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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Instituto de Relações Internacionais


Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais

LARA MARTIM RODRIGUES SELIS

DESLIMITES DA RAZÃO:
Um estudo sobre a teoria neorrealista de Kenneth Waltz

Brasília
2011
LARA MARTIM RODRIGUES SELIS

DESLIMITES DA RAZÃO:
Um estudo sobre a teoria neorrealista de Kenneth Waltz

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de


Relações Internacionais da Universidade de Brasília,
como requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Relações Internacionais, área de
concentração Política Internacional e Comparada.
Orientador: Professor Doutor Antônio Jorge
Ramalho da Rocha.

Brasília
2011
LARA MARTIM RODRIGUES SELIS

DESLIMITES DA RAZÃO:
Um estudo sobre a teoria neorrealista de Kenneth Waltz

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de


Relações Internacionais da Universidade de Brasília
como requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Relações Internacionais, área de
concentração Política Internacional e Comparada
Orientador: Professor Doutor Antônio Jorge
Ramalho da Rocha

BANCA EXAMINADORA:

______________________________________________
Professor Doutor Antônio Jorge Ramalho da Rocha
Orientador
Instituto de Relações Internacionais – UNB

______________________________________________
Professor Doutor Estevão Chaves de Rezende Martins
Universidade de Brasília - UNB

______________________________________________
Professor Doutor Samuel Alves Soares
Universidade Estadual Paulista - UNESP

Brasília, 04 de julho de 2011.


Aos meus pais, por me ensinarem a caminhar pela gravidade mais leve que a terra, mas
menos livre que perder-se.
AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, professor Antônio Jorge, que guiou nossas conversas de forma sempre
serena e gentil, auxiliando na edificação dessa pesquisa; pela confiança depositada em meu
trabalho e ideias, obrigada.
Aos funcionários do IREL, que contribuíram para tornar essa etapa mais agradável. Em
especial, agradeço à Odalva e ao Gustavo pela disponibilidade sempre cordial.
Aos professores do IREL, que sustentaram os aprendizados dessa caminhada. Com carinho
especial, agradeço ao professor Estevão, pela generosidade de ensinamentos, de conversas, e
de risadas. Agradeço também ao professor Jatobá, pelo conhecimento compartilhado, e pela
prontidão afável nessa comunhão.
À CAPES, pelo suporte ao desenvolvimento dessa pesquisa; e à UNB, pela excelência de
ensino.
À UNESP – Franca, que enriqueceu meu olhar sobre aquilo a que me comprometo, e em que
acredito: a Educação. Faço menção especial ao professor Samuel, pelo incentivo e apoio ao
meu interesse por Teoria; à professora Bete, pelo exemplo de humanidade; e aos membros do
GARI, pelo compartilhamento crítico, e pelos estudos em roda.
Aos meus pais, por manterem nossas mãos dadas, mesmo quando os pés caminhavam
separados. Obrigada pelo apoio incondicional que tranquilizou toda escolha e toda incerteza; e
pela oportunidade de realizar esse mestrado. Agradeço também aos meus irmãos, que, mesmo
longe, compuseram serenamente meus pensamentos, representando o amor permanente e
independente de palavras.
Ao meu querido poeta, que se fez melodia, se fez força e se fez fé, quando as linhas teimavam
em ser vazio, as idéias, confusão, e o sonho, dúvida. Agradeço pelas correções, pela
cumplicidade, e, principalmente, pelo sentimento “deslugarejado”, que continua a calçar as
lonjuras de minhas lutas.
Às minhas cúmplices-irmãs, Ana Carolina e Tchella, que souberam colorir as dúvidas, e
aumentar as alegrias. Agradeço imensamente por terem doado seus olhos, ouvidos e coração à
minha trajetória e a este trabalho. O “mar só se inverteu” quando vocês me ajudaram a supor
o céu.
Às cúmplices distantes em chão, mas sempre próximas em pensamento: Maíra, Natália,
Luiza, Juliana, Carolina e Patrícia. A amizade e amor sinceros sempre criaram asas até o
cerrado, trazendo ares de paz.
Aos colegas de Brasília e da pós-graduação. Em especial, agradeço aos queridos amigos:
Janira, Matías, Xaman, Wellington, Andrea, Gioava, Rodrigo (e família), pois todos, com sua
luz particular, acrescentaram brisa suave aos dias áridos desse planalto.
Aos demais amigos não dispostos em nomes, mas presentes nas entrelinhas desse trabalho, as
quais, ao revés das linhas textuais, são preenchidas por conversas, discussões, e ideais
indizíveis em palavras, mas sutilmente audíveis ao coração. Que a concretude das letras, não
limite a possibilidade das entrelinhas.
“Precisamos de você”

Aprende - lê nos olhos,


lê nos olhos - aprende
a ler jornais, aprende:
a verdade pensa
com tua cabeça.

Faça perguntas sem medo


não te convenças sozinho
mas vejas com teus olhos.
Se não descobriu por si
na verdade não descobriu.

Confere tudo ponto


por ponto - afinal
você faz parte de tudo,
também vai no barco,
‘aí pagar o pato, vai
pegar no leme um dia’.

Aponte o dedo, pergunta


que é isso? Como foi
parar aí? Por que?
Você faz parte de tudo.

Aprende, não perde nada


das discussões, do silêncio.
Esteja sempre aprendendo
por nós e por você.

Você não será ouvinte


diante da discussão,
não será cogumelo
de sombras e bastidores,
não será cenário
para nossa ação.

Bertolt Brecht
RESUMO

A presente dissertação dedica-se ao estudo do corpo teórico neorrealista formulado por


Kenneth Waltz. Como objetivo geral, define-se o intuito de apresentar e interpretar aquela
teoria, discutindo seus direcionamentos centrais nos planos teórico-metodológico, e
sociológico, relacionados com uma perspectiva crítica. Entende-se, pois, que revisitar os
conceitos do neorrealismo de Kenneth Waltz integra várias exigências metódicas: a histórica,
orientada pela necessidade de repensar as perspectivas originais que envolveram sua
produção; a ontológica, pela qual se contesta as definições do ser e dos seus sentidos; e,
finalmente, a epistêmica, cujo desenvolvimento busca rever os fundamentos da ciência
neorrealista, interpretando seus desdobramentos e aplicação. Tais caminhos são apreciados
por meio do suporte teórico oferecido pelos argumentos da Teoria Crítica, vinculados ao olhar
sociológico sobre as origens do conhecimento, e, sobretudo, à problematização da
epistemologia cartesiana. Por meio dessas lentes, o estudo preocupa-se especialmente com os
conceitos relacionados ao sujeito político internacional e suas práticas, que abrem espaço para
uma reflexão acerca da imaginação política dispota no neorrealismo. Nesse sentido,
desenvolve-se o argumento central de que a produção científica de Waltz contribui para
construção de uma ideia “empobrecida” de política, visto que se apoia em elaborações
tecnicistas despojadas das considerações normativas e intersubjetivas na apreensão intelectual
do cenário internacional. Tais formulações tornam-se problemáticas, na medida em que
prescrevem subjetividades conservadoras, associadas às condutas políticas desprovidas do
elemento transformador.

Palavras-chave: Teoria Neorrealista; Kenneth Waltz; Teoria Crítica; Epistemologia;


Sociologia do conhecimento.
ABSTRACT

This masters research focuses on the study of the neorealist theory formulated by Kenneth
Waltz. The central purpose is related to the presentation and critical interpretation of
neorealism in its theoretical, methodological and sociological levels. Accordingly, the intent
to revisit the neorealist concepts involve some methodical paths: first, the historical one,
oriented by the need of rethink the origins of neorealist ideas; second, the ontological path,
grounded in the reflection about the basic categories of being and their relations; and, finally,
the epistemological study which investigates the nature and limitations of neorealist
knowledge. To reach this goals, at least in the minimal sense, this dissertation uses the
theoretical arguments developed by the Critical Theory, associates with the sociology of
knowledge, and, especially, with the critiques about the cartesian epistemology. In this sense,
the study focuses on the concepts related to international political actors and its practices, in
order to, in a broadened scope, analyse the neorealist political imagination. So, this master
thesis is based on the central argument that the scientific production of Waltz contributes to
the construction of an 'impoverished' idea of politics, since it relies on a technical meaning
about knowledge, problematized by the tendency in produce a conservative subject, that is
incapable of contest the given order.

Keywords: Neorealist Theory; Kenneth Waltz; Critical Theory; Epistemology; Sociology of


Knowledge.
LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 Principais títulos de artigos e de livros de Kenneth Waltz, classificados


conforme ano de publicação e categorias ................................................................................. 94

LISTA DE GRÁFICOS

GRÁFICO 1 Porcentagem relativa das produções conforme categoria/ano ........................... 96


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1 SOB A ÉGIDE DA RAZÃO:A TEORIA NEORREALISTA DE KENNETH


WALTZ... ................................................................................................................................ 20
1.1 Introdução ......................................................................................................................... 20
1.2 Núcleo epistemológico: uma reflexão filosófica sobre a teoria neorrealista de
Kenneth Waltz ........................................................................................................................ 26
1.2.1 É possível conhecer a PI? Sobre o racionalismo epistemológico .......................... 29
1.2.2 Como conhecer o Internacional? Sobre o método estruturalista .......................... 35
1.3 Núcleo ontológico: o modelo posicional .......................................................................... 39
1.3.1 Estrutura Política Internacional: definições teóricas ............................................ 41
1.3.2 Unidades Interativas: uma perspectiva estadocêntrica .......................................... 48
1.3.2.1 O modelo do ator racional ............................................................................ 51

1.4 Conclusão: um epígono da ciência moderna .................................................................. 55

2 SIGNOS EM DESMONTE: SOBRE OS FUNDAMENTOS SOCIAIS E


HISTÓRICOS DO REALISMO ESTRUTURAL ............................................................... 59
2.1 Introdução ......................................................................................................................... 59
2.2 Kenneth N. Waltz: um recorte bi(bli)ográfico ............................................................... 66
2.3 Estado e sociedade: as condições do conhecimento ....................................................... 70
2.3.1 “The enlightenment applied”: aspectos culturais da sociedade norte-americana 71
2.3.2 Entre a agenda política e intelectual: uma perspectiva histórica .......................... 75
2.3.2.1 Consolidação do Estado norte-americano no início do século XX:
modernização das estruturas sociais e científicas .................................................... 76
2.3.2.2 O fortalecimento do Estado nacional e sua inserção nos estudos sociais
(1930-1950).............................................................................................................. 79
2.3.2.3 Quando Descartes encontra Mcnamara (1960-1970): the epistemic drift e a
racionalização do discurso político americano ........................................................ 85
2.3.2.4 Cristalizando o passado: a controversa ascensão neorrealista em meio ao
desfecho bipolar ....................................................................................................... 91

2.4 Academia e ensino das RI nos EUA: um breve exame .................................................. 99


2.4.1 A constituição das RI como disciplina: oportunidades institucionais................. 100
2.4.2 O estudo das RI nos EUA: tradições teóricas....................................................... 104
2.5 Conclusão: O neorrealismo como narrativa política................................................... 108

3 ENTRE AS MARGENS DA PALAVRA: SOBRE O SUJEITO POLÍTICO


INTERNACIONAL .............................................................................................................. 112
3.1 Introdução ....................................................................................................................... 112
3.2 A dialética da anarquia: sobre a ficção do Estado livre.............................................. 117
3.3 A individualização da racionalidade política e a banalização da ética ...................... 130
3.4 Asas da palavra: além das margens e do silêncio ........................................................ 143
3.5 Conclusão: um balanço teórico sobre o neorrealismo ................................................. 158

CONCLUSÃO FINAL ......................................................................................................... 163

REFERÊNCIAS BIBLIOGŔAFICAS ............................................................................... 173


11

INTRODUÇÃO

O processo de construção histórica das sociedades é perpassado por correntes de


pensamentos dirigidas aos sujeitos, envolvendo-os com um entendimento mútuo das
estruturas de relacionamentos sob as quais vivem, possibilitando, pois, a prática coletiva –
mantenedora, ou transformadora da ordem. Interpretar o mundo dessa maneira, expressa a
tentativa de alcançar o sentido dos eventos geralmente associado à compreensão das
estruturas sociais e ideacionais que possibilitam a atuação dos atores conforme uma
interpretação particular a determinado tempo e espaço.

Tal empreendimento interpretativo inscreve-se em um conhecimento autorreflexivo, o


qual reconhece que a transformação de uma teoria em senso comum não se realiza apenas
pela trajetória teórica. Nas palavras de Boaventura de Souza Santos, ―a teoria é a consciência
cartográfica do caminho que vai sendo percorrido pelas lutas políticas, sociais e culturais que
ela influencia tanto quanto é influenciada por elas‖ (2002, p.37). Nesse sentido, conforme
argumenta Robert Cox (1981), toda teoria deriva da prática e da experiência intersubjetiva,
esta que, vinculada à um tempo e à um lugar, torna aquele aporte intelectual um componente
da história. Como parte do empreendimento humano, a produção de conhecimento incorpora
as cores do coletivo que a forma, de modo que as relações de poder que desenham a cultura, a
economia, e a política de uma sociedade encontram eco nas linhas, ou entrelinhas, dos textos
teóricos.

Importada do campo da hermenêutica, a expressão ―horizonte de expectativa‖1


inaugurada por Hans Robert Jauss2 (1921-1997) serve aos propósitos dessa explicação, visto

1
Tal expressão também foi utilizada pelo historiador Reinhart Koselleck. Este, por meio das concepções de
―espaço da experiência‖ e ―horizonte de expectativas‖, procurou integrar as três instâncias temporais: passado,
presente e futuro. Nessa perspectiva singular sobre o Tempo, o autor nos chama atenção para a ideia de que o
presente pode ressignificar tanto o passado (―campo da experiência‖) como o futuro (―horizonte de
expectativas‖), atuando, por conseguinte, também na relação entre futuro e passado. Assim, para operar com tais
temporalidades, Koselleck lança as noções de ―experiência‖ e de ―expectativa‖, enquanto duas categorias
históricas que articulam a tensão entre passado e futuro. Desse modo, ―a experiência é o passado atual, aquele no
qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados‖ (KOSELLECK, 2006, p.309). Já as
expectativas constituem as formas de sensibilidades com relação ao futuro, bem como as análises racionais a seu
respeito. A metáfora do horizonte representa justamente o limite visual para além do qual não sabemos o que há,
ou seja, expressa a percepção do futuro sobre o qual conseguimos apenas formular ―expectativas‖, mas não
conseguimos de fato fazer previsões efetivas. E assim, a experiência e as expectativas expressariam um Passado
Presente, um Futuro Presente, respectivamente, visto que se realizam no hoje. Ademais, ao passo que não são
simétricas, tais acepções também não compõem uma dicotomia, estando, ao contrário, na posição de
repercutirem-se, reciprocamente.
2
Hans Robert Jauss é um dos expoentes da ―estética da recepção‖. Tendo dirigido seus esforços intelectuais para
transpor a separação entre história e literatura, Jauss dialogou com duas correntes literárias consideradas
12

que representa um ponto de vista subjetivo que acompanha o processo de apreensão do


mundo e que, por isso, fundamenta toda situação interpretativa, sendo um dos loci que vincula
as teorias à prática. Por essa perspectiva, o ato interpretativo dos agentes sociais se
desenvolve em um plano de ideias, crenças e princípios já assimilados, que limitam essa
atividade, sendo esse substrato o referido horizonte. Este que, então, atua como uma memória
intelectual das aquisições realizadas anteriormente. Entrementes, seria nessa memória que as
teorias se sedimentam e, em certa medida, se eternizam, no sentido de manterem-se, em maior
ou menor grau, nas leituras futuras dos atores.

Dessa forma, a dinâmica do mundo social está vinculada àqueles aparatos intelectuais
que, de certo modo, nos explicam as oportunidades e os limites da imaginação política,
econômica, ou cultural que dada coletividade dispõe para ler os acontecimentos e,
consequentemente, para atuar sobre eles. Em outras palavras, os estudos metateóricos nos
auxiliam na compreensão do campo de possibilidades reflexivas que agem sobre a capacidade
intersubjetiva de transformação prática das sociedades. Assim, a aplicação dessa perspectiva
ao campo das Relações Internacionais3 (RI) favorece a compreensão do vínculo entre os
eventos daquele âmbito e a produção teórica correlata.

Ademais, e geralmente, a relevância dos aparatos teóricos reforça-se na medida em


que aquilo que é entendido como realidade por uma teoria (sua ontologia) passa a ganhar mais
destaque do que a qualidade analítica desses discursos. No campo de estudo das RI, tal
situação é identificada com uma transmutação entre epistemologia e ontologia. Isto é, ao invés
de restringir-se a determinar como as RI podem ser estudadas, as metodologias, como o
positivismo, acabaram determinando o objeto de pesquisa da área, estruturando, assim, aquilo
que passou a ser entendido como a realidade na política internacional (PI). Eis o porquê do
olhar desconfiado sobre as consequências da adoção monolítica de um método científico;
afinal, nesse contexto, por exemplo, a epistemologia positivista tem oferecido consequências
ontológicas, já que afeta não só os estudos, mas também as práticas das relações
internacionais (SMITH, 1996).

antagônicas, o formalismo e o marxismo. Após captar as deficiências teóricas de ambas, o autor propôs sua tese
que inverteu o foco tradicional da análise literária (autor e obra) para atentar-se ao leitor e à sua recepção. Nesse
ponto, insere-se o conceito de horizonte de expectativa, que o autor busca em Gadamer, traduzindo um conjunto
de pressupostos condicionados cultural, histórica e psicologicamente, os quais atuam sobre o significado verbal
de uma obra ou sobre as estratégias interpretativas de seus leitores. Cf. JAUSS, Hans R. A História da
Literatura como Provocação à Teoria Literária. São Paulo: Editora Ática, 1994.
3
As Relações Internacionais (RI), quando exposta em letra maiúscula refere-se à disciplina acadêmica, enquanto
que, quando minúscula, traduz o fenômeno das relações entre Estados.
13

Ora, para o desenvolvimento dessa perspectiva reflexiva, tornou-se imprescindível o


redirecionamento das investigações teóricas da disciplina, a qual passa a preocupar-se com a
realização de uma metaciência. O denominado ―terceiro debate‖4 ascendente nas décadas de
1980 e 1990 evidenciou o interesse de estudiosos críticos das RI nos temas, conceitos, e
métodos de autores que já influenciavam as discussões sobre a crise das ciências humanas.
Pensadores como Marx, Foucault, Derrida, Habermas, entre outros, serviram de suporte
intelectual para uma nova geração de teóricos (COX, 1981; ASHLEY, 1981, 1986, 1990;
WALKER, 1993, 1987, LINKLATER, 1998, 2002) adeptos da ideia de ligação entre prática
social e produção de conhecimento. Do ponto de vista das ―margens‖, outros autores
(DUSSEL, 1977; MIGNOLO, 2002; SANTOS, 2002; TICKNER, 1992) também se
dedicaram à análise da dimensão epistêmica da exclusão; ou seja, repensaram a expansão
ocidental (traduzida pela hegemonia do Norte global) como um processo que, além dos
aspectos políticos e econômicos, apresenta, sobretudo, um efeito educacional e intelectual.
Por essa perspectiva, a produção de conhecimento inscreve-se em uma separação espacial,
pela qual se estabelece a superioridade do pensamento emanado dos países centrais, tido
como universal, em oposição à desvalorização das idiossincrasias das demais regiões do
globo, de modo que nós, estudantes latino-americanos, experimentaríamos uma espécie de
distinção geopolítica do conhecimento (MIGNOLO, 2002).

Entretanto, a abertura contemporânea da área à essas reflexões críticas sobre o papel


dos modelos científicos tradicionais apresenta-se gradual. Assim, a formação acadêmica das
RI permanece bastante arraigada a um imaginário marcado pela hegemonia intelectual da
agenda – ontológica e epistemológica – do atlântico norte. Nesse sentido, o currículo
disciplinar do campo das RI no Brasil mostra-se ainda amplamente fundado nas ideias
produzidas no exterior. Sobre essa questão, ao analisar recentemente o desenvolvimento dos
cursos brasileiros de graduação em RI, a pesquisadora Taís Julião apontou um diálogo do
campo nacional com ―tradições teóricas oriundas basicamente de Alemanha, França,
Inglaterra e Estados Unidos, além das perspectivas estruturalistas ou dependentistas,
atribuídas genericamente ao ambiente latino-americano‖ (JULIÃO, 2009, p.131-132).
Todavia, como a mesma autora ressalta, ―no que diz respeito à participação da tradição norte-

4
Nas palavras de Yosef Lapid, ―The demise of the empiricist-positivist promise for a cumulative behavioral
science recently has forced scholars from nearly all the social disciplines to reexamine the ontological,
epistemological, and axiological foundations of their scientific endeavors. The ‗third debate‘ in the field of
international relations parallels this intellectual ferment and constitutes a still maturing disciplinary effort to
reconsider theoretical options in a ‗post-positivist‘ era‖ (LAPID, 1989, p. 235). Vale ressaltar que, na definição
de outros autores (SODUPE, 2003; WÆVER, 1996) essa mesma fase da disciplina é denominada de ―quarto
debate‖.
14

americana, é fato que este país possui a mais robusta contribuição na área em termos
comparativos mundiais‖5 (JULIÃO, 2009, p. 133).

Dentre as importações teóricas daquele país, destacamos o movimento neorrealista


que, por unir a ontologia realista à epistemologia moderna, espelha uma forma de pensar
prevalente6 nos EUA, e, por conseguinte, no mundo. Argumenta-se que essa corrente
fomenta, ou mesmo justifica normativamente determinadas práticas e identidades sociais,
visto que oriunda de um solo particular. Assim, sugerimos que, embora seu início date do
final dos anos 1970, a linhagem desse pensamento possui forte tradição no campo,
constituindo a memória literária das sociedades, que condiciona, por conseguinte, o potencial
reflexivo dos agentes.

Isso é, reconhece-se que a função pedagógica dos quadros acadêmicos, e dos atores
políticos, centrados nessas linhas tradicionais, mantém a influência neorrealista sobre a
construção de nossos horizontes de possibilidades, impondo limites ou oportunidades ao
campo da ação, uma vez que agem sobre nossa capacidade intersubjetiva de formular
hipóteses sobre alterações nas relações humanas em um processo histórico duradouro. Dessa
acepção decorre o que cremos ser, ao menos parcialmente, a relevância do empreendimento
metarreflexivo acerca desse aporte teórico vinculado às RI. Olhar esse que, quando investido
do propósito crítico, torna-se igualmente indissociável do fenômeno histórico da ciência
moderna.

Dessa forma, devido à posição predominante e o legado superlativo que recebeu da


modernidade, o corpo teórico neorrealista formulado por Kenneth Waltz – enquanto
representante do movimento de revisão do realismo clássico – constitui nosso objeto de
análise. Como define Ashley (1986), o neorrealismo pode ser entendido como um movimento
ou um projeto coletivo definido por um conjunto de teorias com fundamentos comuns, sendo
eles o estadocentrismo, o utilitarismo, o positivismo e o estruturalismo. A aceitação dessas
premissas age não só sobre a natureza das questões levantadas, como no próprio

5
Em sua pesquisa, orientada para a investigação sociológica sobre a produção de conhecimento e a área de RI no
Brasil, Taís Sandrim Julião expõe, como um dos motivos da força intelectual dos EUA na área, ―o
desenvolvimento que as Ciências Sociais passaram entre as décadas de 1970 e 1980 com o Behaviorismo e o
Funcionalismo‖ (2009, p.133). Assim, embora seja difícil dimensionar a influências teóricas e metodológicas
daquele país sobre o Brasil, ―a título de síntese e ensaio de sistematização podem-se destacar as seguintes
influências dos Estados Unidos nas RI brasileiras: as abordagens realistas e neorrealistas; o liberalismo político e
econômico aplicado as RI; as teorias da democracia e da paz democrática; as discussões sobre segurança
regional e internacional; os revisionismos teóricos contemporâneos relacionados ao pós-modernismo; as teorias
dos regimes; institucionalismo, multilateralismo e organizações internacionais; política internacional; entre
outros.‖ (JULIÃO, 2009, p.133).
6
Para conferir dados sobre a prevalência dessa corrente nos EUA, ver o segundo capítulo.
15

desenvolvimento do discurso teórico. Dessa forma, as sistematizações desse grupo tendem a


produzir certa convergência de variáveis. Sendo assim, e seguindo a demanda de um recorte, a
proposta aqui apresentada trabalha especificamente com a vertente do realismo estrutural de
Kenneth Waltz, dado seu conteúdo comprometido com as quatro premissas assinaladas.

Como objetivo geral, esse trabalho define o intuito de apresentar e interpretar a teoria
neorrealista de Waltz, discutindo seus direcionamentos centrais nos planos teórico-
metodológico e sociológico relacionados com uma perspectiva crítica. Por meio dessas lentes,
focamos, sobretudo, nos conceitos relacionados ao sujeito político internacional e suas
práticas, dada a importância que tais formulações representam para a imaginação política
exposta na teoria. Nesse sentido, a presente dissertação propõe a hipótese central de que a
produção científica de Waltz contribui para construção de uma ideia empobrecida de política,
visto que se apoia em elaborações tecnicistas. Em termos conceituais, supõe-se que o baixo
grau de consideração normativa e intersubjetiva da teoria neorrealista despojou os atores
internacionais de qualquer axioma ético, confinando suas condutas na prática da
autoconservação e da adaptação. Portanto, a escolha dos fins, em termos conceituais, tende a
regredir-se ao automatismo, problemático pela prescrição de subjetividades conformistas,
desdobradas em ações desprovidas do elemento transformador.

