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PERFORMATIVIDADE RADICAL: ATO DE FALA OU ATO DE CORPO?' Joana Plaza Pinto “The body is the blindspot of speech.” Inserido na tradigao logicista de Oxford, 0 filésofo inglés J. L. Austin, no Resumo: Este trabalho uma reflexdo sobre 4 Teoria dos Atos de Fala, de J. L. Austin (1998; (1976). Meu objetivo & oferecer uma interpretagao feminsta ao problema da rela Bo entre linguagem e corpo. Para isso, ba: seio-me nas interpretacoes de Butler (1997, 1999), Derrida (1979; 1990) e Rajagopalan (1989; 1990; 1992, 1996) que se referem 20 trabalho de Austin. Discuto que a impos sibilidade do controle intencional do ato de fala exclu a unicidade propria 8 idéia de “efei- to mental” e desloca os limites da ago do ato de fala para além da ilocugio — para 0 ‘campo controverso do corpo que fala. O su- Jeito que fala € aquele que produz um ato corporalmente; 0 ato de fala exige 0 corpo A presenca materia e simbélica do corpo na ‘execuggo do ato é uma marca que se impée ro efeito lingustico. O corpo, como elemen- to regulado pelas convensées rtuafizadas nele inscritas, eperformativizado pelo ato que pos tula sua signiticagao prévia, impede a redu: so da andlise do ato de fala & andlise sim- ples das convencées linguistics, e exige le- var em conta a integralidade da materaiidade do corpo que produz o ato, Palavras-chave: performatividade; atos de fala; corpo; J. L. Austin; teoria feminista de uma i esta teoria geral dos atos de fala, a partir terpretacao feminista para 2 desenvolvimento avancado de seus trabalhos, defendeu a necessidade de se partir para uma teoria mals geral das atos de fala. Pretendo aqui buscar refletir sobre © que poderia ser tomade como relacdo entre ato de fala e corpo. Austin (1976, 1998) propds-se 2 discutir sobre enunciados que néo poderiam jamais ser nem verdadeiros Niterdi v. 3, n. 1, p. 101-110, 2. sem. 2002 nem falsos - os enunciados _perfor- ‘mativos. O problema da verdade sempre foi central na filosofia, portanto Austin preparou um campo polémico de discussao: existiriam determinadas realizacées linguisticas que néo permitiriam qualquer afirmago sobre seu valor veritativo. Ainda que pudesse implicar a verdade ou falsidade de outros, © enunciado performative nao existe sendo para fazer Caracterizando 0 pensamento de Austin como “relativement originale”, Derrida procura mostrar que a concepcéo de comunicagao exposta na teoria dos atos de fala nao se assimilaia em nada 3 concep¢éo classica de comunicacdo, como transporte. Em suas palavras' “Communiquer, dans le cas du performatif [..] ce serait communiquer tune force par Fimpulsion d’une marque” (DERRIDA, 1990, p, 37). Forga, neste caso, seria uma das duas forcas atriouidas por Austin ao enunciado performativo: forca ilocu- ciondria ¢ forga perlocucionéria. Esses tipos diferentes de forca so conse- uéncias da tripartigao do ato de fala: ato locucionério ~ realizacdo de um ato de dizer algo; ato ilocucionario - realizag3o de um ato ao dizer algo; e ato perlo- cucionério ~ realizagéo de um efeito sobre o interlocutor. A respeito dessa tripartigao, inicial no pensamento de Austin, Derrida comenta que sua elaboracao é derivada da idgia de um sujeito intencional consciente da totalidade do seu ato de fala; nada Ihe escapa, e, portanto, hé uma unidade de sentido na sua realizacdo. De fato, a intencionalidade parece organizar as conferéncias iniciais de Austin, enquanto ele procura um fio condutor para 0 proceso do ato de fala - ele se esforca em trazer elementos que cerquem o enunciado performative e garantam seu sucesso. A oposicao sucesso/fracasso se sustenta pela intengdo do/a falante, ou seja, pelo que ofa falante intenciona para co enunciado que ele/a produz, tratando, portanto, as convengées ritualizadas do enunciado como um contexto possivel de ser saturado, de ser dado como totalmente determinavel Essa critica de Derrida a Austin procede. No entanto, as conferéncias de Austin (1976) s8o reflexdes, como observou Rajagopalan (1996), repletas de reviravoltas. Depois de um longo caminho reflexivo, Austin acaba por deixar de lado a distingao que ele mesmo foriou entre performativo e constativo para concluir que este ditimo nao existe sendo sendo o primeiro (AUSTIN, 1998), e que essa distingdo inicial é fragil para dar conta do alcance