendt ressalta a "diferença entre aquilo que pode e deve ser
mostrado - o visível - e aquilo que pode e deve ser ocultado" (Lafer, 1988: 261),
sem prejuízo do direito à informação. Na realidade, por ser muito tênue a linha
divisória entre a liberdade de infollnação e o respeito à intimidade, toma-se quase
impossível estabelecer a priori qual dos dois direitos deve prevalecer, indicando
o bom senso que, na maioria das vezes, as soluções devem ser buscadas no exame
de cada caso. Penso, contudo, que sempre que a infollnação seja necessária ao
exercício do bem comum, o interesse público deve prevalecer.
Além de ser cerceado pelas questões relativas à intimidade, o direito à
informação encontra, como já foi dito, nas prerrogativas da segurança do Estado
outra limitação significativa. Entretanto, com as pressões cada vez maiores no
sentido de assegurar a transparência administrativa dos poderes públicos, existe
hoje, em nível internacional, uma forte tendência em favor do acesso às infor­
mações de arquivos. A polêmica sobre essa questão tem gerado efeitos positivos,
que podem ser observados nas mudanças ocorridas nas legislações especificas de
diversos países. Na França, por exemplo, o governo criou uma missao intelminis­
terial encarregada de estudar O assunto, que propôs mudanças urgentes e signi­
ficativas na legislação sobre o acesso, no sentido de fixar prazos mais cunos para
a liberação de documentos, sob a justificativa de que "o segredo de Estado
envelhece rapidamente" (Braibant, 1996).
Algumas observações finais sobre a realidade dos arquivos brasileiros.
No Brasil, o acesso às informações de arquivo sempre foi uma questão compli­
cada, apesar da liberdade de informação constar de dispositivos constitucionais
desde o Império. O Arquivo Público do Império, criado em 1838, liberava os seus
documentos apenas para uso do governo ou para pessoas indicadas diretamente
pelo imperador. A política de sigilo, imposta à Colônia por Ponugal e adotada
posteriormente pelos imperadores brasileiros, transformou o Arquivo Público
em uma instituição guardiã do segredo de Estado, constituindo-se na antítese
dos arquivos nacionais europeus, engajados na construção da consciência
histórica, característica do século XIX (Costa, 1997: 118).
O período republicano foi mais democrático, apesar dos interregnos de
obscurantismo e de censura. Além de as constituições republicanas assegurarem
o direito à informação, o acesso aos documentos de arquivo foi gradativamente
institucionalizado, ou seja, regulado por nOImas internas às instituições deten­
toras de acervos arquivísticos. Mesmo assim, a precariedade dessas instituições
dificultava enormemente o trabalho dos pesquisadores. O fato de não possuir leis
específicas regulamentando as condições e os prazos para a consulta dos docu­
mentos, deixava a critério dos diretores de instituições ou responsáveis pelos
acervos a decisão de tomar ou não os documentos disponíveis. O acesso à

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informação só terá de fato respaldo legal no Brasil com a Constituição de 1988,


que especifica esse acesso em vários itens do texto e, posteriormente, com a Lei
de Arquivos, sancionada em janeiro de 1991, 153 anos após a criação do Arquivo
Nacional. ,

Na prática, conrudo, as soluções não são imediatas. E preciso, em


primeiro lugar, transformar a mentalidade do sigilo, que predomina ainda hoje nas
. . .
IDStlrulçoes e orgaos governamentais, e que certamente tem suas ongens nas
- , - ' .

estrururas patrimonialistas herdadas de Portugal. Essa concepção de "segredo de


Estado", indicativa de uma estrutura de Estado centralizada e burocrática,
impediu a implementação de uma política de arquivos, seja no nível de recolhi­
mento sistemático dos documentos pelo Arquivo Nacional, seja no nível de uma
política de acesso. O atraso secular em termos de uma legislação específica para
arquivos no Brasil explica, por exemplo, a fragmentação e a perda total ou parcial
de fundos que deveriam integrar O patrimõnio documental brasileiro (Costa,
,

1997: 181). E preciso, portanto, criar uma nova mentalidade com relação à
importância e à utilização das informações provenientes de documentos de
arqUIvos.

Por outro lado, faz-se necessária uma ampla divulgação, nos meios
acadêmicos e na sociedade em geral, dos instrumentos legais relativos ao acesso
arualmente disponíveis. Com a criação do Conselho Nacional de Arquivos -
Conarq, órgão vinculado ao Ministério da Justiça e que· integra, na sua com­
posição, representantes das entidades governamentais e de instiruições culturais
vinculadas à pesquisa, esse trabalho foi timidamente iniciado.
No que tange aos arquivos privados, isto é, àqueles que não resultam das
atividades geradas na esfera pública, o binômio público/ privado se expressa não
só através do conflito entre a intimidade e o interesse público, mas, mais ainda
entre esse último e a propriedade privada, assegurada na Constituição em vigor.
A Lei de Arquivos brasileira instituiu, no seu capítulo lII, a figura
jurídica da "classificação de arquivos privados como de interesse público e
social", a exemplo de outros países como França, Canadá, Itália e Espanha. A
intervenção do Estado decorrente do ato c1assificatório não elimina os direitos
de propriedade que o titular do arquivo ou seus herdeiros possuem sobre os
documentos, mas lhe faculta o direito de controle sobre o arquivo, em nome do
interesse público.
Tal dispositivo implica sobrerudo a obrigatoriedade da parte do pro­
prietário ou detentor do arquivo de preservar os documentos considerados
relevantes para a história do país ficando, nesse sentido, proibida a sua destruição,
perda ou exportação. Convém ainda lembrar que, em alguns países, inclusive no
Brasil, a legislação prevê o direito de preferência do Estado nos casos de alienação
por venda.