Sobre esse recorte, partimos da noção de que os estudos da agenda pós-positivista7


sobre a vertente neorrealista têm geralmente operado no âmbito da crítica pautada nos
dualismos determinação/contingência ou estrutura/agente. Sendo assim, como propõe Santos
(2002), a renovação da teoria crítica nesse domínio passaria pela inserção das análises
voltadas para questão dual da ação conformista/ação rebelde8. Em outras palavras, presume-se
a relevância das pesquisas orientadas para o esclarecimento das formas de condicionamento,
sejam elas práticas (o trabalho, a educação, a socialização) ou ideacionais (teorias), que
promovem subjetividades rebeldes ou, ao contrário, subjetividades conformistas (SANTOS,
2002, p.33). Por isso, focados no plano das definições conceituais, contestamos as
formulações de Waltz sob o intuito de captar seus desdobramentos sobre a acepção de

7
Essa referência engloba escolas de pensamento como o Construtivismo, a Teoria Crítica, pós-modernismo/pós-
estruturalismo, teorias feministas e pós-colonialistas. Conjuntamente formariam, assim, um dos polos do
‗terceiro debate‘, evidenciando autores como Robert Cox, Andrew Linklater, Richard K. Ashley, R.B.J. Walker,
James Der Derian, Christine Sylvester, dentre outros.
8
Para Santos, ―as acções e as subjectividades são tanto produtos como produtores dos processos sociais. As
determinações consolidam-se na medida em que dominam subjectividades orientadas para identificar limites e se
conformarem com eles, quer porque os acham naturais, quer porque os acham inultrapassáveis. Pelo contrário, as
determinações desestabilizam-se na medida em que prodominam subjectividades orientadas para identificar
possibilidades e as ampliarem para além do que é possível sem esforço‖ (SANTOS, 2002, p. 33).
16

subjetividade e de racionalidade dos atores políticos internacionais, avaliando o tipo de ação


social prescrita pela teoria política neorrealista.

Ademais, a contestação conceitual realizada no plano epistemológico associa-se a uma


segunda proposta que lhe precede e fundamenta. Essa constitui uma investigação de natureza
sociológica e visa o rompimento com os relativos abstratos, naturalizados e universalizados,
por meio do esclarecimento de suas práticas fundantes. Presume-se que a concepção estática
da política formulada pelo neorrealismo, e aludida na hipótese supracitada, resulta de escolhas
metodológicas e recortes ontológicos que, antes de expressarem uma acepção universal de
ciência, compõem uma variável social e histórica relacionada aos valores compartilhados pela
sociedade em que Waltz se desenvolveu, os EUA. Esse argumento vincula-se aos estudos
direcionados a uma reflexão sociológica acerca dos limites e funções das teorias que
fundamentam a imaginação política da área, argumentando pela importância dessa
caminhada, especialmente pelos pesquisadores situados abaixo do equador. Tais questões
inserem-se no debate acerca das implicações da adoção irrefletida dos conceitos de origem
anglo-americana por parte de atores inseridos em experiências diferentes, como os do Brasil,
ampliando o movimento iniciado na década 1990, o qual se configura um compromisso ainda
bastante eurocêntrico, e com desafios para a consolidação.

Nesse ponto, declaramos os horizontes que fundamentam as lentes interpretativas


dessa pesquisa, as quais revisam os conceitos neorrealistas sob a perspectiva de uma nação
ainda com vozes abafadas, em termos de produção intelectual no campo das RI. Sendo assim,
dentre os suportes teórico-metodológicos que informam o quadro geral dessa dissertação,
destacamos a formulação pós-positivista que presume a necessidade da prática reflexiva, dado
o potencial da crítica frente a uma realidade entendida como construto social, e não mais
reificada e imutável. Tal acepção guiou essa pesquisa pelo interesse emancipatório9 da
ciência, para o qual o conhecimento se orienta pela investigação das origens, no caso
ideacionais, da ordem social e sobre como, e quando, elas poderiam absorver um processo de
transformação.

9
Nas palavras de Boaventura de Souza Santos (2002), a teoria critica deve renovar-se ―a partir de uma tradição
epistemológica marginalizada e desacreditada da modernidade, o conhecimento-emancipação. Nesta forma de
conhecimento a ignorância é o colonialismo e o colonialismo é a concepção do outro como objecto e
consequentemente o não reconhecimento do outro como sujeito. Nesta forma de conhecimento conhecer é
reconhecer, é progredir no sentido de elevar o outro da condição de objecto à condição de sujeito. Esse
conhecimento-reconhecimento é o que designo por solidariedade. Estamos tão habituados a conceber o
conhecimento como um princípio de ordem sobre as coisas e sobre os outros que é difícil imaginar uma forma de
conhecimento que funcione como princípio de solidariedade‖ (SANTOS, 2002, p. 29-30).
17

Como apontou a antropóloga Maria Paula Meneses: ―uma das batalhas políticas mais
importantes do século XXI é travada, sem dúvida, em torno do conhecimento‖ (MENESES,
2008, p.7), de modo que, nessa luta, torna-se imprescindível o questionamento da
―possibilidade de diálogos entre várias realidades históricas, entre experiências presentes e as
suas memórias, as quais apontam continuidades e descontinuidades de poder‖ (MENESES,
2008, p.7). Sendo assim, entendemos que revisitar os conceitos do neorrealismo de Kenneth
Waltz integra algumas direções metódicas: a histórica, orientada pela necessidade de repensar
as perspectivas originais que envolveram sua produção; a ontológica, pela qual se contesta as
definições do ser e dos seus sentidos; e, finalmente, a epistêmica, cujo desenvolvimento busca
rever, mesmo que de forma incipiente, os fundamentos da ciência neorrealista, interpretando
seus desdobramentos, e contestando sua validação e extensão a outros contextos. Como
suporte teórico para esses estudos, ressaltamos o argumento formulado pela Teoria Crítica,
nas figuras de Horkheimer e Habermas – vinculados aos desenvolvimentos críticos sobre a
epistemologia cartesiana10 de forma geral – e o debate incitado pelo campo da sociologia do
conhecimento acerca dos fundamentos sociais da teoria.

Durante o desenvolvimento da dissertação, pretende-se seguir tais direções, as quais


dialogam entre si, compreendendo uma rede interconectada de apreciações. Nesse sentido, no
plano das estratégias heurísticas, apresentamos uma análise realizada em três níveis:
interpretativo; sociológico, e crítico, cada qual relacionado a um capítulo da dissertação.
Assim, a sistematização desse trabalho será realizada por meio de três momentos principais
que, embora particulares, interconectam-se e sustentam-se reciprocamente. Explicitamos,
dessa forma, o uso de uma metodologia abrangente e passível de conexões interdisciplinares.

No primeiro capítulo, operamos no nível metateórico, pelo qual apresentamos e


interpretamos a formulação teórica de Kenneth Waltz, em específico aquela relacionada à
obra Theory of International Politics (TIP)11 publicada em 1979, mas ainda desdobrada em
textos contemporâneos do autor. Tal apresentação centra-se nos conceitos e nos modelos

10
Tal empreendimento enfatiza as obras de Horkheimer, como Teoria tradicional e Teoria crítica (1989), Eclipse
da Razão (2000) e Dialética do Esclarecimento(1985) – esta última em parceria com T. Adorno. Da mesma
forma, a produção habermasiana acresce a esta proposta a variável normativa, enquanto peça importante na
política internacional. Sobre esse autor, destacam-se as obras: O discurso filosófico da modernidade (2000),
Teoría de la acción comunicativa – Racionalidad de la acción y racionalización social (1988), entre outras.
Sobre o campo específico das RI, utilizaremos os estudiosos Robert Cox (1981, 2007) e Richard Ashley (1986,
1981) que articulam aqueles intelectuais ao campo específico dos estudos sobre a PI. A esses autores, somam-se
nomes como Nicholas Onuf (1989), Alexander Wendt (1999), dentre outros, que cumprem importante papel na
medida em que oferecem sustentação teórica para problematizar a natureza do conceito de Estado e de suas
ações.
11
Por questões práticas, ao longo da dissertação utilizaremos a sigla TIP quando tratarmos da obra Theory of
International Politics, de Kenneth N.Waltz.
18

científicos que informam o neorrealismo, a fim de compreender como Waltz organiza a


complexa realidade a que se refere, e qual tipo de imagem teórica decorre desse
empreendimento. Nessa seção, a compreensão da teoria de Waltz é realizada por meio de dois
planos centrais e fundados nos debates do campo da filosofia das ciências: o núcleo
epistemológico e heurístico, e o núcleo ontológico, ambos perpassados pela análise
axiológica, explícita e compilada na conclusão específica do capítulo.

No segundo capítulo apresentamos uma investigação sociológica, cujo intuito versa


sobre a contextualização das ideias neorrealistas apresentadas na primeira seção. Presume-se
que, uma vez descontextualizado todo conhecimento torna-se potencialmente absoluto. Daí, a
necessidade de analisarmos as fontes e os significados do neorrealismo, com relação às
experiências, instituições, tradições e práticas que envolveram seu processo produtivo, as
quais geralmente surgem do contato individual com a dimensão coletiva, expresso nesse
estudo pela relação de Waltz com a formação social norte-americana. Para o desenvolvimento
dessa perspectiva sociológica12, fez-se uso dos argumentos lançados pela sociologia do
conhecimento, erguendo-se o texto sob três pilares, ou níveis explanatórios, quais seriam as
dimensões: individual (análise biográfica de Waltz); política e social (estrutura política e
social dos EUA); e institucional (quadros acadêmicos norte-americanos).

Por fim, no terceiro capítulo analisamos especificamente os desdobramentos


conceituais das influências científicas e sociais atuantes no neorrealismo, focando-nos nos
desenvolvimentos teóricos da perspectiva estruturalista que atuam sobre as concepções de
racionalidade das unidades, e sobre a noção de política subsequente. O estudo desenvolvido
nessa seção associa-se a uma análise que lança luz sobre as estruturas de dominação, ainda
produzidas e reproduzidas, em parte, pelo interesse técnico e universalista investido na
epistemologia racionalista. Nesse sentido, o estudo centra-se nos possíveis silêncios
produzidos pelo cânone da racionalidade moderna que envolve os conceitos realistas, dando
ênfase para o conceito do sujeito político internacional.

12
Presume-se que a exposição do sistema conceitual de Waltz segundo a perspectiva sociológica permita a
inteligibilidade da qualidade intersubjetiva do procedimento de seleção – inclusão e exclusão – dos temas que
compõem a agenda internacional neorrealista, que, então, promove o esclarecimento de possíveis consequências
ontológicas, e também políticas, de tal seleção para os agentes ligados aos assuntos privilegiados ou
marginalizados. Sobre esse assunto, inserem-se as análises dedicas a compreender “[...] Whose interests get
represented in international theory? Whose interests and identities are ignored and silenced and seen as
irrelevant?‖ (SMITH, 1995, p.33). Revela-se, pois, a função dos estudos dispostos a problematizar as
implicações pedagógicas da engenharia social (vinculada à abordagem científica de Waltz) sobre a esfera da
política internacional, uma vez que presume-se o papel social da produção de conhecimento, cujo processo de
organização intelectual da realidade age ontologicamente sobre a mesma.
19

Ademais, o interesse cognitivo crítico é, também, um interesse histórico, no sentido de


que não se engaja apenas com as questões do passado, mas também com o movimento
contínuo das mudanças históricas (COX, 1981). Logo, por meio da identificação das vozes
suprimidas, segue-se uma breve exposição das propostas teóricas que auxiliam a reinvenção
da potencialidade de emancipação social, e, por isso, a retomada da própria liberdade prática
como qualidade dos sujeitos teorizados nesse campo. Passemos, então, à primeira seção, que
oferece a base compreensiva para desenvolvimento desses estudos.
20

1 SOB A ÉGIDE DA RAZÃO: A TEORIA NEORREALISTA DE KENNETH WALTZ

Guia-me a só a razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão?
Só ela me alumia.
(...)
Como olhar, a razão
Deus me deu, para ver
Para além da visão –
13
Olhar de conhecer

1.1 Introdução

Em seu primeiro livro, Man, the State, and War publicado em 1959, o cientista
político Kenneth N. Waltz lança as primeiras ideias do que viria a se tornar sua versão
estrutural da reflexão realista sobre a política internacional. Tal consolidação advém vinte
anos depois, em 1979, com a obra Theory of International Politics (TIP) que ganha posição
de destaque dentre as publicações do campo, sendo aquela em que o autor expõe
sistematicamente suas perspectivas científicas, ontológicas e propriamente teóricas, dando
origem a sua vertente neorrealista – também denominada de realismo estrutural.

O presente capítulo foca-se fundamentalmente nesse segundo livro, por meio do qual
Waltz se propõe à três objetivos centrais, quais sejam: examinar as teorias sobre a política
mundial ou os discursos que reclamem certa relevância na área; construir uma teoria da
política internacional que solucione os defeitos das construções passadas; e, por fim, analisar
algumas das aplicações dessa nova teoria. Nas páginas seguintes, dedicamos atenção especial
ao esclarecimento daquele segundo propósito, sobretudo pela centralidade de seu conteúdo
para a compreensão total da obra, importante por oferecer as bases para que possamos,
posteriormente, elaborar uma reflexão crítica sobre tais aportes.

Para realizar esse estudo, empreendemos dois momentos essenciais fundados,


respectivamente, na discussão epistemológica e ontológica da produção intelectual de Waltz.
Nesse exercício, aspiramos a prudência exigida pelos debates em torno de questões de
segunda ordem, dado os riscos imbuídos na atividade taxonômica. Nesse sentido, destacamos
a diversidade de posições acerca das premissas filosóficas que subscrevem a atividade

13
Cf. PESSOA, Fernando. Guia-me a só a razão. In: ______. Poesias. 15 ª Ed. Lisboa: Ática, 1995, p. 138.
21

científica de Waltz, dentre as quais, encontramos classificações que declaram a vinculação do


neorrealismo ao positivismo (ASHLEY, 1986; COX, 1981; KEOHANE, 1986; GRIFFITHS,
1992); outros que o aproximam do realismo filosófico (WENDT, 1999), ou ainda ao anti-
inducionismo de Karl Popper (MOURITZEN, 1997).

Tendo em vista tal consciência, declaramos o intuito do tópico que segue em


compreender e interpretar as lentes científicas por meio das quais foi elaborado o realismo
estrutural, sem, contudo, intuir encontrar uma corrente que as sintetizem. Como aponta o
próprio Waltz, sua escolha do método configura mera escolha tática a uma lógica
metodológica anterior, a qual, no nosso entender, é credora de um conjunto de reflexões
precedentes sobre a filosofia da ciência. São, pois, nesses fundamentos epistemológicos e
metodológicos conduzidos ao seu objeto, a política internacional, que a análise a seguir lança
seu olhar.

No entanto, antes de iniciarmos essa discussão específica à produção de Waltz, cabe


contextualizarmos sua posição histórica como expressão de um legado intelectual precedente.
Afinal, o conhecimento humano compõe um ambiente de intensa permuta social; nele, pesam
valores, contextos políticos, culturais, todos advindos das experiências reais e dos
mecanismos de convencimento e compartilhamento societário de seus atores. A elevação de
determinada simbologia surge, então, da articulação histórica entre os influxos sócio-políticos
concretos, a intersubjetividade de seus receptores e as categorias analíticas historicamente
construídas. Deste último item, retiramos a importante noção de sequência cognitiva, ou
melhor, a consciência da origem social das teorias, as quais partem de algum legado teórico
anterior, seja por uma postura que o contraponha, seja por uma que o confirme.

Revela-se, dessa maneira, um olhar ampliado na atividade de pesquisa, importante por


demonstrar que um objeto de leitura não se restringe às linhas de sua obra chave. Nesse
sentido, iniciarmos nossa reflexão pelo precedente teórico à formulação de Kenneth Waltz
torna-se um empreendimento interessante, uma vez que expande o entendimento histórico
fundacional daquela produção intelectual – tributária dos desenvolvimentos do realismo
político na área dos estudos sobre política internacional. Para compreendermos essa corrente,
retroagimos brevemente a meados dos anos de 1940.

Desde sua ascensão, o pensamento realista intentou delimitar quais seriam as


fronteiras para um estudo ‗genuíno‘ da disciplina de Relações Internacionais. Imbuídos de tal
propósito acadêmico, os teóricos do realismo político dedicaram-se à construção de uma
imagem do Internacional, caracterizadamente autônoma e distinta dos demais objetos de
22

pesquisa das ciências sociais. Nas palavras de John Vasquez, aquela corrente delimitou um
paradigma, por meio do qual ―tells the scholar what is known about the world, what is
unknown about it, how we should view the world if we want to known the unknown and
finally what is worth knowing‖ (VASQUEZ, 1998, p.23).

Ademais, as práticas bélico-estratégicas da Segunda Guerra Mundial enfatizaram o


papel do poder na política mundial, elevando a perspectiva realista à posição de nova
ortodoxia anglo-americana nos estudos – e nas ações – de política externa. A partir de então a
disciplina assume uma linguagem bastante convergente com aquela utilizada pelos pensadores
realistas14, de forma a estreitar os vínculos – ou mesmo impulsionar a confusão – entre esses
postulados e as Relações Internacionais. E assim, abreviadamente, o realismo passa a estar
intrinsecamente relacionado à concepção da disciplina científica e à constituição de sua
comunidade acadêmica, em especial nos Estados Unidos da América e suas regiões de
influência intelectual (GUZZINI, 1998).

Por isso, adentrar o campo de reflexão sobre os debates contemporâneos da disciplina


pressupõe a predisposição do pesquisador ao entendimento daquele discurso, o realismo
político: afinal, o que o define? Frente a esse questionamento, tão comumente – e quase
displicentemente – realizado e solucionado pelos estudantes das RI, é posto o desafio da lupa:
o olhar cuidadoso e atento do investigador. Isso é, ao invés de catalogar-se o realismo por
meio de tipologias estáticas, cabe o reconhecimento de sua diversidade interna; ou ainda,
antes de delinear conceitos e postulados centrais, é necessária a percepção de um debate
endógeno ao realismo, e de sua referência enquanto tradição histórica. Entendê-lo como tal
significa inserir a característica plural em uma unidade já sedimentada. Assim, concebê-lo
como um conjunto de teorias que foram influenciadas por pesquisas e autores precedentes, e
as quais, igualmente, dinamizam um processo contínuo de revisão e debate, do qual se
originam perspectivas variadas, visto que formuladas por um número expressivo de
pesquisadores15.

Investidos dessa consciência dos ―silêncios‖ contidos nos processos de categorização,


podemos identificar e trabalhar com os postulados convergentes ao grupo realista, entendendo
sua estrita função analítica e didática. Nesse sentido, são atribuídas ao realismo algumas

14
―That is, the language of power and interests rather than of ideals or norms. In public discourse in the United
States today, foreign policy prescriptions are rarely justified directly by reference to universal moral principles or
utopian aspirations. When commentators wish to justify policy prescriptions on ethical grounds, they smuggle
their ethics into the ambiguous and elastic concept of the national interest‖(KEOHANE, 1986, p. 9).
15
Dentre os quais, exemplicam: John Mearsheimer, Stephen Walt, Christopher Layne, Fareed Zakaria e Randall
Schweller.
23

assunções básicas como: os Estados (ou cidades-estado) são entes soberanos; tais atores visam
ao poder, tanto como um fim em si ou como meio para outras finalidades; e, por fim, seus
comportamentos são compreendidos dentro de padrões de racionalidade (KEOHANE, 1986)

A origem primária dessas concepções encontra-se na realpolitik divulgada por


Maquiavel16 e seguida por pensadores como Meinecke e Morgenthau (WALTZ, 1979, p.117).
A realpolitik, nesse sentido, indica um tipo de método pelo qual a política externa dos Estados
é conduzida e logicamente estabelecida. No campo específico das RI17, a obra Politics Among
Nations elaborada por Hans Morgenthau inaugurou a tradução desse método para um
conjunto de princípios sistematizados18.

Tal empreendimento intelectual constituiu o que aquele autor denominou de filosofia


do realismo político, com base na qual se comprometeu a construir uma teoria da política
internacional. De forma geral, os postulados filosóficos do realismo se opõem às bases
intelectuais do liberalismo racional19 e estabelecem uma relação mimética entre o
comportamento dos Estados e dos indivíduos. Ou seja, a lógica da teoria parte do paralelismo
entre as relações políticas e o relacionamento entre os indivíduos, ambos fundamentados na
natureza humana.

A essa última, a natureza humana, é atribuída função de explicação metafísica, a partir


da qual decorrem as extensas reflexões acerca das motivações estatais e suas ações correlatas.
Segundo Morgenthau, tal fundamento apresenta-se necessariamente egoísta e direcionado à
busca por dominação e à luta pelo poder. A concepção de política assume um tom cético por
ser caracteristicamente a arena onde a natureza humana se fragmenta no que Morgenthau
postulou como a predominância do animus dominandi sobre os meios da razão ou da moral:

16
Alguns estudiosos adotam uma origem remota para a realpolitk, identificando nas análises históricas de
Tucídides (460 a.C – 400 a.C) o prenúncio da consciência que define essa concepção política.
17
Além de Hans Morgenthau, outros autores destacaram-se nesse contexto de ascensão do pensamento realista,
como John Herz, George F. Kennan e Walter Lippmann.
18
Os seis princípios do realismo político, segundo Morguenthau, seriam: 1) a política é governada por leis
objetivas que deitam suas raízes na natureza humana; 2) o conceito de interesse na política internacional é
definido em termos de poder; 3) tal conceito de interesse constitui uma categoria objetiva que é universalmente
válida, mas não se outorga a esse conceito significado fixo e permanente; 4) há uma tensão inevitável entre o
mandamento moral e as exigências de uma ação política de êxito; 5) as aspirações morais de uma determinada
nação não se identificam com as leis morais que governam o universo; 6) O realismo político sustenta a
autonomia da esfera política. (MORGENTHAU, 2002).
19
Nesse uso, ‗liberalismo racional‘ faz menção à escola de pensamento que, na história dos EUA, desenvolveu-
se com base nas ideias de Woodrow Wilson, embora suas bases intelectuais bebam nos pensadores iluministas,
com destaque para Immanuel Kant (1724-1804) e Hugo Grotius (1583-1654), aos quais Morgenthau faz, então,
oposição. Tal corrente prevaleceu no cenário internacional no período conhecido como entre-guerras (1918-
1939), particularizando-se pelo forte tom normativo, preocupado em promover soluções que findassem os
conflitos bélicos, sendo, por isso, geralmente denominada de Idealismo. Para uma distinção clara e sintética entre
as duas correntes, idealismo e realismo, ver: NOGUEIRA, João P.; MESSARI, Nizar. Teoria das Relações
Internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
24

To the degree in which the essence and the aim of politics is power over man,
politics is evil; for it is to this degree that it degrades man to a means for other men.
It follows that the prototype of this corruption is to be found on the political scene.
For here the animus dominandi is not merely blended with dominant aims of a
different kind but is the very essence of the intention, the very life-blood of the
action, the constitutive principle of politics as a distinct sphere of human activity.
Politics is a struggle for power over men, and whatever its ultimate aim may be,
power is its immediate goal and the modes of acquiring, maintaining, and
demonstrating it determine the techniques of political action (MORGENTHAU,
1946, p. 195)

A perspectiva teórica de Morgenthau é sublinhada por uma epistemologia


comprometida com o que ele chama de ―a store of objective, general truths‖
(GRIFFTHS,1995, p.42) sobre o homem e a política. Tal objetividade e universalidade das
leis da política só são possíveis por meio da consideração trans-histórica e atemporal da
natureza humana que pôde, então, ser eximida das verificações de cunho empírico, ou mesmo
das discussões acerca de seus fundamentos culturais e políticos. Para aquele realista, as
perspectivas envolvidas na caracterização da essência humana e sua relação com um
ordenamento social advêm das reflexões do pensamento político clássico como as elaboradas
por Jeremiah, Platão, Bodin ou Hobbes.

Tal comprometimento metafísico na formulação conceitual da política justifica-se em


Morgenthau pela busca intelectual de minimizar as distorções e contingências que impedem o
entendimento, ou mesmo a aplicação, das ditas ―verdades‖20. Na concepção daquele autor, a
atividade teórica deve partir de uma reflexão filosófica do homem e sua sociedade, e da
identificação, subsequente, de padrões históricos de comportamento e classificação das
condições gerais em que ocorrem. Ou seja, para Morgenthau, teoria empírica, especulação
metafísica e estudos históricos são interdependentes (GRIFFITHS, 1995).

