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JOÃO PESSOA – PB
Março de 2007
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II
JOÃO PESSOA – PB
Março de 2007
I
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho ao meu amado pai Antônio Araújo de Oliveira e a minha mãe
maravilhosa Marília da Rocha Luna, pelo incentivo e por todo o apoio que tanto me encorajou
à consecução desta pesquisa.
Também dedico este trabalho ao meu pequeno sobrinho no ano de seu nascimento,
Uirá Moura Aragão que representa hoje a mais nova geração de nossa família.
III
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente aos deuses de onde quer que eles possam me ouvir;
Obrigada Rebecca Luna, Christina Pacheco, Laura Luna, Aluísio Vieira, Manaíra
Arnold, Caroline Monteiro, Liuba Medeiros, Karla César, Alcyra Cotta, Henri Yure, Tiara
Veriato, Isabel e Dona Inês;
Agradeço também a Fidel Latiesas Rodriguez por todo o seu incentivo e afeto que
mesmo a distância vem me demonstrando nos momentos mais difíceis e decisivos deste
trabalho;
Não poderia esquecer de meu orientador Raimundo Barroso que também foi
fundamental para a concretização deste trabalho, sempre indicando os procedimentos mais
acertados ao desenvolvimento da pesquisa;
Enfim desdobro meus agradecimentos aos meus irmãos, a todos os meus tios, tias, e
aos meus colegas que cursaram comigo este curso de Mestrado por nossas trocas de
experiências e conversas proveitosas;
Por último, agradeço a mim mesma pelo esforço e disciplina, por acreditar que seria
possível trabalhar um tema não muito fácil de ser trabalhado.
IV
RESUMO
ABSTRACT
The Cartesian rationalism was geared towards expanding reason beyond the exact
sciences, such as Mathematics and Physics, so that it would apply to all other possible types
of sciences as well. From the 18th century on, this project was challenged by remarkable
scientists such as Newton and Locke whose Baconian tradition was supported by the belief
that knowledge should be base don experience. In 1744, Giambattista Vico published the third
version of his New Science – regarding the common nature among nations, which aimed at
finding its own rationality as regards the knowledge of the historic world previously denied
by Descartes. By doing that, Vico pointed out the limits of the Cartesian system, furthermore
giving emphasis to the process of expanding reason towards all possible sciences, something
proposed by the Cartesian believers in the first place. Vico accomplished his goal, not only
successfully, but he also put his own signature in history, (and that happened almost a century
later after Descartes’s death).
SUMÁRIO
PREFÁCIO ix
INTRODUÇÃO 10
CONCLUSÃO 115
REFERÊNCIAS 117
ANEXOS 120
ANEXO A – Retrato de Vico
ANEXO B – Contra-capa da Ciência Nova
ANEXO C – Gravura do frontispício da Ciência Nova
ANEXO D – Tábua Cronológica
ANEXO E – Sistema heliocêntrico de Copérnico
IX
PREFÁCIO
INTRODUÇÃO
O fato de Giovani Battista Vico (1668-1744) não ter sido considerado um expoente da
filosofia iluminista, ou de não ter surtido grande impacto sobre o pensamento filosófico do
nascente Iluminismo, contribuiu para que constantemente fosse lido e interpretado como um
homem à frente de seu tempo, ou mesmo, contra o seu tempo.
Esta percepção arrisca anular o elo entre Vico e o seu momento histórico,
desconsiderando sua própria tradição e a força de novas idéias que marcaram sua obra. No
intuito de realizar uma leitura que busca compreender o contexto do pensamento científico e
filosófico vigentes no tempo de Vico, bem como as marcas que estes imprimiram em sua
obra-mestra Principi di una Scienza nuova d´intorno alla comune natura delle nazioni
(Princípios de uma Ciência Nova – acerca da natureza comum entre as nações), na primeira
parte deste Trabalho foram reunidos alguns elementos teóricos.
Partindo da noção de interpretação apresentada pelo hermeneuta Hans-Georg Gadamer
foi possível elaborar uma situação hermenêutica que considera ao mesmo tempo as leituras
autorizadas pelo próprio Vico enquanto autor e, portanto produtor de um sentido para a
compreensão da Ciência Nova e o horizonte de expectativa da realização desta pesquisa.
Elucidar o nosso horizonte de expectativa não seria possível sem justificar a
importância de estudar Giambattista Vico nos dias de hoje. Retomar questões relacionadas ao
próprio ambiente intelectual de Vico consiste em diagnosticar a situação do conhecimento
histórico perante o estatuto científico e filosófico de um dado contexto histórico. A cultura
histórica no tempo de Vico estava imersa em um caldo de renovação cultural impulsionado
pelo Iluminismo, em que a perpetuação do conhecimento clássico se confrontava com a idéia
de um conhecimento renovado e moderno. Para os modernos, o louvor e a reprodução da
tradição clássica não era mais uma condição para garantir a verdade, ou a legitimidade do
conhecimento produzido.
Hoje, a situação do historiador diante de uma possível “crise de paradigmas”
científicos alertados nas vozes de uns, minimizados ou renegados na fala de outros
intelectuais, nos desperta um sentimento familiar: como pensar a história diante de um
caleidoscópio de teorias e pensamentos acerca da prática científica e mesmo da noção de um
conhecimento “verdadeiro”. Ou, mesmo que tenhamos em mente a crítica da razão e da
11
ciência iluminista, como podemos então pensar e produzir a história? Neste sentido, a idéia de
choque entre novas possibilidades e a continuidade de um saber e fazer histórico nos
aproxima muito do momento de Vico e de sua Ciência Nova.
No âmbito desta querela entre o novo e o velho, podemos encontrar a ambigüidade de
um pensador como Vico e de sua idéia de história. Ademais, pensar a história é algo que
certamente será feito pelos homens enquanto se produzir conhecimento e enquanto os
historiadores exercerem seu ofício. Esta preocupação presente de forma aguçada no tempo de
Vico, quando o homem parece uma vez despertado, se inquietar acerca do sentido histórico de
sua existência, ainda não perdeu e talvez não perca sua atualidade, se compreendermos o
conhecimento histórico como nossa própria criação, socialmente e historicamente construída.
É justamente isso que nos ensina Vico, que o mundo dos homens, ou o mundo
histórico deve ser por nós conhecidos, uma vez que somos nós os seus culpados. A idéia de
história em Vico apresenta as particularidades de um conhecimento humanístico frente aos
demais, enaltece as formas de conhecer o mundo que vão desde a imaginação e a sabedoria
poética até a razão e a sabedoria prosaica ou científica. A razão, considerada então o guia do
espírito humano no Iluminismo conhece em Vico que não é eterna, e nem é a única fonte de
verdade. A imaginação é em Vico a sua prévia, e as formas fantásticas e semi-fantásticas de
conhecer o mundo são seu ponto de partida.
Se pensarmos então na nossa atualidade em uma crise da razão e dos modelos
científicos consagrados pela ciência iluminista, podemos nesse sentido, ver em Vico uma
alternativa, quando o filósofo nos apresenta ao conhecimento poético ou à consciência
poética. O que não pode ser descartado na leitura e compreensão de Vico, que tanto se
preocupou com o conhecimento humano em suas formas pré-reflexivas. Neste sentido, Vico
apresenta a mitologia, a poesia, a linguagem, o direito, o culto às divindades, como sintomas
específicos do período de uma consciência humana imaginativa que elabora suas próprias
formas de expressão.
Todavia, pensar Vico diante de uma possível crise da razão, ou da ciência moderna,
não deve significar lê-lo ao revés, retrospectivamente. Tampouco devemos enquadrá-lo como
um anti-racionalista, ou mesmo como um pós-moderno que dizia em 1744, o que hoje nós já
sabemos que se processa entre nossas querelas atuais. Neste esforço, de tentar pensar Vico na
atualidade, mas atendendo aos cuidados de não reproduzi-lo à nossa imagem e semelhança de
pensamentos, selecionamos a noção de história cultural proposta por Roger Chartier.
Segundo Chartier, a história cultural tem por objetivo identificar o modo como em
diferentes lugares e momentos uma dada realidade social é construída, pensada, dada a ler. No
12
entanto, o ato de representar a realidade está inerente à atividade desenvolvida pelos grupos
sociais que consiste na construção de identidades culturais para si. Portanto, uma
representação seleciona uma determinada compreensão da realidade para excluir outras,
colocando deste modo em evidência uma realidade expressa por um ou mais grupos sociais
em detrimento de outras. Neste sentido, Chartier nos permitiu ler Vico dentro de um processo
de renovamento cultural que se operava em Nápoles, à altura dos Setecentos. Nos possibilitou
enxergar as disputas por hegemonia cultural entre os antigos e os modernos, e de que modo
este embate se cerrava na Nápoles do tempo de Vico.
Um outro elemento que contribuiu para a abordagem de Vico foi a noção de história
efeitual trabalhada por Gadamer. Partindo desta noção buscamos considerar os efeitos das
interpretações da obra-prima de Vico, isto é, de que modo às leituras da Ciência Nova
contribuíram para uma pré-compreensão desta mesma. Sob este ímpeto, realizamos uma breve
retrospectiva dos leitores de Vico, desde os juristas napolitanos da segunda metade do século
XVIII, até os seus grandes leitores do século XX e mesmo alguns do século XXI.
A montagem deste panorama de Vico e seus leitores nos despertaram para o curioso
fato de que a maior parte destes (nomes como Herder, Michelet, Croce, Berlin, etc.) o
consideravam um vanguardista, quando não um outsider. Contudo, antes de tentarmos
responder se o pensamento de Vico apresentado em sua obra da maturidade poderia ou não
ser conciliado aos postulados científicos e filosóficos dos Setecentos, procuramos esclarecer
um pouco o nosso entendimento sobre o momento histórico do próprio Iluminismo.
Ao pensarmos em um Iluminismo, ainda que involuntariamente acessamos o senso
comum histórico que se construiu entorno do Século das Luzes. Pensamos este período tal
qual fosse um bloco histórico, ou um processo histórico linear que se germinou na França e
daí se alastrou para toda a Europa e mais tarde para o mundo, e que culminou com a
Revolução Francesa.
Em nosso ponto de vista, a discussão sobre o Iluminismo não pode ser aprofundada
sem explorar as próprias ambigüidades que caracterizaram este movimento. Neste sentido, o
historiador italiano Franco Venturi nos lembrou que mesmo na própria França levantaram-se
diferentes vozes argumentando os caminhos “devidos” a se seguir a partir do bom uso da
razão: Diderot, Bayle, Rousseau, Montesquieu, Voltaire, etc. Na verdade, o que permite
agregar todos estes pensadores no seio do movimento iluminista não é a similitude de suas
reflexões, mas o questionamento comum que as produziu.
Fora da França, Venturi esclarece que os produtos da reflexão acerca de uma nova
reorientação racional são ainda mais díspares. Isto ocorreu não apenas por conta do ritmo e do
13
impacto com que as idéias iluministas foram absorvidas em outras partes, mas, principalmente
porque estas se chocavam com uma tradição não-francesa e, portanto, muitas vezes foram
adaptadas à realidade local de seu centro receptor. No entanto, as novas idéias não deixavam
de surtir efeito e granjear novos defensores entusiasmados pela proposta de um conhecimento
guiado pela crítica e pela razão disposto a transformar a vida social e privada do homem
positivamente. Todavia, o que é importante observar aqui é que os centros receptores do
pensamento iluminista davam cores próprias às idéias que eram sopradas da França.
Considerando a defesa de Venturi por Iluminismos, podemos perceber a complexidade
e a diversidade de pensamento que se refletia no próprio conhecimento produzido no tempo
de Vico, a depender do recorte temporal, ou geográfico. Também nos foi possível pesquisar as
particularidades do Iluminismo italiano, especialmente o napolitano para compreender as
nuances deste movimento aí, bem como a força das novas idéias e sua repercussão na
intelectualidade contemporânea a Vico.
O historiador Paolo Rossi nos relata que nos anos da formação intelectual de Vico a
cultura italiana de um modo mais amplo esteve marcada por um processo de intenso
renovamento. Aprofundavam-se as discussões acerca do método científico de Bacon e de
Descartes, e dos efeitos do cartesianismo sobre a física e a fisiologia, etc.
Rossi afirma que independente das novas idéias serem aceitas ou rechaçadas pela
intelectualidade italiana, a validade destas era discutida a partir de um referente: a tradição
renascentista. Buscava-se então, assimilar as novas idéias à tradição, de modo que o conteúdo
daquelas, estava longe de indicar qualquer fissura, ou sinal de ruptura com a herança cultural
do Renascimento. Muitos elementos do pensamento de Descartes e de Gassendi, por exemplo,
foram nutridos pelo sangue da viva e robusta tradição do experimentalismo galileano.
Peter Burke denominou de “Antiguidade alternativa”, justamente aqueles que não
negavam a autoridade dos antigos, mas que tampouco estavam indiferentes ao impacto de
novas idéias que acompanhavam o desenvolvimento do pensamento moderno. Não se trata de
uma Antiguidade fundamentada exclusivamente nas classificações do conhecimento clássico
realizadas por Aristóteles e por Platão. Há aí uma maior flexibilidade ao mesmo tempo em
que não se abre mão da tradição, e que se busca expandi-la e reinventá-la com a força das
idéias iluministas.
Na segunda parte deste trabalho, a abordagem sobre o Iluminismo foi delineada: o
foco se centrou, sobretudo na vertente filosófica e científica francesa do cartesianismo e na
sua crítica realizada pelos empiristas. O pensamento de Kant é apresentado como uma síntese
destas duas correntes hegemônicas da ciência iluminista. O enfoque sobre os pilares principais
14
1.1.1 A hermenêutica
1
Conferir retrato de Vico no ANEXO A deste trabalho.
2
Conferir a contra-capa da Ciência Nova no ANEXO B deste trabalho.
17
3
“Vida” para Dilthey significa a interiorização das experiências humanas. O tema pode ser aprofundado em
PALMER, Richard. Hermenêutica. Lisboa: 70, 1986. pp. 105-128.
18
4
PALMER esclareceu que, a “compreensão” segundo Dilthey, “era a palavra chave dos estudos humanísticos. A
explicação é para as ciências. A abordagem que unifica o interno e o externo é a compreensão. As ciências
explicam a natureza, os estudos humanísticos compreendem a manifestação da vida”. Idem, p.112.
19
Por outro lado, tomar uma postura de neutralidade significa desequilibrar a interação
entre sujeito e objeto do conhecimento proposta pelo próprio Dilthey para centralizar a
atenção unicamente no objeto. Como bem ressaltou o hermeneuta, tradutor e crítico da obra
de Dilthey, Hans-Georg Gadamer (1900-2002) o ato de se reconhecer no rastro histórico dos
fenômenos humanos implica em um confronto de experiências, de mundos sócio-históricos,
enfim, de visões de mundo.
De acordo com Gadamer: ”Toda experiência é confronto, já que ela opõe o novo ao
antigo, e, em princípio nunca se sabe se o novo prevalecerá, quer dizer, tornar-se-à
verdadeiramente uma experiência, ou se o antigo, costumeiro e previsível reconquistará
finalmente a sua consistência”. (GADAMER, 2003, p.14) O confronto entre “o novo e o
antigo” a que se referiu Gadamer, implica na natureza que o espírito das ciências humanas
adquire na modernidade: a consciência histórica. Ou seja, o passado deixa de ser assimilado e
reproduzido como um conjunto de referências úteis à posteridade, e torna-se passível de
crítica, de questionamento decorrente do tratamento reflexivo que o presente agora lhe
dispensa.
Neste sentido, Gadamer afirmou:
A consciência histórica já não escuta beatificamente a voz que lhe chega do passado,
mas, ao refletir sobre a mesma, recoloca-a no contexto em que ela se originou, a fim
de ver o significado e o valor relativos que lhe são próprios. Esse comportamento
reflexivo diante da tradição chama-se interpretação. (GADAMER, 2003, pp. 18-19)
Trata-se de não falar por Vico, e tampouco de deixá-lo falar sozinho. A sua “Ciência
Nova” escrita e reescrita três vezes na primeira metade do século XVIII5 é um texto histórico
que aparentemente contém informações relativas ao espírito da época em que viveu o autor.
Todavia, estudar a compreensão que Vico tinha do conhecimento do mundo histórico
aponta rupturas com o modelo de ciência vigente nos primórdios do Iluminismo. A partir daí,
sua leitura ganha complexidade e pede uma ressignificação que foge das pretensões da
neutralidade e do objetivismo.
Neste sentido, a hermenêutica legitima a reflexão compreensiva das complexas
relações entre o pensamento viquiano acerca das condições de um conhecimento histórico
frente ao padrão iluminista de ciência. Trabalhar sob esta orientação é fundamentar uma
recepção da obra de Vico, a partir da historicização de um problema pertinentemente atual: o
lugar do conhecimento histórico.
No que diz respeito à compreensão, Gadamer exige uma consciência da “situação
hermenêutica”, não apenas para que possamos compreender o fenômeno histórico ou a obra
transmitida em si mesma, mas pra que saibamos antes disso, olhar para estes, e compreender
os efeitos destes na história. O autor defende que antes de toda compreensão há uma pré-
compreensão, ou um preconceito acerca de determinado assunto, decorrente dos efeitos que as
interpretações de um fenômeno histórico ou de uma dada obra, deixam na história e marcam
um pensamento de época.
Em suas palavras Gadamer proferiu:
A consciência histórica deve conscientizar-se de que, na suposta imediatez com que
se orienta para a obra ou tradição histórica, está sempre em jogo esse outro
questionamento, ainda que de uma maneira despercebida e conseqüentemente
incontrolada. Quando procuramos compreender um fenômeno a partir da distância
histórica que determina nossa situação hermenêutica como um todo, encontramo-nos
sempre sob os efeitos dessa história efeitual. Ela determina de antemão o que se nos
mostra questionável e se constitui em objeto de compreensão. (GADAMER, 2003,
p.397)
5
Em vida, o filósofo napolitano supervisionou três edições da obra, sendo a primeira de 1725, a segunda de 1730
e a terceira de 1744. VICO, Giambattista. Princípios de uma Ciência Nova: acerca da natureza comum das
nações. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Os Pensadores. pp. VI-XXIV.
21
efeitual nunca é absoluta. Para o autor, “ser histórico quer dizer não esgotar-se nunca no
saber-se”. (GADAMER, 2003, p. 399).
No entanto, a consciência da história efeitual se manifesta no momento de realização
da compreensão. A própria compreensão, por sua vez, também não é absoluta, mas ao
contrário, é limitada e permeada por interstícios impostos pelo horizonte em que se realiza. O
exemplo do emprego de conceitos referentes ao que nos é historicamente afastado e, portanto,
estranho ao valor semântico e filosófico destes mesmos conceitos, talvez seja um exemplo
adequado.
Gadamer reconhece um parentesco muito próximo entre consciência da história
efeitual e consciência da situação hermenêutica. Ao se referir a esta última o hermeneuta
ressalta que saber construí-la é tomar um posicionamento adequado em um horizonte de
questionamento frente ao objeto de compreensão. Em outras palavras, é ser capaz de elaborar
a pergunta certa com relação ao que se busca compreender.
