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GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAGOES INTERNACIONAIS: UM ENSAIO SOBRE 0 METODO Robert W. Cox Hé algum tempo, comecei a ler os Cadernos do ciircere, de Gramsci, Nesses fragmentos, escritos numa prisao fascista entre 1929 € 1935, 0 ex-lider do Partido Comunista Italiano estava preocupado ‘como problema de entender as sociedades capitalistas das décadas de 1920 ¢ 1930, ¢, principalmente, com o significado do fascismo e as ir uma forma alternativa de Estado e socie- dade bascada na classe operdria. O que ele tinha a dizer girava em torno do Estado, dar 640 da politica, da slo da sociedade civil como Estado e da rela- icac da idcologia com a produc éde sur preender que Gramsci nao tenha diretamente muito a dizer sobre relag6es internacionais, Apesar disso, achei que seu pensamento aju- dava a compreender o significado da organizagio internacional com qual eu estava ocupado naquela época. Particularmente valioso foi seu conceito de hegemonia, mas também foram valiosos varios con- ceitos correlatos que ele elaborou para simesmo ou desenvolveu para outros. Este ensaio mostra minha forma de entender 0 que Gramsci queria dizer com hegemonia e esses conctitos afins, e sugere como Penso que eles podem ser adaptados, preservando seu significado essencial, para compreender os problemas da ordem mundial. Ele no pretende ser um estudo critico da teoria politica de Gramsci, ¢ sim apenas uma derivacao de algumas idéias dessa teoria politica para uma revisio da teoria corrente das relagées internacionais.! * Este ensaio foi originalmente publicado em Millenium, v. 12, n. 2, p. 162-175, 1983, fil 102 # Rowerr W. Cox Gramsci e hegemonia 0s conceitos de Gramsci foram todos derivados da historia ~ tanto de suas reflexdes sobre os periodos da historia que ele achava que ajudavam a langar uma luz explicativa sobre 0 presente quanto de sua propria experiencia pessoal de luta politica ¢ social. Entre elas hhé reflexdes sobre o movimento dos conselhos opersrios do inicio da ‘década de 1920, sua participagao na Terceira Internacional e sua opo- sigdo ao fascismo. As idéias de Gramsci sempre estiyg cle estava sempre ajustando seus conceitos a circunstancias hist6ricas especificas. Nao € possivel usar os conceitos de maneira frutifera se eles forem abstrai- dos de suas aplicag6es, pois ao serem assim abstraidos, suas utilizagdes parecem conter contradigoes ou ambighidades.” No pen- samento de Gramsci, um conceito ¢ vago ¢ flexivel, es6 adquire preci sao quando posto em contato com determinada situagao que ele aju- dda aexplicar ~ contato que também desenvolve o significado do con- ceito, Nisso reside a forca do historicismo de Gramsci, assim como sua capacidade explicativa. Mas o termo “historicismo” costuma ser ‘mal-entendido e criticado por aqueles que procuram uma forma de conhecimento mais abstrata, sistemtica, universal e a-histérica.’ Gramsci atrelou coerentemente sett pensamento a0 objetivo pritico da agio politica, Em seus escritos da prisdo, sempre se referia a0 marxismo como“ filosofia da préxis”* Poderiamos supor que, 20 das ao seu proprio coMtexto ‘menos em parte, isso se deve ao fato de querer enfatizar 0 objetivo revolucionatio pratico da filosofia. Em parte também pode ter sido para mostrar sua intengio de contribuir para uma corrente de pensa- mento vigorosa, em processo de desenvolvimento, a qual recebeu set. impulso inicial de Marx, mas nao esté circunscrita para sempre & ® Esse parece ser 0 problema de Anderson (1976-1977), que afirma ter encontrado incoeréncias nos conceitos de Gramsci » Sobre essa questio, ver Thompson (1978), que contrasta uma posigio historicista andloga a de Gramsci com o estruturaismo filos6fico ¢ abstrato de Althuster. Ver “Marxism is not Historicism’, em Althusser Balibar (1979). « Afirma-se que, com isso, Gramsci quis evitar © confisco de suas notas pelo censor da prisio, quem, se isso € verdade, devia ser particularmente obtus0. GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAGOES INTERNACIONAIS @ 103, obra deste. Nada poderia estar mais longe de suas intengdes do que lum marxismo que represente uma exegese dos textos sagrados, cujo objetivo seria refinar um conjunto atemporal de categorias e con- ctitos. Origens do conceito de hegemonia Existem duas correntes principais que levam a idéia gramscia- na de hegemonia. A primeira nasceu dos debates da Terceira Inter- nacional sobre aestratégia da Revolugdo Bolchevique e da criagao de tum Estado socialista soviético; a segunda, dos textos de Maquiavel. Ao seguir a primeira corrente, alguns comentaristas procuraram contrastar o pensamento de Gramsci com o de Lenin, associando Gramsci a idéia de uma hegemonia do proletariado, ¢ Lenin, a dita- dura do proletariado, Outros comenta tas sublinharam sua concor- dancia bésica.’ O importante é que Lenin se referia a0 proletariado rrusso tanto como uma classe dominante quanto dirigente; 0 dominio ndo ditadura, verdade, Gramsci apropriou-se de uma i ‘Terceira Internacional: os operirios exerceriam hegemonia sobre as lasses aliadas, e ditadura sobre as classes inimigas. Mas essa idéia foi aplicada pela Terceira Internacional somente no que diz respeito 2 classe opersria e expressava o papel da classe operdria na lideranga de uma lianga de operdrios, camponeses e, talvez, alguns outros grupos simpatizantes da transformagio revolucionétia.