Do ponto de vista das concepções, a estrutura internacional é compreendida pelo


realismo clássico como uma arena que provê os contextos espaciais e temporais necessários
para a realização dos padrões de comportamento resultantes das tensões interestatais. Nota-se
que, nesse cenário, o poder é tomado como condição objetiva, resultante da natureza –
também positiva – dos Estados. Dessa forma, à estrutura internacional caberia o papel de
sublinhar aquelas condições já estabelecidas, mas não o de criá-las.

20
Para a crítica contemporânea, ou pós-positivista, tal atitude seria problemática, uma vez que ofusca o caráter
voluntário e interessado das escolhas políticas a partir do uso de categorias metafísicas – como Deus, Razão,
História, Leis naturais, dentre outras. Sobre esse assunto, ver: VASQUEZ, John. The post-positivist Debate:
Reconstructing Scientific Enquiry and International Relations Theory After Enlightenment´s Fall. In: BOOTH,
Ken; SMITH, Steve International Relations Theory Today. Pennsylvania: Penn State Press, 1995. p. 217-240.
25

Quase três décadas depois, surge a teoria neorrealista num processo duplo de
revigoramento e revisão das concepções epistemológicas e propriamente teóricas expostas
acima. Como integrante dessa linha teórica derivada dos clássicos, aquela corrente mantém os
princípios centrais da realpolitik21, embora os meios e fins sejam vistos diferentemente como
causas e efeitos (WALTZ, 1988, p.616). Ademais, o neorrealismo diverge do pensamento
clássico quanto ao entendimento da ciência, às estratégias metódicas e, consequentemente, à
natureza de certos conceitos. As teorias consideradas neorrealistas surgem em um contexto de
adequação teórica a uma concepção específica de rigor científico e objetividade metódica que
demarcavam o debate acadêmico dos anos 1960 e 1970.

Em síntese, as teorias revisoras originam-se como tentativas de retomar a vertente


realista clássica por meio de uma resposta científica mais rigorosa, a qual evitasse as
categorias sistêmicas vagas e mutáveis da corrente precedente. Para os autores neorrealistas,
um dos erros da corrente clássica teria sido a ausência de uma distinção eficaz entre aspectos
objetivos e subjetivos da política internacional. Os realistas teriam negado a autonomia ao
sistema, ou melhor, não lhe teriam conferido a objetividade necessária para que se constituísse
como fato social passível de ser analisado sistematicamente. Tal deslize metodológico seria
resultado da atitude realista de atribuir um papel ativo à subjetividade dos atores, ou mesmo
às considerações metafísicas no processo de compreensão da arena internacional.

Portanto, entende-se que, de forma geral, as soluções metódicas propostas pelo


neorrealismo se traduzem pelo uso corrente do positivismo e dos critérios de cientificidade
por ele estabelecidos. Tais elementos presumem uma carga normativa progressista dentre seus
autores, que sugerem a ascensão intelectual da disciplina pelo emprego de técnicas objetivas,
já que supostamente minimizadoras do tom filosófico e moral dos textos clássicos e
precursora de uma perspectiva pragmática:

Man, the State, and War explains how balances result not from the malevolence
of men or of states but from the condition in which all states exist. The tendency
of states to balance is rooted in the anarchy of states […]. Conflict is a by-product of
competition and of efforts to cooperate. In a self-help system, with conflict to be
expected, states have to be concerned with the means required to sustain and protect
themselves. The closer the competition, the more strongly states seek relative
gains rather than absolute ones (WALTZ, [1959] 2001, x prefácio).

21
Na percepção de Waltz (1979) a herança clássica pautar-se-ia, essencialmente, em três postulados, a saber: a
política é instrumento necessário e demandado pela competição não regulada entre os Estados; o cálculo
resultante das condições anárquicas pode desvendar as melhores políticas para o interesse estatal; e o sucesso
dessas políticas apresenta-se em termos de preservação e fortalecimento do Estado.
26

Passemos então aos caminhos percorridos por Waltz a fim de alcançar essa proposta
científica que o destaca, e o particulariza, como principal releitura da vertente clássica,
embora agora o façamos conscientes de seu vínculo básico com essa tradição intelectual
realista.

1.2 Núcleo epistemológico: uma reflexão filosófica sobre a teoria neorrealista de


Kenneth Waltz

Embora variado do ponto de vista interno, o neorrealismo pode ser entendido como
um movimento ou um projeto coletivo22, dado que seus autores compartilham um mesmo
contexto de criação, bem como princípios e práticas, orientados ao intuito de racionalizar a PI.
Tal processo caracteriza-se pelo emprego de uma percepção específica sobre a ciência,
compondo uma discussão filosófica particular, impulsionada a partir do século XVII no marco
do pensamento moderno.

É sabido que, durante seu desenvolvimento histórico, os homens produziram


diferentes discursos a fim de analisar e compreender a vida em sociedade. Os conceitos ou
signos linguísticos criados para representar os fenômenos experimentados socialmente
diferenciavam-se pelos critérios de validação ao ato de apreender a realidade. Assim, as
produções cognitivas alternaram-se entre textos literários, religiosos, artísticos e científicos,
cada qual inserido numa forma particular de captar, e representar, o mundo social e natural
(ROCHA, 2002).

Sob tal pluralidade, os filósofos da ciência demandaram reflexões sobre a natureza e as


possibilidades do conhecimento, as quais tradicionalmente se dividiram entre a sustentação
empirista, esclarecida por nomes como David Hume e John Locke; a racionalista,
impulsionada por Platão, mas desenvolvida por Descartes, Leibniz e Spinoza; e, por fim, a
reflexão pragmatista defendida pelos filósofos americanos Willian James, Charles Pierce e
John Dewey. Ademais, outras vertentes fortaleceram-se em épocas contemporâneas, em

22
Segundo Ashley (1986), o neorrealismo representa um movimento intelectual das RI e da Política Comparada,
de origem fundamentalmente norte-americana, e centrado teoricamente na ―virada estruturalista‖. Dentre seus
nomes, além de Kenneth Waltz, destacam-se, Robert Keohane, Stephen Krasner, Robert Gilpin, Robert Tucker,
George Modelski, e Charles Kindleberger.
27

especial a partir da segunda metade do século XX, a exemplo do construtivismo, do pós-


estruturalismo/pós-modernismo, dentre outras.

Essas correntes expressam tipologias referentes às teses epistemológicas e ao núcleo


heurístico que propõem. Ou seja, elas distinguem-se quanto ao modo com que percebem as
condições e possibilidades de conhecimento, como também com relação aos recursos e
ferramentas que disponibilizam para resolver as questões às quais se dedicam. Logo, a cada
época, conforme se desenvolvem os debates, assistimos à ascensão, revisão ou declínio de
programas de pesquisa.

Nesse sentido, ao longo do século XVII, as reflexões intelectuais iniciaram um


processo de hipostasiamento dos trabalhos científicos definidos pelo compromisso com uma
estrutura textual lógica e com o teste empírico capaz de comprovar a relação paralela entre o
discurso e observações coletivamente realizadas. Essa definição, embora amplamente
divulgada, fortaleceu-se a partir de um tipo específico de teoria sobre as fundações do
conhecimento, qual seja, o positivismo.

Conforme aponta Steve Smith (1996), há quatro décadas o positivismo guia a maioria
dos estudos em Relações Internacionais. Nessa perspectiva, os últimos anos marcaram o uso
compartilhado daquela metodologia entre as correntes tradicionais do campo, com exceção
das produções da Escola Inglesa que não se adequaram a tal padrão metódico, aproximando-
se, pelo contrário, das preocupações normativas, historicistas e pluralistas na atividade
científica.

A discussão provida pelo positivismo possui uma longa história nas ciências sociais.
Originado no século XIX com Auguste Comte, aquela corrente traduziu um olhar unificador
das ciências, as quais eventualmente poderiam compartilhar uma mesma metodologia. Tal
transversalidade dar-se-ia pela expansão do método das ciências naturais (a observação) para
as demais áreas de conhecimento. Assim, da matemática à sociologia, encontraríamos uma
sequência de estudos, todos capazes de identificar leis e regularidades nos fenômenos aos
quais se dedicavam. Pois, na visão de Comte, as reflexões cognitivas tendem a uma ascensão
progressiva, partindo de uma base teológica para o conhecimento metafísico, até alcançar, por
fim, o conhecimento positivista.

Ademais, após o século XIX, outras correntes cresceram em solo comum. O


positivismo lógico – ou empirismo lógico – elaborado nos anos 1920, no chamado Círculo de
Viena, exemplifica a primeira variante da linha cronológica sucessora do pensamento
comteano. Enquanto derivação deste último, tal vertente radicaliza as reflexões precedentes,
28

estabelecendo uma visão monolítica sobre o status de conhecimento. Dessa forma, apenas ao
conhecimento científico foi delegada significação cognitiva, devido a seu compromisso com a
prova empírica, qual seria a condição de acesso à verdade.

Comparados aos enunciados de Comte e Saint-Simon, o teóricos do círculo de Viena


criaram ideias distintas quanto à obtenção do conhecimento, não obstante, ambos se
inspirassem na mesma noção de que, nesse processo, a certeza e a verdade eram alcançáveis.
Assim, as teorias que sustentavam proposições metafísicas foram associadas à condição de
pseudociência, uma vez que a única fonte confiável de informações sobre os fenômenos
sociais ou naturais eram os dados obtidos pela observação empírica, devidamente enquadrada
nos discursos científicos.

Desse último princípio, captamos a influência que a tradição filosófica empirista,


formulada por Francis Bacon, John Locke, David Hume, John Herschel e Stuart Mill, exerceu
sobre os positivistas lógicos. Esses que, comprometidos com uma ciência representacional,
logo descritiva do mundo sensorial, contrapuseram-se aos axiomas a priori – ou ‗auto-
evidentes‘, como proposta pelo modelo dedutivo da geometria euclidiana –, sendo, pois,
contrários às proposições metafísicas23, e às noções teóricas vinculadas a entidades não
observáveis. Por conseguinte, os propósitos explanatórios da atividade científica foram
renegados pelos empiristas lógicos, visto que tal objetivo implica a delineação das causas e
efeitos, que, segundo Hume, constituem uma inferência teórica e não uma informação
empiricamente observada (GORDON, 1991).

É, pois, em contraposição a esse formato radicalizado do empirismo lógico que


emergem as reflexões teóricas que sustentam, mesmo que implicitamente, as premissas
filosóficas de grande parte dos estudos tradicionais sobre a política internacional, como os de
Waltz. Tais linhas particularizam-se pela crença no componente explanatório da teoria e na
validade desse componente teórico, embora não neguem completamente o compromisso
metódico naturalista – voltado às regularidades sociais. Essa postura aproxima-se da revisão
realizada por teóricos como Ernest Nagel, Carl Hempel e Karl Popper, que flexionam o tom
extremado dos positivistas lógicos, tornando-se, nas palavras de Smith (1996), as influências
de maior escopo na literatura das RI desde os anos de 1950.

Ao sistematizarem the covering law model, Carl Hempel e Paul Oppenheim (1948), e
Karl Popper (1980) retomaram a explicação como propósito das investigações científicas,

23
Contudo, cabe notar que, em sua origem, a abordagem positivista possui uma raiz metafísica, uma vez que ela
presume existir um mundo em harmonia, visto que criado por Deus.
29

incluindo o desvelamento das relações de causalidade no rol das funções do pesquisador. Tal
atitude compatibilizou-se com o empirismo, por meio de um olhar epistêmico ampliado,
segundo o qual a ciência passa a ser uma atividade produtora de hipóteses teóricas que,
embora não sejam entidades observáveis, possibilitam inferências logicamente deduzidas,
estas sim, relacionadas aos fenômenos empíricos.

Essa reflexão filosófica, pautada num modelo dedutivo-nomológico, já havia sido


lançada há quase um século, por Stuart Mill em System of Logic (1843), que também
influencia as produções teóricas de RI. O ponto de partida de Waltz, e que o diferencia das
correntes clássicas predecessoras, associa-se a essa confiança na existência de uma realidade
externa ao observador, passível de ser conhecida pelo uso disciplinado da razão e pela
aplicação do método hipotético-dedutivo, do qual podem ser apreendidas regularidades e
inferidas hipóteses teóricas. Embora não factuais, tais noções teóricas seriam validadas pela
utilidade que representam para o propósito central da ciência, qual seja, a explanação causal
dos fenômenos. Ou seja, as escolhas metódicas que auxiliaram Waltz na construção da teoria
neorrealista só foram possíveis devido a uma premissa anterior, qual seja: a confiança na
construção do conhecimento objetivo sobre a PI.

1.2.1 É possível conhecer a Política Internacional? Sobre o racionalismo


epistemológico

O questionamento acerca das possibilidades de se construir uma ciência é, sem dúvida,


uma problemática bastante remota, embora permaneça instigante e incite debate, ainda hoje,
entre os que se dedicam a atividade de conhecer e compreender o ambiente circundante.
Logo, dentre as respostas a tal dúvida, muitos foram os que se posicionaram negativamente, e
consideraram impossível alcançar a objetividade demandada pela apreensão científica do
mundo24. Os motivos que designaram foram igualmente variados, e valeriam outro tópico de

24
O ceticismo epistemológico refere-se à desconfiança com relação à capacidade humana de conhecer, a qual
pode assumir graus distintos, dando origem a um leque de versões. Porém, de forma geral, a fundação da linha
filosófica cética é delegada à Pirro de Elis (360-275 a.C.), que expressava a impossibilidade de sustentarmos
posições e argumentações absolutas, uma vez que sempre existirão visões contrárias. Logo, para aquele
pensador, o caminho mais prudente seria a suspensão do juízo (já que ele não provê certezas), preservando, pois,
uma atitude desconfiada frente a todo tipo de dogmatismo. Tal corrente desenvolveu-se nas teses do falibilismo
epistemológico, adentrando, também, no campo ética, em que encontramos expoentes do ceticismo, como o
filósofo Montaigne.
30

discussão. Porém, nosso interesse nesse item dedica-se ao lado oposto do debate, aos
otimistas.

Waltz, assim como grande parte dos teóricos das RI, reconheceu a possibilidade de se
construir uma ciência sobre a política internacional. Para esse empreendimento, os autores do
campo dispõem da reflexão de muitos teóricos que, como eles e antes deles, creram na
construção de conhecimento científico e racional sobre o mundo, muito embora se dedicassem
a áreas de estudo distintas. Na longa lista de autores, encontramos filósofos antigos como
Aristóteles e Platão (século IV a. C.), Descartes e Leibniz (século XVII) e Kant e Newton
(século XVIII).

O programa de pesquisa do racionalismo (como se denominou um dos quadros de


resposta àquele questionamento acerca da capacidade humana de produzir conhecimento, e no
qual Waltz enraíza sua análise) surge emparelhado ao período moderno25, e ao processo de
racionalização do discurso científico impulsionado por Galileu, na astronomia e na mecânica,
e por Descartes, na lógica e epistemologia. A ciência clássica, ou mecânica, provida por esse
período, parte, pois, de uma concepção metafísica do conhecimento, segundo a qual a
realidade constituiria um sistema de causalidades passíveis de serem apreendidas
racionalmente, ou seja, um ambiente dotado de mecanismos relacionais de causa e efeito,
entre um agente e um paciente, passíveis de serem conhecidos, e transformados, pelo
Homem26.

A matriz filosófica do racionalismo clássico amparou-se numa concepção do


conhecimento com valor de verdade associado a um método direcionado à resolução de
problemas e ao esclarecimento de decisões. Tal concepção, segundo Chiappin (2009), é
comum tanto ao racionalismo clássico quanto ao empirismo, vinculado ao legado de John
Locke e David Hume. Para aquele autor, essas correntes se distinguem apenas pelos diferentes
papéis que cada uma atribui à razão e à experiência, quando na fundamentação teórica do
conhecimento. Dessa forma, em suma, o ambiente intelectual contextualizado por Descartes,
Spinoza, Leibniz e Wolff compromete-se com a organização do conhecimento segundo o

25
Tal período não possui cronologia unânime, embora as datas de seu início voltem-se, geralmente, às primeiras
décadas do século XVII. Conquanto sejam ambíguas as datas, os argumentos acerca da modernidade tendem a
apoiar-se em posições convergentes sobre seu vínculo com a racionalidade instrumental. Isso porque é comum
atribuir aos filósofos do século XVII o processo inaugural de inserção corrente de métodos racionais no trato dos
problemas da vida humana (TOULMIN, 1992).
26
Nessa concepção, enquadram-se as leis sistematizadas por Morgenthau (rever nota 18), que delimita tais
princípios como a tradução racional das causalidades naturais que regem o mundo político, atribuindo-lhes, pois,
uma condição objetiva. De forma geral, essas mesmas leis fundam os pressupostos ontológicos de Waltz, cuja
teoria versa sobre uma ―ordem internacional‖ compreendida segundo os padrões teleológicos de causa e efeito,
identificados pelos autores do realismo clássico e resumidos no modelo da realpolitik.
31

modelo geométrico, implicando um declínio gradativo do pensamento de viés metafísico e a


ascensão, paralela, do moderno pensamento científico, associado à busca por oferecer uma
explicação causal dos fenômenos, fossem eles naturais ou sociais.

Portanto, em termos epistemológicos, tal vertente particulariza-se pela visão de que a


experiência por si só não constitui um fundamento adequado para o conhecimento. Para eles,
a natureza possui leis e forças causais as quais, mesmo se inobserváveis diretamente, são
responsáveis pelos efeitos que captamos pelas sensações. Por isso, a função dos sentidos no
empirismo é contraposta no racionalismo pelo papel da razão, que, enquanto propriedade
natural da mente humana, deduz os mecanismos causais em curso. A observação, ou
percepção, perde seu potencial, tornando-se ferramenta parcial no processo cognitivo. Do
ponto de vista racionalista, tais empreendimentos dos sentidos demandam a interpretação
racional, uma vez que o conhecimento só é obtido por meio da significação oferecida pela
razão ao que se é observado ou experimentado.

De forma paralela, Waltz (1979) considera a observação pura um empreendimento


prescindido de vínculo direto com o conhecimento das causas. Assim, retomando os
apontamentos de C. S. Pierce, Waltz explicita o caráter apenas descritivo da experiência
direta, então desprovida de um conteúdo explanatório – o qual seria oferecido pelas teorias. O
caminho indutivo levaria o investigador somente aos ―pedaços‖ do problema de pesquisa, ou
melhor, às leis empíricas que, não raro, compõem uma realidade bastante complexa, dada a
infinidade de ―pedaços‖ possíveis.

Waltz crê que as leis empíricas apontam uma descrição axiologicamente neutra que
estabelece uma relação lógica entre variáveis dependentes e independentes. Tal relação é fruto
de observações repetitivas, as quais possibilitam identificar padrões de ação, cuja
continuidade anterior cria expectativas de reincidências futuras: Se a, então b com
probabilidade x (WALTZ, 1979, p.1). Todavia, tais leis perdem em fôlego explicativo se não
forem associadas a uma teoria com categorias analíticas. A estas caberia função
qualitativamente diversa, visto que demonstrariam os porquês das conexões e repetições
identificas na observação.

Ora, nessa perspectiva, a construção teórica organiza os fenômenos de modo a


explicitar suas relações reciprocamente dependentes, tornando evidente um padrão que não
seria apreciado pelo olhar direto. De acordo com essa atribuição, o papel metafísico ou de
interpretação filosófica da teoria é preterido pela ideia central de explanação. Conforme
aponta Waltz, as leis possibilitam a prescrição, mas somente as explicações teóricas
32

esclarecem os condicionamentos que mantêm a associação regular entre os fenômenos da


realidade. A urgência explicativa advem, pois, do intuito de estabelecer certo controle sobre
as fenomenologias futuras, amparado por valores seculares voltados para a subjugação das
forças da natureza à explicação racional.

Desse modo, Waltz aproxima-se das revisões positivistas, como as de Hempel e


Popper, que reconhecem o papel da teoria na pesquisa científica, por meio do modelo
dedutivo-nomológico, em que uma lei geral, embora hipotética, seria legitimada por serem
verificadas, indiretamente, pela experiência. Todavia, tal modelo esbarra no ―problema da
indução‖, pelo qual a crítica empirista aponta sua invalidade, dado o componente teórico das
premissas.

Frente a esse problema, Popper, ao contrário dos positivistas lógicos, expõe e


reconhece a qualidade imperfeita do conhecimento, criticando o modus ponens da lógica e
propondo sua substituição pelo modus tollens em que se infere uma avaliação da premissa,
pela falsidade da conclusão (GORDON, 1991). Pelo critério da falseabilidade, uma teoria não
pode ser considerada verdadeira pela evidencia empírica, mas pode ser refutada por ela.
Todavia, a esse respeito, Waltz assume postura contrária, criticando a condenação total de
uma teoria pela falseabilidade de uma de suas consequências empíricas.

A discussão de Waltz sobre o problema da indução aproxima-se, em parte, da tese de


―Duhem-Quine‖, na qual os autores não invalidam o papel da observação e falsificação na
avaliação teórica; porém, contrapõem-se à infalibilidade desse instrumento. Para Pierre
Duhem e Willard Quine, qualquer observação de um fato científico possui um número amplo
de explicações possíveis; logo, o falseamento empírico de um deles não deveria forçar à
revisão total da teoria. Ademais, seguindo a proposição do matemático Henri Poincaré, Waltz
flexiona a concepção de conhecimento como certo e verdadeiro, admitindo a natureza
probabilística da ciência, contradizendo a essência positivista sobre o rigor científico. Assim,
tanto para o racionalismo neoclássico, como para Waltz, o conhecimento científico reveste-se
de um aspecto prático e instrumental, cujo propósito orienta-se para a construção de uma
representação, ou coordenação matemática das leis empíricas, de modo que sua utilidade para
compreensão do objeto será mais relevante do que os critérios de verossimilhança com o
mesmo.

A título de exemplo, revemos a resposta de Waltz (1997) às críticas de John Vasquez


(1997); nela, o autor reconhece a natureza instável do mundo social, e a dificuldade de, por
meio de uma verificação empírica, concluir sobre a natureza verdadeira, ou não, de uma
33

teoria. Assim, ele conclui, com auxílio da arguição do físico Weinberg, em prol de critérios de
avaliação mais instrumentais: ―the most important thing for the progress of physics is not the
decision that the theory is true, but the decision that it is worth taking seriously‖
(WEINBERG, 1992, p.103. apud WALTZ, 1997, p.916).

Essa visão substitui a aspiração utópica por verdades, pela busca pragmática de
adequação explanatória aos problemas identificados, sem, contanto, adotar uma postura
aleatória – ―we are not called upon to believe that the scientific theory is empirically true;
only that it is empirically adequate‖ (GORDON, 1991, p.628). Como a teoria
microeconômica, Waltz afirma que o critério de simplicidade e utilidade legitima a natureza
―irreal‖ de seus modelos – como estrutura internacional, unidades racionais –, uma vez que
são funcionais à compreensão da realidade. A inteligibilidade adviria, então, de um processo
cognitivo, pautado na construção teórica lógica e, também, na observação.

Nesse ponto, surge a pergunta: afinal, de posse dessas concepções, como Waltz
constrói sua teoria? No plano das estratégias heurísticas, o realismo estrutural parte da
construção de conceitos simplificadores da realidade e da aplicação da lógica dedutiva
tradicional. Nessa concepção, a teoria é compreendida como uma construção cognitiva cujo
papel seria tornar a realidade inteligível à mente humana. Em outras palavras, as teorias
científicas se dedicam antes à organização e classificação das regularidades empíricas, do que
a sua descrição.

Tal processo de simplificação esta pautado em quatro etapas: isolamento, abstração,


agregação e idealização. O objetivo do procedimento é encontrar o princípio propulsor, ou os
fatores essenciais do fenômeno estudado, de modo a reduzir a infinidade de dados que
compõem a realidade social. Entretanto, a força explanatória de um modelo deve ser obtida
sem o distanciamento extremado da realidade que pretende representar. Como explica Waltz:
―a theory, while related to the world about which explanations are wanted, always remains
distinct from that world. Theories are not descriptions of the real world; they are instruments
that we design in order to apprehend some part of it‖ (WALTZ, 1975, p.8, grifo nosso).

O isolamento de um domínio da realidade para seu tratamento intelectual é


considerado por Waltz como pré-condição para construção teórica. Ao observar o
desenvolvimento da teoria econômica, o autor ressalta a importante atuação dos fisiocratas – e
de seu seguidor, Adam Smith – ao conceberem a economia como um campo de estudo
autônomo, abstraído das demais forças consideradas perturbadoras ou secundárias ao sistema
34

selecionado. Em outras palavras: ―in order to have a theory, you'll have to have a subject
matter, because you can't have a theory about everything‖ (WALTZ, informação oral27).

Entretanto, se a realidade é um conjunto complexo de variáveis, o movimento de


organização e seleção de materiais importantes para sua compreensão torna-se desafio central.
Como apontado, Waltz expressa postura contrária ao uso da indução nessa tarefa, uma vez
que essa reduziria a causalidade à mera correlação extraindo qualquer consideração sobre as
causas ―inobserváveis‖ – como, por exemplo, as estruturas sociais. Dessa forma, o
conhecimento seria alcançado por procedimentos intelectuais, em que a combinação indutiva
e dedutiva deveria ser ultrapassada pela emergência criativa de ideias que sustentem uma
afirmação geral (WALTZ, 1979). Assim, além dos elementos descritivos e das leis gerais
obtidas dedutivamente, a teoria neorrealista é composta por noções não factuais 28, quais
sejam, os pressupostos teóricos29.