operacional dos atos de fala. Sua conclusio é alcancada através de uma argumentacao complexa, Como € j4 popularizado, Austin demonstrou que uma seqiléncia como Eu prometo que volto”, quando proferida sob determinadas condicdes, pode ser considerada um enunciado performative, ou seja, opera, no caso, uma promessa. Essa primeira parte da sua discussdo em torno do performativo deu margem a interpretacoes ~ especialmente no campo dos estudos linguisticos -de que, para um enunciado ser performativo, ele deveria conter uma formula lingufstica preestabelecida, O exemplo mais conhecido dessa interpretacdo € 0 de Benveniste (1991), gue procurou resumir a férmula do performative’ [..] 9s enunciados performativos so enun- Ciados nos quais um verbo declarstivo- Jussivo na primeta pessoa do presente se constrdi om um dictum, Assim, ordonne 102 Niteréi, v 3, n. 1, p. 101-110, 2. sem. 2002 (ou je commande, je décréte etc) que fs population soit mob lsée em que o dictum & representado por la population soit rmobilisée (BENVENISTE, 1991, p. 300) No entanto, Austin caminha adiante e observa que a sequéncia “Eu prometo que volte” pode eauivaler 3 seqiiéncia “Eu volto", desde que ambas obedecam as condigdes de uma promessa, Assim, Austin afirmou que as estruturas linguisticas caractersticas dos enunciados performativos nao operam por si 56s; elas necessitam de um contexto, de convengées rtualizadas para realizarem seu efcito. € num contexto determinado que uma falante emite 0 enunciado cyjo significado repousa na aco que ele produz. Isso significa que so as condig6es do ato de fala, e nio sua férmula em palavras, que operam o performativo; o que leva & conclusio de que qualquer sequéncia, mesmo sem a férmula explicita com verbos decla- rativos-jussivos, como queria Benveniste, 6 um enunciado performative. Dai 2 conclusdo de Austin ser Até aqui observel duas cosas: que no exe te nenhum critério verbal para dstinguir 0 enunciado performative do enunciado constativo, © que 0 constativa ests sujeto smesmasinfelcidades que o perfarmativ. [1a férmala “afiemo quo" é inteirarente parecida com a férmula “le previne que”, formula a qual, como dissemos, sere para tornarexplcito 0 ata de fala que efetuaros; «, além disso, quendo se pode nunca emir tum enunciads qualquer sem realzar um ato de fala deste género. Temos talvez necess- dade do uma teor'a mais geval dos atos de fala e nesta teoria nossa antiteseconstativo- performatvo ter difculdade para sobrevi- ver (AUSTIN, 1998, p. 119}. No momento em que se descarta a dupla constativo-performativo, pode-se partir para ura teoria mais geral dos atos de fala, Mas que teoria seria essa? Sem diivida, seria uma teoria radical dos atos de fala, uma teoria que levasse em conta © sujeito de fala como parte integrante da performatividade, e nunca somente formulas linguisticas ou condigdes de fala. Uma visio performativa de linguagem deve integrar a complexidade da condigio de sujeito de linguagem, e levar as Gltimas consequéncias a identidade entre dizer e fazer, insistindo nna presenga do ato na linguagem; ato que transforma — opera. Se levo em conta a complexidade da condigo de sujeito de linguagem, tenho, como primeiro passo, que basear- ‘me em uma nogio de sujeito. Mas, que sujeito seria esse que age na linguagem? Como apontei, Austin argumentou que so as condigées do ato de fala que operam o performative, o que leva 8 necessidade premente de conhecer tais condigdes de fala de forma completa para poder analisar qualquer ato de fala, No entanto, desejar conhecer comple- tamente as condicées do ato de fala é pressupor que tais condigées so saturéveis, determindveis, e, portanto, ‘que seu significado esta retido em algum componente de sua realizagao. Qual componente setia capaz de ancorar toda a complexidade do ato de fala? Dois elementos foram tomados, nas diversas interpretacbes criticas ao trabalho de Austin, como lugar dessa ancora totalizadora do ato de fala: a inten- cionalidade e a convengao ritualizada Na leitura critica de Derrida, vimos que Austin parecia atar as forcas 8 intengao dofa falante: & deste/a dltimo/a que parece transbordar a ago da forga ilocucionéria - que se quer fazer —e forca perlocucionsria -0 que se quer fazer ‘teri v. 3, n. 1, p. 101-190, 2. sem. 2002 103

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