* » Buci-Glucksmann (1975) coloca Gramsci inequivocamente na tredigio ita. Tanto Portelli (1972) quanto Maceiocchi (1974) contrastam Gramsci e Lenin. A meu ver, a obra de Buci-Glucksmann é muito mais bem articulada. Ver também Moutfe, 1979; Sassoon, 1982. "Essa nog se harmoniza bem com a avaliagio que Gramsci fee da situagio lase operiria sozinha era frigil Estado por meio de uma alianga com o carnpesinato ¢ alguns elementos da equena burguesia, Na verdade, Gramsci considerava 0 movimento de conselhos operirios uma escola de leranga desse tipo de coalizio e suas atividades antes de ser preso eram dirigidas & construgio dessa coalza 104 @ Rosexr W. Cox A originalidade de Gramsci consiste no viés que dew primeira corrente: comecot a aplici-la a burguesia, ao aparato ou mecanismos de hegemonia da classe dominante.’ Isso Ihe permitiu distinguir os casos em que a burguesia havia alcangado uma posigio hegeménica de lideranga sobre as outras classes daqueles em que nag@fvia alcan- gado. No Norte da Europa, nos pafses onde o capitalisfio se estabele- eu primeiro, a hegemonia burguesa foi a mais complet wwolveu necessariamente concessoes para sub monia fem troca da aquiescéncia a lideranga burguesa, concessBes que pode: riam levar, em iiltima instincia, a formas de democracia social qui preservam 0 capitalismo ao mesmo tempo em que o tornam m: aceitavel para os trabalhadores e a pequena burguesia, Como sua he- ‘gemonia estava firmemente entrincheirada na sociedade civil, a bur- guesia poucas vezes precisou, ela propria, administraro Estado. Atis- tocratas proprietirios de terras na Inglaterra, 0s juikers na Prssia ou tum pretendente renegado ao cetro de Napoledo I na Franga, todos esses governantes serviam, desde que reconhecessem as estruturas hegemonicas da sociedade civil como 05 limites basicos de sua aga0 politica, Essa visio da hegemonia levou Gramsci a ampliar sua defini 480 de Estado. Quando o aparato administrativo, executivo ecoerciti- ‘yo do governo estava de fato sujeito a hegemonia da classe dirigente de ‘uma formagio social inteira, nao fazia sentido limitar a definigao de nosao de Estado Aqueles elementos do governo. Para fazer sentid Estado também teria de incluir as bases da estrutura politica da socie- dade civil, Gramsci pensava nessas bases em termos histéricos con- cretos—a Igteja, o sistema educacional, a imprensa, todas as institui- oes que ajudavam a criar nas pessoas certos tipos de comportamento ¢ expectativas coerentes com a ordem social hegeménica. Por cexemplo, Gramsci dizia que as lojas magonicas da Italia constituiam tum vinculo entre os funcionSrios do governo que entraram na ma- quinaria estatal depois da unificagao da Italia, e, por isso, deviam ser consideradas parte do Estado quando o objetivo fosse avaliar sua es- * Ver Buci-Glucksmann, 1975, p. 169-190. GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAGOES INTERNACIONAIS @ 105, trutura politica mais ampla, Portanto, a hegemonia da classe domi- ante era uma ponte que nia as categorias convencionais de Estado esociedade civil, categorias que preservavam certa utilidade analitica, ‘mas que, na realidade, haviam deixado de corresponder a entidades separiveis. Como dissemos acima, a segunda corrente que levou a idéia ‘gramsciana de hegemonia percorreu um longo caminho desde Ma- quiavel, cajuda.a ampliar ainda mais 0 alcance potencial da aplicaga0 do conceito. Gramsci refletiu sobre 0 que Maquiavel havia escrito, particularmente em O principe, em relagdo a0 problema de fundar ‘um novo Estado. No século XV, Maquiavel estava interessado em encontrar a lideranga e a base social de apoio para uma Itélia unifi- cada, No século XX, Gramsci estava interessado em encontrar a lide- ranga ea base de apoio para uma alternativa ao fascismo. Enquanto Mai principe moderno: o partido revolucionério engajado num didlogo constante ¢ produtivo com sua prépria base de apoio. Gramsci retirou de Maquiavel a imagem do poder como um centauro, metade ho- wvel considerara o principe individual, Gramsci considerava 0 imen to e coergio.* Enquanto o aspecto consensual do poder esta em pri- reiro plano, a hegemonia prevalece. A coergdo esti sempre latente, ‘mas 56 é aplicada em casos marginais, andmalos. A hegemonia é sufi- ciente para garantir 0 comportamento submisso da maioria das pes- soas durante a maior parte do tempo. A conexio com Maquiavel i- bera o conceito de poder (eo de hegemonia como uma forma de po- der) de um vinculo com determinadas classes sociais histéricas ¢ lhe permite uma esfera maior de aplicagio as relagdes de dominio e su- bordinagao, inclusive, como vamos sugerir abaixo, as relagbes de or- dem mundial. Mas isso nao separa as relagdes de poder de sua base social (isto é, no caso das relagdes de ordem mundial, transformando- as em relagdes entre Estados concebidas de forma estreita), dirigindo sua atengao, 0 contrério, para o aprofundamento da consciéncia des- sa base social * Gramsci, 1971, p. 169-190,

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