Levando em conta o presente de nossa situação hermenêutica, busco legitimar a
validade das indagações elaboradas por nós para a abordagem de Vico. Considerando os
efeitos de sua “Ciência Nova” no pensamento científico e histórico da atualidade, procuro
revisitar a obra deste filósofo que já estava preocupado com a organização do conhecimento
do mundo humano no florescer do Iluminismo.
A propósito, a consciência histórica estava em pleno desenvolvimento no século XVIII
impulsionando um processo que mais tarde resultaria no desmembramento da hermenêutica
filológica bem como da historiografia das demais disciplinas hermenêuticas: a teológica e a
jurídica. 6 Mas, é importante esclarecer que considerar o horizonte de nossa compreensão não
significa apreender Vico no âmbito restrito das nossas expectativas de construir um
determinado sentido para sua leitura.
Antes disso, é instruir a nossa reflexão para questioná-lo no ímpeto de buscar
apreendê-lo em sua própria atmosfera intelectual e cultural. A partir daí, buscar caracterizar as
particularidades de sua noção de história e de ciência frente àquelas hegemônicas em seu
tempo. Neste sentido, não apenas a consciência, mas a elaboração de uma situação
hermenêutica nos leva a buscar compreender o outro (Vico) e ao mesmo tempo procurar um
entendimento com este.
6
Sobre este tema conferir o ponto 2.2.1. O problema hermenêutico da aplicação. In: GADAMER, Hans-Georg.
Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis, RJ: Vozes, 5a ed., 2003.
pp. 406-411.
22
Ao longo das décadas de 1960 e 1970 a disciplina histórica viveu uma relação de
tensão e disputa intelectual e institucional com as ciências sociais. Foi alvo de ataques e
críticas que apontavam para a fragilidade de sua consistência científica, construídas sob a
pretensão de promover o enfraquecimento da hegemonia acadêmica de que então desfrutava.
Os historiadores, por seu turno, reagiram a estas críticas de modo plausível.
Mostraram-se flexíveis ao diálogo com estas “novas” disciplinas (lingüística, sociologia,
antropologia, psicologia, etc.) com o intuito de renovar temas e objetos historiográficos.
Esta interseção entre história e ciências sociais não apenas contribuiu para o
enriquecimento do próprio conhecimento histórico como também para aumentar seus “índices
de cientificidade” 8. Devido a esta atitude dos profissionais da história, a ameaça intelectual
da qual eram vítimas pôde ser contida e os seus domínios resguardados.
7
Neste contexto, o termo não é o mesmo propagado pela ciência, isto é, a verdade que se rastreia através do
método. O termo aqui empregado designa o exercício reflexivo da própria consciência histórica na busca de
atribuir um sentido às experiências humanas.
8
Este assunto também pode ser conferido na introdução de CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas
e representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/ Bertrand do Brasil, 1990.
23
9
Segundo Chartier o momento transitório da “Era Braudel” à terceira geração dos Annales caracterizou-se pelo
retorno aos temas de uma história da “utensilagem mental”, que outrora foram lançados pelos fundadores dos
Annales. Esta retomada foi protagonizada pela disciplina da história cultural. Idem.
24
10
No ano de 1723, Vico candidatou-se ao pleito de professor catedrático de direito civil na Universidade de
Nápoles sem obter sucesso. Este acontecimento contribuiu para o desencanto de Vico diante da academia, ao
mesmo tempo em que colaborou para a maturação da Ciência Nova, projeto ao qual o filósofo pôde então
dedicar-se com maior afinco. VICO, Giambattista. Princípios de uma Ciência Nova: acerca da natureza comum
das nações. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Os Pensadores. pp. VI-XXIV.
25
Este é um problema que será considerado no contato com a obra de Vico. Desde a
primeira metade do século XVIII a Ciência Nova vem sendo reeditada e diferentes
significações vêem sendo apreendidas sinalizando as mudanças do horizonte de compreensão
de seus leitores. Neste sentido, trabalhar com um texto oitocentista, sob a perspectiva de uma
história das práticas de leitura que o acompanham, requer uma retrospectiva do modo como
este texto vem sendo transmitido e ressignificado.
Mesmo que se faça uma prospecção do entendimento da Ciência Nova e muitas
interpretações da obra possam vir à tona, é possível reconhecer em cada reedição do livro as
estratégias de Vico para moldar a compreensão do leitor. O frontispício desenhado por
Domenico Antonio Vaccaro sob a encomenda e direção do próprio Vico é uma delas. 11
Esta gravura é uma ilustração do conteúdo geral da obra e é seguida por uma
explicação que lhe confere efeito de introdução. Grosso modo, a partir de sua decodificação,
Vico apresenta sua Ciência Nova como sendo uma “Tábua das coisas civis”.
Sobre a leitura da Ciência Nova Vico adiantou:
Tal como o tebano Cebes procedeu em relação às morais, de modo análogo
oferecemos, aqui, à inspeção uma Tábua das coisas civis, que aproveite o leitor para
chegar à concepção da idéia desta obra, antes mesmo de a ler, ou lhe sirva para mais
facilmente a reter na memória, depois de ter a lido, fazendo uso deste recurso que
lhe subministra a fantasia. (VICO, 1979, p.7).
Ainda nos prenúncios de sua obra Vico construiu uma tavola cronologica (tábua
cronológica) com o intuito de descrever o percurso da história da humanidade ao longo de três
idades: a idade dos deuses, a idade dos heróis e a idade dos homens. Neste quadro
cronológico o filósofo assinala a relevância de sete povos para toda a trajetória histórica do
mundo civil: os hebreus, os caldeus, os celtas, os fenícios, os egípcios, os gregos e os
romanos. 12
A exposição da história da humanidade neste quadro é mais uma estratégia empregada
por Vico para convencer o leitor de seu argumento acerca das idades históricas que é
desenvolvido nos “livros” seguintes dispostos na obra. A conclusão também é um outro
artifício utilizado por Vico para guiar o leitor em seu horizonte de compreensão da Ciência
Nova. Em suas últimas considerações acerca da obra, ele tenta fixar para o leitor sua
mensagem sobre a extrema importância que exerce a ação da Providência divina e da religião
na constituição e organização da vida social humana.
11
Conferir a gravura do frontispício da Ciência Nova no ANEXO C.
12
Conferir a tábua cronológica no ANEXO D.
27
13
Vico acreditou que a filosofia não deveria restringir-se ao patamar das abstrações lógicas como acreditava
Descartes (1596-1650), mas, deveria descer ao plano concreto do mundo civil e preocupar-se com os produtos
culturais humanos. Consultar o tema em VICO, Giambattista. Princípios de uma Ciência Nova: acerca da
natureza comum das nações. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Os Pensadores. p. VIII.
28
Sob este espírito de euforia o tema do direito em Vico foi divulgado e associado às
causas de uma reforma legal, ganhando terreno em Nápoles e depois fora dali, sobretudo
quando seus adeptos foram exilados no ano de 1799.
Estes encontraram fundamentação para suas reivindicações em Vico, advogando a
idéia de que a lei deveria acompanhar as mudanças sofridas no pensamento e na sociedade
européia nos anos da Revolução Francesa. Neste caso, a ênfase centrada sobre uma suposta
noção de dinamismo das leis em Vico reflete e endossa os interesses dos membros de um
movimento internacional de reforma legal associado ao Iluminismo.
Foi a partir deste horizonte, contextualizado pelo declínio do regime feudal, pela
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pelos ideais republicanos e democráticos
que estes napolitanos interpretaram Vico e apropriam-se de sua leitura, divulgando-o pelo
velho continente.
A propósito do tema do direito e de sua interpretação na obra de Vico, Burke afirmou:
O direito fora um dos interesses centrais de Vico. Ele próprio não defendeu uma
reforma legal, mas mostrou – como seu contemporâneo Montesquieu – que
diferentes tipos de Estado ou sociedade dão necessariamente origem a diferentes
tipos de lei; e desta premissa pode-se argumentar que quando a sociedade muda,
como Nápoles e outras partes da Europa estavam mudando no final do século XVIII,
a lei deve ser modificada para mantê-la em ordem. Muitos napolitanos que
defendiam esta posição, que apoiaram a Revolução Francesa e quiseram abolir o
poder e os privilégios dos barões locais, eram também admiradores de Vico.
(BURKE, 1997, p.15).
No século XIX, é a vez de Michelet (1798-1874) descobrir Vico. Por volta de 1820,
quando o historiador francês obteve seu primeiro contato com a Ciência Nova, pouco se
conhecia sobre este pensador em França ou fora da Itália14. Mas, o que despertou a sedução de
Michelet por Vico? Como este historiador francês que viveu mais de um século após o ex-
professor de retórica pode ter se identificado tanto e encontrado tantas afinidades de
pensamento?
Edmund Wilson lembra que Michelet viveu após o Iluminismo, quando Voltaire já
havia “exterminado” a religião, a crença nos mitos e nos heróis. Montesquieu já havia exposto
as interferências do clima e da raça sobre o funcionamento das instituições humanas.
Kant já havia apresentado a história como um plano da natureza rumo ao
desenvolvimento e o aperfeiçoamento das disposições racionais humanas, bem como à
conseqüente elaboração da constituição perfeita.
14
Em 1827, Michelet fez uma “livre” tradução de Vico para o francês. Mais tarde, outra versão francesa de sua
obra foi realizada em 1844. Consultar em “O desenvolvimento intelectual de Vico”. In: BURKE, Peter. Vico.
São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. pp. 23-43.
29
De qualquer forma, Michelet traduziu a Ciência Nova de modo “um tanto livre” no
dizer de Peter Burke, e a publicou em 1827 antecedendo a próxima edição francesa que seria
publicada em 1844.
A grande divulgação que promoveu desta obra contribuiu para a maior aceitação de
Vico em “alguns círculos franceses”. Segundo Burke, “Numa época de entusiasmo romântico
pelo povo e de interesse pelo ‘espírito de tempo’, aquele era o momento certo para que a
cultura francesa assimilasse Vico”. (BURKE, 1997, p.17)
Ao passo que a cultura francesa absolvia algumas das idéias de Vico, também seus
próprios críticos, os alemães encontravam nele uma alternativa ao domínio dos ideais
clássicos franceses. Neste aspecto, os românticos da escola alemã estavam de acordo com
Vico acerca da importância do legado de uma “sabedoria poética” deixado pelos “primeiros
homens”, ou pelos “fundadores das nações”, no dizer do próprio napolitano.
Vico acreditava que a pobreza da razão dos primeiros homens era compensada por um
robusto gênio imaginativo e engenhoso. Os românticos, sem dúvida estavam muito
alinhavados com esta discussão e, pendendo para o encantamento com os começos históricos,
não tiveram maiores dificuldades para recepcionar Vico neste aspecto de seu pensamento.
Peter Burke relata que um intelectual napolitano entregou uma cópia da Ciência Nova
de Vico ao poeta Goethe (1749-1832). Afirma que Goethe haveria passado a cópia adiante
para Herder e este para um amigo seu, o filósofo J. G. Hamann (1730-1788), que já havia lido
a obra de Vico anteriormente.
De acordo com Burke, a princípio, a obra-prima de Vico não teria marcado nenhum
dos autores citados, a não ser por sua leitura indigesta, obscura. Pelo menos à primeira vista
estes autores não encontraram associações entre suas idéias e as de Vico.
Entretanto, Isaiah Berlin declarou que Herder (1744-1803), hoje é comumente
identificado como um “paladino da fé contra a razão, da imaginação poética e histórica contra
a aplicação mecânica de regras” (BERLIN, 1976, p. 134). Neste sentido, o filósofo alemão
31
Se Vico foi uma referência para os românticos, por um lado, ironicamente também o
foi para os anti-românticos “positivistas”. Estes acreditavam que a física e a zoologia eram
ciências a partir das quais deveriam orientar-se a história e a própria “sociologia”, em pleno
reconhecimento de suas pretensões científicas durante o século XIX.
Nesta perspectiva, identificaram e sublinharam a importância das leis da evolução
histórica em analogia as leis da natureza no interior do pensamento viquiano. Por outro lado,
cobravam do filósofo italiano maior objetividade e menor especulação, ao mesmo tempo em
que reclamavam sua escassa preocupação com a “coleta dos fatos”.
De acordo com Peter Burke, o interesse por Vico recrudesceu entre os intelectuais
europeus durante a onda de reação ao positivismo desencadeada pelo final do século XIX. A
ruptura proposta pelo filósofo entre o conhecimento do mundo da natureza e do mundo
humano representou um atalho para aqueles que discordavam dos encaminhamentos dados ao
estudo do homem pelos “cientistas sociais”.
Dentre estes, estava o hermeneuta Wilhelm Dilthey (1833-1911) que certa vez referiu-
se à Ciência Nova como “um dos maiores triunfos do pensamento moderno”. Neste século, a
admiração pelo pensamento de Vico se estendia desde o romantismo, passando inclusive pelo
positivismo, à hermenêutica.
Até Karl Marx recepcionou as idéias do filósofo italiano reconhecendo sua
importância para o desenvolvimento de sua teoria social. De acordo com Peter Burke, Marx
teria sugerido a leitura da Ciência Nova a um de seus correspondentes, na década de 1860.
Para Burke, Marx recebera Vico identificando-se nele: “Sem dúvida ele pensava Vico
como um protomarxista, e há por certo interessantes paralelismos entre as idéias dos dois
pensadores, especialmente na importância que atribuem ao conflito social na história e na
pouca importância que reservam aos ‘grandes homens’”. (BURKE, 1997, p.18).
32
O autor italiano Pasquale Soccio apresenta uma extensa indicação bibliográfica acerca
de trabalhos que tratam das aproximações entre Marx e Vico. Ao tratar deste tópico, o autor
usou um fragmento em que o próprio Marx se refere a Vico como um homem atento a
importância de se fazer uma história das instituições sociais.
É evocando Vico que Marx frisa a importância de uma história escrita neste sentido: 15
Não merece (...) atenção a história da formação dos órgãos produtivos do homem
social, base material de uma organização social particular? E não seria mais simples
fazê-la, uma vez que, como disse Vico, a história da humanidade se distingue da
história natural, pelo fato de nós havermos feito uma e não havermos feito a outra?
(MARX apud SOCCIO, 2000, p. LXXII).
Soccio afirma ainda que os primeiros estudos publicados sobre Vico pelos marxistas
na Rússia o apontam como “um dos maiores sociólogos, que anteciparam alguma posição
teórica do marxismo no campo da interpretação da história”.
Na virada para o século XX, Vico permaneceu em evidência e ganhou novos
comentadores como Benedetto Croce, R. G. Collingwood, Ernst Cassirer, Hayden White, Eric
Auerbach, James Joyce, Isaiah Berlin, Peter Burke entre outros mais. As abordagens de seus
leitores variavam desde o tema dos mitos e formas simbólicas (Cassirer) à idéia de história
cultural embutida na obra de Vico (Auerbach).
Para iniciar uma sonda dos principais leitores de Vico no século XX, é justo que se
comece por Croce. De acordo com Peter Burke a publicação de Croce em 1911 é o estudo
mais completo da obra do pensador napolitano.
O historiador inglês considera esta a maior contribuição ao tema até então. A obra
intitulada por La Filosofia di Giambattista Vico teve uma segunda edição publicada em torno
do primeiro ano da década de 1920 e uma terceira edição publicada no ano de 1932.
Nela, o filósofo Croce disseca a obra do filósofo Vico discutindo a gnoseologia
vichiana, a estrutura interna da Ciência Nova, a forma fantástica de conhecer (a poesia e a
linguagem), a forma semifantástica de conhecer (o mito e a religião), a moral, o direito, a
providência, a historiografia, etc. Não é à toa que Burke rendeu-se diante da grandeza desta
análise, considerando-a uma das mais ricas até então.
Croce inicia a terceira edição fazendo uma avvertenza (advertência) onde oferece seu
trabalho como um guia de interpretação aos leitores de Vico. Rebate ainda as críticas que
15
Texto original: Non merita (...) attenzione la storia della formazione degli organi produttivi dell´uomo sociale,
base materiale di ogni organizzazione sociale particolare? E non sarebbe più facile de fare, poiché, come dice
Vico, la storia dell´umanità si distingue dalla storia naturale per il fatto Che noi abbiamo fatto l´uma e non
abbiamo fatto l´altra?
33
acusavam sua interpretação de ser enviesada pelo seu próprio pensamento filosófico, bem
como de não ser oggetiva (objetiva).
Sobre sua compreensão de Vico, Croce alegou 16:
Na verdade, quem quiser conhecer verdadeiramente Vico deve ler e meditar o livro
de Vico; e isto é indispensável, e esta é a única objetividade possível (...) Ao
contrário, a exposição histórica e crítica de um filósofo requer uma distinta e mais
alta objetividade, e necessariamente o diálogo entre um antigo e um novo
pensamento, no qual somente o antigo pensamento vem destinado a ser
compreendido. E tal é, ou procura ser o meu livro. O que poderia eu ter possibilitado
entender de Vico se não fosse torturado sobre problemas estreitamente conjuntos aos
seus ou derivantes daqueles seus? (CROCE, 1933, p.X).
Burke informou que este trabalho de Croce foi traduzido para o inglês por R. G.
Collingwood, que a propósito é conhecido como seu discípulo. Tenha o sido ou não, uma
coisa os unia: o elogio a Vico. Collingwood apresenta Vico como um “historiador
experimentado”, que tal qual Bacon formulou os princípios do método científico, aquele se
dispôs a elaborar os princípios do método histórico.
É perceptível o entusiasmo de Collingwood diante da “idéia completamente moderna”
que ele encontra da história em Vico. Como um homem religioso, ainda arraigado à arcaica
tradição da jurisprudência italiana do Renascimento poderia ter um esclarecimento tão grande
da história enquanto um ramo do saber?
Collingwood comenta o entendimento de Vico sobre a história:
Vico considera o processo histórico como um processo, através do qual os seres
humanos elaboram sistemas de linguagem, costumes, leis, governo, etc.: isto é,
considera a história como a história da gênese e do desenvolvimento das sociedades
humanas e das suas instituições. Aqui, atingimos, pela primeira vez, uma idéia
completamente moderna sobre qual há de ser o tema da história. Não há nenhuma
antítese entre as ações isoladas dos homens e o plano divino que as liga, como
acontecia na Idade Média. (COLLINGWOOD, 1994, p.10).
16
Texto original: In verità, chi voglia conoscere davvero il Vico deve leggere e meditare i libri Del Vico; e
questo è indispensabile, e questa è la sola oggetività possibile: non la considetta “esposizione oggetiva” che
altri ne faccia, e Che non potrebbe riuscire se non lavoro estrinseco e materiale. L´esposizione, invece, storica e
critica di um filosofo há uma diversa e più alta oggetività, ed è necessariamente il dialogo tra um antico e um
nuovo pensiero, nel quale solamente l´antico pensiero viene inteso e compreso. E tale è, o procura di essere, il
mio libro. Che cosa avrei potuto intendere io Del Vico, se non mi fossi travagliato su problemi strettamente
congiunti ai suoi o derivanti da quelli suoi?