As assunções teóricas constituem invenções conceituais, cuja criação é limitada pelas


informações e pelos dados empíricos associados. Tais noções não possuem um significado
fixo, variando de sentido conforme as abordagens e a imaginação dos autores. A validade
dessas construções, segundo Waltz, é calculada conforme sua utilidade em termos de poder
explanatório e prescritivo, que, por sua vez, devem passar pelo crivo da comunidade
científica. Ou seja, Waltz não confere julgamentos empíricos radicais aos pressupostos que
sustentam sua produção teórica. O mesmo se aplica à avaliação da teoria como um todo30;
sobre esse tema, Guzzini resume; ―[According to Waltz] Theoretical analysis starts by
cheking the logic, coherence, and plausibility of a theory. Empirical checks are only necessary
when this first theoretical check has passed‖ (GUZZINI, 1998, p. 130).

No mais, é válido notar que, nessa definição, as teorias, apesar de constituírem


instrumentos mentais distintos da descrição estrita da realidade, não deixam de vincular-se a
tal substrato objetivo: elas dizem respeito a alguma coisa no mundo real independente. Assim,

27
Entrevista concedida por Kenneth Waltz em 2003 ao programa ―Conversations with History‖, produzido por
Harry Kreisler com apoio do Instituto de Relações Internacionais da UC-Berkeley.
28
Como aponta Onuf, ao construir sua teoria Waltz assemelha-se à Milton Friedman, afinal ele: ―acknowledged
the competing tendencies of rationalism and empiricism in Western philosophy by discriminating clearly
between conceptual worlds and the real world‖. (ONUF, 2009, p.193)
29
Dentre os pressupostos teóricos utilizados por Waltz no realismo estrutural, estão: a noção de interesse
nacional pautada na premissa da sobrevivência; o pressuposto do Estado-nação como unidade de análise, ou
mesmo o princípio da anarquia, como condição original, e particular, do ambiente internacional.
30
Sobre as etapas, sublinha-se a ordem: exposição e isolamento das variáveis sob teste; inferência de hipóteses;
submissão das mesmas a avaliações experimentais e observacionais; invenção e aplicação de testes distintos e
necessários e apreciação final dos resultados, seguida de reparos, atualizações ou rejeições completas da teoria
(WALTZ, 1979).
35

o julgamento é dado em termos de sua utilidade, porém sob a condição de que ―if such a
model departs too far from reality, it becomes useless‖ (WALTZ, 1979, p.7).

Portanto, abreviadamente, K. Waltz constrói o realismo estrutural visando edificar


uma imagem simplificada de determinado domínio da realidade, utilizando, para tal,
processos especulativos que criem noções teóricas com forte potencial explanatório. O desafio
relaciona-se, então, com a articulação de conceitos teóricos a poucas variáveis, a fim de captar
relações, ou explicações, das quais possa inferir hipóteses testáveis empiricamente (WALTZ,
1979, p.17).

Por meio dessas acepções, podemos compreender os caminhos que conduziram o autor
até o conceito de estrutura internacional, identificando a função da abordagem estruturalista
no estabelecimento de um domínio independente da PI, qual seria, para Waltz, o fator
condicionante para uma possível teorização acerca desse objeto31. Ou seja, a noção teórica de
estrutura justifica-se enquanto recurso operacional, ou metódico, quando posicionada no
contexto das fundações epistemológicas do autor.

Afinal, apenas crendo na possibilidade de apreensão racional do mundo, e na


qualidade simplificadora e explanatória da teoria, que Waltz pôde engajar-se na construção
conceitual que reduzisse as diversas relações da política internacional a princípios causais,
quais foram, a qualidade anárquica e posicional do modelo estrutural. É de posse das
definições supracitadas que compreendemos porque, quando questionado sobre os modos de
conhecer o fenômeno internacional, Waltz responde: ―not in the reductionist manner of the
past‖ (RUGGIE, 1986, p.132).

1.2.2 Como conhecer o Internacional? Sobre o método estruturalista

Concernente aos apontamentos epistemológicos de Waltz, a força explicativa de uma


teoria pode ser pensada em termos de sua habilidade em demonstrar como fenômenos
aparentemente independentes são, na verdade, resultados de uma ontologia comum. Tal
método aproxima-se do projeto de Adam Smith, que, por sua vez, apoiou-se nas realizações

31
Para Waltz, sem tais ferramentas a PI permaneceria conforme pensavam os realistas clássicos, a exemplo de
Hans Morgenthau e Raymond Aron: um ambiente multicausal, cujas variáveis (economia e política nacionais e
internacionais) estariam inter-relacionadas e expostas na construção teórica. Embora descritivamente ricas, tais
abordagens, na visão de Waltz, não formulam um corpo teórico suficientemente forte, em termos explanatórios.
36

de Newton no domínio da filosofia da natureza. Como esse último, que desvelou as conexões
implícitas que uniriam os fenômenos naturais, Adam Smith buscou revelar os princípios que
conectavam e ordenavam a vida social. Abordando o método newtoniano, esse autor declara:
―Nos dá prazer ver os fenômenos que considerávamos os mais inexplicáveis todos deduzidos
de algum princípio (normalmente um princípio bem conhecido) e todos unidos em uma
cadeia‖ (SMITH, 1985, p.133-134).

Traduzindo para a linguagem da teoria social, tal questão revela-se na preocupação


filosófica, prescrita desde Hobbes, quanto ao entendimento dos padrões regulares que
emergem e persistem nas sociedades, para além das contingências da interação humana. O
―problema da ordem‖, como se denominou essa reflexão, é importado para as RI de modo que
grande parte dos teóricos da área ―at some point, confront the puzzle of how action is
arranged to form the patterns and institutions of everyday life‖ (GODDARD and NEXON,
2005, p.12). Assim, na linha neorrealista, questiona-se como o mundo político internacional,
mesmo preterido de uma autoridade comum, constituiria um fenômeno ordenado; ou, mais
especificamente: como e por que os atores internacionais continuam balanceando seus
comportamentos mesmo sob uma condição de anarquia?

Segundo Waltz, as respostas oferecidas ao problema hobbesiano têm configurado, em


grande parte, discursos reducionistas. A terminologia reducionista corresponde à atitude
metodológica de identificar as causas das regularidades sociais operando no nível individual
e/ou nacional, e assim compreender o fenômeno coletivo pela análise das partes – seus
atributos e interações.

Embora tais níveis sejam válidos para alguns estudos, Waltz não os consideram
instrumentos de compreensão para o problema da ordem, uma vez que o nível da unidade não
representa, em sua concepção, o lócus das variáveis da política internacional, tomada como
fenômeno autônomo e contínuo. Seguindo o raciocínio do autor, pressupõe-se que, se há
similaridade de resultados mesmo frente a mudanças nas características particulares dos
Estados, é porque devem existir forças estruturais constrangendo e interpondo-se aos atores
unitários e suas ações.

Por conseguinte, na perspectiva waltziana, a redução do macro às propriedades do


micro nega logicamente qualquer autonomia causal à estrutura, que se torna mero
epifenômeno dos processos realizados no nível das unidades. Ademais, segundo o aparato
metódico assinalado, a consideração das condições internas dos Estados, ou da síntese das
políticas externas dos mesmos, como fontes de inferências da PI, inviabiliza a construção de
37

generalizações lógicas válidas, por constituírem processos com um número infinito de


variáveis, as quais, não raro, assumem características subjetivas.

O realismo estrutural fundamenta-se na visão de que as teorias reducionistas são


incapazes de lograr explicações suficientes sobre a ordem internacional. Para aquela
abordagem, o princípio causal responsável pelas regularidades da política internacional deve
ser buscado na própria estrutura social do objeto, como exposto na TIP – ―the system should
be treated as its own best explanation‖ (WALTZ, 1979, p.78). Ou seja, os mecanismos de
socialização e competição providos pela condição anárquica do sistema constituem fonte de
explicação para o equilíbrio de poder, tomado como regularidade comportamental dos atores
internacionais.

A predileção pelo nível sistêmico exposto nas formulações de Waltz resulta de um


processo gradativo, que se inicia com a investigação geral sobre os três níveis de organização
metodológica e conceitual dos discursos sobre o internacional exposta em Man, the State, and
War (1959). Tais estratificações, denominadas Imagens, foram definidas de acordo com o
local onde se encontrava, segundo diferentes interpretações, o nexo de causas centrais da
guerra, sendo elas: o Homem, o Estado, e o Sistema de Estados. Sobre esse trabalho, Waltz
comenta:

In relating the first and second images to the third, I viewed the third image as
"the framework of state action" and "as a theory of the conditioning effects of
the state system itself." [...] What I then called "the state system," I later defined
more precisely as the structure of the international political system. Strictly
speaking, Man, the State, and War did not present a theory of international politics.
It did, however, lay the foundation for one (WALTZ, [1959] 2001, ix prefácio).

Assim, a terceira imagem – como foi denominada a abordagem sistêmica de que se


vale o neorrealismo – identifica os motivos dos conflitos bélicos na condição anárquica da
estrutura internacional, isto é, na ausência mesma de uma estrutura social: constrangimentos
institucionalizados capazes de alterar e ajustar os interesses particulares32. Ao passo que
internamente dotados de uma estrutura política e organização militar, os Estados, quando no
ambiente externo, experimentam a condição reversa. No entanto, de acordo com o
neorrealismo, tal ausência de uma instituição surpranacional torna-se em si uma estrutura

32
Como definiu Waltz ―a ausência de uma autoridade acima dos Estados para prevenir e conciliar os conflitos
que surgem necessariamente de vontades particulares significa que a guerra é inevitável‖ (WALTZ, 1959,
p.225). Entretanto, ao desenvolver seu conceito de estrutura, Waltz elabora sobre os processos de socialização,
os quais denotam um sentido social, mesmo que estreito, à força estruturante (ver página 43 e 44, do tópico
1.3.1, desse capítulo).
38

geral capaz de manter a sobrevivência das unidades, e também de incitar seus desastres
(ONUF, 2009).

Nessa descrição há uma versão preliminar da conhecida arguição de Waltz sobre a


qualidade estruturante da anarquia internacional, a qual é exposta claramente em 1979 com a
publicação da TIP. Entrementes, podemos identificar noções prévias e paralelas também no
ensaio International Structure, National Force and the Balance of World Power (1967). Nele,
a estrutura revela-se na ausência de pressões institucionalizadas, mas produtoras de padrões
espontâneos de regulação distributiva do poder internacional, ou seja, do mecanismo de
equilíbrio de poder (ONUF, 2009). Ademais, naquele mesmo ano, é publicado Foreign Policy
and Democratics Politics, cuja análise, embora focada na segunda imagem, compreende o
comportamento dos atores a partir do tipo de estrutura política que os envolve.

Desse modo, conforme abordou Ashley (1984), há diversos aspectos em que a posição
final de Waltz converge com o propósito estruturalista. Primeiramente, haveria uma
aproximação ideológica entre as perspectivas, uma vez que o método estruturalista corrobora
a postura neorrealista, contrária ao conhecimento fenomenológico e especulativo do
pensamento clássico. Isso porque os recortes investigativos elaborados pelo olhar estrutural
distanciam-se das práticas sociais em si, especificando seus objetos nas condições lógicas (ou
sistêmicas) que sublinham as ações, sugerindo proposições explanatórias das mesmas.

Ademais, pela análise de Ashley, Waltz adere ao estruturalismo pautado no modelo


contemporâneo de ação e realidade social, como encontrado na metodologia de Émile
Durkheim. Por conseguinte, o autor adota a concepção da estrutura como fator determinante
da evolução coletiva, ou seja, a noção de que o sistema social, após sua formação via
associação individual, ganha status ontológico destacado de suas partes, apresentando
características próprias capazes de constranger as ações das unidades33. Como explica Waltz:

A system is then defined as a set of interacting units. At one level, a system consists
of a structure, and the structure is the systems-level component that makes it possible
to think of the units as forming a set as distinct from a mere collection. At another
level, the systems consist of interacting units (WALTZ, 1979, p. 40, grifo nosso).

No entanto, além do legado estruturalista deixado por Durkheim, podemos destacar


como heranças teóricas de Waltz os estudos em antropologia social, pela via de S.F. Nadel e

33
Sobre a sociabilidade humana, Durkheim diz: ―(…) whenever certain elements combine and thereby produce,
by the fact of their combination, new phenomena, it is plain that these new phenomena reside not in the original
elements, but in the totality formed by their union‖ (Durkheim, 1964, p.103).
39

Meyer Fortes, especialmente no que concerne aos fundamentos da relação entre a estrutura
social e suas unidades34:

On the one hand, Waltz‘s own intellectual history suggests that structural-
functionalism plays a greater role than has commonly been recognized. Waltz (1986:
71–2) derives his understanding of social systems not only from Durkheim ―
himself a functionalist ― but also from organizational theorists and anthropologists;
among the latter, S.F. Nadel (1957) and Meyer Fortes (1949) play critical roles […]
(GODDARD and NEXON, 2005, p. 22).

De forma geral, o paralelo entre o neorrealismo e as reflexões daqueles antropólogos


relaciona-se com a importação das qualidades projetadas nas sociedades primitivas africanas,
(bastante compatíveis com o pensamento metafísico do realismo) para a definição teórica da
estrutura anárquica da política internacional. Ademais, tal paralelismo confere-se na
influência do modelo posicional proposto por Nadel, e da orientação funcionalista-estrutural
de Meyer Fortes. Tais elementos serão apresentados ao longo do capítulo, quando abordamos
as entidades e os processos que compõem ontologicamente o neorrealismo, e cuja análise se
inicia na sequência.

1.3 Núcleo ontológico: o modelo posicional

Conforme abordado, a versão neorrealista de Waltz ergue-se sobre um substrato


ontológico desenhado pelos fatores estruturais, os quais sugerem uma relevância causal desses
elementos sobre as unidades interativas do sistema. Logo, sobre o quadro de entidades
analisadas, identificamos uma marginalização do componente micro, qual seja a descrição
interna dos Estados e suas formas de relacionamento.

Retomando os argumentos de Nadel, Waltz (1979) salienta a ambiguidade inerente ao


termo ―relação‖, cujo significado pode referir-se tanto às formas de interação entre os Estados
(nível das unidades), como à posição que eles ocupam vis a vis aos demais (nível do sistema).
Dessa forma, o autor esclarece o fundamento ontológico de sua teoria por meio do uso restrito

34
Sobre esse assunto, ler: GODDARD, S.; NEXON, D. Paradigm Lost? Reassessing Theory of International
Politics. European Journal of International Relations, v.11, n. 1, 2005, 9-61; e SAMPSON, A.B. Tropical
anarchy: Waltz, Wendt, and the way we imagine international politics. Alternatives, v. 27, n.4, 2002, 429-57.
40

daquele termo ao segundo sentido assinalado, do qual se deriva a característica organizacional


do seu conceito de estrutura. Para aquele autor, a disposição das unidades – ao contrário de
seus atributos e formas de interação – constitui a propriedade genuinamente sistêmica e, por
isso, imagem central de sua explanação.

Pelas lentes de Durkheim a estrutura social traduz a organização e as leis associativas


pelas quais as unidades são combinadas para formar a totalidade sistêmica. Nesse sentido,
seria uma estrutura de posições relativas, em que cada posição não possui significado
substantivo, senão uma definição relacional. De forma semelhante, Waltz define seu modelo
de estrutura segundo um ponto de vista posicional. Tal vetor organizativo em conjunto com a
variável de poder material representa o fator capaz de reduzir fenômenos internacionais
aparentemente independentes. Por redução, referimo-nos àquele processo metódico utilizado
por Smith, ou como explica Dessler:

It‘s a process achieved by showing how independent phenomena – symptoms and


signs that could and do appear independently in other circumstances, such as
cough, fever, muscular aches, and so on – are features of a given ontological
process – the workings of a virus (DESSLER, 1989, p. 446).

Dessa forma, demarca-se o intuito neorrealista de compreender a posição de cada


Estado na estrutura e o princípio dessa disposição como causas interpostas entre as ações dos
agentes políticos e os resultados que produzem. Isso é, como nexo causal que liga as
diferentes existências condicionais dos eventos internacionais. Assim, percebemos a
correspondência entre a escolha metodológica do autor pela perspectiva estruturalista (ao
invés da reducionista) e a descrição ontológica desse mecanismo, pela disposição das
unidades (ao invés da interação). Ademais, nesse modelo a estrutura é compreendida como
um ordenamento das forças materiais, em que pesam a distribuição de capacidades e recursos
de poder. Mediante tal foco, apresenta-se o aspecto materialista do conceito que abstrai as
considerações ideacionais do ator estatal, estruturadas em forma de princípios, normas e
instituições.

Ainda sobre o modelo posicional da teoria sistêmica neorrealista, voltemo-nos à sua


origem: afinal, como é criada a estrutura? Para respondê-la, Waltz utiliza um raciocínio
análogo ao da teoria microeconômica ―who describes how an order is spontaneously formed
from the self-interested acts and interactions of individual units‖ (WALTZ, 1979, p. 89). Ou
seja, define-se a noção de ordenamento por correlação à acepção de equilíbrio de mercado da
teoria econômica neoclássica. Nessa, o equilíbrio das partes constitui resultado não
41

intencional da ação dos agentes econômicos maximizadores de utilidade. Ao contrário da


teoria cibernética, em que o equilíbrio é fruto da ação da própria estrutura (como pré-requisito
para a reprodução e adaptação do sistema), na teoria neoclássica lemos uma ordem de origem
individualista, concebida pelo impulso do indivíduo nesse processo (GUZZINI, 1998).

Nesse sentido, o autor revela a intensa influência que a teoria microeconômica


encerrou em suas formulações, aproximando-o do legado de Adam Smith, do qual importa
premissas de um atomismo político, fundado na tese de que os agentes individuais são
racionais e autointeressados. Dessa forma, Waltz entende que a emergência da estrutura
consiste em um processo espontâneo, realizado por meio da interação dos Estados egoístas
guiados pelo princípio utilitário da autoajuda.

Assim, embora individualista em sua origem, depois de formada a estrutura social


adquiriria identidade própria, capaz de afetar e limitar o comportamento de seus criadores, no
caso, os Estados nacionais. Como o autor descreve, ―once formed, a market [that is, the
system] becomes a force in itself, and a force that the constitutive units acting singly or in
small numbers cannot control‖ (WALTZ, 1979, p.90). Tal concepção somada ao caráter
posicional do conceito conduz ao que Waltz considera ser a validade do modelo, o qual
produz explanações sobre a política internacional mesmo frente às variações de
personalidade, comportamento e interação das partes.

Por fim, com relação aos processos que compõem a teoria de Waltz, lê-se que os
elementos sincrônicos, frequentemente vinculados à estrutura, são destacados em detrimento
das qualidades dinâmicas do sistema, geralmente interligadas às unidades. Portanto, a política
internacional no neorrealismo fundamenta-se em uma imagem uniformizada dos atores
estatais, visto que focalizada nas questões unicamente relacionais dos mesmos. Sendo assim,
passemos, na sequência, do modelo à teoria, ou melhor, à definição específica dessa estrutura
internacional tomada como objeto de explanação substantiva.

1.3.1 Estrutura política internacional: definições teóricas

No tópico anterior compreendemos o que a estrutura na perspectiva neorrealista


significa (uma força organizacional espontaneamente originada pela ação individual); porém,
ainda nos faltam as definições de seu funcionamento e de como ela influi sobre suas partes.
42

Para esclarecer tais demandas, ou seja, para caracterizar a estrutura política internacional,
Waltz parte de três parâmetros base, a saber: o princípio ordenador; a diferenciação formal
entre as partes, e, por último, as capacidades relativas das unidades.

Com relação à ordenação do sistema, são postos dois modelos possíveis traduzidos
pelo tipo de princípio que coordena a disposição das partes, quais sejam: anárquico ou
hierárquico. No caso específico do ordenamento internacional, a anarquia configura-se como
dispositivo central: ―None is entitled to command, none is required to obey‖ (WALTZ 1979,
p. 88). Como efeito decorrente da descentralização do sistema político internacional, a
segunda variável torna-se inoperante. Isso porque, segundo Waltz, apenas em ambientes
marcados pela hierarquização, como no interior dos Estados, em que predominam as relações
de dominação e subordinação, seria possível pensar a diferenciação funcional entre os
componentes.

A condição compartilhada de soberania torna uniformes os papéis desempenhados


pelas unidades do sistema internacional, implicando relações de coordenação. Ao falar em
soberania, Waltz remete-se à autonomia que cada unidade possui de enfrentar e solucionar
seus problemas, internos e externos, da maneira que lhes convir. Dessa forma, estabelece-se a
semelhança entre os Estados, pela isonomia de funções – os fins a que aspiram são similares –
sem precisar considerar as desigualdades (tamanho, riqueza, poder, etc) existentes entre as
partes do sistema.

Por conseguinte, a anarquia e a ausência de diferenciação funcional entre as partes são


tomadas como parâmetros ao invés de variáveis. Apenas o terceiro critério referente às
capacidades relativas das unidades aponta uma fonte de variação estrutural verdadeiramente
efetiva. Assim, os sistemas se diferenciam conforme a distribuição dos recursos entre os
Estados, ou seja, de acordo com o número de polos de poder (bipolar ou multipolar) que
organizam o cenário internacional35. Sobre esse ponto, Waltz acrescenta o argumento sobre o
concerto bipolar constituir o modelo organizacional capaz de gerar maior estabilidade entre
seus participantes, devido, principalmente, ―a clarity of relations that is ordinarily found only
in war‖ (WALTZ, 1964, p. 901)36. Por conseguinte, o cenário multipolar operaria pelo

35
Nesta questão vale ressalva quanto ao discernimento entre ‗capacidades‘ e ‗relações‘, capaz de evitar a
confusão entre número de polos e existência de blocos. Para o realismo estrutural, um sistema bipolar, por
exemplo, só pode ser inferido da preeminência de dois blocos, caso esses sejam líderes, ou seja, caso possuam as
maiores capacidades materiais do sistema. Nas situações em que há o relacionamento entre dois blocos, mas
estes constituem Estados sem potência, tal condição deixa de ser determinante para a qualificação da estrutura
como bipolar.
36
Influenciado pela dinâmica desenvolvida entre as duas superpotências contemporâneas, os EUA e a URSS,
Waltz pontuou: ―never before in modern history have the great powers depended so little on the outside world,
43

contraste àquele, representando um contexto de relações flexíveis e interdependentes, de


modo que ―there are too many powers to permit any of them to draw clear and fixed lines
between allies and adversaries and too few to keep the effects of defection low‖ (Waltz, 1979,
p.168).

Com isso, Waltz substitui o objetivo estatal clássico de maximização do poder, pela
maximização da segurança, que seria alcançada por meio da manutenção, por parte dos
Estados, de seu posicionamento no sistema – manter a distribuição de capacidades
equilibrada. O autor trata do poder no sentido posicional, ou seja, opera com a distribuição do
poder a qual, ao contrário do atributo particular da unidade, constitui uma variável estrutural.
A posição do Estado é medida conforme suas características materiais relativas, essas que, na
definição de Waltz, representam um conjunto de fatores – tamanho da população e território,
capacidade econômica, força militar, estabilidade política e competência – os quais, no
cálculo geral das posições, devem conjugar uma única variável explicativa. Assim, preterem-
se as considerações quanto à estrutura política específica das unidades, como o tipo de
governo (democrático, autoritário, legítimos, ou revolucionários), e os interesses e
preferências respectivos. O que resta, é uma imagem geral do sistema, da qual se depreendem
expectativas a partir do tipo de composição que as grandes potências constituem – sejam dois,
ou múltiplos polos de poder.

Ao definir a arquitetura internacional como esfera uniforme, onde não há


diferenciação funcional entre as unidades, Waltz fortalece o papel da estrutura enquanto
fomentadora de uma relação pré-institucional entre os Estados, uma espécie de ordem
rudimentar, cuja força é capaz de constranger os padrões de comportamento das unidades. Tal
estrutura age como mecanismo seletor, ao passo que gratifica alguns comportamentos e pune
outros, limitando, portanto, o leque de ações dos atores, fazendo-os produzir resultados
semelhantes mesmo quando seus esforços e objetivos variam.

Embora ativa, a estrutura internacional não funciona como um agente, mas influi de
forma indireta sobre os resultados. Os efeitos que produz sobre o comportamento estatal são
consequência de dois processos pervasivos: a socialização e a competição entre os atores.
Segundo Waltz, ambos os mecanismos são fundamentais a diversos tipos de sociedade, sejam
elas domésticas ou internacionais.

and been so uninvolved in one another‘s economic affairs, as the United States and Soviet Union have been since
war‖ (WALTZ, 1988, p. 624). Nesse sentido, Waltz acrescenta a função central da nova tecnologia militar,
expressa pelas armas nucleares. Segundo sua tese, tais mecanismos de guerra auxiliaram na manutenção da
estabilidade pacífica da relação entre as potencias.
44

A lógica da socialização, tal qual definida por Waltz, parte da construção recíproca de
uma relação de alteridade entre as unidades. Nesse sentido, aponta-se a circularidade das
relações entre os Estados, pela qual os atores, além de influírem um sobre o outro, também
são influenciados pela situação criada pela interação. Uma vez engajados na relação social, a
ação e reação dos Estados compõem um ambiente que modela seus comportamentos. Assim,
entende-se que para além de responderem uns aos outros, os atorem respondem às tensões
geradas pela interação.