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Os arquivos privados classificados como de interesse público, apesar de


continuarem a ser bens privados, integram o patrimônio cultural da nação. Essa
contradição, aparentemente de difícil solução, tem que ser pensada a partir da
idéia do interesse público que, por ser comum a toda sociedade, se sobrepõe aos
interesses individuais. No caso da propriedade privada, o exercício desse direito
possui limite igualmente previsto no texto constitucional brasileiro, qual seja,
sua função social ou sua utilidade pública.
Por outro lado, a classificação pelo poder público de um arquivo privado
como de interesse público e social não assegura o acesso a esse arquivo. A rigor,
porse tratar de um bem privado, a liberação à consulta pública desses documentos
é da competência exclusiva de seus proprietários. Cabe ao Estado, entretanto,
definir políticas de incentivo à pesquisa por meio de dispositivos legais que
estimulem os proprietários de arquivos a facultar o acesso aos seus documentos.
A lei finlandesa, por exemplo, prevê apoio financeiro, destinado à preservação,
aos proprietários que se dispuserem a liberar seus arquivos aos pesquisadores. Na
verdade, se a classificação do arquivo tem por base a sua relevância para a pesquisa
histórica e o desenvolvimento da ciência, nada mais justo que garantir o acesso
aos seus documentos. Todavia, não se pode esquecer que, por retratarem a vida
privada de seus titulares, os arquivos privados são por excelência detentores de
informações sobre a intimidade das pessoas. Dentro dessa categoria, os arquivos
pessoais, panicularmente os de homens públicos, são os mais atingidos pelo
conflito entre o público e o privado - de um lado, os direitos individuais à
propriedade privada e à proteção da intimidade; do outro, os direitos da comu­
nidade representados pelo interesse público e a liberdade de informação (Garcia,
1997: 9). O pleno exercício da cidadania consistirá, exatamente, em garantir a
transparência e a visibilidade, sem abrir mão do respeito à privacidade e à vida
reservada dos sentimentos.
Por último, gostaria de ressaltar a importância crescente dos arquivos
privados para a pesquisa do cotidiano, tendência predominante hoje na história
americana e européia, paniculli..l1l1ente na França. Esse novo olhar da história,
enfocando sentimentos, hábitos e comportamentos, vem elegendo de uma forma
especial documentos como diários íntimos, anotações, correspondência pessoal
etc., encontrados nos arquivos de escritores, artistas e políticos, entre outros. A
publicação desse tipo de fonte, isoladamente ou em série (caso, por exemplo, da
correspondência), tem sido amplamente utilizada pelos historiadores para incen­
tivar o debate e a compreensão de temas, personagens e épocas, a partir de novos
enfoques metodológicos, para os quais a contribuição da antropologia, da teoria
literária, da sociologia e da ciência política têm sido fundamental.
No Brasil, essa tendência para o estudo do cotidiano também começa a
tomar fôlego, existindo já alguns trabalhos que merecem ser citados, como por

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exemplo, a Hist6ria da vida privada no Brasil, com dois volumes já nas livrarias.
Sendo a pesquisa histórica uma atividade que visa ao bem comum e ao interesse
público, sempre maiores do que os interesses individuais e singulares, torna-se
um imperativo preservar e facultar à consulta as fontes privadas, sem que com
isso se tenha que ultrapassar as fronteiras da intimidade.

Notas política nacional de arquivos públicos e


privados.
3. Constituição Política do Império,
art. 179, item 4.
1. Declaração Universal dos Direitos
Humanos,art. 19: "Todo indivíduo tem
4. Exceção feita aos direitos do autor,cuja
transmissão aos herdeiros é prevista por
direito à liberdade de opinião e de
lei. Ver Dotti ,1980: 25.
expressão,o que implica o direito a não
ser inquietado pelas suas opiniões e o de 5. Trata-se de 11m caso de invasão de
procurar,receber e difundir,sem domicílio. Ver Hunaud,1996: 44.
consideração de fronteiras,infonnações e
6. Constiruição da República de 1988,
idéias por qualquer meio de expressão."
art. 5°,inciso X.

2. Como por exemplo a Lei de Imprensa 7. História da vida privada no Brasil,


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- público/privado; direito à informação;
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aJteridade: o reconhecimento da
pluralidade", Revista do Patrimônio
Hislórico e Arrístico Nacono
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Jane.iro, n° 24, p.15-26. abril de J 998)

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