34
Collingwood, Croce e Berlin parecem ser consensuais na imagem que pintam de Vico:
de um homem avant-garde, original, porém, marginalizado pelo pensamento que abarcava a
filosofia e as ciências de seu tempo. Em torno destas recorrentes interpretações, Burke alerta
que se construiu “O Mito de Vico” 17. Nesta discussão, o autor analisa a mitificação de Vico
em um estilo dramático, fazendo uma analogia ao mito de São João Batista operante na
cultura ocidental. A relata o trágico fim do pregador do evangelho considerado um gênio
incompreendido por seus ouvintes. Quando por fim lhe é retratada a verdade, as injustiças que
lhe foram cometidas passam a ser recompensadas pelo culto posterior à sua figura e obra.
Para Burke, esta mesma moral da sagração póstuma é válida para representar a
trajetória de Vico. Todavia, ao criticar esta interpretação “estilizada” em termos trágicos e ao
mesmo tempo otimistas da vida de Vico, Burke não está negando os contrastes entre este e a
atmosfera intelectual de sua época. Antes disso, está chamando atenção para que isto não
desmereça a análise de seu pertencimento histórico e social.
Sobre a leitura de Vico que o descola de seu próprio tempo e cultura, Burke contestou:
Acredito que essa interpretação é gravemente errônea. Ela tirou Vico de seu
contexto, separando-o do meio cultural e social em que ele se desenvolveu, a cidade
de Nápoles no final do século XVII. Também retirou Vico de sua tradição
intelectual mais ampla, a república humanista de letras e, em particular, dos juristas
que ainda estavam entre seus cidadãos mais eminentes. (BURKE, 1997, p.14).
Além do que já foi apontado neste capítulo, Burke oferece mais um importante
elemento para a leitura de Vico: a tradição da qual este é oriundo. Neste sentido, o alerta para
compreendê-lo a partir de seu lugar sócio-histórico soa como uma sugestão de diálogo com os
recentes trabalhos de autores italianos que vêm esforçando-se neste ímpeto.
17
Ver “O Mito de Vico”. In: BURKE, Peter. Vico. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.
pp. 13-21.
35
Paolo Rossi relembra que nos anos da formação do pensamento de Vico a cultura
italiana esteve marcada por um processo de profundo renovamento. Da transição do século
XVII para o XVIII, o mundo intelectual italiano incorporava os louros da mais moderna
corrente do pensamento europeu. Aprofundavam-se as discussões acerca do método científico
de Bacon e de Descartes, e dos efeitos do cartesianismo sob a física e fisiologia.
Uma avalanche de novos temas ou de retomadas de temas que desvendaram outros
horizontes ao pensamento e conhecimento europeus entravam na ordem dos debates daqueles
dias na Itália. Fazia-se polêmica desde o atomismo de Gassendi, teoria política de Hobbes,
empirismo de Locke, metafísica de Spinoza até o racionalismo e a psicologia de Leibniz.
No âmbito da pesquisa jurídica e política, Rossi destaca a influência decisiva das
doutrinas de Grozio, Selden e outros jurisnaturalistas. O autor aponta a relevância da filologia
e dos antiquários sobre a vida intelectual da época.
Por meio destas atividades culturais em pleno vigor neste processo de renovação
realizaram-se obras de erudição, história geral da poesia, da literatura, e a historiografia
italiana fincou seu espaço de uma vez por todas no terreno intelectual europeu. No plano
religioso, iniciam-se as contravenções (originalmente em círculos restritos) em torno da
natureza humana, da liberdade e da graça. Estes tópicos revisitados pelo jansenismo18
recuperavam as teses de Santo Agostinho e iam na contramão do probabilismo jesuítico.
Rossi assinala que as principais interferências do renovamento cultural na literatura e
poesia reafirmaram a exigência do gosto, da clareza e da simplicidade. Estes elementos eram
aclamados em detrimento do que o autor chamou de “barbárie do último século”, quando a
literatura esteve dominada pelos cânones do conceptualismo19, marinismo20 e gongorismo21.
18
Doutrina do bispo Cornélio Jansênio (1585-1638). Trata-se de uma tentativa de reforma católica através do
retorno às teses de Santo Agostinho sobre a graça. Segundo Jânsenio, a doutrina agostiniana implica que o
pecado original tirou o homem da liberdade de querer, tornou-o incapaz para o bem e inclinado necessariamente
para o mal. Deus só concede aos eleitos, pelo merecimento de Cristo, a graça da salvação. Jansênio confrontava
estas teses com o relaxamento da moral eclesiástica, especialmente jesuítica, segundo a qual a salvação está
sempre ao alcance do homem que, vivendo no seio da Igreja, possui uma graça suficiente, que o salvará se for
favorecida pela boa vontade. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed. São Paulo: Martins fontes,
2000. p. 588.
19
Nome que os historiadores oitocentistas da filosofia medieval deram à corrente da Escolástica conhecida por
nominalismo; isso para fazer a distinção entre o nominalismo extremado de Roscelin, para quem o conceito
universal é uma simples vox ou flatus vocis, o nominalismo de Abelardo, para quem o próprio universal é um
discurso (sermo) predicável de muitas coisas, e do nominalismo posterior, que se inspira em Abelardo. Idem.
p.169.
36
20
Afeição ao estilo, semelhante à que se censura no poeta italiano Marini (1569-1625). FERREIRA, Aurelio
Buarque de Hollanda. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 11ª ed. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira. 1967. p.780.
21
Escola espanhola de poesia, que segue o método de Luís de Góngora y Argote, poeta espanhol (1561-1627), e
se caracteriza por um excesso de metáforas, antíteses, inversões, trocadilhos e alusões cláassicas; feição literária
peculiar a essa escola. Idem. p. 607.
37
22
Gassendi era padre na França, onde o clero era mais tolerante e mesmo receptor das novas idéias, ao contrário
do que aconteceu na Itália e na Espanha. Sobre este tema, ver: BURKE, Peter. Vico. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 27.
38
conhecida pela força de seu tribunal inquisitório concedia completo aval ao clero do Vice-
Reino de Nápoles.
Isto pode ser observado no caso de Tommaso Campanella (1568-1639) filósofo da
região da Calábria, acusado de liderar em 1599 uma rebelião contra o domínio espanhol em
Nápoles a fim de instaurar uma república teocrática onde ele próprio seria o sacerdote e o rei.
O estopim desta insurreição desencadeou em Nápoles uma intensa repressão civil e religiosa,
aberturas de processos inquisitoriais e condenação daqueles que fossem considerados hereges
pelo Papado local.
Refugiado na França, Campanella escapou do suplício do santo tribunal. Mas, não
tiveram a mesma sorte, seus contemporâneos Giordano Bruno (1548-1600) queimado com
vida no Campo dei Fiori (Campo das Flores) em Roma, no ano de 1600 e Galileu Galilei
(1564-1642) condenado a liberdade vigiada no ano de 1633 até os últimos dias de sua vida.
Neste mesmo tom, alertou-se contra as “heresias” do “ímpio” Lucrécio como forma de vetar a
propagação da nova corrente “atomista”, também chamada de mecanicista do pensamento
europeu.
Rossi conta que se deve a um seguidor de Galileu chamado Marchetti a tradução de
Lucrécio para o italiano, realizada entre 1644 e 1669. A vastíssima repercussão desta obra
provocou a ira da censura eclesiástica napolitana que em 1693 advertia os “fiéis” da
“necessidade indispensável de repudiar o venenoso livro repleto de heresia e de infame
ateísmo e especialmente o ímpio Lucrezio, traduzido para o italiano por parte do Demônio,
infelizmente aplaudido por esta e outras ações semelhantes” 23. (ROSSI, 2004, p.9)
Dois anos antes disso, quando Vico tinha 23 anos de idade, a Inquisição napolitana
condenava quatro jovens dos quais dois eram seus amigos. Estes foram acusados de acreditar
que o universo era composto de átomos, que a Terra já era habitada por seres humanos antes
de Adão e Eva e que Cristo era um impostor.
Esta é mais uma ilustração de como a inquisição enxergava os livres pensadores
italianos: “como um bando de ateus”, mesmo que estes não fossem. Campanella e Bruno, por
exemplo, eram frades dominicanos crentes que o aprofundamento de seus estudos sobre a
natureza os aproximavam da criação divina e, portanto de Deus.
23
Texto original: A Napoli, nel ´93, i fedeli venivano avvertiti della “necessità indispensabile di fuggire come
mostri velenosi i libri infetti d´eresia e dell´infame ateísmo e specialmente l´empio Lucrezio traslato, per arte
Del Demônio, in metro italiano, purtroppo applaudito e altri di simil fazione.
39
A Inquisição italiana do tempo de Vico é uma continuidade desta proibição aos temas
vedados ao altum sapere. Mais do que isso, representou uma tentativa frustrada de resolver o
problema fundamental entre antigos e modernos que se apresentava na Itália daqueles anos.
Avaliar as contribuições culturais que Nápoles trouxe à Europa não é uma tarefa muito
fácil, mesmo para os pesquisadores italianos. Isto se deve à multiplicidade e complexidade
das atividades intelectuais, culturais e científicas desenvolvidas no tempo de Vico na região
do Mezzogiorno. Todavia, é importante vislumbrar esta riqueza cultural no ensejo da situação
política e social da capital do antigo Vice-Reino da Espanha. (entre 1503 e 1734).
Esta é a proposta do historiador napolitano Giuseppe Galasso. Este autor faz um
apanhado geral do endereço político e cultural de Nápoles desde a infância até os últimos anos
de Vico. Foi um período de muitas mudanças para tal recorte temporal (1668-1744).
40
24
Texto original: Dopo tutto, secondo uma tradizione antica, ma consolidatasi con l´ingigantirsi della capitale e
la concentrazione in essa della maggiore nobilità del Regno, l´artigianato e i servizi richiesti dalla presenza di
una corte e di um´aristocrazia particolarmente fastose e di um più Che agiato ceto civile rappresentavano pur
sempre lê maggiori e più stabili occasioni dilavoro e formavano, assieme al commercio, la spina dorsale
dell´attività econômica cittadina.
41
25
Texto original: Ma, in generale, la capitale si riconfermò, dopo la peste Del 1656, come lê grande testa di um
fragile corpo, come la sanguisuga delle energie fisiche ed economiche Del Regno. Al drenaggio demográfico e
finanziaro si univa poi quello delle energie intellettuali, per essere la città sede dell´única università Del Regno
e sede della massima parte delle attività professionistiche, specie nel campo legale e amministrativo, data la
concentrazione in essa di tutte lê maggiori istanze burocratiche e amministrative.
42
26
Texto original: “Permane”, ha osservato giustamente il Villari, “ la tendenza a considerare questa importante
categoria professionale quase come uma classe sociale – surrogato di uma inesistente borghesia – che si
sarebbe assunto il compito storico, in verità sproporzionato alle sue forze, di rovinare o di salvare, secondo i
punti di vista, il regno di Napoli.
43
Uma mudança política mais significativa viria com o advento de Carlos de Bourbon ao
trono napolitano, uma década antes da morte de Vico27. Galasso afirma que logo cedo o novo
governo iniciou um programa de reforma que o diferenciou nitidamente dos anteriores
governos espanhóis, do último austríaco e daqueles que futuramente viriam a insistir na
instituição secular do Reino.
Vico não chegou a vivenciar os frutos desta reforma, mas acompanhou toda sua
evolução na ebulição daqueles anos. Foi sobre este pano de fundo histórico que o filósofo
obteve contato com os polêmicos temas do Iluminismo. Desde a Nápoles seiscentista e
espanhola que conheceu quando criança até a Nápoles de sua velhice, Vico esteve fascinado
pelo problema da renovação cultural.
Sua trajetória intelectual perpassou vários terrenos da cultura italiana, desde o âmbito
do instituído ao não-instituído, ou em processo de instituição. A formação clássica de
humanista se iniciou na scuola della Gramática (escola de Gramática), depois Vico foi pupilo
do Maestro il Padre Antonio del Balzo, um jesuíta e filósofo nominal e do Padre Giuseppe
Ricci, que também era jesuíta. Estes contatos trouxeram para Vico um grande
aprofundamento com relação à língua latina que mais tarde se uniria ao seu interesse pela
poesia. 28
Ainda nesta fase de seu desenvolvimento intelectual, Vico conheceu os elementos
filosóficos da escolástica, aprendendo a ser um “aristotélico cristão”. Mas, aos poucos o
jovem estudante conhecia outras abordagens filosóficas, a exemplo da metafísica do Padre
Suarez e de Duns Scot.
Sobre esta o próprio Vico declarou em sua autobiografia: 29
O Padre Suarez na sua metafísica reflete todo o saber em Filosofia de uma forma
eminente, como convém a um metafísico e com um estilo totalmente claro e fácil, de
fato ele se destaca por uma incomparável eloqüência, deixou a escola de melhor uso,
de modo que, outra vez ele se fechou por um ano em casa para estudar sobre Suarez.
(VICO, 1728, p.153).
Durante os noves anos (1686-1695) em que atuou como preceptor do filho do marquês
Domenico Rocca em Vatolla (Cilento), Vico se reporta aos momentos de relativa solidão
aproveitados para o estudo aprofundado de Platão, os primeiros contatos com o materialismo
27
Neste mesmo ano (1735), aos 67 anos de idade, Vico foi nomeado historiador oficial do novo governador de
Nápoles. Conferir o tema em “O desenvolvimento intelectual de Vico”. In: BURKE, Peter. Vico. São Paulo:
Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. pp. 23-43.
28
Estas informações podem ser conferidas em VICO, Giambattista. Vita di Giambattista Vico – Scritta da se
medesimo (Vida de Giambattista Vico – Escrita por ele mesmo). Nápoles, 1725-1728.
29
Texto original: Il Padre Suarez nella sua Metafísica ragionava di tutto lo scibile in Filosofia com uma
maniera eminente, come a metafísico si conviene, e com uno stile sommamente chiaro e facile, come in fatti egli
spicca com uma incomparabil facondia, lasciò la scuola com miglior uso, che l´altra volta, e si chiuse un´ano in
casa a studiare su´l Suarez.
45
de Gassendi (1592-1655) e, especialmente com a filosofia cartesiana, cada vez mais difusa em
Nápoles. 30
Quando voltou para Nápoles em 1699, Vico passou a ocupar o cargo de professor de
retórica da universidade.
Sobre a possibilidade de ingresso na cátedra de retórica, o napolitano proferiu em sua
autobiaografia31:
Pouco depois estava vaga a Cattedra della Rettorica (Cátedra de Retórica), devido à
morte do Professor, com renda não mais alta do que cem escudos anuais, com algum
acréscimo de menor importância como o direito ao crédito, através do qual os
Professores habilitavam os estudantes às formas legais de estudo. (VICO, 1728,
p.190).
30
O tema pode ser encontrado em VICO, Giambattista. Princípios de uma Ciência Nova: acerca da natureza
comum das nações. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Os Pensadores. p. VII.
31
Texto orriginal: Poco dopoi essendo vacata la Cattedra della Rettorica, per morte del Professore, di rendita
non più che di cento feudi annui con l´aggiunta di altra minor´incerta somma, che si ritragge da i diritti delle
fedi, con le quali tal Professore abilita gli Studenti allo studio legale.
46
Mesmo tendo vivido décadas após Vico, é necessário passear pela vertente alemã do
Iluminismo, a Aufklãrung através da figura de Kant. Por estar no fim do Século das Luzes e
mesmo haver acompanhado o seu culminar com o estopim da Revolução Francesa, Kant traz
uma espécie de síntese do pensamento iluminista, de sua filosofia e ciência.
Ao responder a pergunta: “Que é o Iluminismo”, Kant respondeu:
O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade que ele próprio é culpado. A
menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de
outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de
entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a
orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio
entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo. (KANT, 1988, p. 11)
Kant traz à luz a idéia de construção de uma história universal, onde as ações humanas
podem ser analisadas em seu conjunto através do tempo. Mediante a crítica da experiência dos
homens ao longo da história é possível identificar os erros cometidos pelos estados e tentar
concertá-los, desenvolvendo uma relação mais harmônica entre estes. É preciso esclarecer que
a idéia de uma constituição política perfeita corresponde à concretização de um Estado
Cosmopolita.
Análoga a passagem do homem de sua menoridade à maioridade racional, Kant
propõe a superação da situação de barbárie entre os estados rumo à segurança e à convivência
pacífica entre estes assegurada pela administração universal do direito. Na visão de Kant este
seria o plano supremo da natureza para a espécie humana e seu fio condutor é o
desenvolvimento da razão.
Em Kant, a razão é compreendida como uma disposição natural própria do ser humano
com uma finalidade: alcançar a maioridade e a felicidade racional. Deste modo, as sucessivas
gerações transmitem umas as outras as suas “luzes”, como um esforço contínuo (não
necessariamente linear) de aperfeiçoamento do mundo.
Este processo indica o curso da história universal delimitado pela natureza. De acordo
com Kant: “No homem (única criatura racional sobre a Terra) aquelas disposições naturais
que estão voltadas para o uso de sua razão devem desenvolver-se completamente apenas na
espécie e não no indivíduo”. (KANT, 2004, p.11)
No entanto, é possível perceber que o ponto de partida para o desenvolvimento da
razão é o próprio caos. Por natureza, o homem é predisposto a competir, animado por seu
desejo de liderança e dominação. A partir dos antagonismos que caracterizam a
insociabilidade natural dos homens surge a necessidade de regulamentação de leis voltadas ao
mundo social que possibilitem a convivência dos indivíduos. Este artifício de validade
universal (leis) seria uma limitação das liberdades individuais no esforço de garantir a eficácia
das mesmas em seu conjunto.
O desenvolvimento da razão e a regulamentação da vida social são fundamentais neste
aspecto, pois faz com que o homem torne-se mais sociável, reconheça seu próprio valor
social, despertando seus talentos através de modos de pensar mais sofisticados. À medida que
50
Por Iluminismo se pode compreender uma linha filosófica que pretendeu estender a
razão como crítica e guia a todos os domínios da experiência humana. Toda crença e qualquer
tipo de conhecimento é suscetível à crítica, segundo os pressupostos filosóficos do
Iluminismo. Neste sentido, o conhecimento aí produzido está suscetível à crítica, ao passo que
inclui e ordena os instrumentos para sua própria correção. A aplicação deste conhecimento
realizado nos padrões iluministas almeja atingir o aperfeiçoamento da vida privada e social do
homem.
De modo geral, o recorte temporal atribuído ao Iluminismo vai desde a metade do
século XVII aos últimos decênios do século XVIII. Esse período também é comumente
chamado de século das Luzes. E é exatamente a passagem do século XVII para o XVIII que
está em foco neste capítulo. Alguns estudiosos do período em questão destacam no interior do
Iluminismo, o movimento da “Ilustração”.