Segundo o neorrealismo, a estrutura política internacional, enquanto formação coletiva


produz ―estados de consciência‖ – modos de agir e reagir – exteriores às unidades, e, por isso,
dotados de um poder de coerção em virtude do qual se lhes impõe. O processo de socialização
cria normas comportamentais, as quais são consolidadas pela dinâmica circular que prevê a
tendência dos atores a induzir comportamentos análogos àqueles de caráter integrador, ou
vitoriosos, promovidos por alguma das unidades do sistema. E, assim, a estrutura social reduz
a diversidade de ação e estimula a conformação:

Socialization brings members of a group into conformity with its norms. Some
members of the group will find this repressive and incline toward deviant behavior.
Ridicule may bring deviants into line or cause them to leave the group. Either way
the group's homogeneity is preserved (WALTZ, 1979, p.75-76).

Conforme aponta David Dessler (1989), a descrição de Waltz correlaciona a noção de


socialização com o processo pelo qual os comportamentos dos Estados são ajustados a um
conjunto de regras determinadas. Para aquele autor – como será aprofundado no último
capítulo – o modelo posicional da estrutura configura-se como um agregado de condições
causais relativamente fixas, reproduzidas involuntariamente de maneira tal que, mediante o
constrangimento e modelamento das ações, a estrutura permanece sem transformações.

Assim, a interação social dos Estados tende a produzir um padrão comportamental que
preserve as qualidades da estrutura, no caso, a condição anárquica. Segundo Waltz, em
sistemas pouco organizados ou segmentados, como o internacional, a socialização age nos
segmentos, postulando, por exemplo, a busca pela sobrevivência enquanto princípio de ação
externa das unidades. A competição, por sua vez, opera entre os elementos, levando-os a
ajustarem seus comportamentos criando um tipo de regulação sistêmica. Ou seja, no ambiente
anárquico, o processo competitivo constrange os atores a balancearem o poder dos demais, de
modo a equilibrar a distribuição de capacidades e manter as sobrevivências respectivas: ―the
45

structure is defined by the distribution of power; actors react in conformity with their position
therein; their action inevitably tend to restore a balance of power‖ (GUZZINI, 1998, p.134).

Conclusivamente, a teoria de Waltz possui relações causais chave – a anarquia


estrutural, no nível sistêmico, e a motivação pela sobrevivência, no nível do ator – das quais
são inferidas hipóteses no plano da ação. Assinala-se, pois, uma teoria de dupla causalidade
com expectativas delas derivadas, tanto coletivas quanto individuais. Como assinalado, na
esfera dos resultados sistêmicos, Waltz edifica a hipótese de que, dados os constrangimentos
da anarquia, os Estados tendem a estabelecer relações de equilíbrio de poder entre si. No nível
da unidade, postulam-se padrões de ações relacionados à lógica do self-help – segundo a qual
cada Estado deve prezar pela sua própria segurança.

Quanto a esse último nível, Waltz confere à característica anárquica da esfera


internacional o papel de constranger o modo como cada unidade define os fins e meios de
suas ações voltadas para o exterior. Nesse âmbito, as unidades funcionalmente semelhantes,
porém diferentemente posicionadas, trabalham para manter sua parcela de independência. E,
portanto, tendem a enfraquecer os laços de solidariedade entre si.

Nota-se, novamente, um suporte durkheimiano na argumentação de Waltz, que define


o sistema internacional como um ambiente regido pelos padrões da solidariedade mecânica.
Esse tipo de engrenagem social, nas palavras de Durkheim, caracteriza as sociedades onde a
consciência coletiva é bastante extensa, havendo pouco espaço para o desenvolvimento das
individualidades. Essa condição traduz um ambiente de divisão do trabalho simples, em
oposição às sociedades profundamente especializadas. Nessas últimas, como exemplifica a
estrutura interna dos Estados, os segmentos tendem à intensa interdependência entre si, dado
as tarefas diferenciadas que realizam e os diferentes bens que produzem e trocam (WALTZ,
1979, p.104).

A interação consequente dos altos graus de especialização fortalece a unidade do


organismo social doméstico, caracterizados pela solidariedade orgânica. Ao contrário, a
estrutura internacional, na visão de Waltz, conta com pequenos índices de coesão social, uma
vez que a solidariedade decorrente desse meio deve fundar-se nas similitudes compartilhadas
pelas unidades independentes. O fraco atrelamento entre as partes tornam baixos os riscos de
interrupção da relação, explicitando um ambiente de incerteza e pouco estímulo à cooperação.

Nos conceitos específicos de Waltz, as estruturas internas dos Estados condicionam


uma vivência de interação interdependente entre as partes, enquanto a estrutura externa gera,
no máximo, uma frouxa condição de relacionamento entre os membros. Tal situação é
46

sublinhada pela lógica da autoajuda, de forma que, no sistema anárquico – em que os atores
prezam pelo ganho relativo devido à preocupação com a posição vis a vis aos demais –, os
Estados se opõem a toda possibilidade de especialização que estimule a criação de
desigualdades. Do mesmo modo, nessa concepção, as chances de intensificação do
entrelaçamento social são evitadas por abrirem os canais de dependência entre os Estados.

Dessa forma, as condições pouco harmônicas do sistema seriam respostas espontâneas


do tipo de princípio ordenador. Afinal, não obstante a estrutura waltiziana seja horizontal,
porquanto anárquica, existe uma hierarquia consequente da distribuição de capacidades
materiais entre os Estados. Tal diferenciação em termos de poder faria com que os Estados se
engajassem no ―dilema da segurança‖37, o qual, por sua vez, aprofundaria as condições
favoráveis à disputa e pouco prováveis à ação coordenada. Afinal, na concepção de Waltz, a
busca estatal pela manutenção ou aprimoramento de suas posições relativas, acarreta na
escolha tática por meios como a manobra, barganha ou conflito.

Todavia, segundo neorrealismo, a possibilidade constante do uso da força por parte


dos Estados, ao invés de gerar o caos, atua no sentido de limitar as manipulações e incentivar
a resolução dos litígios. Com isso, a disponibilidade do recurso de poder não significa a
ocorrência constante de guerras, mas a condição de iminência do fenômeno, o que, por si,
regula a força como mecanismo primeiro dos Estados, trazendo estabilidade ao sistema.

Conclui-se, pois, a condicionalidade do mecanismo do equilíbrio de poder às


características de um ambiente composto por mais de dois Estados, dispostos pelo princípio
da anarquia e pela lógica da autoajuda. Tal modelo descreve os efeitos dos constrangimentos
emergentes da estrutura internacional sobre o comportamento coletivo. Ressalta-se, portanto,
que a esse suporte explanatório não competiria a investigação das condutas particulares das
unidades, mas, sim, das dinâmicas geradas pela totalidade social. Isso porque o mecanismo do
equilíbrio de poder, na literatura neorrealista, intenta esclarecer a forma como a estrutura
separa politicamente as ações individuais estatais dos resultados obtidos. Isso é, explica como
condutas similares surgem quando os Estados ocupam posições sistêmicas semelhantes,
mesmo que seus atributos sejam distintos.

37
―Groups or individuals living in such a constellation [anarchic] must be, and usually are, concerned
about their security from being attacked, subjected, dominated, or annihilated by other groups and
individuals. Striving to attain security from such attack, they are driven to acquire more and more power
in order to escape the impact of the power of others This, in turn, renders the others more insecure and
compels them to prepare for the worst‖ (HERZ, 1950, p 157).
47

Conforme aponta Ashley, Waltz intentou manter teoricamente a autonomia da esfera


política por meio do caráter essencialista e racional atribuído ao conceito de equilíbrio de
poder. Nesse sentido, esse conceito passa a ser uma propriedade do sistema, uma lógica
inerente, racional e calculada segundo os interesses do Estado pela segurança, e não pela
maximização do poder. Logo, balancing, ―not bandwagoning, is the behavior induced by the
system‖38(WALTZ, 1979, p.126).

Dessa forma, são esclarecidas as condições da ação (ou os vetores estruturais) que
dinamizam a agência das unidades no sistema, quais sejam: a anarquia e a distribuição de
capacidades. No entanto, como aponta Keohane, o canal de influência entre os âmbitos,
agente e estrutura, não se realiza diretamente. Segundo esse autor, o vínculo entre a estrutura
sistêmica e o comportamento dos atores no neorrealismo é realizado pelo auxílio da
importante noção de racionalidade, no sentido instrumental. Tal premissa funcionaria como
garantia aos analistas de que os componentes de um sistema reagirão aos constrangimentos
infligidos pelo ambiente coletivo.

Como já assinalado, Waltz busca investigar os fenômenos internacionais, de modo que


deles possa inferir leis gerais que estabeleçam relações estáveis entre causas e efeitos. Para
tal, a exemplo da teoria microeconômica, a preferência por parte dos atores e as ações
constrangedoras da estrutura devem ser assumidas enquanto constantes:

At the market level, dynamics are the result of individual utilitarian value
maximizing behaviour. Here, individual preferences must be assumed and held
constant. At the individual level, the so-called invisible working of the market must
be taken for granted theoretically and held constant, for explaining individual
behavior (GUZZINI, 1998, p.129).

Dessa forma, apenas estabelecendo a semelhança entre os Estados, que visam


igualmente, e primordialmente, à sobrevivência (objetivo básico e permanente) e que para tal
possuam um conduta relacionada à cálculos racionais de custos e benefícios de suas ações
(modelo do ator racional), é que Waltz consegue fazer com que os constrangimentos da

38
Tomado enquanto comportamento universal, o balanceamento dinamiza-se segundo o número de polos
existentes, sendo a configuração pautada em poucos polos mais tendente à estabilidade do que um desenho com
múltiplas potências. Assim, para Waltz, a distribuição bipolar carrega as possibilidades de um resultado mais
pacífico para as interações estatais. Isso porque evitam-se os riscos de cálculos errados no momento de
formulação estratégica, evitando-se igualmente as incursões bélicas deles decorrentes. Como explica Hans
Mouritzen: ―Internal balancing (each superpower regulating its own balancing strength; for example, through
rearmament) is easier to control than balancing through alliance formation. Systemic interdependence —
which may provoke conflict — is especially low during bipolarity, as the two poles are likely to be quite
self-sufficient‖ (MOURITZEN, 1997, p. 75).
48

anarquia sobre os atores sejam validados (GUZZINI, 1998). Ao presumir que os Estados são
entidades sensíveis ao custo, isso é, racionais, o autor ativa a sobrevivência enquanto um
princípio comportamental sistêmico, valendo-se dele para derivar toda uma cadeia de
dinâmicas na anarquia.

1.3.2 Unidades interativas: uma perspectiva estadocêntrica

International structure is defined in terms of their primary political units of an era,


39
be they city states, empires or nations

Como assinalado, a noção de estrutura pressupõe padrões sociais que influem sobre o
comportamento das unidades. Logo, estrutura e agente estão logicamente implicados, de
modo que conceber uma das partes demanda, ao menos hipoteticamente, a existência da
segunda. Para o neorrealismo, tais unidades interativas da estrutura internacional são
determinadas segundo a força política que representam para a dinâmica externa.

Nesses termos, o mundo desde Vestfália assistiria a ascensão e a manutenção da


entidade Estatal enquanto ator central da disciplina. Segundo Waltz, embora outros agentes
(os movimentos transnacionais, as corporações multinacionais, ou os organismos
internacionais) possuam existência internacional empírica, o mesmo não ocorre no sentido de
sua relevância política, quando comparados aos Estados soberanos. Portanto, afirma-se a
posição de que o conjunto interestatal permanece influindo de forma preponderante os rumos
da política internacional, e por isso representaria o coletivo da estrutura analisada.

Num olhar mais detido, podemos ainda captar um segundo recorte dedicando atenção
aos Estados líderes do sistema, ou seja, àqueles com posição privilegiada na estrutura,
proveniente de uma capacidade material superior aos demais. Tal enfoque apresenta-se como
estratégia metodológica, uma vez que o sistema interestatal se caracteriza por um grande
número de unidades. Optar pela lógica do small-number possuiria, ademais, conveniência
ideológica, visto que o neorrealismo advoga pela preeminência das unidades hegemônicas,
entendidas como as únicas potencialmente capazes de agir sobre o desenho distributivo da
arena internacional.

39
WALTZ, Kenneth N. Theory of International Politics. Nova York: Mac Graw Hill, 1979, p.91.
49

Porém, qual modelo acerca da natureza desses atores é adotado pelo neorrealismo? De
modo geral, os modelos tradicionais sobre o conceito de Estado estabelecem-se pelas
explanações Weberianas, Pluralistas ou Marxistas. Dos realistas clássicos aos autores
neorrealistas, identificamos uma preferência pelo padrão exposto por Weber, no qual o Estado
é tomado como ator organizacional e intencional, cujas funções assumem duas frentes (uma
doméstica e outra internacional), sendo elas: a manutenção da ordem interna; e a promoção da
integridade externa frente aos demais Estados. O sucesso dessas ações relaciona-se com as
estruturas fortalecidas do Estado, então prescrito, internamente, pelo monopólio legítimo do
uso da força e, externamente, pela soberania.

Como sabemos, o estudo das relações internacionais, conforme desenvolvido pelo


neorrealismo, atém-se à face externa do Estado, cujas funções e características são tomadas
enquanto apartadas do âmbito interno dos mesmos. Assim, o padrão posicional do realismo
estrutural abstrai as motivações e intenções dos atores, ou melhor, considera-as constantes,
delineando-as como presunções exogenamente determinadas. Com tais elementos invariáveis,
abre-se espaço para os fatores de viés materialista, destacados na percepção neorrealista. E,
deste modo, apenas a quantidade de Estados e suas capacidades relativas constituem variáveis
explicativas importantes.

Não obstante, Waltz realiza suas conceituações a partir de presunções neste nível
micro. Assim, a estrutura internacional é composta por um tipo de agente corporativo, o
Estado, cujo status ontológico supera a ação dos indivíduos que o compõem. Para o
neorrealismo, o Estado conta como um agente internacional, cujo comportamento assume
atribuições antropomórficas. Ou seja, as ações políticas são motivadas por interesses e
expectativas do ator que, dotado de capacidade cognitiva racional, relaciona ambos
determinantes num plano eficaz de alcance dos fins estabelecidos.

As estruturas estatais são tidas como agente unitário e fenômeno real. Para Waltz, tal
validade empírica justifica-se pelos padrões comportamentais que aquele gera ao longo do
tempo. Já a unidade e coerência da agência corporativa, seria oferecida, segundo Wendt
(1999), pela institucionalização temporal da ação coletiva, e o atrelamento das condutas
individuais sob a identidade nacional geral. E assim, mesmo sob a negação do olhar
reducionista, Waltz acaba adotando premissas implícitas, e imprescindíveis, sobre as unidades
sociais da PI.

Nesse sentido, o interesse nacional do ator seria composto por uma base material, as
capacidades, mas também por postulados ideacionais, vinculados à motivação dos agentes e
50

ao caráter do processo que os conecta. Com isso, Waltz (1979) estabelece: a preocupação
central dos Estados é a segurança, uma vez que a perseguição de outros objetivos só faz
sentido se a sobrevivência estiver assegurada. Embora Waltz defenda que tal característica
constitua uma derivação sistêmica40 e um resultado da lógica de socialização41, ao invés de
uma descrição subjetivista, notamos que tal premissa é prescrita por postulados sobre natureza
dos Estados:

By security-seeking waltz means something more: that states want to preserve what
they already have rather than try to get more, for example by conquering other states
or changing the rules of the system. This does not follow from wanting to survive.
After all, what if one can survive and conquer others? Or what if one believes the
only way to survive is by doing so? Schweller argues that by assuming that states
are security-seeking Waltz is tacitly assuming they are satisfied or ―status quo‖
powers (WENDT, 1999, p. 104).

Assim, mesmo com o intuito de substituir o tom psicológico dos enunciados teóricos
do realismo clássico, o neorrealismo de Waltz não conseguiu escapar à caracterização
subjetiva do ator, por mínima que seja. E, portanto, a natureza agressiva e oportunista contida
na visão de Morgenthau torna-se a conduta defensiva e prudente do Estado waltziano.

Ademais, cabe notar que o Estado representa uma figura egoísta, voltada a seu próprio
interesse, seja esse expansionista, ou mantenedor do status quo. Por fim, a dinâmica externa
seria o resultado da combinação entre natureza dos Estados, suas capacidades materiais e a
anarquia da estrutura internacional. O ciclo derivado, e quase tautológico, gera o sistema de
autoajuda em que o medo e a insegurança pressionam os atores às corridas armamentistas,
podendo chegar a guerras de fato, embora essa não seja a norma recorrente do sistema, que
tende, pelo cálculo geral, à estabilidade das condutas do equilíbrio de poder.

Como vimos, a determinação de causalidade aos agentes políticos reflete as premissas


filosóficas que subscrevem tal formulação, podendo esclarecer toda uma cadeia de deduções
lógicas desenvolvidas pela teoria. Conforme a base social ontológica sobre a qual se
fundamentam os estudos da motivação estatal, originam-se categorias de racionalidade, as
quais podem ser individual, coletiva, ou simultaneamente individual e coletiva. Nesse sentido,
analisaremos a seguir a noção do Estado, a partir do modelo do ator racional. Afinal,
estabelecida a natureza dos interesses (egoísta, voltado à segurança) e das expectativas
40
―The survival motive is taken as the ground of action in a world where the security of states is not assured,
rather than as a realistic description of the impulse the lies behind every act of the states‖ (WALTZ, 1979, p. 92).
41
―Internationally, the environment of states action, or the structure system, is set by the fact that some states
prefer survival over other ends obtainable in the short run and act with relative efficiency to achieve that end‖
(WALTZ, 1979, p. 93).
51

(insegurança sobre a ação dos demais) dos Estados, falta-nos compreender como tais vetores
se relacionam. Para tanto, voltemo-nos ao entendimento da orientação instrumental.

1.3.2.1 O modelo do ator racional

Na perspectiva racionalista, a compreensão da agência intencional resume-se pela


equação: desejo mais crenças geram comportamento. Nesse quadro, o primeiro elemento
relaciona-se com os interesses e as preferência do ator; já o segundo reflete o conjunto de
ideias e expectativas desse mesmo agente sobre o ambiente. Para a abordagem racionalista,
cada um desses determinantes constitui uma esfera independente, de forma que a formação
dos interesses está desconectada da dimensão ideacional e social do ator, caracterizando-se
por preocupações materiais e individualistas.

Dessa forma, a relação entre os desejos e as crenças realiza-se por meio de um


raciocínio instrumental, de modo que tais elementos não exercem função constitutiva entre si.
Assim, enquanto os interesses atuam como os motores ativos da ação, as ideias operam
passivamente como meios para a realização dos desejos construídos exogenamente (WENDT,
1999). A racionalidade instrumental caracteriza, pois, o potencial cognitivo capaz de articular
eficazmente os interesses particulares com as expectativas sobre o ambiente, de modo a
maximizar as chances de ganho pessoal.

Tal descrição instrumental, quando confrontada ao conceito intersubjetivo compõe as


antípodas de um dos debates mais importantes do campo da teoria social. Afinal, desde 1980
aos dias atuais, a problemática da racionalidade (se cognitivo-instrumental ou intersubjetiva)
permanece como alvo de contestação e discussão no campo. Na área das RI, o discurso
neorrealista, como grande parte das teorias tradicionais, apoiam-se naquele primeiro
entendimento da razão: uma faculdade cognitiva voltada ao cálculo instrumental dos custos e
benefícios envolvidos no processo decisório ou de formulação política. Acentua-se, pois, a
opção do neorrealismo por uma fundamentação teórica racionalista e pelo método positivista,
os quais se associam a esse entendimento singular do comportamento social.

Portanto, a busca pelo rigor científico implicou a teorização de um tipo particular de


subjetividade (modo de ser e agir dos atores), geralmente definido pelo modelo do ator
racional, tal qual descrito, originalmente, pela teoria econômica neoclássica. A importação da
noção de racionalidade instrumental para o campo das ciências sociais realizou-se
52

majoritariamente por meio da teoria da escolha racional e representou a introdução nos


estudos humanísticos de um modelo de abstração matemático e de um determinismo
preditivo.

Os contornos centrais da chamada teoria da escolha racional foram demarcados por


autores como Kenneth Arrow, Anthony Downs, William Riker, James Buchaman, Gordon
Tullock e Mancur Olson. Influenciados pela teoria econômica e pela lógica definida aos
consumidores, tais autores formularam um tipo de ação social sublinhada por postulados
comportamentais específicos, cuja carga normativa se aproxima da atitude geral de
maximização de interesses particulares. Essa vertente buscou edificar uma atitude racional
perante as circunstâncias de decisão social, de modo que, numa situação de escolha, a única
motriz da ação individual seriam os interesses e desejos pessoais do ator42.

Com isso, argumenta-se que a conduta política seria o produto da cognição individual
e instrumental capaz de relacionar eficazmente recursos escassos com fins definidos
autonomamente. A hipótese do interesse egoísta torna-se um suporte previsível e estável para
edificar uma teoria objetiva da racionalidade sociopolítica. Isso porque o vetor solipsista
catalisa a simplificação da ação social estabelecendo elementos comportamentais fixos,
aumentando a possibilidade de antecipação das condutas observadas.

Nesse sentido, destacamos o modelo do ator racional enquanto produto de uma


posição científica específica, bastante afim à postura metódica de Kenneth Waltz. O
entendimento acerca de uma realidade positivada, da qual se utiliza apenas os parâmetros
substantivos, compatibiliza-se com o engajamento metodológico de Waltz vinculado à
depuração da realidade empírica. Nesse sentido, Waltz identifica no comportamento
instrumental e racional, exposto pela teoria da escolha racional, os elementos considerados
fundamentais para a explicação teórica elegante da conduta estatal.

Para compreender os traços do modelo racional, e o subsequente desenvolvimento


pelo neorrealismo, devemos ir além do reconhecido legado utilitarista. O movimento de
constituição da noção da racionalidade instrumental, ou econômica, remete-se à filosofia
política do pensamento liberal no século XVII, e incorpora as caracterizações subjetivas de
autores como Hobbes e Adam Smith (CARVALHO, 2006). Para eles, o indivíduo,
experimentando uma ânsia incontrolável de desejos num contexto de escassez (como,
supostamente, caracterizar-se-ia o cenário internacional) passa a adotar uma postura de

42
Autores como Olson, Coleman, Hechter, Elster e Reis desenvolvem a ideia cognitivo-instrumental da
maximização dos interesses individuais como substrato único da ação social.
53

satisfação pessoal por meio do cálculo racional das consequências de cada ação para seu
ganho particular.

Consoante ao apontado, o neorrealismo compreende o Estado como uma máquina de


maximização capaz de avaliar43 os dados de oportunidades dispostos no processo de
interação, e a partir daí optar pelos fins mais eficazes para atingir seus objetivos definidos de
forma autônoma. A capacidade do ator racional de se autogovernar em relação aos interesses
existentes no processo interativo expressa uma noção de liberdade, segundo a qual o
indivíduo não sofre influência das dimensões fora de si para a elaboração de seus interesses,
muito embora, segundo Waltz, no momento das escolhas, as pressões estruturais sublinhem as
ações.

O comportamento racional lida com fins egoístas visando, de forma abreviada, à


segurança e ao poder particular. Nessa perspectiva, os agentes definem o sentido de suas
ações considerando apenas suas consequências correlatas, para si próprios. Assim, a definição
do ator estatal enquanto uma entidade racional implica, resumidamente, em dois pontos
chave: primeiro, o Estado é dotado de uma reflexão consciente, calculada e constante dos
custos e benefícios das ações, demonstrando uma capacidade de controlar, e conhecer, os
fatos e as regras do jogo envolvidos na interação; em segundo lugar, os agentes tendem a
perceber o mundo, e os outros atores, enquanto mecanismos operacionais para a realização de
seus interesses pessoais, refletindo, assim, seu caráter instrumental (CARVALHO, 2006).

Tais características espelham, ainda, uma condição anterior referente aos processos de
individualização submetidos a uma teleologia social competitiva. A teoria da ação que se
desdobra desse contexto funda-se na noção de competição como modo de interação essencial,
traduzindo, filosoficamente, uma noção oportunista do homem, e uma percepção hobbesiana
do mundo. Como veremos no último capítulo, Waltz faz uso da noção de ator racional
estratégico, em oposição à formulação paramétrica44, conforme exposto pela teoria dos jogos.
Para essa corrente teórica, nas relações competitivas a consideração do Outro fica restrita à
consciência do atrelamento mútuo das ações racionais entre os jogadores, de modo que estes,

43
Dentro do próprio campo da escolha racional, encontramos posição contrária à ideia de um cálculo racional
preciso por parte dos atores. Esta postura defende a proposição de uma racionalidade limitada (bounded
rationality) devido ao aparato de informação incompleta que os indivíduos possuem. J. March e H. Simon
expõem essa perspectiva na obra ―Teoria das Organizações‖ (1979).
44
Basicamente, num sistema interativo, a ação pressupõe o envolvimento do ator num ambiente em que os
objetivos e ações dos outros atores influem sobre suas condutas e decisões. Todavia o ambiente paramétrico
representaria a situação contrária, i.e, àquela em que o ator poderia se despojar dessas variáveis, considerando os
demais atores como constantes (ou como parâmetros). Assim, o sucesso de suas decisões dependeria apenas de
seu controle sobre as informações, sem a consideração direta das decisões dos demais agentes.
54

nos termos da atitude solipsista, visariam balancear as expectativas de comportamento dos


demais participantes (VON NEUMANN; MORGENSTERN, 2004).