Este é o caso de Schlette:
Desde o século XVIII, o termo ilustração é usado para designar uma transformação
social, cultural, política e filosófica diferenciada, por meio da qual uma nova forma
da autocompreensão e da compreensão do mundo substitui a anterior. A metáfora da
luz que se expressa no termo ilustração – bastante claro também em enlightment, les
lumières, ilustracción - indica uma nova consciência e elevadas expectativas. Depois
de uma era da “escuridão”, do “obscurantismo”, da ignorância e da falta de
liberdade, pretende-se inaugurar uma nova era de verdadeira humanidade sob o
signo da “razão” e da “natureza”, da “autonomia” e da “liberdade”. (SCHLETTE,
2003, p. 147)
europeu, e mesmo nos Estados Unidos, sem deixar de considerar a velocidade e as condições
sob as quais estas eram recepcionadas.
Deste modo, o Iluminismo na Grã-Bretanha, especialmente na Escócia, era adaptado a
sua própria realidade local, enquanto que o Iluminismo norte-americano, por exemplo, não
chegou a efetivar rigorosamente o corte entre razão e religião realizado por Voltaire, ou
mesmo por Kant. Segundo Venturi, a Inglaterra da década de 50 do século XVIII, apresentava
uma vida intelectual e política agitada, e Hume publicava seus ‘Ensaios’. Em contrapartida
não dispunha da força que o movimento tinha em Paris, com sua capacidade de atuação
política e possibilidade de estabelecer novas organizações sem exemplos no passado.
Na Prússia, Venturi afirma que o Iluminismo vinha de cima para baixo, mediante as
reformas instituídas pelo absolutismo esclarecido que concediam espaço aos filósofos, como
experimentou pessoalmente Voltaire. Nos anos da década de 60 do século das Luzes, Carlos
III da Espanha impulsionou um processo de modernização que não muito tarde esbarraria em
obstáculos como a religião entre outros aspectos da tradição do povo espanhol.
Na Áustria, a despeito do crivo da censura, vem à tona uma nova abordagem sobre as
relações entre Iluminismo e reforma através da ‘Deutsche Gesellschaft’ nos primeiros escritos
de Sonnenfels.
Ainda neste mesmo decênio (em 60), na Itália, os ‘Lezioni di commercio’ (Lições de
comércio) de Antonio Genovesi davam fôlego as reformas encaminhadas em Nápoles que
serviram de estímulo a toda a região da Toscana. Na virada da década de 40 para a década de
50 dos Setecentos, a produção dos enciclopedistas era acompanhada por toda a Europa. Na
região da Toscana, o ‘Giornale dei letterati publicato in Firenze’ (o Jornal dos literatos
publicado em Florença), de acordo com Venturi, especificamente a partir de 1747, passou a
dispor de um excelente serviço de informação sobre a ‘Encyclopedie’.
Porém, para compreender o lugar de Vico e sua noção de conhecimento histórico neste
trânsito de idéias, é preciso nos voltar às principais vertentes que marcaram a epistemologia
das ciências ao longo do Século: o racionalismo cartesiano e o empirismo. Mais adiante, o
pensamento de Vico será confrontado com estas duas correntes já familiares ao autor quando
publicou sua última versão da Ciência Nova em 1745. Neste propósito, o corte cronológico do
presente trabalho prioriza o momento de passagem do século XVII até a primeira metade do
século XVIII.
Antes de dar início à discussão epistemológica do Iluminismo centrada nos pilares do
racionalismo cartesiano e do empirismo, é necessário analisar brevemente o momento anterior
de desenvolvimento da ciência iluminista.
54
32
Atualmente o problema do saber na Idade Média já foi desmistificado a partir de estudos mais minuciosos do
período que vem se realizando desde meados do século XIX. Alguns grandes trabalhos referentes a este tema são
o de: ECO, Humberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Editora Record, 1986; LE GOFF, Jacques. Os
Intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003; GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes.
São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1987.
55
33
Sobre esta discussão conferir ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. Bauru, SP:
EDUSC, 2001, pp. 17-18.
56
O bom senso é, das coisas do mundo, a mais bem dividida, pois cada qual julga estar
tão bem dotado dele, que mesmo os mais difíceis de contentar-se em outras coisas
não costumam desejar tê-lo mais do que já têm. E não é verossímil que todos se
enganem a este respeito; pelo contrário, isso evidencia que o poder de julgar bem e
distinguir o verdadeiro do falso, isto é, o que se denomina bom senso ou a razão, é
naturalmente igual em todos os homens. (DESCARTES, 2002, p.21).
Para os grandes pensadores do séc. XVI e XVII a exemplo de Francis Bacon e René
Descartes o problema da ciência não era causado por nenhuma insuficiência do intelecto
humano em si, mas sim pelo modo como educamos nosso espírito para conhecer a verdade. E
aí estaria o problema do método: orientar o pensamento e educar o intelecto humano, visando
seu próprio progresso.
Se todos os homens têm a mesma capacidade natural de conhecer as coisas a sua volta,
cabe a ciência através de um método apontar um percurso que nos direcione para o
conhecimento verdadeiro, capaz de transformar nossa realidade de maneira positiva.
Com este ímpeto apontaram-se variados métodos dentre os quais obtém maior
destaque no presente trabalho o da ciência cartesiana e a sua crítica através de Vico. Nestes
termos a ciência moderna foi anunciada a partir da introdução do modelo do século XVI.
O conhecimento produzido nos moldes deste novo padrão deveria tornar-se público,
aberto a discussão e avaliação de suas proposições verdadeiras. Em outras palavras, estava
suscetível ao juízo crítico, e suas demonstrações poderiam ser contestadas no sentido de
aperfeiçoá-lo tendo em vista o melhoramento da vida privada e social do homem. A ciência
iluminista dá continuidade a este conceito de conhecimento ajustável.
Também é preciso pontuar a relação que a ciência mantém aqui com o progresso
técnico. O contexto da Renascença é tempo de descobertas que alteraram tanto o mapa do
mundo, a partir do contato com novas terras e povos, quanto do céu (os avanços da
astronomia).
Não fosse, por exemplo, a descoberta da “agulha de marear” (como Bacon chamou o
que hoje conhecemos por bússola) que foi muito utilizada para governar os navios em suas
longas jornadas, talvez não tivesse Colombo realizado o trajeto que velejou. Tampouco, se
não fosse a invenção do astrolábio, a posição dos corpos celestes ainda seria concebida em
57
34
Sobre o seguinte tema conferir, ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p.535.
58
emergentes teorias do conhecimento. Mas, embora o conteúdo fosse reformulado, a forma era
preservada de modo a garantir a continuidade do progresso que nasceu junto com a ciência
moderna.
Foi no decorrer desta aura de transformação da ciência, que agora se queria fazer
pública, flexível, verificável, progressiva e favorável ao bom funcionamento da sociedade
humana, que o velho mundo medieval europeu começou paulatinamente a ruir. Ao passo que
se afrouxavam as rígidas estruturas hierárquicas sociais oriundas da Idade Média, se abriam
espaços para a emergência do homem enquanto “indivíduo”.
Neste sentido, a idéia de indivíduo estava ligada à natureza humana e suas
potencialidades. Restituir o homem à sua totalidade e buscar compreendê-lo em seu mundo,
que é o da natureza e o da história: eis o desafio dos humanistas. Esta postura não deixou de
ser uma reação à mentalidade medieval em que se afirmava a dualidade do homem, ou seja, a
existência de polaridades antagônicas como, por exemplo, a alma e o corpo a essência e a
aparência, o mal e o bem.
A despeito disso, o Humanismo defendeu a idéia de continuidade entre o corpo e o
espírito, destacando o papel central do homem na natureza e o destino de que é portador e o
habilita a dominá-la. Este movimento valorizou o estudo das letras clássicas, humanitas.
Nicola Abbagnano apresentou as humanitas como o “reconhecimento do valor
humano das letras clássicas”:
É por esse aspecto que o Humanismo tem esse nome. Já na época de Cícero e
Varrão, a palavra humanitas significava a educação do homem como tal, que os
gregos chamavam de paidéia eram chamadas de “boas artes” as disciplinas que
formam o homem, por serem próprias do homem e o diferenciarem dos outros
animais. As boas artes, que ainda hoje são denominadas disciplinas humanísticas,
não tinham para o Humanismo valor de fim, mas de meio, para a formação de uma
consciência realmente humana, aberta em todas as direções, por meio da consciência
histórico-crítica da tradição cultural. (ABBAGNANO, 2000, p.519).
Observa-se nas artes e nas ciências um renascer do interesse pela cultura secular dos
antigos, que marca a ruptura com as tradições clericais da Idade Média. Enquanto a
cena medieval esteve dominada por preocupações relativas a Deus, os pensadores do
Renascimento se interessaram mais pelo homem. (RUSSELL, 2003, p.270).
Ainda sobre a tradição que os humanistas buscaram recuperar e adotar como modelo
de investigação para o nascente fazer científico da modernidade, Russell acrescentou:
Na essência, a concepção gerada pelo avanço da investigação científica é, mais uma
vez, a dos gregos. Fazer ciência é salvar as aparências. A autoridade que estas
tradições adquirem difere inteiramente do dogmatismo com que, na época medieval,
a Igreja tentara impor o seu domínio sobre os homens. (RUSSELL, 2003, p.271).
E é sobre esta perspectiva que se dão as prévias da ciência moderna: sobre a força das
especulações naturalistas que compreendem a figura humana no centro da própria natureza.
Neste período destacam-se as obras de Campanella, Giordano Bruno e Telésio.
A religião cristã, tampouco esteve isenta dos efeitos desta Revolução Científica. O
desenvolvimento da tipografia35 contribuiu para o aumento da produção de livros, incluindo a
Bíblia. Com a possibilidade de acesso cada vez mais livre aos textos bíblicos, surgem novas
interpretações, nem sempre convergentes com às da Igreja Católica. Junto a isto, as acusações
de venda de indulgências36 e de simonia37 alimentaram os ânimos de revolta contra a
corrupção dos clérigos.
Estes fatores unidos à pressão exercida por uma nova ética religiosa, além das próprias
cisões internas da Igreja, fomentaram a criação de novas correntes religiosas em seu próprio
seio e pouco mais, fora dele. A ruptura do mundo cristão e o nascimento do Protestantismo
marcaram o ápice deste processo histórico.
É importante perceber o papel da Reforma e mesmo da Contra-Reforma no contexto
da Renascença para compreender de que forma estas influenciaram a prática científica a ser
desenvolvida daí adiante. A ética do protestantismo emergente por um lado, impulsionou o
desenvolvimento da produção científica contraponteando a atitude dos tribunais inquisitoriais
e o Index da Igreja Católica, e por outro, contribuiu para uma construção da nova imagem de
Deus.
A palavra “descobrimento” estava na ordem do dia do léxico da Renascença. Pois, a
descoberta de novas rotas marítimas em especial do “Novo Mundo” e o contato com povos
desconhecidos até então trouxe a idéia do novo como meta para o panorama filosófico e
científico da modernidade.
A idéia de descoberta implica em tomar conhecimento de algo que existe naturalmente
e ainda não havia sido experimentado pelo gênio humano. Contribuiu para conceber o
universo como um todo obediente a uma ordem que pode ser conhecida e revelada como o
conhecimento da própria criação de Deus.
35
Processo de impressão realizado com tipos móveis de metal. Na Europa, a invenção da composição por tipos
móveis coincidiu com outra, a técnica de imprimir ilustrações com chapas de metal gravadas. Originária do vale
do Reno e do norte da Itália, na década de 1450, ela também ajudou a propagar o conhecimento na época da
Renascença e viria a desempenhar um papel especial em alguns campos científicos. RONAN, Colin A. História
ilustrada da ciência da Universidade de Cambridge, volume III: da Renascença à Revolução Científica. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
36
Clemência, perdão ou remissão dos pecados. FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno Dicionário
Brasileiro da Língua Portuguesa. 11ª ed., Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S. A., 1967, p. 669.
37
Tráfico criminoso de coisas santas ou espirituais, como sejam os sacramentos, dignidades, benefícios
eclesiásticos, etc.; venda ilícita de coisas sagradas. Idem, p. 1114.
61
O autor italiano defende que a ciência moderna só vem a consolidar-se como uma
atividade social organizada a partir do curso do século XVII em diante, quando já está apta
para criar suas próprias instituições. O Iluminismo é o momento em que por fim, esta se
encontra em vias de institucionalização.
Analisar este difícil e árduo processo não é o foco deste trabalho, mas é preciso levá-lo
em conta para avaliar a vigência do triunfo do cartesianismo até o seu declínio destacando a
contribuição da crítica viquiana para tal.
2.4.1 Descartes
O termo “racionalismo” foi adotado pela primeira vez por Kant para designar sua
doutrina, bem como para referir-se aos diversos campos de sua investigação (religião, moral,
estética, etc.). Hegel por sua vez, foi o primeiro a associar o termo à corrente filosófica desde
Descartes, Spinoza até Leibniz, em oposição ao empirismo lockiano38.
É nesta segunda perspectiva que o termo racionalismo adquire sentido aqui,
justamente para caracterizar o papel da razão no sistema cartesiano em contraponto às
concepções de ciência e história no pensamento de Giambattista Vico.
No interior do sistema cartesiano a razão é identificada como uma faculdade própria
do homem, que o distingue dos outros animais. Trata-se do guia fundamental de todo o
38
Sobre esta discussão, consultar ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, pp. 821-822.
66
gênero humano, existente em todos os homens, mas nem sempre orientado da mesma maneira
entre estes.
Razão é o senso do qual somos dotados, pelo qual operamos os nossos juízos e
distinguimos as idéias verdadeiras e distintas das idéias construídas sobre falsas aparências.
Enfim, é a força que liberta a realização do conhecimento dos preconceitos, da mera
perpetuação da tradição e estabelece um caractere universal para a conduta humana em todas
as suas atividades.
Em “Discurso do Método” (1637) Descartes elucidou o seu entendimento de razão:
O poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, isto é, o que se denomina o
bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens. A diversidade das
nossas opiniões não provém do fato de uns serem mais racionais do que os outros,
mas tão-somente em razão de conduzirmos o nosso pensamento por diferentes
caminhos e não considerarmos as mesmas coisas. Pois não basta ter o espírito bom:
o essencial é aplicá-lo bem. (DESCARTES, 2002, p.21).
Mas, como educar o espírito humano? Diante desta questão Descartes hierarquizou o
exercício de pensar estabelecendo uma ordem de razões. Acompanhar esta ordem significa
capacitar o espírito para acatar ou descartar uma suposta “verdade”. Primeiramente foi
estabelecido o cogito, ou seja, a crença na auto-evidência do sujeito pensante como ponto de
partida para todas as outras evidências. O cogito toma o conhecimento da própria existência
como primeiro passo a ser dado no percurso do conhecimento das outras coisas39.
A partir do cogito Descartes distingue res cogitans de res extensa. De acordo com esta
bifurcação, há no homem uma dualidade entre “coisa pensante” e “coisa extensa”, ou
simplesmente, entre alma e corpo. Isto implica que o homem é intelecto e matéria40,
simultaneamente.
De acordo com o filósofo, a alma é mais fácil de ser conhecida que o próprio corpo,
considerando sua posição primeira “na ordem da descoberta analítica”. Neste caso, o bom uso
da razão é apresentado ao homem como veículo para desligar-se do mundo cotidiano e
transcender os limites do conhecimento meramente sensível (proporcionados por seu corpo)
para o plano sofisticado das abstrações.
Partindo do cogito e validando as idéias presentes no pensamento como possibilidade
única de conhecimento imediato, a ordem das razões cartesianas se pretende universal e
absoluta, capaz de descobrir todas as verdades possíveis. Nesta hierarquia os princípios
39
Cogito ergo sum quer dizer, “Penso, logo existo”. COTTINGHAM, John. Dicionário Descartes. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995, p.37.
40
Partindo da idéia de matéria Descartes propõe sua empreitada de reconstrução racional e completa do mundo
físico. Pode se perceber que na concepção de Descartes o homem deve estimular suas disponibilidades racionais
para compreender a característica definidora da matéria: a extensão ou substância corpórea. Idem, pp. 107-108.
67
Por outro lado, Deus representa as fronteiras do nosso conhecimento com os domínios
do incompreensível e do incognoscível, pois sua existência transcende a própria razão, não se
põe à prova. Para o cartesianismo Deus é ao mesmo tempo a fonte e o esgotamento da razão
humana.
2.4.3 Mecanicismo
O mecanicismo pode ser entendido como uma concepção filosófica do mundo com
repercussões na elaboração da teoria científica que consiste na explicação do movimento
espacial dos corpos. Esta corrente intelectual é uma marca registrada da Revolução Científica
do século XVII que caracterizou o nascimento da ciência moderna, e contou com Descartes
como um de seus ilustres propagadores.
A idéia do universo pensado como um sistema de corpos em movimento remonta a
antiga concepção filosófica do atomismo. O mecanicismo reforça a validade desta idéia
elaborando explicações que demonstram relações de determinação e causalidade no ciclo dos
fenômenos da natureza.
Para Descartes:
É tão natural, portanto, um relógio montado com estas ou aquelas engrenagens
informar a hora, quanto uma árvore nascida desta ou daquela semente produzir o
fruto adequado. Os homens experientes na lida com a maquinaria são capazes de
tomar uma máquina especial cuja função é conhecida, e, examinando uma de suas
partes, fazer com facilidade uma conjectura acerca do desenho das partes que não
podem ver. Da mesma maneira, tentei considerar os efeitos observáveis e partes dos
corpos naturais para recuperar as causas imperceptíveis e as partículas que as
produziram. (DESCARTES, 1995, p.103).
estudadas seguramente com base nos sentidos, mas a partir de abstrações. Baseado no estudo
abstrato destas partículas (sobretudo em seu movimento) introduziu elementos matemáticos
na física, desenvolvendo a área específica da “mecânica”.
Em sua obra, “O nascimento da ciência moderna na Europa”, Paolo Rossi declarou
que:
Na filosofia mecânica a realidade é referida a uma relação de corpos ou partículas
materiais em movimento e tal relação pode ser interpretada mediante as leis do
movimento descobertas pela estática e pela mecânica. A análise, portanto, é referida
a condições mais simples e é realizada por meio de um processo de abstração de
qualquer elemento sensível e qualitativo. (ROSSI, 2001, p.239).
2.4.4 Metafísica
humana e, ao mesmo tempo como já foi visto no subitem sobre o racionalismo cartesiano, o
limite da razão humana.
O projeto cartesiano de unificação do saber precisava ser justificado pela elaboração
de uma metafísica capaz de coadunar as premissas do conhecimento em uma base comum a
todas as searas da ciência. Neste sentido, do ponto de vista do conhecimento, a metafísica
preconizou uma mesma identidade em todos os campos da investigação científica sob o
propósito de unificar o saber imprimindo na ciência o caráter da universalidade.
As relações entre história e literatura são naturalmente muito mais anteriores ao século
XVII e não cabe aqui aprofundá-las. Mas, o complexo relacionamento entre o romance e a
história não encontra suas origens tão longe assim. J. M. Goulemont nos diz que em seu
começo, esta fusão em obras como “Roman d’Alexandre ou os romances bretões da Távola
Redonda” não nos permite distinguir nitidamente o romance e a história. Os elementos
romanescos pareciam ter efeito de relatos de fatos reais pertencentes a um passado específico.
Sobre o romance histórico pode-se dizer a grosso modo, que a história influencia a
elaboração dos escritos romanescos, assim como o contexto histórico do leitor também
influencia sua interpretação e leitura. No caso específico do século XVII, grande parte da
produção romanesca buscou atingir uma realidade histórica que a própria história não
conheceu. Mesmo contendo um pano de fundo histórico específico, as causas dos
acontecimentos eram narradas livremente, sem alguma preocupação factual, ou para com a
verdade histórica.
Segundo Goulemont:
No século XVIII, os teóricos não pararam de contrapor o romance à história: de um
lado, a verdade e os exemplos morais, de outro, a mentira e os efeitos corruptores: o
debate prosseguiria ao longo do século, entre adversários e defensores do romance,
entre historiadores e romancistas. (GOULEMONT, 1993, p. 694).
Contudo, ainda no século XVII esta idéia de história vai ser posta em xeque por
Descartes. Ora, a filosofia cartesiana não comporta a contingência no interior de um sistema
dedutivo e por isso negligenciou o estudo da história sob o argumento de sua incapacidade de
precisão. E por que a história estaria livre de qualquer possibilidade de se tornar uma ciência
sob o viés cartesiano?
Porque o conhecimento do passado é incerto, impreciso, portanto, duvidoso. A história
destoa completamente do modelo de demonstrações aritméticas e geométricas louvado por
Descartes. Em outras palavras, o passado não é evidente em si mesmo, portanto está fora do
campo de criação das verdades eternas e universais.
A narrativa histórica jamais poderia ser verdadeira, quer pelo ceticismo do historiador
com relação ao passado, quer pelas “pistas falsas” que ameaçam a autenticidade dos
documentos bem como dos testemunhos históricos.
Além destes problemas, Descartes acreditava que o sujeito que se atém demais aos
acontecimentos do passado acaba deixando de prestar atenção nos acontecimentos de seu
próprio tempo.
Neste sentido, o próprio Descartes denota sua visão de história:
72
Quando somos por demais curiosos pelo que se passou nos séculos passados,
ficamos em geral, muito ignorantes do que se faz no presente. Além disso, as fábulas
fazem imaginar como possíveis muitos acontecimentos que não o são, e mesmo as
histórias mais fiéis, quando não modificam ou aumentam o valor das coisas para
torná-las mais dignas de serem lidas, pelo menos omitem quase sempre as
circunstâncias mais baixas ou menos ilustres. Daí resulta que o resto não parece tal
qual é, e que os que regulam os seus costumes pelos exemplos que deles extraem
ficam sujeitos a cair nas extravagâncias dos paladinos dos nossos romances e a
conceber projetos que ultrapassam as suas forças. (DESCARTES, 2002, p. 24).
41
Este conceito pode ser encontrado em CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2000, pp. 198-199.
75
42
Conferir o Diagrama do sistema heliocêntrico de Copérnico no ANEXO E.
76
Para Bacon, a idéia de continuidade das experiências faz com que a ciência acumule
verdades e progrida. Descartes por seu turno, apoiado nas matemáticas, buscou unificar a
ciência a partir de demonstrações que comprovam a subordinação da natureza a leis. Neste
sentido, galgou seu método de investigação científica e filosófica como proposta de progresso
das ciências.
Sobre seu método, Descartes elucidou: “Entendo por método regras certas e fáceis,
graças às quais o que as observa exatamente não tomará nunca o falso por verdadeiro e
chegará, sem gastar esforço inutilmente, ao conhecimento de tudo aquilo que seja capaz”.
(DESCARTES, 2002, p.81).
É possível conceber que a idéia de progresso é intrínseca ao conhecimento científico
produzido na modernidade. O saber é progressivo porque é alicerçado sobre a idéia de
colaboração. Isto significa que a perfeição de nenhuma ciência se restringe à obra de um
indivíduo, mas ao esforço de sucessivas gerações de sábios.
No final do século XVII, a noção de progresso vai fermentar o debate filosófico que
ficou conhecido como a “querela entre os antigos e os modernos”. Esta noção de progresso
não surge de outro domínio senão da ciência moderna e vai ser o núcleo do confronto com a
ciência da Antigüidade. Os modernos acreditavam ter superado a filosofia natural de
Aristóteles, por exemplo.
No Século das Luzes este debate encontra a confirmação majoritária da superioridade
dos modernos. O enciclopedismo, corrente intelectual de ampla expressão do século XVIII
incorporou este sentimento de otimismo diante da aquisição e acumulação de conhecimentos
considerados “positivos”, no sentido de verdadeiros.
77
Para Diderot a Enciclopédia não era apenas uma compilação de saberes, mas uma
tentativa de mudar o modo de pensar. Foi responsável pela difusão do pensamento do grupo
parisiense de philosophes pelo resto da Europa. Por se tratar de um dicionário das ciências e
das artes oriundo de uma cultura técnica, o acesso às idéias parecia estar facilitado. Sua
proposta de mudança de pensamento parte da negação da autoridade da tradição diante da
segurança de verdade e de progresso que acompanha a ciência moderna desde seu
nascimento.
Sob a luz da citação acima é possível perceber que a idéia de progresso deixa
transbordar para a história uma “otimização” do devir histórico, ou seja, a noção de história
como a própria realização do progresso através do tempo.
Cassirer resolve ainda uma outra questão que geralmente tende a confundir o
progresso histórico com o futuro da humanidade, ou com a natureza da razão do século XVIII.
Neste aspecto, ele faz uma sábia distinção:
O progresso verdadeiro não diz respeito à razão, nem à humanidade enquanto tal,
mas unicamente à sua exteriorização, à sua revelação empírico-objetiva. E é
justamente esta revelação progressiva, esta caminhada da razão em direção à
transparência acabada que constitui o sentido verdadeiro do progresso histórico.
(CASSIRER apud LE GOFF, 1996, p.249).
Vico concordava com a idéia de uma natureza comum a todos os homens em voga na
filosofia setescentista, expressa na obra de grandes nomes daquele século como Bacon e
Spinoza. Ao discorrer sobre a “natureza comum das nações” na Ciência Nova, o que faz Vico
senão retomar este tema?
Todavia, é de extrema importância esclarecer um ponto muito polêmico de seu
pensamento. Sobre este problema Croce assegura que a “Scienza Nuova dìntorno alla comune
natura delle nazioni” é por vezes reconhecida equivocadamente como uma ciência da
filosofia da história, ou simplesmente como uma filosofia da história. O próprio Michelet em
sua tradução francesa interpretou-a como uma “philosophie de l´histoire”, “reduzindo a
complexidade da obra viquiana” no dizer de Croce.
A parte histórica da Ciência Nova não é uma narração filosófica da história da
humanidade, pois não trata de um processo linear e homogêneo desempenhado por todas as
nações e com um fim comum preestabelecido. Portanto, a obra-prima de Vico não pode ser
designada por “filosofia da história” no argumento croceano.
Além do mais, em sua Ciência Nova, Vico jamais mencionou especificamente uma
“ciência da história” isolada das outras formas de conhecimento humano. Por outro lado, é
inegável o fato de que no interior da obra se encontrem peças indispensáveis à elaboração de
uma idéia de história. Desde o princípio verum-factum ao curso do desenvolvimento
intelectual e cultural das nações, Vico filosofa acerca do homem levando em conta sua
historicidade.
Neste capítulo, alguns temas pontuais tratados por Vico na Ciência Nova foram
selecionados no sentido de viabilizar uma discussão acerca do conhecimento histórico.
Vico acredita que a sabedoria não é algo dado de imediato aos homens, antes pelo
contrário, é fruto de um esforço progressivo que os pretensos “sábios” devem exercitar a cada
instante. Para o autor, tampouco o sábio deve desviar-se de sua vida social, mas deve situar-se
80
Ainda neste ponto, Vico se mostra bastante atualizado com a idéia moderna do saber.
Ia de encontro ao argumento de que todo conhecimento produzido deveria ser consumido, de
modo a levar o homem a refletir com autonomia e desenvolver sua capacidade crítica de
apreender a realidade. O próprio conhecimento deveria estar suscetível à crítica, para que suas
ratificações implicassem não apenas no melhoramento do próprio saber, mas antes disso, da
vida privada e, sobretudo social dos homens.
Todavia, antes da crítica deveria ser ensinada a “tópica”, a verdadeira arte do engenho,
isto é, a faculdade de inventar. Kant chamou de “tópica transcendental” a teoria dos lugares
43
“Conhece-te a ti mesmo”.
81
44
Texto original: L´uomo in pena del peccato, è diviso dall´uomo con la lingua, con la mente, e col cuore; con
la lingua, che spesso non soccorre, e spesso tradisce l ´ídee, per le quali l´uomo vorrebbe e non può unirsi con
l´uomo; con la mente, per la varietà delle opinioni nate dalla diversità de` gusti de`sensi, ne´quali uom non
conviene con altr´uomo; e finalmente col cuore, per lo quale corroto, nemmeno l´uniformità de´vizi concilia
lúomo con l´uomo. Onde pruova, che la pena della nostra Corruzione si debba emendare con la Virtù, con la
Scienza, con l´Eloquenza: per le quali trè dose unicamente l´uomo sente lo stesso, che altr´uomo. E ciò per
quello riguarda l´ordine di studiare,; pruova, che siccome le lingue furono il più potente mezzo di fermare
fermare l´umana società; così che dalle lingue deono incominciarsi gli studi; poiche elle tutte s´attengono alla
memoria, nella quale vale mirabilmente la fanciullezza: létà de´fanctasia per ommuovere; nella quale la
fanciulleza è meravigliosa: quindi i fanciulli si devono trattenere nella lezion della Storia così favolosa, come
vera.
83
A partir do fragmento citado acima, se pode concluir que Vico entendeu por sabedoria
poética o modo de pensar característico dos primeiros homens, ou o início do
desenvolvimento da mente e da razão humanas. Os “fundadores das nações”, como diria o
próprio autor, eram ainda incapazes de formular conceitos e, portanto, se valiam da força da
imaginação para estruturar coletivamente as suas experiências.
A imaginação era a fonte dos “caratteri poetici” (caracteres poéticos) ou dos
“universali fantastici” (universais da imaginação) que compreendem justamente as imagens
significativas, provenientes de categorias sensíveis e concretas que mais tarde seriam
aperfeiçoadas e transformadas em “conceitos”. Nas origens das nações, os homens ignoravam
as causas naturais dos fenômenos com os quais se confrontavam. No entanto, dispunham da
força da imaginação para dar sentido ao mundo que os circulava. Assim, incapaz de conhecer
conceitualmente a natureza, o homem a imaginava.
As particularidades de uma determinada experiência eram generalizadas para as
demais, o que constitui o princípio da indução. A partir de um exemplo significativo, portador
de algum valor religioso ou moral, experiências “similares” eram integradas sob o mesmo
caráter. Segundo Vico, “o princípio é, portanto, uma reação sensível, uma expressão diante
dos fenômenos da natureza, à altura das qualidades primitivas dos homens.” (VICO APUD
GIRARD, 2001, p. 7).
45
Texto original: Tutte le storie delle nazioni gentili hanno avuto favolosi princìpi, e che appo i greci (da´quali
abbiamo tutto ciò ch´abbiamo dell´antichità gentilesche) i primi sappienti furon i poeti teologi, e la natura delle
cose che sono mai nate o fatte porta che sieno rozze le lor origini; tali e non altrimenti se deono stimare quelle
della sapienza poetica.
84
46
Texto original: Che le favole nel loro nascere furono narrazioni vere e severe (onde mythos, la favola, fu
diffinita “vera narratio”, come abbiamo sopra più volte detto); le quali nacquero dapprima per lo più sconce, e
perciò poi si resero improprie, quindi alterate, seguentemente inverisimili, appreso oscure, di là scandalose, ed
alla fine incredibili; che sono sette fonti della difficultà delle favole, i quali di leggieri si possono rincontrare in
tutto il secondo libro.
85
47
Texto original: Quella verità ch´intese Lodovico Castelvetro: che prima dovette nascere l´istoria , dopo la
poesia; perchè la storia è una semplize enonziazione del vero, ma la poesia è una imitazione di più. (...) E
l`uomo, per altro acutissimo, non ne se ppe far uso per rinvenire i veri principi della poesia, col combinarvi
questa pruova filosofica, che qui si pone per: Ch´essendo stati i poeti certamente innanzi agli storici volgari, la
prima storia debba essere poetica.
86
Aquela verdade que foi proposta por Ludovico Castelvetro: que primeiramente deve
ter nascido a história, e só depois a poesia, já que a história é uma simples
enunciação do verdadeiro, enquanto que a poesia é uma imitação a mais (...) Esse
homem, em outros aspectos agudíssimo, não soube fazer disso um uso adequado a
fim de descobrir os verdadeiros princípios da poesia, mediante a adequada
combinatória desta prova filosófica, que nós assim iremos expressar:
Que tendo existido os poetas certamente antes dos historiadores vulgares, a primeira
história deve ser a poética. (VICO, 2004, pp. 558-559)
Vico percebeu o valor histórico dos próprios caracteres poéticos, e acreditou que
independentemente de suas qualidades fantasiosas, as formas narrativas da poesia e do mito
eram tomadas por fatos concretos. Deste ponto de vista, os poemas homéricos têm valor
essencial de fontes históricas para a compreensão dos tempos obscuros, pois dão testemunho,
em forma mítica, de fatos históricos reais.
Não é à toa que Homero foi considerado por Vico o “primeiro historiador” da nação
grega, justamente por ter ele através de seus poemas constituído uma historiografia poética.
Para Vico, enfim, Homero não é um personagem real, antes e ainda mais que isso, é um
caractere poético. Isto porque a obra de Homero permeada de contradições e numerosas
incoerências não é fruto de seu talento particular, mas é a expressão de uma poesia popular
que foi desenvolvida e preservada pela memória dos gregos durante séculos.
Sob o juízo de Vico, a produção poética corresponde a uma obra coletiva, pertencente
a toda uma nação. Ela se manifesta menos por obras individuais, que por uma sabedoria capaz
de representar um mosaico de elementos culturais (como a de Homero) referentes a uma
nação: metafísica, lógica, política, cronologia, física, moral, astronomia, geografia, etc.
Por outro lado, a produção poética, a criação de metáforas, dos caracteres poéticos, e
das divindades é um desígnio da necessidade natural dos primeiros homens, no intuito de
coletivizar e estruturar suas experiências.
87
48
Texto original: Che i caratteri poetici, ne´quali consiste l´essenza delle favole, nacquero da necessità di
natura, incapace d´astrarne le forme e le proprietà da´subbietti; e, ´n conseguenza, dovett´essere maniera di
pensare d´intieri popoli, che fussero stati messi dentro tal necessità di natura, ch’è ne’ tempi della loro maggior
barbarie. Delle quali è eterna proprietà d’ ingrandir sempre l’ idee de’ particolari: di che vi ha un bel luogo
d’Aristotile ne’ Libri morali, ove riflette che gli uomini di corte idee d’ ogni particolare fan massime. Del qual
detto dev’ essere la ragione: perché la mente umana, la qual è indiffinita, essendo angustiata dalla robustezza
de’ sensi, non può altrimente celebrare la sua presso che divina natura che con la fantasia ingrandir essi
particolari. Onde forse, appresso i poeti greci egualmente e latini, le immagini come degli dei così degli eroi
compariscono sempre maggiori di quelle degli uomini.
49
Texto original: Essendo tali stati i caratteri poetici, di necessità le loro poetiche allegorie, come si è sopra
dimostro per tutta la Sapienza poetica, devon unicamente contenere significati istorici de’ primi tempi di Grecia.
88
3.2.2 A religião
50
Texto original: Terzo principal aspetto è uma storia d´umane idee, che come testé si è veduto, incominciarono
da idee divine con la contemplazione del cielo fatta con gli occhi del corpo: siccome nella scienza augurale si
disse da´romani “contemplari” l´osservare le parti del cielo donde venissero gli augùri o si osservassero gli
auspìici,, onde dovettero venir a´greci i primi divine o sublimi cose da contemplarsi”, che terminarono nelle
cose astratte metafisiche e mattematiche.
89
conhecimento que portamos através dos sentidos. Contemplar o céu, todavia, possibilitou toda
uma sistematização da vida, tomando por referência a posição dos astros, os relâmpagos e
trovões, que segundo o nosso autor eram associados a manifestações naturais de divindades, a
exemplo de “Giove”, Júpiter da mitologia romana, que como sabemos, equivale a Zeus na
mitologia grega.
O exercício de contemplar o céu primeiramente com os olhos e demais dispositivos
sensitivos do corpo, fez com que os primeiros homens relacionassem as forças da natureza às
divindades. Assim diz Vico terem feito os primeiros romanos, identificando a presença de
Júpiter no soar de estrondosos trovões e dos clarões repentinos dos relâmpagos.
As forças da natureza estavam para os fundadores das nações relacionadas a uma outra
natureza transcendental, ligada ao divino:
Júpiter fulmina e aterroriza os gigantes. E cada uma das nações gentílicas teve seu
Júpiter. Esta dignidade contém a história física que as fábulas nos preservaram: ter
havido o dilúvio universal sobre toda a terra. Esta mesma dignidade, com o seu
antecedente postulado, deve deixar bastante claro que, nos limites de tal longuíssimo
decurso de anos, as ímpias raças dos três filhos de Noé reduziram-se a um estado
ferino, e mediante ferina propagação esparramaram-se e dispersaram-se pela enorme
selva da terra, e, através de uma educação ferina provieram e resultaram gigantes ao
tempo em que pela vez primeira o céu expediu raios, depois do dilúvio. (VICO,
1979, p. 43)
Para Vico, a crença e a fé nos deuses possibilitou a formação de uma das mais
significantes e antigas instituições humanas em seu ponto de vista, a religião, “dado que as
nações todas começaram de um culto a uma divindade qualquer, os pais, no estágio das
famílias, devem ter sido peritos na adivinhação dos auspícios, sacerdotes que sacrificavam a
fim de obtê-los ou bem compreendê-los, e os reis que levavam as leis divinas às suas
famílias.” (VICO, 1979, p. 50)
Antes de discutir o tema da religião em Vico é interessante não deixar de considerar a
sua própria condição de homem religioso, ou, melhor, de cristão. Este traço de sua
personalidade, sem dúvida, veio a influenciar toda a sua idéia de história, com relação ao
próprio movimento do devir histórico associado à ação da Providência, bem como no que
remete às suas observações acerca da natureza das primeiras “nações gentílicas”, além de
discussões relativas à importância da religião para a vida em sociedade, etc..
Segundo Philippe Ariès, o advento do cristianismo contribuiu de modo até então
inédito para a aproximação entre o homem e a história. Antes do Cristianismo, durante toda a
Antigüidade clássica não era comum constatar o sentimento de preocupação existencial
perante a história. Esta é uma novidade trazida pelo próprio cristianismo, ressalta o autor
francês.