Pelo olhar da teoria dos jogos, os agentes racionais estão envoltos por influências e
restrições conjunturais, advindas da estrutura de resultados possíveis. As decisões de cada
ator estão conectadas à dos demais, criando uma causalidade geral, da qual podem derivar
equilíbrios distintos. No caso do realismo estrutural, seus atores estariam inseridos
espontaneamente num ambiente competitivo, cuja natureza homogênea e estratégica impede
um equilíbrio social otimizado. Ou seja, supõe-se que as unidades interativas compartilham
um conhecimento comum de racionalidade, que, somado à proposição do alinhamento de
crenças, produziria a expectativa negativa de uma conduta instrumental geral, reforçando a
dificuldade de compatibilização das vontades e, por consequência, de cooperação. Em termos
sociológicos, o neorrealismo aponta um tipo de ação sistemicamente integrada, isto é,
realizada de forma objetivada, em que os elementos da relação se entendem como meio para
alcançar seus fins privados.

Cabe retomarmos, então, o uso de uma concepção pré-social da racionalidade, que


abstrai a formação identitária realizada pela relação entre os componentes da comunidade
internacional. Nesses termos, o fundamento das ações políticas internacionais edifica-se pela
articulação entre a utilidade pessoal e o pensamento estratégico dos agentes (mesmo sendo
eles coletividades). Assim, tais modelos não exploram, ou problematizam as preferências e
interesses dos Estados, cujo processo de constituição apresenta-se estável, sendo gerados por
uma carga normativa privada: o interesse na segurança.

Estabelece-se, portanto, um ciclo de reforço entre a estrutura anárquica e a ação


instrumental. Captamos nesse atrelamento uma das propriedades normativas do realismo
estrutural, voltada ao intuito de sistematizar uma autorregulação social para a política
internacional. Nesse sentido, a construção neorrealista estabelece uma premissa fundamental
(o interesse pela sobrevivência e a condição anárquica), integrada a um mecanismo geral de
restabelecimento espontâneo do equilíbrio sistêmico (resultado do comportamento cognitivo-
instrumental geral). E, portanto, nos desenvolvimentos de Waltz, o equilíbrio de poder passa a
ser uma propriedade comportamental do sistema e uma lógica inerente e automática do
sistema interestatal.

Por fim, percebemos como as categorias explanatórias fundamentais ao neorrealismo –


como a anarquia, a lógica da autoajuda, e o equilíbrio de poder – estão intrinsecamente
associadas à definição do Estado como subjetividade transcendental, e individualista. Como
55

conclui Ashley, o neorrealismo trairia, dessa forma, seu propósito de combater o atomismo
lógico dos realistas clássicos, afinal, ―from start to finish, Waltz‘s is an atomist conception of
the international system‖ (ASHLEY, 1986, p.288). Aponta-se, pois, a importância dessa
análise acerca das premissas do ator estatal, as quais, embora geralmente pouco refletidas,
geram efeitos sobre a esfera da socialização, e sobre a própria imagem da política
internacional, conforme teorizado por Waltz. Voltaremos a esse tópico, no último capítulo,
quando problematizamos esses postulados suprarreferidos com suporte do conteúdo ulterior.

1.4 Conclusão: um epígono da ciência moderna

Nesse capítulo apresentamos a teoria neorrealista elaborada por Kenneth Waltz,


compreendida como uma tentativa de formalizar o discurso realista, opondo-se ao viés
pluralista dos discursos clássicos que assumem a interdependência do ambiente internacional,
implicada na inviabilidade de se isolar tal domínio das demais variáveis (como economia e
política nacionais). Logo, ao contrário das versões precedentes, Waltz esclareceu seu intuito
em desenvolver uma noção de estrutura política internacional, a qual possibilitasse pensar as
RI como uma matéria ―that could be studied in its own right‖ (WALTZ, informação verbal).

Nesse sentido, o autor teve de realizar algumas escolhas metodológicas que


adequassem sua teoria a tal propósito, deparando-se, portanto, com os trabalhos de Adam
Smith e seus seguidores. Esses que, influenciados pelo modelo newtoniano, e por princípios
do jusnaturalismo e da filosofia estoica, formularam o projeto disciplinar das ciências
econômicas. Projeto, esse, alcançado pela identificação intelectual da cadeia invisível que
ligaria as ações humanas, conduzindo-as a uma sociedade economicamente harmônica.

De forma semelhante, Waltz enxergou nas estratégias explicativas das ciências


naturais, (vinculadas à identificação de causas e à construção de explanações dedutivo-
nomolóticas) um caminho metódico eficaz para se isolar o domínio da PI, e, assim, torná-la
um campo de estudo autônomo com relação às demais áreas das ciências sociais. Nesse
sentido, a lógica metodológica prescrita no neorrealismo sustentou a definição da estrutura
internacional enquanto variável independente, cujo potencial explanatório adviria de sua
capacidade em reduzir a diversidade dos condicionantes sociais numa lógica causal, capaz de
desvelar os comportamentos e resultados sincrônicos do sistema. Como aquele autor aponta:
56

―in order to get beyond ―the facts of observation‖, as we wish irresistibly to do, we must
grapple with the problem of explanation” (WALTZ, 1979, p.6 grifo nosso).

Todavia, o autor pouco disserta sobre em que consistiria esse exercício, ―a


explicação‖. Não obstante, a partir do exposto nesse capítulo e em conformidade com outros
analistas (NEUFELD, 1993; WENDT, 1999) podemos sugerir que para Waltz a explicação
seria uma atividade debruçada sobre as causalidades, e não sobre a constituição dos elementos
analisados. Em outras palavras, as estratégias explicativas buscariam responder aos porquês
da dinâmica externa – por que determinados comportamentos são prováveis em dadas
circunstâncias? – ao invés de compreender como foram construídas as condições sociais que
tornaram tais práticas possíveis (DOTY, 1993).

De forma geral, os discursos explicativos raramente problematizam a natureza dos


atores ou o ambiente de significados, responsáveis pelas ações internacionais. Como aponta
Neufeld (1993), ao passo que Waltz não se detém em enunciar claramente o escopo de sua
explicação, ao menos deixa explícito o que sua estratégia heurística não seria: um exercício
interpretativo ou hermenêutico. Ou seja, o objetivo explanatório do neorrealismo não visa
iluminar o motivo dos atores numa ação, muito embora termine por edificar-se sob as
premissas vinculadas a essas questões. Como argumenta Keohane, o realismo estrutural de
Waltz ―lies less in his initiation of a new line of theoretical inquiry or speculation than in his
attempt to systematize political realism into a rigorous, deductive theory of international
politics‖ (KEOHANE, 1986, p.15).

Haveria nessa conduta metodológica traços da filosofia naturalista45. Isso é, a premissa


de que haveria uma continuidade entre as investigações humanísticas e naturais, uma vez que
tais campos não contariam com uma distinção nítida de modelos, por empreenderem uma
mesma acepção de ciência, em que a epistemologia deveria, ao menos, ser informada pelos
resultados de investigações empírico-científicas. Ademais, àquela influência naturalista de
Waltz, somam-se componentes cartesianos. Isto é, a opção epistemológica prescrita no
neorrealismo encarna o valor do mundo moderno: subscrito pela ação privilegiada da razão
humana (aqui referida como faculdade cognitiva) sobre as intempéries da natureza. Assim,
conforme as propostas do movimento filosófico iluminista, a acepção filosófica de Waltz

45
De acordo com o postulado balconiano da una scientia universalis, a estrutura da ciência estaria voltada à
identificação de uma lógica unívoca, capaz de ligar os primeiros princípios, aos enunciados observáveis.
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 22). O grau de universalidade dessa lógica formal tornaria, então, as
ciências equivalentes.
57

parece vincular-se à inserção de métodos racionais na apreensão intelectual dos problemas da


vida social e do mundo natural (TOULMIN, 1992).

Logo, o neorrealismo engajou-se na produção científica como empreendimento


formal, na qual a racionalidade técnica deveria despojar qualquer julgamento valorativo. Por
essa perspectiva, ―scientific discourse cannot critically examine the meaning structures at
work in and accounting for scientists‘ mutual recognition of the concepts they deploy.
Scientific discourse can speak decisively only to the efficiency of means‖ (ASHLEY, 1986. p.
284).

Retrocedendo no tempo, esse processo de formalização do discurso científico


inaugurou-se no campo da epistemologia pelos trabalhos de Descartes 46, que promoveram o
estilo theory-centered para os estudos humanísticos. Nesse sentido, os estilos do campo de
estudo da ética, ou da história foram marginalizados por operarem com um tipo de
racionalidade científica diversa. Assim, com a ciência moderna, as preocupações mantidas
pela renascença humanista são abandonadas pela negação de quatro formas diferentes de
conhecimento prático47: o conhecimento oral; o particular; o local e o transitório (TOULMIN,
1992).

Conjuntamente, tais mudanças expressaram uma transformação histórica no modelo de


ciência, pela qual a filosofia prática (orientada a casos temporal e localmente situados)
redireciona-se a fim de alcançar uma concepção teórica da filosofia (TOULMIN, 1992).
Embora antigas, essas modificações estenderam-se a muitos dos modelos de pesquisa
humanísticas, vigentes ainda hoje. Esses que, desde então, passaram a privilegiar o uso do
raciocínio formalizado expresso nos métodos abstratos e permanentes (comum aos campos,

46
Cf. DESCARTES, René. Discurso do Método. Trad. Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala, 2006.
47
Dessa forma, os valores científicos impulsionados com a modernidade, limitaram a noção de ‗racionalidade‘
aos argumentos teóricos que atingissem uma certeza quase geométrica, privilegiando os modelos da física,
comparativamente aos demais, preteridos de valorização cognitiva. Assim, com o advento das reflexões de
Descartes, a retórica deixa de ser reconhecida como um campo legítimo da filosofia por fundar-se em
argumentos apoiados na percepção humana. Afinal, a partir da tradição da filosofia moderna, o conhecimento
―concentrated on formal analysis of chains of written statements, rather than on the circunstancial merits and
defects of persuasive utterances. Within that tradition formal logical was in, rhetoric was out‖ (TOULMIN,
1992, p. 31). Ademais, o próprio referencial da filosofia transforma-se, deixando de pautar-se em reflexões sobre
casos particulares da vida humana, para adotar o plano abstrato dos problemas gerais. Outra alteração similar
relacionou-se ao caráter local dos estudos históricos, etnogŕaficos ou geográficos do século XVI, isso porque
―the demands of rationality impose on philosophy a need to seek out abstract, general ideas and principles, by
which particulars can be connected together‖ (Idem, p.32). Assim, identificar os princípios universais torna-se
atividade privilegiada frente ao estudo da diversidade das idiossincrasias locais. Portanto, paralelamente, o
escopo temporal dos objetos de estudo passou a focalizar os elementos intemporais, opondo-se às descobertas de
fatores transitórios, ou logo, da própria história como processo.
58

sejam eles naturais ou sociais, e às épocas, quais forem) com intuito de derivarem soluções
gerais de problemas universais.

Concernentes a esse cenário, os pesquisadores das RI, e especialmente aqueles sob a


tradição intelectual norte-americana, como Waltz, procuraram produzir reflexões segundo
critérios metódicos pautados na busca de um saber explanatório, fundado em inferências
lógicas generalizantes. Tais características relacionadas ao pressuposto de objetividade são
problematizadas no último capítulo, quando abordamos as contradições que esses métodos
oferecem às teorias humanistas, especialmente aos conceitos relacionados aos atores políticos
do neorrealismo, que ao serem enquadrados na lógica de estabilidade (objetivação, abstração
e categorização) das ciências naturais, tornam-se objetos espistêmicos, mas perdem seu
predicado animado, visto que reificados.

Nesse sentido, a exposição da teoria neorrealista realizada neste capítulo justifica-se


pelo auxílio na identificação e na compreensão desses valores científicos que subscrevem a
produção dos conceitos de Waltz. Valores expressos tanto por preferências epistemológicas
(racionalismo) como metodológicas (positivismo), e desdobrados num modo particular de
apreender a PI. Assim, obtemos o entedimento necessário para as análises críticas posteriores,
associado à noção de que a teoria neorrealista é construída segundo uma perspectiva
específica de ciência, que, antes de ser uma acepção geral, inscreve-se num movimento
histórico particular das ciências sociais moderna, com desenvolvimento especial na academia
norte-americana.

Todavia, a difusão epistêmica do racionalismo, que sustenta a teoria neorrealista,


alcançou extensão bastante ampla, a ponto de muitos creem-na universal, gerando riscos de
um possível dogmatismo teórico e metodológico nas pesquisas sobre as RI. Por isso, após o
objetivo interpretativo desse capítulo, ressaltamos uma segunda natureza propositiva da
dissertação orientada para a desconstrução do caráter transcendental dos postulados
neorrealistas, em especial daqueles referentes à substância do sujeito político internacional,
enquanto uma subjetividade instrumental. Assim, após identificar os valores científicos, e as
bases conceituais que amparam a produção de Waltz, estamos aptos a desfazer aquela
confusão universalista, captando o enraizamento social e histórico implicado na teoria
neorrealista, conforme se propõe o estudo do capítulo a seguir. Afinal, a reatualização e o
impulso do legado racionalista moderno se efetivaram por meio de um cenário particular, e
contemporâneo a Waltz, qual seja o ambiente social, cultural e político norte-americano.
Segue-se, portanto, uma análise sociológica acerca desses fundamentos do neorrealismo.
59

2 SIGNOS EM DESMONTE: SOBRE OS FUNDAMENTOS SOCIAIS E


HISTÓRICOS DO REALISMO ESTRUTURAL

Mas que coisa é homem,


que há sob o nome:
uma geografia?48

2.1 Introdução

No empenho em compreendermos a imagem política desenvolvida pelo neorrealismo


– ou, por uma visão desmembrada, os conceitos de sujeito político internacional e suas
práticas – estabelecemos dois caminhos orientados a tal fim. O primeiro deles, a trilha
metateórica, foi iniciada no primeiro capítulo, em que apreendemos o realismo estrutural de
Kenneth Waltz, por meio das heranças epistemológicas e criações conceituais que o
compõem. Com isso, visamos responder, afinal, ―o que propõe a ferramenta analítica
neorrealista?‖.

Todavia, outra trilha igualmente importante e paralela deve ser seguida para o alcance
daquele objetivo interpretativo, qual seria: a pesquisa sociológica – voltada a compreender o
porquê das questões, dos modelos e das soluções abordadas. Isso é, analisar a qualidade
normativa subjacente ao processo de seleção – inclusão ou exclusão – dos temas estudados,
desvelando seus possíveis fundamentos políticos e culturais, emanados da sociedade. Afinal,
questiona-se: a natureza materialista e conflituosa das problemáticas abordadas pelo
neorrealismo, ou mesmo a descrição do Estado como ator racional e central aos estudos,
seriam frutos de condicionantes puramente intelectuais? Para os estudiosos da sociologia do
conhecimento, não.

Segundo os pesquisadores dessa área, além dos elementos cognitivos, as teorias


possuem vínculos importantes com a posição social do autor, sem que isso implique a redução
da atividade intelectual ao status de epifenômeno. Assim, o olhar sociológico produz uma
reflexividade do saber, pela qual se enfatiza ―o sujeito do conhecimento, tematizando-o como
parte, como parte ativa, do ato de conhecer‖ (LAMO DE ESPINOSA et al., 1994, p.48).
Sinteticamente, Goldman explica: ―sociology of knowledge is the analysis of the sources

48
Cf. ANDRADE, Carlos Drummond de. Especulações em torno da palavra homem. In: _____. Antologia
Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p.182-185.
60

and meanings of forms of knowledge in relation to the experience, institutions, traditions,


practices, and positions of social groups and the individuals within those groups‖ (1994, p.
266).

Seguindo essa linha, a análise que segue será sublinhada pela tese da práxis, sobre a
qual estabelecemos o vínculo recíproco entre o realismo e o ambiente social norte-americano.
Assume-se que o pensamento realista, desde sua versão clássica à revisão de Kenneth Waltz
em 1979, influenciou a disciplina das RI e a política externa dos EUA; tão logo foi
influenciado por essa prática governamental e pela tradição epistemológica das ciências
sociais norte-americanas. Por isso, uma vez pontuada no primeiro capítulo a posição do
neorrealismo dentro do debate interno à escola, atentaremo-nos, por ora, à história externa do
mesmo, isto é, à compreensão de sua evolução enquanto integrante do contexto das ciências
sociais americanas e das contingências sócio-políticas do país. A desnaturalização dos
conceitos tomados como estáveis, ou universais, é importante por expandir os horizontes
analíticos, enriquecendo a reflexão crítica.

Desse modo, argumenta-se pela existência de razões sociais e contextuais para que
Waltz estudasse o que estudou e da forma que estudou. Tais razões de conteúdo coletivo
(crenças, valores, consensos), a partir dos trabalhos de Thomas Kuhn (2006), assumem
relevância não apenas para os estudos da gênese social do conhecimento, mas também para os
processos de validação dos mesmos, anteriormente sob atuação exclusiva da Filosofia das
Ciências. Segundo Kuhn (2006), a produção do conhecimento não comporia um processo
livre de concepções teóricas, ao revés, aquele seria construído por comunidades sociais que
seguem normas, tradições e regras de leitura e interpretação acordadas coletivamente.

Nesse sentido, a partir 1970, a linha clássica da chamada ‗sociologia do


conhecimento‘49, cujas explanações restringiam-se à conexão da ciência com seu contexto
social, reorientou-se e atualizou-se, legitimando tal conteúdo como fator importante para o
reconhecimento cognitivo dos trabalhos. Além do impulso propiciado pelas reflexões de
Kuhn, soma-se, à época, a crise geral do programa funcionalista estrutural e o auge das
tradições fenomenológicas na teoria sociológica, os quais fortaleceram essa tentativa de
combinar explicações sociais e cognitivas de uma forma não reducionista.

49
Dentre seus principais expoentes, destaca-se Karl Mannheim, com a obra ―Pensamento Conservador‖ (1927).
61

O Programa Forte, como ficou conhecida a corrente originada desse movimento,


representada por nomes como David Bloor e Barry Barnes50, percebeu e sustentou a
possibilidade de desenvolver críticas ao racionalismo e ao realismo epistemológico clássico.
Baseados na filosofia de Wittgenstein, os componentes daquele programa definiam tais
estruturas lógicas como regras de linguagem e, portanto, relacionadas ao meio social e
preteridas de um caráter verossímil per se. Entrementes, outras correntes ganham fôlego,
como a denominada ‗construtivismo social da ciência‘, ancorada pelas reflexões de Berger e
Luckmann e desenvolvida por estudiosos como Karin Knorr-Cetina, Bruno Latour e Steve
Woolgar.

Embora haja uma diversidade de correntes, cada qual considerando graus distintos de
implicação do ambiente social sobre a produção intelectual, os estudos desse campo
compartilham a definição do pensar como atividade coletiva, uma vez que, nessa perspectiva,
os meios disponíveis para que expressemos nossas experiências são limitados socialmente.
Afinal, para se comunicar, quer sejam pensamentos ou falas, um indivíduo utiliza um
vocabulário pré-existente, cujos significados determinam, em grande parte, os caminhos do
discurso:

The individual confronts ―preformed patterns of thought and of conduct‖ which


represent ―responses to certain typical situations‖ developed by men in certain
groups. In short, not only is it true that the individual ―speaks the language of his
group‖, he also ―thinks in the manner in which his group thinks‖ (ASHCRAFT,
1981, p. 26).

Nesse sentido, a teoria política constituiria um discurso público, dotado de um quadro


de significados partilhados. Logo, o corpo teórico comporia um sistema de relações sociais,
em que a perspectiva intelectual interage com um sistema econômico e com estruturas de
poder dos grupos sociais vigentes. Do contrário, a discussão política seria reduzida a um tipo
de consciência universal, na qual o homem não representa uma entidade histórica e social,
mas, antes, unidade divorciada do contexto da vida coletiva (ASHCRAFT, 1981).

50
O debate lançado por esses autores parte da tese filosófica do externalismo que, há tempos, compõe o campo
das ciências sociais. Tal orientação propõe o entendimento das produções científicas por meio da consideração,
em maior ou menor grau, dos fatores normalmente considerados ―exógenos‖ à própria ciência, i.e., externos à
estrutura teórica, metodológica ou lógica do processo cognitivo. Esses fatores seriam de natureza psicológica ou
sociológica – ambiente social, econômico, político, etc. Sendo que, esses últimos caracterizam as análises
sugeridas pela sociologia da ciência que reconhecem o papel de tais elementos no desenvolvimento das teorias e
mesmo no desenho dos programas de pesquisa. O ‗programa forte‘, apresenta também algumas versões mais
radicalizadas sobre esse debate, as quais declaram: ―It [cultural ambience] determines not only their choices of
problems to investigate, but their so called philosophical conception of nature of science and the criteria of
warrantability that they use in evaluating beliefs‖ (GORDON, 1991, p. 621).
62

Ainda, segundo as análises de Mannheim (1980), o processo intelectual desenvolve-se


de acordo com as mudanças gerais no relacionamento existencial do homem, e entre ele e as
coisas. Conforme as reflexões daquele autor, o conhecimento refere-se a um tipo específico de
vinculação entre o sujeito conhecedor e o objeto analisado. Por isso, o autor refere-se ao
historicismo como uma ferramenta positiva de estudo, visto que provê ―a home and a context
of meaning for our methodological analyses‖ (MANNHEIM, 1980, p. 431).

Dessa forma, somado à história, o campo da sociologia contemporânea tem


desenvolvido importantes estudos sobre as dinâmicas das ‗consciências‘ coletivas, revelando
o caráter improvável da suposição de que o indivíduo adquire conhecimento de forma isolada
(ELIAS, 2008). Por essa perspectiva, a aquisição do conhecimento é realizada por meio de
uma rede conceitual de longo prazo, em que o indivíduo parte de um conjunto já adquirido de
saberes para, a partir de então, ampliá-los, revê-los, etc. Retrospectivamente, essa
problemática da relação entre consciência e sociedade foi comumente associada à formulação
teórica de Marx e Engels, da qual as abordagens da especialidade sociológica refletem
resquícios, muito embora seus desenvolvimentos difiram, em graus distintos, do paradigma
marxiano. Ora, não inusitadamente, alguns autores da área (como FEMIA, 1981) retomam os
aportes marxistas, como elaborados por Gramsci, a fim de repensar, ou enriquecer, seus
estudos. Afinal, o materialismo histórico de Gramsci rompe com as leituras reducionistas e,
portanto, conecta as ideias às condições materiais, constituindo um ciclo de influência
recíproca51.

De forma correlata, o presente trabalho opõe-se ao paradigma epistemológico clássico


da polaridade estática entre sujeito e objeto, o qual admite a preponderância exclusiva de uma
das antípodas, assumindo estados limítrofes de subjetividade, ou de objetividade (ELIAS,
2008). Nesse sentido, no campo específico das Relações Internacionais, adotamos as
contribuições dos teóricos críticos52 que também questionam os procedimentos de

51
Por meio do conceito de ‗bloco histórico‘, Gramsci rejeita toda relação mecanicista ou determinista da relação
entre estrutura e superestrutura, entre teoria e prática, ente forças materiais e ideologia. Ao contrário, o autor
defende uma relação de reciprocidade essencial entre esses elementos, qual seria o processo dialético real.
Entende-se, pois, que entre o mundo superestrutural das ideias e o mundo estrutural das relações materiais não há
uma direção unilateral de causalidade, mas sim um movimento dinâmico de relações recíprocas mutáveis
conforme seu desenvolvimento histórico. Para uma discussão aprofundada sobre o conceito gramsciniano de
bloco histórico, ver: PORTELLI, H. Gramsci e o Bloco Histórico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
52
Nesse sentido, o termo refere-se ao quadro amplo de teóricos que, especialmente após a década de 1980,
passam a opor-se ao aos discursos positivistas/empiristas produzidos pela comunidade intelectual anglo-
americana, problematizando-os como o arquétipo da interpretação científica do ocidente moderno, sinônimos da
aplicação de um modelo universal de racionalidade. Tal será a crítica central da chamada ―agenda dissidente‖
nas RI, que, dentre outras questões, aponta o caráter inadequado do modelo positivista para as ciências humanas,
delineando, ao contrário, a necessidade de se fundamentar todo conhecimento sobre o mundo social nas relações
históricas, culturais, ideacionais e de poder que os engloba.
63

objetivação, abstração e categorização, decorrentes dos modelos monolíticos. Dentre essa


linha, ressaltamos a vertente derivada da Escola de Frankfurt, cujas reflexões confrontam a
ortodoxia das ciências sociais por meio de uma perspectiva holística – influenciada por alguns
elementos do Hegelianismo/Marxismo e impulsionados por uma noção sofisticada de
dialética (GEORGE; CAMPBELL, 1990).