90
De acordo com esta observação de Ariès, não apenas Vico, mas toda a cultura
ocidental estaria contaminada pela idéia de uma “história da humanidade” que o cristianismo
retomou a partir do nascimento de Cristo. Ao distinguir a história profana da história sagrada
a partir do nascimento do Messias, o que representa de certo modo a humanização do divino,
ou mais que isso, a ação de Deus sobre a história dos homens, o cristianismo inaugurou um
calendário para a contagem do tempo da história da humanidade.
A partir de então, a preocupação de um sentido histórico para a existência humana
ganha ênfase. Vem à tona uma nova versão da história humana, que parte de uma origem
mítica anterior ao tempo dos homens, rumo ao momento de renovação da humanidade
marcado pelo nascimento de Cristo, e daí segue até os dias atuais para um determinado fim.
Este trajeto é algo que deve ser rememorado e comemorado (desde seu ponto de partida)
enquanto houver mundo, segundo a doutrina cristã.
O modelo de história apresentado por Vico na Ciência Nova está consoante com todas
estas preocupações voltadas ao sentido histórico da existência humana despertadas com o
advento do cristianismo. Ora, Vico aborda a segregação da história sagrada e da história
91
profana, elege cronologicamente os sete povos mais antigos da humanidade51, propõe, a seu
modo, o movimento da história associando-lhe à ação da Providência, e, sobretudo assegura
que a religião cristã é a religião do Deus verdadeiro.
Em uma abordagem mais ampla, Vico dispõe no coração da Ciência Nova a noção um
tanto contraditória da “história ideal eterna” que ao mesmo tempo enfatiza o aspecto empírico
da história (história profana) e recorre a um modelo histórico “ideal” (história sagrada).
Vico aponta dois momentos diferentes na história da humanidade: um que remete
diretamente ao fazer humano ou ao “mundo civil”, e outro que o autor chamou de “macro-
história” caracterizada pelas catástrofes (a Queda do homem do paraíso, o Dilúvio, a confusão
entre as línguas das nações52, etc.) que remetem à ação divina e, portanto não podem
constituir objeto de uma ciência.
Sobre a história sagrada, Vico defendeu:
A história sagrada é mais antiga do que as mais antigas histórias profanas até nós
chegadas, tanto mais porque trata de modo muito pormenorizado e bastante longo,
de mais de oitocentos anos, do estado natural sob os patriarcas, ou seja, do estágio
das famílias, a partir dos quais, como concordam todos os políticos, surgiram depois
os povos e as cidades. Desse estágio a história profana ou nada ou muito pouco e
bastante confusamente relata. (Vico, 1979, p.38).
Para Vico, o limite entre a história sagrada e a história profana representa o desenho da
linha fronteiriça entre o livre-arbítrio e a ação divina. O estatuto retórico da Ciência Nova
possibilita a abordagem destes dois componentes históricos: o empírico e o ideal. Nesta obra,
Vico traça o ciclo eterno de uma história ideal no interior do qual se orientam os cursos das
nações seguindo necessariamente as etapas de seu nascimento, progresso, decadência e fim.
O estabelecimento desta ordem (que é a história ideal eterna) permite distinguir as
verdadeiras diferenças históricas através do estudo comparado dos cursos percorridos pelas
nações. Partindo daí se pode concluir que o esquema de Vico não é propriamente um tratado
de história universal, pois ao mesmo tempo em que se pretende universal, respeita os ritmos
diferenciados do curso das nações. Neste sentido, as particularidades históricas de cada
contexto cronológico, geográfico e cultural são valorizadas dentro desta ordem histórica
estabelecida. Disse Vico, “a ordem das idéias deve proceder segundo a ordem das coisas”.
(VICO, 1979, p. 48).
51
Segundo Vico, os sete povos mais antigos da humanidade são: hebreus, caldeus, celtas, fenícios, egípcios,
gregos e romanos. Este dado pode ser conferido na “Tavola Cronologica” que Vico apresentou no início da
terceira edição da Ciência Nova. A título de consulta, esta “Tábua Cronológica” está nos anexos deste trabalho
de dissertação.
52
Lembre-se aqui da narração bíblica da Torre de Babel.
92
Seguramente a busca de Vico por um sentido histórico para a humanidade, de fato, não
constitui nenhuma novidade. Neste aspecto, Vico foi antecedido por muitos, para efeito de
vislumbre vale citar aqui a obra considerada como a primeira filosofia da história já escrita:
“A cidade de Deus”, de Santo Agostinho. No entanto, dentre as diferenças que separam Vico
de Santo Agostinho podem-se destacar duas: em primeiro lugar, a Ciência Nova não é uma
obra de filosofia da história e em segundo plano, as preocupações que levaram ambos a
refletir sobre os mesmos temas são distintas.
Sobre a primeira diferença, pode-se argumentar que por mais que a Ciência Nova seja
um modelo interpretativo da história, Vico não preestabelece um fim para a história, embora
aponte para uma possibilidade de sentidos. E por isso, acreditamos que sua obra não consiste
em uma filosofia da história, pois ele não considera em sua Ciência Nova a finalização ou o
acabamento da história.
. O movimento da história proposto por Vico consiste em olhar para trás no intuito de
construir uma identidade cultural, sobretudo para os próprios italianos. Aí, a preocupação
com a constituição do mundo civil e, portanto, com o passado, parece ser uma preocupação
anterior a de olhar para frente no sentido de prever o ponto final da história.
Em contrapartida, ao tempo de Santo Agostinho, este fim era considerado com muita
certeza. Não se pode esquecer que quando escreveu A cidade de Deus, esteve preocupado em
desconstruir a idéia de que o cristianismo estaria atrelado às causas do fim de Roma. Segundo
Ariès, neste sentido, Santo Agostinho apresentou o seu próprio modelo interpretativo da
história em que o mundo dos homens fatalmente caminhava para seu final, independente do
nascimento do mundo cristão, ou da Queda do Império Romano. Preocupou-se ainda em
rebater o argumento que o fim de Roma seria o fim do mundo e, subseqüentemente da Igreja
representante de Cristo. Enfim, as razões principais que impulsionaram a escrita de sua obra-
prima estavam arraigadas à tradição romana e à sua perspectiva milenarista.
Vico, por sua vez, escreveu a Ciência Nova em aproximadamente duas décadas, tendo
praticamente reescrito a obra em sua terceira e última versão, a de 1745. Àquela altura, Vico
estava preocupado com a produção do conhecimento de seu tempo. Embora fosse um homem
de muita religiosidade, sua obra-prima parecia estar mais empenhada à questão de
fundamentar uma ciência do mundo das coisas humanas mesmo que em seu modelo
interpretativo da história, a ordem de uma “história ideal eterna”, ocupe um lugar central na
proposta de um curso histórico das nações.
No entanto, o valor histórico que Vico atribuiu à religião enquanto elemento de
agregação dos primeiros homens em torno de um formato de vida social, não se restringe ao
93
fato de ter ele sido um homem religioso. Vico encontrou na religião o fundamento social e
político que possibilitou a formação das “primeiras repúblicas”, para usar suas próprias
palavras. Em Vico, as religiões são, com efeito, a garantia de sociabilidade dos homens e da
ordem do “mundo civil”. Pois a religião reúne os seus adeptos em torno de um mesmo fim, a
adoração dos deuses, ao mesmo tempo em que os sensibiliza no sentido de uma convivência
pacífica e de proteção a um ou mais deuses e seus respectivos adoradores.
A religião tem para Vico conseqüências políticas e sociais muito relevantes:
Onde quer que os povos mediante as armas se enfureceram, de modo a que não
tenham mais vigência ali as leis humanas, o único poderoso meio de os serenar é a
religião. Esta dignidade estabelece que no estado sem estatuto de lei a providência
divina encaminhou os homens ferozes e violentos a encaminharem-se para a
humanização e a ela disporem as nações, neles despertando uma idéia confusa da
divindade, começaram a dispor-se em uma certa ordem. Tal princípio das coisas,
entre “ferinos e violentos” não soube ver Tomas Hobbes, pois extraviou-se a buscar-
lhes os princípios com o “acaso” de seu Epicuro. Por isso mesmo, por magnânimo
que fosse o seu esforço, com proporcional e infeliz evento, acreditou haver
enriquecido a filosofia grega dessa considerável parte, que certamente lhe faltou
(como refere Jorge Pasch, De eruditis huius saeculi) de considerar o homem em toda
a sociedade do gênero humano. Hobbes nem sequer o teria pensado de forma
diversa, se a religião cristã não lhe houvesse subministrado motivo, já que ela exige
para todos não a justiça, mas a caridade. E assim começamos por refutar Políbio em
sua alegação falsa: se no mundo existissem os filósofos, as religiões não se fariam
necessárias. Pois, na verdade, se não existissem as repúblicas, que não podem ter
nascido sem as religiões, não existiriam filósofos no mundo. (VICO, 1979, pp. 40-
41)
As religiões dos homens primitivos são enxergadas por Vico como fator crucial para o
fim do “nomadismo bestial”. Sobre estas religiões que chamou de “pagãs”, Vico elevou as
vantagens da religião do povo hebreu legada pela Cristandade, “e que se caracteriza por uma
relação direta e privilegiada com o verdadeiro Deus”. (VICO apud GIRARD, 2001, p.48)
Para Vico, “a religião hebraica foi fundada pelo verdadeiro Deus com proibição
expressa das adivinhações, baseadas nas quais surgiram todas as nações gentílicas. Esta
proposição constitui uma das principais razões de se dividir o mundo antigo das nações entre
hebreus e Gentios.” (VICO, 1979, p.39)
Apesar disto, Vico não considerou as religiões primitivas menos fecundas que a
religião hebraica e, nem aparenta ter sido este o seu objetivo ao estudá-las. Ao contrário, Vico
as identificou por construções de “poetas teólogos” que diante da incapacidade de explicar
racionalmente suas experiências, imaginavam uma sociedade naturalmente constituída de
deuses. É o que Vico denominou de uma “teogonia natural”, isto é, o conjunto de divindades
cujo culto forma o sistema religioso de um povo politeísta.
A discussão da religião em Vico atravessa toda sua noção de história expressa na
Ciência Nova, uma vez que tal instituição é apontada como um fato que propiciou a
94
constituição das nações. Não obstante, a religião sob a abordagem viquiana, é compreendida
historicamente, como substrato do desenvolvimento do espírito humano, ou mais
propriamente como uma de suas expressões mais elevadas, capaz de expor a imaginação
coletiva das experiências humanas.
Na Ciência Nova, Vico através do estudo do sentimento religioso (e suas modificações
no curso do devir) parece apontar as origens da vida social humana, ao mesmo tempo em que
vislumbra a natureza das primeiras nações. Talvez a ênfase de Vico no tema da religião não
tenha deixado de ser em parte, uma crítica ao tempo em que viveu, ou a “idade dos homens”.
O que pode ser sintomático em sua nostalgia pela crença e fé de outrora, em
contraponto a postura anticlerical dos filósofos franceses de grande eco nos Setecentos. Em
suas palavras, Vico denunciou, “o excesso de reflexão afrouxa os laços religiosos, portanto
sociais, e os povos [adquirem o hábito] de cada qual só pensar em seu interesse particular [...]
e, em meio à multidão dos corpos, [vivem] em solidão absoluta mentes e vontades”. (VICO
apud HUISMAN, 2001, p. 994).
Sem dúvida, o deslocamento da fé em Deus e do sentimento religioso para a
racionalidade humana que estampou o pensamento de muitos dos iluministas franceses
(Voltaire, Bayle, Hobbes, etc.) foi algo que produziu certo mal estar em Vico. Por outro lado,
o avanço da ciência moderna e das “novas idéias” que sopravam da França para a Itália
repercutiram em sua obra aqui analisada, especialmente em seu modo de compreender a
história enquanto conhecimento. O filósofo não era, e estava muito distante de ser um
reprovador da fé na razão humana. Muito ao contrário, em vez de escolher entre Deus e o
homem, Vico os uniu em seu esquema.
Disse Vico:
Eis o homem em si próprio, no modo próprio de ser homem, isto é, em sua mente e
em sua alma, ou então, como intelecto e vontade. A sabedoria deve ultimar o
homem, nestas suas partes constitutivas, vindo a segunda logo depois da primeira, a
fim de que a partir da mente iluminada mediante a cognição das coisas mais altas a
alma se resolva pela eleição das melhores coisas. Neste universo, as coisas mais
altas são as que intencionam para esse argumento a respeito de Deus. Já as coisas
melhores são as que concernem ao bem de todo o gênero humano. “Divinas” se
chamam as primeiras; “humanas coisas”, as últimas. A verdadeira sapiência deve,
pois, ensinar a cognição das coisas divinas, para conduzir ao sumo bem as coisas
humanas. (VICO, 1979, p. 69)
Ao passo que desenvolve sua razão, o homem se torna apto a meditar sobre coisas
mais altas, mais complexas e este refinamento intelectual deve estar atrelado às humanas
coisas, isto é, “ao bem de todo o gênero humano”. Neste sentido, Vico colocou o
95
desenvolvimento das idéias humanas em um continuum que vai desde a consciência poética à
consciência prosaica, ou reflexiva.
primeira do gênero humano a partir de caracteres poéticos. E aí ele constrói a sua idéia de
barbárie dos sentidos, onde a debilidade da razão é compensada pelo poder da criatividade,
por uma forma de conhecimento fantástico da qual eram dotados os primeiros homens.
Segundo Vico, “tanto mais robusta a fantasia, quanto mais débil o raciocínio” (Vico, 1979,
p.29).
As manifestações da força da natureza associadas à ira dos deuses originou certo
temor que levou os primeiros homens a suprimir seus instintos e a criar as famílias, primeiras
ordens civis. Estas famílias eram patriarcais e segundo Vico estavam voltadas para o temor de
Deus. É possível que aqui Vico tenha pensado na história da primeira forma de governo dos
povos hebreus (patriarcal), considerados os mais antigos, de acordo com sua tábua
cronológica disposta na Ciência Nova.
A idade heróica é costumeiramente apresentada a partir da constituição de um governo
oligárquico formado por alianças estabelecidas entre os chefes familiares. Estas eram seladas
com o objetivo de conter ataques e invasões externas, bem como de fortalecer a harmonia
interna das comunidades.
Algumas virtudes heróicas tais quais, a prudência, a força e a piedade eram
disseminadas pelos grupos hegemônicos da aristocracia e refletem os valores morais desta
idade. Todavia, a atmosfera da idade heróica permanecia violenta, cruel e espantosa, segundo
Vico. A fantasia era prevalecente sobre a razão de modo que a realidade não se distinguia da
imaginação. Para ilustrar este período Vico recorre aos poemas homéricos, destacando a
presença da mitologia na vida cotidiana dos gregos.
Diferente da sabedoria heróica, segundo Vico, a sabedoria poética se define como uma
força que consente aos homens ultrapassar a sua natureza corpórea e celebrar a natureza
“semi-divina” do espírito. Vico identificou na idade dos heróis um “princípio motor” de
desenvolvimento do espírito humano que tem uma forte inspiração da Providência, neste
sentido.
A idade dos homens é o momento em que a razão atinge o ápice de seu
desenvolvimento. É marcada pelo surgimento da língua vulgar, isto é, tempo em que as idéias
humanas podem ser raciocinadas e traduzidas por palavras. Para Vico, a terceira idade
humana, apresentou a última forma de governo em que finalmente se firmaram as nações: a
monarquia.
A idade humana é o tempo dos filósofos, da ciência e, portanto, de uma sabedoria
reflexiva, derivada de uma consciência prosaica. A seu modo, os filósofos concebiam o
direito com uma linguagem arrojada e ao mesmo tempo alcançável a todos. Acreditavam os
97
filósofos da idade humana, em um direito natural abstrato e em uma forma de governo que
haveria sido a mesma dos primeiros tempos: a monarquia. Vico disse, “é tradição popular que
a forma de governo no mundo tenha sido a monarquia.” (VICO, 1979, p. 51). Comumente, a
sabedoria dos primeiros reis era comparada à sabedoria dos filósofos.
Neste sentido, Vico prosseguiu:
Vulgar tradição é também que os primeiros reis foram sábios, pelo que Platão com
vão desejo prognosticava estes antiqüíssimos tempos nos quais os filósofos
reinavam ou os reis filosofavam. Todos estes aforismos demonstram que nas pessoas
dos primeiros pais estiveram reunidos sabedoria, sacerdócio e reino. E que o reinado
e o sacerdócio estavam dependentes da sabedoria, uma sabedoria que não é
recôndita dos filósofos, mas a vulgar dos legisladores. Por isso mesmo, a seguir, em
todas as nações os sacerdotes foram coroados. (VICO, 1979, pp. 50-51).
Sob a luz deste aforismo, é possível perceber a distinção que Vico operou entre a
sabedoria dos primeiros Reis e a sabedoria “recôndita dos filósofos”. Neste sentido, mais uma
vez, o autor historiciza a sabedoria humana e contextualiza suas expressões. Novamente, Vico
demonstra o movimento de seu modelo interpretativo da história, rompendo com noções de
uma história pensada sob o propósito de utilizar o passado para confirmar a superioridade do
tempo presente, em voga no Iluminismo.
Vico acrescentou53: “(...) sobre a fantasia que os primeiros Reis tivessem sido
monarcas, tal qual são os presentes, não haveriam permitido se formarem as Repúblicas, com
a fraude e a força, como se é então imaginado, não haveriam permitido começar as nações.”
(VICO, 1728, p. 248).
A questão da sabedoria reflexiva própria da idade humana é um problema-chave para
se discutir as relações entre Vico e o Iluminismo e entre a sua obra da maturidade – a Ciência
Nova - e a história. Ao refletir sobre a sapienza riposta (sabedoria reflexiva), o napolitano
encontra o ponto de chegada da caminhada de um mundo infante para um mundo adulto.
Naturalmente, deste ponto de vista, o autor ressalta inúmeras vantagens trazidas na esteira do
aperfeiçoamento da racionalidade humana, desde que orientada pela “Mão Oculta” da
história, ou seja, pela Providência.
Por outro lado, a razão desenvolvida a revelia da inspiração divina e unicamente
norteada pelo livre-arbítrio humano, pode desviar as nações de seus cursos e prejudicar o
funcionamento do mundo civil. Em sua leitura do posicionamento cético e anticlerical dos
filósofos oitocentistas, Vico pôde reconhecer uma ameaça de declínio anunciada pelo triunfo
dos caracteres racionais de conhecimento sobre as formas poéticas de sabedoria. A razão
53
Texto original: (...) sulla fantasia che i primi Rè fussero stati Monarchi, quali sono i presenti, non abbiano
affato potuto incominciare le Republiche, anzi con la froda, e con la forza, come si è fin ora immaginato, non
abbiano potuto affatto cominciare le nazioni.
98
a) A língua e o direito
Vico disse certa vez que “o homem não é propriamente nada mais que espírito, corpo e
língua, e a língua está posicionada no centro entre o espírito e o corpo”. (VICO apud
GIRARD, 2001, p. 29). A posição intermediária entre o corpo e o espírito dá a linguagem um
papel essencial no mundo humano, pois simboliza a passagem do corpo ao espírito, ou seja,
corresponde a realização da natureza social do homem.
Cada etapa do curso das nações é, ao mesmo tempo, uma etapa de desenvolvimento da
linguagem:
Ora, para ingressarmos na dificilíssima questão da formação destas três espécies seja
de línguas seja de letras, impõe-se-nos estabelecermos este princípio: que, assim
como num mesmo tempo começaram os deuses, os heróis e os homens – já que
também eram homens aqueles que ficcionalmente imaginaram os deuses,
acreditando, contemporaneamente, sua própria natureza heróica mesclada da
natureza dos deuses e da natureza dos homens – assim, a um só e mesmo tempo,
iniciaram-se as três referidas línguas (acompanhando-as, obviamente, em igual
passo, as letras). Mas com essas relevantíssimas três diferenças: que a língua dos
deuses foi quase muda, e pouquíssimo articulada; a dos heróis, igualmente mesclada
de articulação e de mudez, e, por vias de conseqüência, mesclada de falares vulgares
e dos caracteres heróicos, com os quais os heróis escreviam, aos quais Homero
denomina sémata; a língua dos homens, quase toda articulada e muito pouco muda,
dado que não há língua vulgar de tal forma copiosa, em que não haja mais coisas do
que palavras. (VICO, 1979, p. 109)
99
A primeira língua, a divina, é mental, sem fala, exprime a sabedoria poética dos
primeiros homens. Como estes ainda não podiam articular palavras, se comunicavam por
sinais, gestos, com o corpo. O mesmo procedimento é válido para atribuir significados aos
objetos, o que aproxima os fundadores das nações das crianças.
Esta língua divina concebe imagens de deuses que como vimos, permite estruturar a
experiência dos homens, além de possibilitá-los construir as fábulas e a mitologia. Os
caracteres divinos se constituem através de imagens, que são os hieróglifos, ou “expressões
corporais e imaginadas das emoções humanas”.
A linguagem heróica, por sua vez, não abandona as imagens e se utiliza da rudeza das
metáforas poéticas para fazer menção a posição política dos heróis e seus direitos de
propriedade. Não é à toa que há todo um simbolismo na utilização de emblemas e escudos. Os
caracteres heróicos celebram heróis como Aquiles ou Hércules, como se pode constatar em
consulta aos poemas homéricos.
Enfim, a última língua é a humana, onde a linguagem já se encontra articulada.
Paulatinamente, a poesia cede lugar a prosa e isto se reflete em todo o desenvolvimento
político e civil da idade humana. Trata-se de uma linguagem vulgar, uma vez que é capaz de
reunir o povo inteiro no seio de uma nação.
Ao realizar esta ampla análise das três línguas, Vico parece ter encontrado um fio
condutor do desenvolvimento da racionalidade humana, sobretudo na primeira edição da
Ciência Nova. Buscou uma espécie de “etimologia universal”, o que pode ser interpretado
como um tronco comum a todas as línguas existentes.
A respeito disso, alegou:
Foi por isso, que nós na primeira edição da presente obra, cogitamos uma Idéia de
um dicionário mental que nos subministrasse as significações a todas as línguas
diversamente articuladas, reduzindo-se todas as determinadas unidades de idéias,
em sua substância, unidades essas que com vários enfoques diversos dos povos,
resultaram em vários vocábulos distintos. Disto ainda agora fazemos uso ao
estabelecer a atual [versão] da Ciência. (VICO, 1979, p. 108)
54
Apesar do fato que as fontes utilizadas por Vico para pensar esta natureza presente em todos os homens,
basicamente se restrinja aos povos hebreus, gregos e latinos, Vico leva em conta a idéia de ritmos diferenciados
que cada nação específica processou seu desenvolvimento racional. Isto o poupou de comparações valorativas
entre os povos ou entre os estágios de desenvolvimento das cognições humanas. (n. d. a. )
100
Na idade heróica, o direito procede por duelos, guerras, as quais Vico se refere por
“direito das armas” ou por “guerras justas”. Vico compreende as leis nesse momento como
uma expressão das contendas heróicas presentes nas repúblicas aristocráticas. Neste sentido,
observou que, “os fracos querem as leis. Os poderosos lhas recusam. Os ambiciosos, para
granjear popularidade, promovem-nas. Os príncipes, para igualar os poderosos com os débeis,
protegem-nas.” (VICO, 1979, p. 55)
Por conseguinte, o direito é refletido por filósofos e busca se estender a todos os
homens através da linguagem vulgar. Compreendendo o direito como evolução, Vico faz
lembrar Kant, que mais tarde, desenvolveria sua “História universal de um ponto de vista
cosmopolita”, sob esta mesma perspectiva de movimento.
Em Kant, a violência dos tempos bárbaros criou a necessidade de estabelecimento de
uma ordem sob a qual os homens pudessem viver pacificamente. Esta necessidade remonta ao
projeto da própria natureza para que o desenvolvimento das disposições racionais humanas
capacite o homem a administrar o direito universalmente. Já em Vico, as lutas heróicas
representam o meio pelo qual a Providência planejou a realização da natureza social do
homem.
designar a divindade providente que rege o destino dos homens e, para qualificar a ação
positiva da Providência sobre o mundo dos homens.
Identifica em ambas as acepções um significado em comum: a idéia que o homem tem
de Deus. Primeiro, o homem percebe Deus na forma de mito (idade dos deuses e dos heróis),
para depois percebê-lo de forma raciocinada, isto é, filosoficamente (idade dos homens).
Segundo Vico, as antigas nações gentílicas contemplavam Deus a partir do
reconhecimento de seu atributo providente. O presságio e a adivinhação consideradas as
formas primeiras de conhecer, foram também as primeiras formas humanas de conceber Deus.
Sem estas formas primitivas de conhecimento não se constituiria no homem a sabedoria e
nem a moralidade que no juízo de Vico são derivadas do temor e da reverência aos poderes
superiores que governam as coisas humanas. Vico define a Providência por um “espírito
eterno e infinito” que por sua função é “arquiteta do mundo das nações”.
Reconhece nela a ordem que permite amarrar os interesses particulares dos homens
(livre-arbítrio) a um fim universal que diz respeito à vida social e ao desenvolvimento do
direito natural:
O direito natural das gentes proveio dos costumes das nações, entre si conformes no
referente a um senso comum humano, sem nenhuma reflexão e sem tomar como
exemplo uma nação a uma outra. Esta dignidade, com a afirmação de Dião já
referida, estabelece que a Providência é a ordenadora do direito natural das gentes,
porque ela é a rainha dos negócios dos homens. (VICO, 1979, p. 61).
Na conclusão da Ciência Nova, Vico discorre sobre uma “eterna república natural
ótima em cada uma de suas espécies, ordenada pela divina providência55”:
Encerremos, pois, com Platão a presente obra. Apresenta ele uma quarta espécie de
república, na qual os homens honestos e de bem fossem os senhores supremos: o
que equivaleria a uma verdadeira aristocracia natural. Tal república, qual a
compreendeu Platão, assim conduziu a Providência desde os albores das nações,
ordenando que os homens de estaturas gigantescas, mais fortes, que deviam vagar
pelas alturas das montanhas, como fazem as feras que são de mais robusta natureza,
aos primeiros raios depois do dilúvio universal, de si mesmos aterrorizados por entre
as cavernas dos montes, se submetessem a uma força superior, que imaginariam ser
Zeus. E, completamente assustados, conquanto fossem só orgulho e ferocidade, se
humilhassem diante de uma divindade. Aliás, em uma tal ordem de coisas humanas,
não se pode pretender tenha sido adotado pela providência divina outra decisão para
pôr cobro ao seu natural nomadismo por entre a grande selva da terra, com o fim de
ali introduzir a ordem das coisas civis. (VICO, 2004, p. 697)
No entanto, a Providência não age em senso próprio. Ela pode ser pensada como uma
ordem universal dentro da qual flui o curso das nações. Esta ordem constitui, portanto um
quadro regulador do curso das nações, enquanto que a liberdade humana constitui seu
princípio motor.
Assim, Vico afirma que em alguns momentos, por exemplo, ao longo das lutas
heróicas, a Providência não interveio sobre as escolhas ou os costumes humanos, pois já
estava estabelecida para mais adiante uma ordem de desenvolvimento da religião cristã.
O lugar da Providência em Vico é crucial para a compreensão de seu pensamento. É a
“Providenza” a força determinante de uma ordem de desenvolvimento humano, que exige
racionalidade imanente no curso da história, que encoleira a liberdade do homem ao papel de
verdadeiro criador.
Todavia, a ação da Providência ou da “Razão Imanente”, sobre a história humana não
representa um movimento contínuo linear, tampouco de progresso irreversível. O modelo
viquiano propõe um movimento cíclico para o curso das nações, o que Vico definiu por corso
(curso) e ricorso (recurso).
55
Texto original: Conchiudiamo adunque quest’opera com Platone, il quale fa uma quarta spezie di repubblica,
nella quale gli uomini onesti e dabbene fussero supremi signori: che sarebbe la vera aristocrazia naturale. Tal
reppublica, la qual intese Platone, così condusse la provvedenza da’ primi incominciamenti della nazioni,
ordinando che gli uomini di gigantesche stature, più forti, che dovevano divagare per l’alture de’ monti, come
fanno le fiere che sono di più forti nature, eglino, a’ primi fulmini dopo l’universale diluvio, da essi atterrandosi
per entro le grotte de’ monti, s’assoggettissero ad una forza superiore, ch’ imaginarono Giove, e, tutti stupore
quanto erano tutti orgolio e fierezza, essi s’umiliassero ad una divintà: ché, ‘n tale ordine di cose umane, non si
può intender altro consiglio essere stato adoperato dalla provvedenza divina per fermargli dal loro bestial errore
entro la gran selva della terra, affine d’introdurvi l’ordine delle cose umane civili.
104
Na percepção de Vico, o fluxo histórico das nações é impulsionado por uma dialética
oscilante entre o curso e o recurso da história. O curso é a ordem universal de
desenvolvimento da humanidade que atribui uma natureza comum às nações. Ao estabelecer a
idéia de curso, Vico pôde ordenar o desenvolvimento da razão humana a partir da incursão
das nações em três idades diferentes: divina, heróica e humana. Estas idades se relacionam
aos estágios percorridos pela história profana, ou seja, são inerentes ao desenvolvimento do
mundo civil.
Naturalmente, em Vico a idéia do “corso” apresentada como uma ordem universal de
desenvolvimento do mundo civil remete à ação da Providência divina. Consiste em um
conceito pelo qual Vico trilha o progresso das nações que seguem em um mesmo sentido,
determinado pela “Razão Imanente” (ou Providência).
Embora o corso remonte a um plano divino para a história profana, isto é, o percurso
obrigatório que todas as nações realizam rumo ao desenvolvimento da sociabilidade humana,
Vico apresenta uma particularidade ao refletir este conceito. Este trajeto não é uniforme ou
linear. Ou seja, as nações vivem as três idades humanas em ritmos diferenciados e cada uma
delas tem suas próprias características culturais relativas à língua, religião, leis, organização
social e política, etc.
Neste sentido, o desenvolvimento das nações é multidirecional ou apresenta uma
heterogeneidade de sentidos, uma vez que não é uniforme. As particularidades culturais
também levam a pensar a multiplicidade cultural das nações, de modo que cada processo
possa ser interpretado como uma progressão específica no interior do desenrolar de uma
ordem universal. O corso, todavia, pode ser interrompido pelo “ricorso”. Ao contrário do que
se pensa recorrentemente, a idéia de recurso não é a antítese da idéia de curso. É seu
complemento, pois se considerarmos o curso como um fenômeno, o recurso seria um
epifenômeno.
Em um estágio de recurso não é propriamente a nação que está imersa em uma
situação de degenerescência, mas sim os elementos constituintes de sua cultura. Em outras
palavras, a organicidade destes é afetada, ou estancada. Vico acreditava que a Idade Média,
por exemplo, foi um momento de recurso na história das nações européias, em que a
racionalidade humana foi ofuscada pela obscuridade do dogma e do hermetismo religioso.
Como já foi discutido antes, também enxergou no conhecimento de seu tempo uma
105
Em primeiro lugar, para produzir reflexões acerca da idéia de história apresentada por
Vico em sua Ciência Nova, seria interessante depará-la com a noção hegemônica de história
do final do século XVII para o início do século XVIII. Em seguida, a idéia viquiana de
história será confrontada com os dois pilares da ciência iluminista: o empirismo e o
racionalismo cartesiano. Vamos ao primeiro ponto.
No segundo capítulo, vimos que o gênero literário do romance se confundiu com a
história no século XVII. Boa parte da produção romanesca do período em questão buscou
alcançar uma realidade histórica que não podia ser atingida pela história.
Neste sentido, Goulemot acrescenta que:
São os romances que pertencem à série de histórias secretas, como os de Caumont
de La Force (Histoire secrette de Marie de Bourgone (1694), Histoire secrette de
Henri IV, roy de Castille (1695)...), que querem explicar pelos impulsos do coração
e pela libertinagem, as revoluções por que passaram os governos. (GOULEMOT,
1993, p.964)
106
Independente dos fins a que busca atender o romance histórico, se tende ao mero
divertimento de seus leitores, ou se apresenta alguma intenção moral, é quase sempre certo
que este ocasiona uma reflexão sobre a história e sobre suas relações com o destino dos
homens. Neste caso, a ficção ou a identificação entre os heróis romanescos e os
acontecimentos reais da história são colocados em plano secundário.
Ora, ao esboçar uma conjuntura histórica específica, a ficção é emoldurada pela
realidade de um quadro geral referente a um dado período. Daí, os destinos individuais de
personagens fictícias, ou de situações anedóticas, ganham uma fundamentação histórica. De
um modo geral, o romance histórico almeja acessar a memória cultural de seus leitores e
propiciar a sensação de alguma familiaridade ou de identificação com o pano de fundo
histórico da trama.
A idéia de uma “memória cultural” também pode ser encontrada na forma com que
Vico buscava apreender os modos de pensar através dos caracteres poéticos. Os poemas
homéricos são estudados por Vico não para distinguir o que é real do que é ficção, mais para
reconstituir toda uma tradição da sabedoria poética que narrava seus acontecimentos através
de fábulas fantásticas, expressava seus valores morais através da mitologia, etc.
A poesia está para Vico assim como o romance está para a historiografia do séc. XVII:
ambos são tomados por verdadeiros testemunhos históricos, independentemente de seus
componentes fantásticos ou fictícios. Neste sentido, Vico perscrutou os princípios da história
Romana narrada por Tito Lívio, Virgílio e Cícero não para impor seu estatuto de verdade
sobre o deles, mas para a partir do contato com estas fontes construir uma identidade cultural
para o próprio povo italiano.
Ao lidar com a obra destes historiadores, Vico buscou reconstituir a história das
instituições italianas, buscando alcançar as origens do direito romano, da religião Católica, do
desenvolvimento da língua latina, etc.
Ao findar sua Autobiografia, Vico anunciou56:
Com esta obra, Vico com a glória da Religião Católica dá a vantagem à nossa Itália
de não invejar a Holanda, Inglaterra e a Germânia Protestante e os três Princípios
desta Ciência, e que nesta nossa idade, nos braços da verdadeira Igreja se
descobriram os Princípios de toda a humana, e Divina Erudição Gentílica. (VICO,
1728, p. 251)
56
Con la qual opera il Vico com gloria delle Cattolica Religione produce il vantaggio alla nostra Italia di non
invidiare all’Olanda, Inghilterra, e la Germania Protestante i loro tre Principi di questa scienza, e che in questa
nostra età nel grembo della vera Chiesa si scuoprissero i Principi di tutta l’umana, e Divina Erudizione
Gentilesca.
107
No caso específico de sua Autobiografia, vale salientar, que Vico recorre à tradição
cultural italiana no intuito de viabilizar um projeto de reforma educacional para a Itália, que
fosse mais flexível ao emprego de novos métodos de estudo. Na verdade, a idéia de escrever a
Autobiografia não surgiu de Vico.
Sobre esta polêmica, Peter Burke relata que:
No entanto, a idéia de escrever a autobiografia não foi dele mesmo. A obra foi na
realidade encomendada por um certo Conde Porcía, um soldado de pretensões
literárias que estava a serviço da República de Veneza, e fazia parte de um projeto
geral de reunir as autobiografias intelectuais de homens eminentes, a fim de
documentar seus métodos de estudo e os obstáculos que haviam encontrado em seus
caminhos, e, assim, poder reformar o sistema educacional e colocá-lo sobre uma
sadia base empírica. O projeto foi provavelmente idéia do polímata veneziano, o
frade e arquiteto Carlo Lodoli (1690-1761), um admirador que não foi plenamente
apreciado em seu tempo. (BURKE, 1997, p. 23)
Disse Vico57:
Por tudo que tem creditado o livro, convém meritar o Eminente Cardial Lorenzo
Corsini, para quem está dedicada a satisfação nesta não última aprovação: Obra que
a antigüidade da língua, e solidez da Doutrina, basta para fazer conhecê-la, que
também vive hoje no espírito Italiano, não menos a nativa particularíssima aptidão
à Toscana eloqüência, que o robusto destemor a novas produções nas mais difíceis
disciplinas. Onde eu me congratulo com esta sua ornamentadíssima Pátria. (VICO,
1728, p. 251)
Vico ressalta naturalmente um “robusto destemor” que ainda “hoje” (em seu tempo)
habita no “espírito italiano” em referindo-se a “novas produções nas mais difíceis
disciplinas”. Aqui, mais uma vez Vico consulta a autoridade da tradição da “língua” e da
“Doutrina” italiana para se reportar à bravata dos italianos na produção do saber.
O passado dos italianos estudado por Vico com o fito de construir uma identidade
cultural se afasta do procedimento dos iluministas com relação ao passado. Enquanto Vico
refletia historicamente os elementos culturais que constituem o “espírito italiano” indo até a
tradição greco-romana, os historiadores-filósofos estudavam o passado para libertá-lo do peso
da tradição.
Vico pôde reconhecer na tradição valores independentes da razão, a exemplo da
imaginação. Para o autor, a sabedoria poética não é menos importante que a sabedoria
reflexiva, apenas constitui a primeira um tipo de conhecimento fantástico, que interpreta o
mundo a partir do poder de criação da mente humana em sua infância. Mas, que é uma forma
de conhecimento tão válida quanto à sabedoria raciocinada.
Tome-se o seguinte exemplo. Enquanto Vico parece ter buscado diferentes expressões
de verdade no contato com fontes históricas, (o que pode se confirmar, por seu interesse pelos
poemas homéricos, pelas narrações das origens da história Romana, por suas influências de
Platão, etc.) o historiador-filósofo Pierre Bayle pretendeu elencar uma série de erros
cometidos pela historiografia tradicional em seu Dicionário crítico.