As análises da Teoria Crítica opõem-se às pretensões científicas da filosofia moderna,


focando-se no esclarecimento da natureza social, histórica e linguística dos significados
cognitivos, e sua vinculação às relações de poder. Ao fazê-lo, aqueles intelectuais buscam
denunciar o potencial totalitário de uma forma particular de razão – a racionalidade
instrumental – a qual teria, desde o Iluminismo, delineado o pensamento anglo-saxônico,
expresso no conhecimento do tipo problem-solving53. Segundo Robert Cox, tal perspectiva
comum às ciências sociais norte-americanas tem influenciado intensamente o pensamento
realista desde a Guerra Fria, o qual se caracteriza pelo estabelecimento de uma ordem fixa e
estável, atormentada por violências endêmicas e sistêmicas (GEORGE; CAMPBELL, 1990).

Dessa forma, o processo epistemológico e metodológico que originou o neorrealismo,


conforme exposto no primeiro capítulo, entrelaça-se ao movimento histórico de intervenção
da razão nos meios pelos quais o conhecimento e seu objeto são constituídos. Tal processo,
como aponta Horkheimer, não se localiza puramente no mundo intelectual, coincidindo,
também, com as lutas sociais por determinados estilos de pensamento e de vida. Logo, o
processo de teorização de Waltz, caracterizado pela racionalidade científica, teria sido
perpassado por regras sociais, valores e significados linguísticos, que, conjuntamente,
orientam a disciplina para uma perspectiva mais técnica centrada em estratégias de resolução
de problemas.

A fim de desenvolver tais problemáticas, a Teoria Crítica enfatiza o princípio


responsável por ligar teoria e prática, ou mais especificamente, por esclarecer a natureza
história e política do conhecimento, qual seria: o conceito de práxis. Por meio dele, os

53
Nas palavras de Cox, problem-solving theory seria um discurso que ―takes the world as it finds it, with the
prevailing social and power relationships and the institutions into which they are organized, as the given
framework for action. The general aim of problem-solving is to make these relationships and institutions work
smoothly by dealing effectively with particular sources of trouble. Since the general pattern of institutions and
relationships is not called into question, particular problems can be considered in relation to the specialized areas
of activity in which they arise. Problem-solving theories are thus fragmented among a multiplicity of spheres or
aspects of action, each of which assumes a certain stability in the other spheres (which enables them in practice
to be ignored) when confronting a problem arising within its own. The strength of the problem-solving approach
lies in its ability to fix limits or parameters to a problem area and to reduce the statement of a particular problem
to a limited number of variables which are amenable to relatively close and precise examination ‖ (COX, 1981,
p. 128-129).
64

teóricos críticos buscam reconectar o conhecimento teórico aos interesses político-sociais das
sociedades que os contextualizam, destacando o debate acerca da construção da realidade.
Com isso os autores ressaltam a relação dialética entre teoria e prática, de modo que tal
discussão revela o papel ativo do formulador teórico enquanto construtor do mundo.
Entrementes, insere-se a reflexão sobre a natureza social da atividade teórica, na medida em
que o processo de organização intelectual da realidade influi ontologicamente sobre a mesma,
e vice-versa. Deriva-se daí a ideia de que observador e observado estão conectados e, muitas
vezes, exercem efeito constitutivo um sobre o outro.

Desse modo, ―uma ontologia social, sob essa perspectiva da práxis, deve ser
compreendida como um produto social dinâmico, historicamente concreto e contestável‖
(COSTA; SELIS; SOARES, 2009, p.212). Dessa forma, o processo de construção teórica e os
compromissos epistemológicos e ontológicos associados ao neorrealismo passam a ser
atrelados a um contexto sociopolítico concreto. Parte-se, pois, de um conhecimento
―relacional‖, o qual declara ser a ciência da realidade uma função das relações recíprocas
espaciais, temporais e causais entre o objeto e a consciência cognoscente.

Pois então, apoiados nessas acepções, contestamos o status de fato ou de dado das
estruturas e instituições expostas no neorrealismo, investigando suas origens e influências
históricas e sociais. A partir desse estudo, como expõem Robert Cox (1981) e Richard Ashley
(1981, 1986), a teoria neorrealista pode ser percebida como parte da teoria social moderna, a
qual mantém as tensões do período, representadas pelas díades fato/valor, sujeito/objeto,
internacional/doméstico, dentre outras. Assim, entre outros aspectos, a fundamentação teórica
do realismo estrutural é lida, nesse tópico, como possível reflexo de um modus operandi
dominante na produção do conhecimento (racionalidade cientifica), próprio de uma época, de
uma sociedade e de instituições particulares que dele dependem e, por conseguinte, o
promovem. Semelhante à perspectiva de Cox (1981), partimos da ideia de que a tendência
metódica do neorrealismo em objetivar a história pode ser associada ao seu contexto original
da Guerra Fria, implicando um pensamento que constitui, basicamente, ―a concern for the
defence of American Power as a bulwark of the maintenance of order‖ (COX, 1981, p. 131).

Para o desenvolvimento desse estudo, utilizamos as variáveis explanatórias propostas


pela sociologia da ciência, em específico das ciências sociais, cujos principais fatores de
65

investigação organizam-se em três níveis54 centrais: 1) quadro biográfico de Kenneth Waltz,


recortado em sua formação acadêmica e atividades profissionais; 2) estrutura social e política
dos Estados Unidos da América; e, por fim, 3) estrutura institucional e tradições intelectuais
das ciências sociais, e das RI em particular. Tais divisões estão presentes, com as devidas
particularidades, em grande parte dos textos dedicados ao estudo sociológico ou
historiográfico da área, os quais, embora ainda diminutos55, lançaram um importante debate,
geralmente voltado à relação entre os condicionantes nacionais e o desenvolvimento da
disciplina das RI (HOLSTI, 1985; ALKER e BIERSTEKER, 1984; HOFFMANN, 1977;
WÆVER, 1998; SMITH, 2002).

O componente nacional como contexto macro básico para o estudo sociológico


apresenta-se nas investigações citadas, compondo, igualmente, o conteúdo dessa proposta. Os
estudos sociais do século XX, dentre os quais se incluem as reflexões sobre as relações
internacionais, tem se desenvolvimento congruente às transformações significativas da nação,
sejam elas políticas, culturais ou institucionais. Por isso, destacamos, mesmo que brevemente,
alguns aspectos da cultura norte-americana que poderiam predispô-la a determinadas
tendências intelectuais; bem como aludimos às circunstâncias políticas desde o início do
século XX, mas com particular atenção dedicada à segunda metade desse século, quando
Waltz já se engaja profissionalmente com os mecanismos sociais e institucionais do país.

Nesse sentido, incluímos uma passagem pelas condições institucionais e ideológicas


das ciências sociais, compreendendo os possíveis papéis exercidos na delineação da área e na
formação acadêmica do autor neorrealista, e de seus posteriores. Como ressaltou Gordon
(1991), as características do desenvolvimento científico nos EUA reforçam a validade de um
olhar sociológico sobre aquele:

The sociology of science is an important subject, especially in a world where science


has become professionalized and so much scientific work is conducted within the
administrative and policy framework of social institutions such as business firms
and governmental agencies, and where university science must be financed by grants
derived from public funds and foundations (GORDON, 1991, p. 623)

54
A utilização de categorias certamente mostrou-se um desafio, dado a intercambialidade entre os níveis
apontados. Esses que, embora apresentados em segmentos, devem ser compreendidos como partes de uma figura
total, cuja causalidade é circular.
55
―The relationship between IR and sociology of science is virtually nonexistent. Sociology of science has
concentrated on the natural sciences, with most of the remaining attention reserved for medicine and law. Of
the fraction left for social science and humanities, most of the attention goes to economics and sociology. A
subdiscipline (IR) within one of the least studied disciplines (political science), there-fore gets no attention
from "professional" sociology of science‖(WÆVER, 1998, p. 691).
66

Todavia, ao passo que tais variáveis representam um contexto social geral,


relembramos a especialidade de nosso estudo no realismo estrutural, de modo que a
interpretação macro será sublinhada pelo interesse recortado no quadro biográfico, e
bibliográfico de Kenneth Waltz (de 1920 a 1980), ao qual nos dedicaremos a seguir.

2.2 Kenneth Neal Waltz: um recorte bi(bli)ográfico56

Durante sua formação e carreira, Kenneth Waltz interagiu com as estruturas macros da
nação estadunidense, como instituições de ensino superior; aparatos governamentais e sociais,
quadros políticos, culturais e históricos. Todavia, o processo de socialização é de natureza
circular, de modo que, para analisá-lo, é preciso reconhecer, também, seu componente micro,
isto é, as trajetórias, experiências e valores individuais daquele autor.

A história de Waltz inicia-se em 1924 na cidade de Ann Arbor, no estado de Michigan


(EUA). O autor nasce, portanto, numa época de grande debate político interno no país,
especialmente após a depressão econômica de 1929, cujos efeitos prolongados afetaram a vida
de toda população americana. Já na adolescência, Waltz continua envolto por grandes
acontecimentos, adentrando o ensino médio por volta de 1938, na iminência da Segunda
Guerra Mundial. Todavia, durante sua educação secundária, o autor relata ter despertado
pouco interesse pelas questões históricas ou políticas, assinalando, na época, grande empatia
pelas áreas da matemática, física e drama.

Dessa forma, quando inicia seus estudos universitários no Oberlin College, Waltz opta
pela graduação no campo das ciências exatas, em específico, na área da matemática. Além do
foco nas especialidades desse curso, a graduação nessa área envolvia aulas sobre física,
química e economia57. Logo, sugere-se que tal escolha rendeu à Waltz maior proximidade
com o raciocínio lógico e abstrato, traduzidos na facilidade do autor em transitar entre os

56
As informações transcritas nesse tópico foram em sua maioria obtidas pela entrevista concedida por Kenneth
Waltz em 2003 ao programa ―Conversations with History‖, produzido por Harry Kreisler com apoio do Instituto
de Relações Internacionais da UC-Berkeley. Por esse motivo, optamos por restringir as citações, sintetizando-as
nessa nota geral, de caráter inclusivo. Ademais, as citações diretas referenciadas por ―informação verbal‖ sem
nota fazem menção a essa mesma entrevista, a qual está disponível, em versões audiovisuais, ou transcritas, no
site: http://conversations.berkeley.edu/
57
Informações retiradas do sítio eletrônico do departamento de Matemática da Oberlin College:
http://new.oberlin.edu/arts-and-sciences/departments/mathematics/
67

raciocínios metodológicos das ciências naturais e sociais, conforme expresso na TIP. Nesse
livro, quando disserta sobre a filosofia das ciências, Waltz utiliza um pensamento comparado,
analisando os modelos e técnicas desenvolvidas por Aristóteles, Galileu, Newton, Albert
Einstein, ou, ainda, Henri Poincaré e Werner Heisenberg – todos, nomes reconhecidos pelos
trabalhos no campo da física e matemática58.

No entanto, Waltz não finaliza seu curso nessa especialidade. Este, embora já
avançado, foi interrompido pela decisão do autor em transferir-se para o campo dos estudos
econômicos. Paradoxalmente, tal decisão foi provocada pela insatisfação de Waltz com os
caminhos profissionais oferecidos pela matemática, quais eram: a carreira docente, ou de
pesquisador. A economia, ao contrário, parecia-lhe apresentar opções variadas, como
possíveis cargos no governo, ou no setor privado.

Nesse período, Waltz estreita sua relação com a teoria microeconômica, cujo conteúdo
influi em grande parte de seus trabalhos posteriores – ―It [my work] really is built on a
microeconomic theory, which I would say is the major influence‖ (informação verbal). Nesse
sentido, Waltz ressalta a influência da microeconomia desenvolvida por Adam Smith e seus
seguidores, a qual é avaliada como parte de sua orientação metodológica, ao invés de indicar
um escopo ao qual se dedicou (WALTZ, 1979). Destarte, a construção da perspectiva
neorrealista contou com a incursão de Waltz nos estudos econômicos sobre equilíbrio geral,
condições de informação assimétrica, escolha sob incerteza e aplicações da teoria dos jogos.
Como será assinalado na seção 2.3.2 desse capítulo, nos anos de 1950 tais temas
experimentavam um período de forte debate, reforçado pelas demandas de um novo cenário, a
Guerra Fria. Paralelamente, em 1948, Waltz finalizava sua graduação, mudando-se para Nova
York, onde continuou sua formação superior na Columbia University.

Nesse ínterim, embora assumisse a importância da economia para seu


desenvolvimento, Waltz não se sentiu instigado o suficiente a ponto de continuar seus estudos
na área. Assim, na ocasião de sua pós-graduação, decide-se migrar para o campo da ciência
política. Essa decisão, segundo Waltz, nasce do autorreconhecimento quanto a sua inclinação
e apreço pela filosofia política. Sobre suas influências, acrescenta:

58
Ademais, encontramos no modelo conceitual do realismo estrutural outras heranças do universo da física,
como as aplicações da teoria cibernética, no debate que Waltz elabora sobre os processos de
sociabilização/equilíbrio das unidades estatais sob o efeito da estrutura internacional. A reflexão teórica da
cibernética foi formulada, dentre outros, por Nobert Wiener, cujo livro, Cybernetics: or Control and
Commnucation in the Animal and Machine (1948), consta na bibliografia da TIP, em conjunto com An
introduction to cybernetics (1956) de Ross W. Ashby.
68

The latter dates from my years at Oberlin College where John and Ewart
Lewis led me to feel the fascination of theory and to understand its importance
in the study of politics. Later, at Columbia University I was fortunate enough to
be one of the students of the late Franz Neumann, whose brilliance and
excellence as a teacher can never be forgotten by those who knew him (WALTZ,
1959, xv prefácio).

Dessa forma, migrado para o novo campo, Waltz desenvolve seus estudos dedicando-
se principalmente à teoria política (the major field), não obstante as RI configurassem seu
segundo foco de pesquisa (the minor field). De acordo com o autor, a escolha pela política
internacional como segundo campo deveu-se a sua familiaridade com a economia
internacional, crendo que assim assumiria disciplinas menos distantes de sua formação
anterior.

Porém, quando inicia seus estudos na área das RI, Waltz ateve-se ao temas acerca do
imperialismo e da história diplomática europeia demonstrando pouco interesse pelas demais
disciplinas, como organizações ou direito internacional. Nesse período, Waltz é aconselhado
por um de seus professores, William T. R. Fox59, a dedicar-se a todos domínios que
compunham a área. Destarte, após aproximar-se mais efetivamente da literatura dos estudos
internacionais, Waltz comenta sua dificuldade em traçar um corpo geral e coeso sobre o
assunto, dado o número variado de teorias, com perspectivas e definições distintas.
Empenhado em organizar tais ideias em sua mente e intrigado com o possível motivo dessa
ambiguidade teórica, Waltz chega enfim a uma possível resposta: a razão desse pluralismo
relacionar-se-ia ao fato dos autores utilizarem termos causais diferentes.

Tal insight deu origem ao livro, Man, the State and War (1959), publicado cinco anos
depois de ser apresentado como sua tese de doutorado. Nesse trabalho, Waltz soluciona o
desafio de gerenciar as ideias do campo por meio da criação de três imagens, cada qual
expressando um lócus causal para o fenômeno da guerra, e, por conseguinte, uma categoria
teórica. Por meio desse impulso intelectual de Waltz, podemos identificar um raciocínio
derivado de uma concepção específica de ciência, geralmente vinculada às ciências naturais,
para o qual as análises teóricas são percebidas como ferramentas explanatórias de uma
realidade depurada em relacionamentos causais.

59
Professor Willian T. R. Fox é reconhecido por ter sido um dos pioneiros no estabelecimento dos estudos
sistemáticos sobre diplomacia e guerra como disciplina acadêmica. Dentre outros livros, escreveu The
Superpowers: The United States, Britain and the Soviet Union - Their Responsibility for Peace em 1944, no qual
cunhou o termo ―superpotências‖.
69

Durante a construção dessa proposta, que culminaria em sua tese, Waltz passou um
período, entre 1951 e 1952, servindo o exército na Guerra da Coreia. De volta à Nova York,
por volta do segundo semestre de 1952, Waltz conta novamente com ajuda do professor Fox,
que lhe oferece a posição de pesquisador assistente no Institute of War and Peace Studies,
ainda na Columbia University. Nessa função, Waltz lecionou um ano no curso sobre política
internacional e, conforme declarou: ―spend half of my time on the dissertation and half on
the revision of a manuscript by the historian Alfred Vagts‖ (WALTZ, 2001[1959], viii
prefácio).

Após receber a titulação de mestre e doutor em ciência política pela Columbia


University, e de ter composto o corpo docente dessa instituição por um curto período (1953 e
1957), Waltz deixa Nova York guiado pela vontade de criar seus filhos no interior. Apenas
quatro décadas depois, em 1997, Waltz retorna a Columbia, onde ainda ocupa a cadeira de
pesquisador sênior, e professor adjunto do departamento de Ciência Política. Nesse ínterim, o
autor neorrealista lecionou em diversas instituições, como Swarthmore College, Brandeis
University e University of California – Berkeley. Além de visitas letivas pontuais em
Harvard, na London School of Economics, na Academia das Forças Aéreas Americanas,
dentre outros60.

Foi entre esses anos, ou mais precisamente, nos anos finais da década de 1960, que
Waltz passa a questionar-se quanto à possibilidade de construir uma teoria sobre a política
internacional, iniciando, a partir de então, um período de estudos focados na área da filosofia
da ciência e antropologia. Neste campo, muitos autores compuseram um corpo importante de
literaturas, como Durkheim, identificado dentre as principais influências sociológicas do
autor.

Os esforços no campo da filosofia das ciências não foram menores. Segundo o próprio
Waltz, obter o domínio dessa área constituiu condição sine qua non para que ele pudesse
construir sua teoria e, por isso, representou grande parcela de suas leituras realizadas naquele
período, que culmina na publicação, em 1979, do famoso livro Theory of International
Politics (TIP). Como apontado no primeiro capítulo, a teoria exposta nessa obra é reconhecida
como fundadora da corrente neorrealista das RI, e está dentre os textos mais lidos, e mais
influentes do campo. Waltz também é autor de Foreign Policy and Democratic Politics: The
60
Waltz também lecionou na Universidade Nacional Australiana, na Universidade de Pequim e na Universidade
de Bologna, além de ter presidido a Associação Americana de Ciência Política (1987-88). Atualmente Kenneth
Waltz é pesquisador sênior do Instituto de estudos de Guerra e Paz ―Arnold A. Saltzman‖ na Universidade
Columbia, onde também é ocupa a cadeira de professor adjunto do departamento de ciência política onde leciona
o seminário Problems of International Political Theory.
70

American and British Experience (1967) e coautor, com Scott Sagan, do livro The Spread of
Nuclear Weapons: A debate (1995); além de diversos artigos, como Nuclear Myths and
Political Realities, premiado como best article pela American Political Science Review, em
1990.

Por fim, cremos que essas contribuições de Waltz perderiam graus significativos de
inteligibilidade caso desconsiderássemos seu papel como expressão social de uma época e de
um país; e, assim seria se fôssemos míopes à influência dos condicionantes sociais e
institucionais que atuaram sobre a produção intelectual daquele autor, que esteve envolto por
sistemas de regras e de tradições específicas. Passemos então, ao olhar detido a tais
ambientes.

2.3 Estado e Sociedade: as condições do conhecimento

Theory is not only the result of knowledge, whereby empirical findings are generalized;
61
theory is also the very condition of knowledge

É a partir do reconhecimento da intercambialidade entre as evoluções históricas e


lógicas das ciências, que direcionamos nossa leitura do realismo estrutural de Waltz nesse
tópico. Como já pontuado, o neorrealismo buscou apresentar-se como solução teórica para as
falhas metódicas do pensamento clássico. Para tanto, fez-se uso de uma epistemologia
racionalista, e dos critérios de cientificidade decorrentes, encarados como expressão de
progresso intelectual. Todavia, esse processo fundamentou-se numa concepção específica de
ciência, a qual, embora amplamente divulgada na comunidade norte-americana, não
representa uma noção universal.

Dessa forma, compreende-se que a concepção de ciência que Kenneth Waltz julgou
apropriada insere-se num contexto macro (cultural, social e historicamente localizado), qual
seja, os EUA. Por isso, buscamos indicar as condições que teriam sustentado essa consciência
ativa no processo de aquisição do conhecimento, e cujos sujeitos seriam ―grupos de pessoas,
longas linhagens de gerações de homens‖ (ELIAS, 2008, p.546). Assim, tanto a orientação
epistemológica do realismo estrutural, como seu quadro ontológico são lidos por meio das

61
GUZZINI, Stefano. Realism in International Relations and International Political Economy: the
continuing Story of a Death Foretold. New York and London: Routledge, 1998, p. xi (prefácio).
71

circunstâncias políticas, sistemas econômicos e culturais de grupos específicos, delineados


pela potencialidade enquanto fatores de impacto significativo no processo de elaboração
teórica do autor.

As tradições intelectuais, segundo Shils (1970), são compostas por um componente


cognitivo, e por uma extensão espacial. Portanto, o desenvolvimento dessas tradições não se
restringe à dinâmica puramente intelectual, sendo igualmente sensível aos constrangimentos
sociais, ao papel da institucionalização dos campos de pesquisa, e aos elementos culturais e
ideológicos da nação em que se desenvolvem. Nesse sentido, os fatores externos, ou melhor,
não cognitivos, atuam no impulso a certos temas e modelos de análises para os campos de
pesquisa. Nesse horizonte, operamos com a identificação das demandas sociais e dos
contextos político-econômicos da sociedade norte-americana e os possíveis vínculos desses
com a emergência de um consenso particular sobre a epistemologia das ciências,
especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Como proporemos em análise ulterior, as
dinâmicas institucionais americanas teriam delimitado caminhos favoráveis ao passeio
racionalista. Todavia, entende-se que tal processo não deve ser preterido da existência de um
arcabouço cultural nacional, atuante nos esboços intelectuais da nação. Pois eis que partimos
desse âmbito, particular à comunidade epistêmica americana, para iniciarmos nossa reflexão.

2.3.1 “The enlightenment applied”: Aspectos culturais da sociedade norte-


americana

Embora as delineações sobre variáveis ideológicas assumam geralmente um caráter


sugestivo, cremos na relevância do olhar orientado ao componente cultural, visto que ele
poderá expressar uma possível disposição intelectual da sociedade americana. Esses
elementos referentes às tradições culturais e intelectuais constituiriam a base sobre a qual
atuam os demais determinantes, estimulando, ou silenciando, as vozes investigativas. Por essa
perspectiva, as concepções sobre a ciência seriam subscritas por variáveis culturalmente
específicas, afinal:

It recognizes that every nature human is the product of an enculturation process, and
that cultures may differ from one another in their fundamental conceptions of the
nature of the world […] According to this view, what we call ―scientific knowledge‖
72

reflects the methaphysical beliefs of only a part of humankind, and perhaps indeed
the smaller part. (GORDON, 1991, p. 606).

Nesse raciocínio, partimos da tese de Hoffmann (1977) que sugere uma confiança da
sociedade americana no método científico62, ao qual é atribuída a função motriz do progresso
social. Tal crença constituiria, portanto, o fundamento para as disposições intelectuais do país,
que passa a consultar amplamente o modelo das ciências naturais63 para o estudo das demais
áreas do conhecimento. Segundo Ralf Dahrendorf (2006), os Estados Unidos da América
representam the enlightenment applied, em que a sociedade, além de adepta a inserção dos
métodos racionais no trato dos problemas da vida humana e social, absorveu outras
características centrais da tradição liberal do iluminismo, como os princípios da igualdade,
mobilidade, e comunidade.

Dessa forma, logo nas primeiras décadas do século XX, a sociedade norte-americana
comunica uma tendência metódica pelos modelos das ciências exatas, ou naturais. Naquele
período, marcados pela consolidação nacional e reconstrução econômica, os EUA
aprofundam a crença depositada na capacidade da razão em propiciar soluções neutras e
objetivas aos problemas da sociedade moderna. Assim, presume-se que as questões
emergentes com a delimitação do Estado norte-americano teriam impulsionado os princípios
cartesianos para a racionalidade investigativa interessada no alcance eficaz da previsibilidade.
Com isso, ampliou-se o uso corrente das técnicas científicas, da engenharia social e da
institucionalização de sistemas racionais de regulação e controle da sociedade.