Neste sentido, Bayle buscou subtrair o caráter anedótico da história Setecentista. Não
obstante, preocupou-se em estabelecer uma atitude ética para os que escreviam a história, e
que muitas vezes falseavam as verdades dos fatos ou apresentavam falsos relatos por
verdadeiros, mediante a rigorosa crítica das fontes históricas.
Por outro lado, Vico também apresenta pontos em comum com a idéia moderna de
história defendida por Pierre Bayle. Tanto Vico quanto Bayle distinguiram a história sagrada,
57
Texto original: Per tutto ciò hà havuto il libro la fortuna di meritare dall’Eminent. Cardinale Lorenzo
Corsini, a cui stà dedicato, il gradimento con questa non ultima lode: Opera al certo che per antichità di lingua,
e per solidezza di Dottrina basta a far conoscere, che vive anche oggi negl’Italiani spiriti, non meno la nativa
particolarissima attitudine alla Toscana eloquenza, che il robusto felite ardimento a nuove produzioni nelle più
difficili discipline. Onde io me ne congratulo com cotesta sua ornatissima Patria.
109
(ou macro-história) definida por uma história divina (que, portanto não pode constituir o
objeto de uma ciência humana) da história profana, compreendida por uma história do mundo
civil e de tudo aquilo que é engenho de sua própria obra. Nesta última alternativa Vico
encontra os elementos que podem constituir uma ciência do homem.
O napolitano colocou a história profana ao alcance do conhecimento humano, através
de sua idéia de “uma natureza comum entre as nações”, ampliando a autoridade das fontes
eclesiásticas para tudo aquilo que resultasse da invenção humana, tal qual Bayle. A diferença
aqui é que Bayle contestou a autoridade da Bíblia enquanto fonte histórica, enquanto Vico,
em sua condição de católico, não o fez.
Em certo sentido, Vico também pode ser identificado como mais um intelectual que
resgatou a tradição baconiana para dentro do credo científico iluminista. Neste aspecto, tal
qual Newton formulou as leis da força da gravidade, Vico encontrou leis que regem a história:
o corso e o ricorso. Ao fazê-lo, estava na verdade reclamando a possibilidade de uma ciência
do mundo civil (recusada por Descartes) junto à corrente de pensamento do empirismo.
O mundo fenomenológico, outrora descartado pela ciência cartesiana encontra um
lugar privilegiado na constituição do pensamento viquiano. Para Descartes as artes, a
literatura e a historiografia estavam fora da alçada das ciências por considerá-las
entretenimento. Vico ao contrário, reúne todas as produções do espírito humano no cerne de
sua Ciência Nova.
Para isto, discerniu o estudo da natureza e o estudo do mundo dos homens, isto é, do
mundo da história. Segundo Vico, a natureza é fruto da obra divina e, portanto só Deus é
capaz de conhecê-la profundamente, uma vez que é o seu criador. Em contrapartida, o mundo
civil é o resultado de uma construção social, e, portanto é inteligível ao intelecto humano.
Cabe aos homens compreender o mundo em que vivem a partir da interpretação do
significado dos mitos, do estudo da formação da língua, da poesia, das leis, da constituição
dos sistemas de governo, enfim, a partir da historicidade das culturas.
De acordo com Vico:
Na noite das densas trevas que envolvem a primeira Antigüidade, tão distante de
nós, brilha a eterna e infalível luz de uma verdade acima de qualquer
questionamento: que o mundo da sociedade civil foi certamente feito pelo homem, e
seus princípios, portanto, devem ser achados dentro das modificações da nossa
própria mente. (VICO apud BURKE, 1997, pp. 88-89).
humanas consiste no próprio desenvolvimento das cognições humanas, bem como de suas
respectivas formas de conhecer.
No entanto, não apenas na fonte das experiências humanas bebe o modelo viquiano de
história. A idéia de uma história ideal eterna parece ser um tanto contraditória se pensarmos
que busca reunir o aspecto empírico da história a um esquema ideal e eterno, portanto,
abstrato. Neste sentido, a Ciência Nova permite através de seu complexo estatuto retórico,
relacionar um nível empírico e histórico (a exemplo da história dos gregos e romanos) a um
nível filosófico e científico, que seria ideal e eterno. Vico realiza esta associação mediante o
emprego de princípios e axiomas onde os apresenta.
A filologia é um destes princípios, que permite a Vico perscrutar a língua, as leis, a
religião, dentre demais elementos culturais característicos dos povos. Naturalmente como
pode ser percebido na Ciência Nova, o autor prioriza os povos gregos e romanos e
consequentemente as nações ocidentais que governam seu curso na história sob a ação do
verdadeiro Deus. Vico buscou unir a filologia à filosofia, de modo que, ao mesclar dois níveis
retóricos distintos, permitisse que sua obra capital fosse simultaneamente um estudo de
“filosofia e história dos costumes humanos”.
Do contato entre filologia e filosofia Vico encontrou a possibilidade de abordar
cientificamente os elementos componentes do mundo civil:
A filosofia considera a razão, de que procede a ciência do verdadeiro, a filologia
considera a autoridade do arbítrio humano, de que resulta a consciência do certo.
Esta dignidade, em sua segunda parte, define como filólogos todos os gramáticos,
historiógrafos e críticos, que se ocuparam do conhecimento das línguas e das
empresas dos povos, tanto em seu território, tais como os costumes e as leis, quanto
fora dele, como as guerras, os tratados de paz, as alianças, as viagens e os
intercâmbios comerciais. Esta mesma dignidade, comprova haverem falhado pela
metade tanto os filósofos que não aferiram as suas razoes pela autoridade dos
filólogos, quanto os filólogos que não se deram ao cuidado de verificar as suas
autoridades pela razão dos filósofos. Se uns e outros tivessem feito isso, teriam sido
mais úteis às republicas e nos teriam antecedido no meditar desta Ciência. (VICO,
1979, p. 10)
XVII com a ciência e com o mundo civil em seu plano social e político. Este seria o problema
filosófico de maior dimensão no século XVIII, segundo o autor.
A incumbência dos filósofos do século XVIII é por um lado mais que um simples
rearranjo da filosofia do XVII, visto que visa o estancar da primeira crise dos pressupostos
gerais da filosofia cartesiana. Não obstante, também é pauta da agenda do século XVIII
adaptar o ideal de ciência às novas exigências de uma sociedade burguesa em pleno
desenvolvimento. É exatamente a partir da emergência desta crise interna da metafísica
cartesiana que Vico caminha no intuito de esclarecer em termos de necessidade social a
passagem de um mundo que outrora prevalecera à imaginação (fantasia), para um mundo no
qual agora (no tempo de Vico) prevalece a razão.
Concordando com a idéia de Nicola Badaloni de que a crise interna da metafísica
cartesiana já estava anunciada desde antes da crítica viquiana, pode-se dizer que Vico
encontrou algumas “fragilidades” no projeto de expansão da razão cartesiana. Uma delas, diz
respeito à metodologia posicionada no coração daquele sistema. A razão cartesiana não
conseguia se expandir para além da matemática e da física mediante a qual ampliou seu raio
de influência através do êxito da física mecânica e do triunfo do mecanicismo enquanto
corrente do pensamento moderno. Todavia, a polêmica contra o método geométrico, assume
em Vico um caráter muito geral e engloba também resíduos do próprio cartesianismo58.
Mas, é inegável que Vico rompe com Descartes quando afirma ter encontrado os
princípios que possibilitam a formulação de um conhecimento verdadeiro do mundo das
experiências, ou seja, do mundo dos homens, do mundo da história. A consciência da
historicidade do homem e de tudo aquilo que constitui a obra humana, traz à perspectiva
viquiana um lugar especial para o sujeito do conhecimento.
Conhecendo sua própria criação, o sujeito criador também é o sujeito determinante
para construir o juízo das coisas mundanas. Neste sentido, o sujeito não é meramente um eu
pensante das coisas abstratas, mas, estabelece as relações de juízo sobre aquilo que está à sua
volta, sobre aquilo que pode conhecer profundamente e está aquém do mundo civil. A tomada
de consciência histórica das produções do espírito humano é o ponto de partida para o
conhecimento e o juízo sobre as coisas. Mesmo que não se deva, pode-se arriscar dizer que a
ontologia viquiana antecipa a questão do sujeito refletida por Kant a partir do conceito de
interesse.
58
Peter Burke afirmou que “sem dúvida, Vico pretendia apresentar as principais conclusões da Ciência Nova sob
a forma geométrica de deduções de um conjunto de axiomas”. (Burke, 1997, p.29).
112
Vico trouxe para o Iluminismo uma nova concepção entre o homem e a história e
libertou a filosofia da clausura do plano das idéias para o mundo sublunar. Nestes aspectos, a
controvérsia entre Vico e Descartes é inegável. Muito embora, isto não signifique que o
pensamento de Vico seja inconciliável ao de Descartes. Na verdade, Vico defendia a
racionalidade de uma ciência do homem tal qual Descartes o fizera com a matemática, a física
e as ciências da natureza. Neste sentido, o filósofo napolitano deu continuidade ao que
Descartes já havia iniciado.
A concepção cartesiana de ciência tinha em seu núcleo o método geométrico como
modelo de abstração e de acesso à dimensão das idéias claras e distintas. A concepção
viquiana de ciência a seu modo encontrava outros princípios que buscavam legitimar a
pertinência dos estudos humanos, mas que não destoavam dos fins do cartesianismo, e do
próprio ideal de ciência em voga na Idade das Luzes – atingir o conhecimento verdadeiro
através do desenvolvimento da razão humana.
Vico também estava afinado com a idéia de um conhecimento sistemático, produzido
por colaboradores, de modo que em meio à diversidade as ciências pudessem constituir uma
unidade59:
No ano de 1708, havendo a régia Universidade determinado fazer uma solenidade
pública de abertura dos estudos, e dedicá-la ao Rei, com um discurso a ser proferido
na presença do Cardinal Grimani Vice-Rei de Nápoles, veio felizmente a Vico
meditar um tema, que contesse alguma nova descoberta, que fosse útil ao mundo das
letras, que produzisse um desejo digno de enumerá-la dentre as de Bacon, no seu
novo Mundo das Ciências. Ele se enganava sobre as vantagens e desvantagens da
nossa maneira de estudar em confronto a dos Antigos em todas as espécies de
saber: e quais vantagens nossas, e por quais razões poderiam se desviar; e tendo
estas se desviado, não se pode com as vantagens dos Antigos fazer compensações;
tanto que uma Universidade inteira de hoje em dia, seria um só Platão, e tudo mais
que nós estimamos sobre os Antigos; porque todo o saber humano, e divino se
sustenta em toda parte com um espírito (método), que custa em todas suas partes, o
ato de dar as mãos entre as Ciências, e não que alguma constitua impedimento à
outra. (VICO, 1728, pp. 207-208).
Sob a luz do texto elaborado pelo próprio Vico, é possível afirmar que o autor concebe
o conhecimento na forma de um sistema. Segundo Kant um sistema constitui “a unidade de
59
Texto original: Ma nell’ano 1708, avendo la Reggia Università determinato fare un’Apertura di studi
pubblica solenne, e dedicarla alla presenza del Cardinal Grimani Vicerè di Napoli, e che perciò si doveva dare
alle stampe; venne felicemente fatto al Vico di meditare un’Argomento, che portasse alcuna nuova scoverta, ed
utile al Mondo delle lettere, che sarebbe stato un desiderio degno da esser noverato tra gli altri del Bacone, nel
suo nuovo Mondo delle Scienze. Egli si raggira d’intorno a’ vantaggi, e disvantaggi della maniera di studiare
nostra, messa al confronto di quella degli Antichi in tutte le spezie del sapere: e quali svantaggi della nostra, e
con quali ragioni si potessero schivare; e quelli, che schivar non si possono, con quai vantaggi degli Antichi si
potessero compensare; tanto che un’intiera Università di oggi dì fosse per essemplo un solo Platone, con tutto il
di più, che noi godemo sopra gli Antichi; perche tutto il sapere umano, e divino reggesse dapertutto con uno
spirito, e costasse in tutte le parti sue, si che fi dassero le Scienze l’un’all’altra la mano, nè alcuna fusse
d’impedimento a nessuna.
113
múltiplos conhecimentos, reunidos sob uma única idéia”. (KANT apud ABBAGNANO,
2003, p. 908). Neste ponto, Vico se aproxima muito de Descartes ao pensar a organização do
conhecimento dentro de um sistema.
Em contrapartida, o filósofo italiano estava consciente de que no interior do sistema
cartesiano o desenvolvimento dos estudos humanísticos não tinha seu lugar garantido. Este
era um dos limites da razão cartesiana: não conseguir imprimir em outras ciências seu
princípio comum a partir de um método geométrico. Mesmo tendo distinguido o estudo da
natureza do estudo dos homens, Vico não chegou a condenar o estudo da matemática ou da
natureza. Antes, pelo contrário, o autor compreendia a matemática, ou a física, e as Ciências
todas como um produto da racionalidade humana, socialmente e historicamente
condicionados. O homem é simultaneamente o sujeito criador e juiz dos conhecimentos que
formulou sobre o mundo, tanto no que se refere à natureza quanto à sociedade.
De fato, uma coisa estava clara para Vico, se o método dedutivo não possibilitava
expandir a razão para todas as ciências, o sistema cartesiano deveria ser repensado. No ímpeto
desta missão, Vico propôs no lugar do cogito, o princípio do verum/ factum. Mas, não
destruiu o cartesianismo, antes pelo contrário, buscou identificar suas insuficiências e
concertá-las a seu modo, falando da Itália, aproximadamente quase um século após a morte de
Descartes.
Vico estava insatisfeito com a restrição do cartesianismo a outros conhecimentos que
não fossem a matemática, ou a filosofia abstrata60, “não se imaginava que astutamente por fim
Renato delle Carte em torno do método de seus estudos assentasse apenas sobre a sua
filosofia e Matemática, e prostrasse todos os outros estudos, que compunham a divina, e
humana erudição”.(VICO, 1728, p. 151).
A tentativa de reformar o modelo cartesiano de ciência e de expandir a razão para
outras searas do conhecimento é uma atitude muito coerente com a proposta iluminista de um
conhecimento verificável, ajustável, que em seu interior dispõe de instrumentos críticos que
viabilizam sua própria correção. Não há dúvidas de que a atitude de Vico com relação ao
sistema cartesiano estava em harmonia com a cultura científica do Iluminismo.
A contribuição de Vico à expansão da razão e da crítica às ciências demonstra sua
posição de intelectual coerente com as preconizações da ciência e filosofia iluminista. Mesmo
que Vico tenha apresentado alguma resistência ao excesso de razão, ou tenha desconfiado da
60
Texto original: Non fingerassi quì ciò che astutamente finse Renato delle Carte d’intorno al metodo de’ suoi
studi, per porre solamente su la sua filosofia, e Mattematica, ed aterrare tutti gli altri studi, che compiono la
divina, ed umana erudizione.
114
idéia de um progresso histórico irreversível vigente nas idéias de alguns iluministas como
D’Alembert, Vico pode ser visto como um homem de seu tempo. Assimilou o racionalismo e
o experimentalismo em seu sistema embora tenha atrelado o arbítrio humano á ação da
Providência.
Isto reflete apenas o que Venturi alertou sobre os ritmos e as condições de recepção
das idéias iluministas em outros centros. Na Itália, a força da tradição humanista era muito
grande, o que pode ser conferido em Vico quando elegeu o método filológico para realizar
estudos das leis dos antigos romanos, ou dos poemas homéricos a fim de resgatar a história e
a memória dos gregos. A idéia de engenho, ou poder de criação também parece sair desta
mesma tradição.
Rossi lembra que muitos intelectuais e cientistas italianos recepcionavam as idéias
iluministas tentando harmonizá-las às suas próprias concepções, em vez de abandoná-las por
“novas” doutrinas. Por isso, naturalmente, Vico não pode ser comparado a um philosophe
como Voltaire, por exemplo. Sua realidade era outra, sua tradição também. A França era o
coração do Iluminismo e a Itália era um centro receptor e mesmo questionador dos novos
ventos transformadores. Seguindo este raciocínio, Vico não precisou fazer concessão de sua
fé para contagiar-se pelas idéias iluministas.
O problema de pensar Vico como um homem fora de seu tempo, quer seja à frente, ou
atrás, é fruto de uma reflexão simplista e reducionista do Iluminismo. É produto de um senso
comum segundo o qual o século das Luzes foi um processo linear em toda a Europa e que
produziu os mesmos efeitos por onde passou. Em suas últimas linhas, o presente trabalho se
despede almejando ter alcançado seu objetivo maior: apresentar a idéia de conhecimento
histórico em Vico dentro do momento iluminista em que viveu.
115
CONCLUSÃO
matemática e a física. Todavia, Vico não se restringiu assim como outros debatedores do
cartesianismo na Itália, a apontar as conseqüências perigosas que o método “subjetivo” (modo
como alguns intelectuais italianos se referiam ao método dedutivo) baseado na idéia de cogito
representavam para a religião, ou a discutir a partir da escolástica se o cogito seria ou não um
silogismo, e se considerado um silogismo fosse ele defeituoso ou não. Também não estava
Vico satisfeito em simplesmente protestar contra o desprezo cartesiano frente à história, à
retórica e à poesia.
Vico foi ao coração da questão e contestou o princípio da evidência estabelecido por
Descartes como verdade científica. Para o napolitano, o método dedutivo não atendia as
exigências de revelar à razão, novos campos do conhecimento. A consciência de ser um ser
pensante, produtor de idéias para Vico não resolve o problema da verdade científica, porque
as idéias também são equivocadas e podem ser refutadas quando não bem fundamentadas.
No intuito de reformar a racionalidade científica a seu modo, Vico aproveitou-se da
própria crise interna dos pressupostos cartesianos. Estabeleceu o princípio do verum/ factum,
a partir do qual o conhecimento do mundo humano se torna inteligível à mente de seus
próprios gestores. As instituições civis, as ciências, e tudo que é produto das potencialidades
racionais humanas pode ser conhecido por aqueles que as construíram. Contudo, para
conhecer o mundo das coisas humanas, é preciso conhecer como este mundo se constituiu e se
organizou ao longo do devir histórico.
Neste sentido, pode-se dizer que Vico assim como tantos filósofos iluministas, a
exemplo do próprio Newton, representou a busca revigorada por um conhecimento seguro.
Sem renunciar a seus costumes e aspectos tradicionais de seu modo de pensar, Vico deu sua
contribuição à ciência iluminista, com estilo próprio.
Enfim, Vico trouxe à tona um novo relacionamento com a história, apresentando-a a
possibilidade de organização enquanto um conhecimento científico, dotado de racionalidade
própria, com métodos e princípios característicos. Talvez, sem intencionar, tenha ainda
ressaltado a importância da história como forma de compreender o desenvolvimento da
própria razão humana e suas respectivas formas de conhecer, com o fito de demonstrar uma
natureza comum entre as nações. Pois em Vico, assim como em Descartes,os homens são
dotados das mesmas capacidades intelectuais, pois são seres racionais que se distinguem dos
não racionais por sua própria natureza pensante.
117
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BERGUIÈRE, André. Dicionários das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
BURKE, Peter. Vico. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.
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ANEXOS
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