Ademais, argumenta-se que a expansão dos postulados do século XVIII na ideologia


nacional pôde desenvolver-se devido à vontade coletiva em evitar os traumas e incertezas das
guerras civis e externas que continuamente impactavam o território americano desde sua
independência. Com isso, guiou-se a ampliação do status das ciências exatas às ciências
humanas direcionadas à aplicação da razão instrumental;

62
Embora seja um termo polissêmico, essa referência ao ―método científico‖ faz menção ao conjunto de práticas
geralmente associadas ao modelo das ciências exatas caracterizado pela investigação empírica e value-free; pela
formulação de hipóteses e pela aplicação de critérios de falsificação. De forma geral, Hoffmann (1977)
argumenta por uma tendência intelectual americana aos desígnios da epistemologia cartesiana.
63
Cabe notarmos que tal argumento não pretende supor uma ausência de correntes filosóficas contrárias ao
modelo racionalista da ciência. A identificação de um determinado programa de pesquisa como predominante
num certo período, ou num determinado ambiente nacional, não pressupõe sua hegemonia absoluta. Muito da
discussão teórica travada nesse capítulo acerca das pesquisas americanas, especialmente após a Segunda Guerra,
centra-se na ampla utilização dos discursos positivistas e racionalistas pelos cientistas políticos de forma geral, e
pelos teóricos das RI, em particular. Todavia, modelos alternativos, como expressos pelas linhas metodológicas
pós-positivistas (no sentido mais inclusivo do termo) também têm demarcado as pesquisas do país, muito
embora, representem uma tendência menos expressiva, em termos relativos e quantitativos (ALKER;
BIERSTEKER, 1984).
73

At the end of the war, a new dogma appeared. One of the social sciences,
economics, was deemed to have met the expectations of the national ideology,
and to have become a science on the model of the exact ones; it was
celebrated for its contribution to the solution of the age-old problems of
scarcity and inequality. This triumph goaded the other social sciences. Political
science, the mother or stepmother of international relations, was particularly
spurred. It was here that the temptation to emulate economics was greatest
(HOFFMANN, 1977, p. 46).

Elaborando acerca dos estilos intelectuais segundo uma perspectiva macrocultural,


Johan Galtung (1981) também escreve sobre a estrutura cultural saxônica, que englobaria, de
maneira geral, as tradições cognitivas britânicas e norte-americanas. Sobre ela, o sociólogo
defende um costume investigativo voltado à promoção e incentivo aos debates e discursos
acadêmicos, além de uma acentuada predileção por estatísticas e estudos documentais.

Nessa tradição, em especial nos EUA, os dados e os fatos ganham status privilegiado
por serem considerados instrumentos objetivos e neutros do discurso, ressaltando o espaço
restrito oferecido por essa intelectualidade aos elementos subjetivos, como valores e crenças.
De forma geral, tal compromisso com a secularização das metas sociais e científicas trouxe
para a produção de conhecimento a corrente racionalista, enquanto fundamentação teórica, e o
positivismo, como metodologia.

Nesse sentido, David Easton (1953), Harold Lasswell (1951), Herbet Simon (1965),
dentre outros, guiaram o movimento behaviorista nas décadas de cinquenta e sessenta, o qual
reformulou a epistemologia das ciências sociais combinando o pragmatismo instrumental,
típico do pensamento americano, com o positivismo lógico emergente (AMADAE, 2003).
Assim, conforme as ideias de Lasswell, as principais características da disciplina de ciência
política, por volta de 1950, seriam a interdisciplinaridade, objetividade64, e certo grau de
historicidade;

Lasswell's collaboration with Kaplan, who had been a student of Carnap's, was
one obvious point of intersection. And they had stated in the introduction to
their book (1950) that it reflected a new scientific outlook informed by "a
thorough-going empiricist philosophy of the sciences" based on "logical
positivism, operationalism, instrumentalism". Maybe their position was actually
more justified than informed by this philosophy, but in the face of new
philosophical challenges, political scientists attempted more self-consciously to
ground and articulate their scientific faith. (GUNNELL, 1988, p. 83)

64
Lasswell era sensível aos valores implícitos na política, e na ciência política, por extensão. Todavia, a
aplicação desses fatores subjetivos dar-se-iam apenas no momento de escolha do projeto de estudo. Logo, a
partir dessa decisão, o cientista político deveria manter uma conduta objetiva, ancorada em métodos válidos
(WAGNER et al., 1991, p. 8).
74

Igualmente, conforme apontou Johan Galtung (1981), as ciências sociais americanas


orientaram-se à pesquisa propositiva, expressando, geralmente, baixo grau de interesse pela
investigação abstrata. Nesse sentido, em termos teóricos, o país destacou-se pelo amplo
desenvolvimento das produções de viés matemático na área da Economia. Logo, a aplicação
de técnicas racionais por esse campo, e o fortalecimento disciplinar conseguinte, instigou a
mimese por parte das demais áreas. Tal disposição, ademais, teria facilitado a ligação entre o
estilo saxônico com o modo industrial de produção intelectual e com as tecnologias do mundo
moderno, o que, por sua vez, propiciou sua ampla aceitação social durante o século XX.

Desse modo, dentre as disciplinas das pesquisas humanísticas – antropologia,


sociologia, economia – a ciência política tendeu à identificação com o conteúdo dos estudos
econômicos dedicados a um objeto envolto por escassez, competição e poder, especialmente
após a Segunda Guerra Mundial. O intuito em compreender as dinâmicas do poder, e sua
relação com os conflitos sociais aproximou os dois campos, abrindo caminho para os
estudiosos do campo internacional, na segunda metade do século XX.

Nesse período, os teóricos das RI nos EUA buscaram consolidar sua base científica
por meio do prestígio dos modelos econômicos, ou, em última instância, das ciências naturais.
Destarte, o mainstream no país orientou-se para os discursos da escolha racional, em especial,
referentes à teoria dos jogos. Tal inspiração, como aponta Wæver (1998), foi legada às RIs
pelos debates das outras áreas da ciência política, como a política comparada e política
americana, inseridas na aspiração por bases teóricas sólidas voltadas à aproximação do
modelo positivista na década de 1950/1960.

Logo, os métodos de pesquisas que compuseram o ambiente letivo de Waltz, de forma


direta ou por transmissão geracional, caracterizaram-se de modo geral pelo suporte
racionalista – principalmente se comparados ao viés mais humanístico que a disciplina de
Relações Internacionais assume em outros países, como a França e a Inglaterra. Todavia, esse
olhar comparativo e específico à disciplina das RI será enunciado no tópico 2.4. Por ora, cabe
identificarmos como a orientação aos problemas da sociedade e a epistemologia modernista
(cartesiana), ganham força na cultura intelectual norte-americana, influindo no programa
predominante das ciências sociais durante o século XX, e atuando no movimento de
profissionalização e legitimação do campo. Afinal, ao longo do século, e da histórica dos
EUA, tais disposições, conforme combinadas com os quadros institucionais, políticos e
acadêmicos, repercutem nos estudos políticos, ou mais especificamente, nas teorias de
Relações Internacionais, aprofundando ou limitando temas e modelos, como veremos.
75

2.3.2 Entre a agenda política e intelectual: uma perspectiva histórica

Do início de sua vida, em 1924, à formulação de sua vertente teórica neorrealista,


Kenneth Waltz perpassa um período, em que a nação norte-americana experimentou fatos
significativos de sua história. Dentre esses, destacam-se: a quebra da política internacional de
isolamento após a Primeira Guerra Mundial, com a ascensão do país ao grupo de potências
internacionais; emergência essa surpreendida pela depressão econômica de 1929; e pelo
advento subsequente de dois novos conflitos bélicos, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra
Fria.

Como apontam os estudos de Peter Wagner et al. (1991), há um paralelo entre a


história das ciências sociais e tais desenvolvimentos do Estado nacional. Segundo essa tese, o
tipo de organização estatal e as formas de ação sobre a sociedade influem sobre as demandas
por conhecimento científico, de modo que os processos da política pública alteram as
questões intelectuais, bem como são alteradas pelas respostas dos cientistas sociais a elas. Ou
seja, ―study of the historical contexts discloses that the relationship of the social sciences to
the state varies with the form of state development and with the nature of the problems on the
public agenda‖ (WAGNER et al, 1991, p. 6).

Por essa perspectiva, os modelos cognitivos dinamizam-se conforme os problemas


contemporâneos que ecoam na sociedade, os quais dependem das estruturas institucionais que
respondem pelo Estado, e do legado político, cultural e ideacional que animam aqueles que as
compõem. Ou seja, tal análise refere-se a um ambiente complexo, constituído por elementos
de natureza diversa. Todavia, nesse tópico, depositaremos atenção no determinante político-
institucional da nação americana.

De forma pormenorizada, acrescentamos a sugestão de Ole Wæver (1998), que propõe


uma ampliação da tipologia de Peter Wagner, inserindo a política externa do país ao
componente estrutural dessa análise. Nesse sentido, os processos políticos, internos e
externos, da nação estadunidense, especialmente à época delimitada entre os anos 1940s à
1980s, demarcam nosso estudo, também atento ao liberalismo político, compreendido como
raiz ideológica central do pensamento norte-americano e dos desígnios estatais à academia.

Paralelamente à concepção gramsciana, essa pesquisa retoma a noção de que


―conceptions of the world are responses to specific problems posed by reality‖ (GRAMSCI,
1971, p. 324, Q11§12). A força explanatória do historicismo estaria na concepção elástica dos
76

conceitos, os quais adquiririam precisão e sentido quando conectados à situação que intentam
explicar. Desse modo, reveremos os contextos históricos que condicionaram o realismo
estrutural, perpassando brevemente a origem das ciências sociais enquanto disciplina
formalizada e central às instituições do Estado americano. Ademais, o vínculo entre as RI e a
Ciência Política nos EUA65 majora nossa justificativa para uma reflexão acerca dessa última
área geral, especialmente nas primeiras décadas após a Segunda Guerra Mundial, quando os
contornos da primeira disciplina eram ainda incipientes.

2.3.2.1 Consolidação do Estado norte-americano no início do século XX:


modernização das estruturas sociais e científicas

Como sabemos, durante a passagem para o século XX, os estudos sobre a sociedade se
inseriram no processo de modernização das nações ocidentais. Entrementes, a consolidação
das ciências sociais como atividade de pesquisa caracterizou-se por uma vocação investigativa
nos termos daquela transformação societária engajada em questões atentas ao movimento de
racionalização do mundo e ao desenvolvimento da economia nacional e das instituições
representativas do Estado (WAGNER et al., 1991).

Naquele período, grande parte dos países experimentava importantes transformações


institucionais, não raro, modificações no próprio cerne do Estado-nação – unificação nacional
na Alemanha e na Itália, a modernização na França, e início da construção do Estado norte-
americano (WÆVER, 1998). Nesse cenário, despontam os processos de expansão industrial e
urbana, cuja amplitude incita problemáticas dispostas a forçar a porta dos gabinetes políticos e
dos salões universitários, a fim de adentrarem a agenda pública e encontrarem soluções para
condições de vida e trabalho que se alteravam substancialmente.

Cientes dessas demandas, grupos interessados no processo de modernização passam a


aderir às reformas sociais e à defesa de um papel ativo do conhecimento (sistemático e
empírico) na análise das questões e na formulação de soluções. Destarte, o intuito de
contribuir para o aperfeiçoamento social constituiu as bases motrizes das gerações de
pesquisadores subsequentes, que avistaram nesse cenário – demarcado por demandas políticas
ao acesso a informações empíricas, quantitativas e práticas – as condições necessárias ao
fortalecimento das ciências sociais e de sua legitimidade.

65
Nos EUA as RI constitui uma subárea da ciência política, de modo que grande parte de seus autores (como
Waltz) integra o departamento desse campo.
77

Nessa fase, os EUA passavam por um período de reconstrução e crescimento


econômico – posterior a guerra civil e delineada pelo empenho da sociedade na afirmação dos
moldes capitalistas –, por meio do qual se estabelecem as bases político-econômicas para a
emergência nacional enquanto futura potência global. Durante esse processo delegou-se à
noção de progresso um valor evolutivo, traduzido pela visão de que o Estado moderno não era
apenas diferente dos anteriores, mas normativamente melhor.

Dessa forma, os benefícios materiais – melhores condições de saúde, alimentação,


moradia, dentre outros – ganharam destaque e impulsionaram um movimento de
secularização do conhecimento, bem como dos valores sociais, que perdem a estrita
vinculação religiosa dos períodos históricos anteriores. Consequentemente, verifica-se a
presença da filosofia moral secular do século XIX, denominada utilitarismo, então derivada
do epicurismo. Tal corrente destaca-se pela forte influência que encerra sobre as teorias da
ação social estendendo-se à contemporaneidade, como exemplifica o realismo estrutural e as
elaborações afins no campo das RI.

Igualmente, no âmbito externo, encontramos aquele mesmo substrato progressista. O


período entre o fim da guerra de secessão e os anos iniciais do século XX representou o
isolamento estadunidense ante as questões gerais do sistema internacional. Nesse período, a
atenção do país voltou-se ao crescimento econômico interno e à consolidação regional 66;
constituindo, assim, uma política externa em que a potência emergente do norte travou
disputas territoriais e políticas com Estados mais fracos e restritos ao continente americano.

A crença em seu papel excepcional e civilizatório marcará a consciência histórica da


nação norte-americana por muitos séculos. Embutidas nessa ideologia, estariam, pois, as
categorias de progresso, lei e razão, que surgem das ciências sociais naturalistas e atuam na
justificativa e preservação daquela consciência nacional. Os mesmos conceitos, como vimos,
acompanham o desenvolvimento político-econômico interno dos EUA, e resultam de um
movimento paralelo, e proporcional, de crescente credibilidade do modelo proposto pelas
ciências naturais.

66
A administração estatal sob coordenação do presidente Theodore Roosevelt (1901-1909) substanciou essa
linha de intervenção na região. O corolário Roosevelt, como se denominou a atuação expansionista, sustentou-se
sob a autodeclaração norte-americana quanto à função de polícia continental e ao direito de ingerência nos
demais países do continente. Assim, substituindo as nações europeias no papel de fiscalização, Roosevelt declara
em 1904: ―A insistência no erro, da parte de alguma nação americana, poderia exigir a intervenção de outra
‗nação civilizada‘ fazendo com que a fidelidade dos Estados Unidos à Doutrina Monroe nos leve (...) a exercer
um poder de política internacional‖ (ROOSEVELT, 1916, p.8).
78

Dessa maneira, à época, o ambiente intelectual do país caracterizou-se pela crença


num ―instrumento mais poderoso de conhecimento, a saber, o moderno pensamento
científico‖ (HORKHEIMER, 2000, p.65). A tendência a hipostasiar a ciência virá a
caracterizar as escolas denominadas positivistas, as quais, como assinalado no primeiro
capítulo, veem o instrumento científico capaz de promover graus significativos de avanço
social. Com isso, as ideias centradas na concepção do progresso (e suas possibilidades), bem
como na noção correlata de perfeição social, passam a influenciar os discursos sociológicos,
as reflexões tecnológicas e os empreendimentos práticos dos países em modernização67.

A vinculação desses fatores com a construção do saber social expõe-se no peso que
esses encerram na formulação científica acerca dos fenômenos humanos no século XX. Isto é,
dado o ambiente de secularização dos valores e do próprio conhecimento na fase de
industrialização, os pesquisadores sociais passam a produzir reflexões segundo critérios
científicos das ciências naturais pautados na busca de um saber empírico e falseável. A
exemplo da reflexão platônica, muitos dos cientistas desse período limitaram a concepção de
racionalidade aos argumentos teóricos que alcançassem uma certeza quase-geométrica
(TOULMIN, 1992). Dessa forma, a física teórica surge como campo padrão para o estudo e
debate racional nas demais áreas.

Outrossim, o fim da Primeira Guerra estimulou os padrões positivistas de pesquisa nos


países vitoriosos. A rivalidade decorrente do conflito implicou no descrédito da cultura alemã
pelos países oponentes, e, logo, na deslegitimidade dos métodos de pesquisa tradicionalmente
vinculados às universidades germânicas. Com isso, cai em desuso a tradição metafísica,
histórica, e holística nas ciências sociais (WÆVER, 1998). Como explica Wæver, durante o
século XX as ciências sociais norte-americanas ―had become empiricist, abstaining from
studying underlying (allegedly ‗metaphysical‘) causes and searching for prediction and
control‖ (1998, p.712). Tais características resultam num novo perfil programático
preocupado com o progresso social, o qual é majorado pelo contato acadêmico com órgãos
públicos, como também pelo grande incentivo privado às pesquisas advindos de grupos
capitalistas.

Tal aliança ascende no contexto posterior ao primeiro conflito mundial, em que a


generalização do modelo democrático, como organização legítima dos Estado-nações do

67
A percepção progressista da sociedade, como sugere Scott Gordon (1991), conectou-se a dois aspectos
relevantes que compunham o cenário intelectual prévio à origem das ciências sociais. Esses seriam: primeiro, a
conexão entre aquele conceito e a própria ascensão do conhecimento científico; e, segundo, a aceitação do
progresso enquanto valor social, voltado ao incremento da vida material e à valorização da vida mundana.
79

ocidente, impulsiona a demanda governamental por uma nova força capaz de controlar e
neutralizar o potencial caótico das políticas democráticas de massa. E assim foram vistas as
ciências sociais no período: uma possível força imparcial e objetiva, cuja aliança com
filantrópicos e agentes políticos impulsionaria seu papel enquanto ferramenta de controle
sobre as decisões da sociedade (AMADAE, 2003).

Ora, gradualmente, esse processo de racionalização alcança as políticas públicas do


governo norte-americano que conta com o auxílio dos pesquisadores sociais. Porém, tal será
assunto da próxima seção, quando, na década de 1930, a franquia universal da cidadania
expande-se de fato, constituindo o novo modelo de interação entre o Estado e a sociedade
americana, e, por conseguinte, retroinfluindo nas produções científicas. De posse dessas
reflexões, abordaremos, sobretudo, a noção de um reforço histórico nos anos seguintes à
Segundo Guerra, em que, novamente, uma aliança entre as fundações filantrópicas,
empresários, cientistas políticos e agentes do governo impulsiona, ainda mais intensamente, o
desenvolvimento de análises racionais sobre as problemáticas políticas, internas e externas,
compondo o modelo no qual se insere a teoria neorrealista de Waltz.

2.3.2.2 O fortalecimento do Estado nacional e sua inserção nos estudos sociais (1930-
1950)

Embora, por volta de 1920, as ciências sociais já usufruíssem de incentivo privado e


vínculos com a administração pública, é apenas a partir da década seguinte que tal processo
revela-se particularmente intenso. Com a depressão econômica de 1929, novas demandas
chegam à organização e à agenda públicas alterando o tipo de interação entre o Estado e a
sociedade.

Em resposta ao quadro de crise econômica e social, o governo de Franklin Roosevelt


implanta o plano de ação conhecido como New Deal, e aproxima, de maneira inédita, os
pesquisadores e os centros de decisão política. Ambas as ações perduram e aprofundam-se nas
três décadas seguintes. Nesse aspecto, há a importante expansão dos estudos políticos para
além das salas acadêmicas, e em direção às organizações governamentais, impulsionada pela
criação de agências federais68 e aparatos de consultorias69.

68
Dentre as agências decorrentes do New Deal, podemos citar: CCC (Civilian Conservation Corps), TVA
(Tennessee Valley Authority), AAA (Agricultural Adjustment Administration), PWA (Public Works
Administration), FDIC (Federal Deposit Insurance Corporation), SEC (Securities and Exchange Commission),
80

Conquanto o programa do presidente F. Roosevelt em resposta à crise dos anos 1930


não consistisse em um modelo coeso de reformas políticas, econômicas e sociais, ele acabou
lançando as bases para o estado keynesiano, e para os procedimentos de intervenção estatal,
com vistas ao bem-estar social. Tal processo contou também com o reestabelecimento das
instituições políticas democráticas, as quais impulsionaram os princípios liberais como
modelo ideal e, posteriormente, contraposto à organização estatal comunista.

Dentre esses valores, destacou-se a noção de cidadania, que foi então ampliada e
vinculada à função nacional. Com isso, implicou-se a predominância cultural do liberalismo
que, por sua vez, atuou no impulso da filosofia racionalista da ciência. Pela ideologia da
época, os estudos científicos sob aquele signo preservavam o princípio da liberdade social,
pois ao esclarecerem as alternativas racionais em curso estavam facilitando as chances de
livre escolha e de controle sobre os fatos (WAGNER et al, 1991). Ademais, as décadas de
1930 e 1940 foram marcadas por autores como Robert Merton e John Dewey que, dentre
outros, promoveram a filiação entre investigação científica e governos democráticos, cujos
ethos apontariam em direção convergente, ambos bastiões do universalismo e da neutralidade
(AMADAE, 2003). E assim, plantou-se a ideia de que tal par constituia polo oposto tanto ao
provincianismo cristão, como aos regimes nazi-fascistas. Desse modo, os valores que
prescreviam a pesquisa nos EUA – busca da verdade, liberdade de investigação, debate e
publicação – legitimavam-se por mostrarem-se consoantes aos mesmos princípios pelos quais
Washington se posicionava no exterior (HOFFMANN, 1977).

Herdeira da ideologia oitocentista, a cultura norte-americana tendia a julgar a


aplicação prática da razão humana como um meio eficaz de amenizar e evitar fracassos
sociais. Nesse sentido, o período seguinte ao fim do conflito mais devastador da história, e
contemporâneo da emergência comunista e da instabilidade econômica internacional, serviu
propiciamente ao fortalecimento da confiança coletiva na resolução dos problemas pela
aplicação do método científico. Abria-se, assim, um espaço importante de desenvolvimento
para a pesquisa social, tanto no âmbito interno, pelo auxílio às entidades de assistência social,
como na esfera internacional, devido às intempéries do pós-guerra.

É então nesse cenário que ocorre a ampla circulação do termo ciência política, em que
autores como Lasswell, Yehezkel Dror e Alain Enthoven acessam o debate global da

CWA (Civil Works Administration), SSB (Social Security Board), WPA (Works Progress Administration),
NLRB (National Labor Relations Board).
69
Encarregados das políticas públicas, tais agências e consultorias buscaram associar ciência social e os
processos políticos do Estado americano, especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial.
81

disciplina argumentando pelo potencial das pesquisas como solução coletiva. Assim, já nos
primeiros anos após a Segunda Guerra (finalizada em 1945), à ciência política confere-se o
papel de estudo ―of the fundamental problems of man in society‖ (LASSWELL, 1951, p. 8).
Isso é, temas relevantes aos regimes democráticos vigentes na Guerra Fria, como os níveis de
emprego, as condições de igualdade e de paz.

Por essa perspectiva, caberia aos pesquisadores uma preocupação com questões de
escopo universal, que escapassem ao mero alinhamento técnico às demandas das burocracias
estatais. Todavia, conforme explica Lasswell (1951), esse último componente não se ausentou
dos objetivos centrais da disciplina nos EUA, que então se revezava entre o desenvolvimento
científico autônomo sobre os processos em curso, e a provisão de informações e
interpretações concretas aos atores políticos da nação70. Tal interação entre o campo teórico e
prático atinge amplo reconhecimento e escopo alargado no pós-1945. De tal modo, o olhar,
antes voltado ao âmbito interno da nação, passa a mirar a paisagem internacional, cada vez
mais atrativa aos pesquisadores dos EUA pela posição inédita deste país no papel de
superpotência.

Apesar de tardia, a inserção do Estado norte-americano no segundo conflito global


representou um importante trampolim político e econômico para a nação. O papel decisório
na vitória da Tríplice Entente durante a Primeira Guerra, em que o país somou forças, e
assumiu posição entre às potências internacionais da época, repetiu-se em 1941, quando as
tropas americanas investiram intensamente na vitória dos Aliados. Assim, a escalada iniciada
em 1917 certamente manteve-se ascendente durante os anos posteriores, muito embora a força
dos EUA no plano político internacional após 1947, quando se inicia de fato a Guerra Fria,
tenha assumido proporções maiores do que o país jamais experimentara. Afinal, durante o
conflito bipolar, os EUA exerceram domínio quase isolado sobre a zona de influência
capitalista.

Segundo a tese defendida por Stefano Guzzini (1998), o novo patamar político
ocupado pelos EUA com início da Guerra Fria criou responsabilidades para as quais a
diplomacia americana não estava preparada. A falta de profissionalismo da elite política do
país tornou necessária a promoção de um curso intensivo: uma formação intelectual ancorada
numa teoria científica que orientasse os tomadores de decisão. Tão logo surge a demanda, os
pensadores realistas assumem o papel de lecionar e formular esse novo conhecimento,

70
Ademais, a defesa do vínculo entre as esferas intelectuais e práticas do campo da ciência política não é inédita,
visto que já apreciada pelas correntes do período entre-guerras, como a ‗filosofia pragmatista americana‘ e a
‗escola de sociologia‘ de Chicago ( Wagner et al, 1991).
82

preservando, em suas variadas vertentes, aquele esforço em estabelecer uma base intelectual
para a aplicação sistemática das produções acadêmicas da área às necessidades dos
formuladores (e executores) políticos.

Visto dessa maneira, o realismo originou-se como uma tentativa de transformar as


―máximas da diplomacia europeia do século XIX em uma teoria científica‖ (GUZZINI, 1998,
p. ix prefacio). De modo que, durante o processo, pensamento realista, comunidade científica
e política externa norte-americanas dinamizaram um movimento de influência recíproca e
contínua. E assim, a partir de tal encadeamento nasceu uma corrente de pensamento disposta a
traduzir e elaborar em termos conceituais um programa político específico orientado à uma
superpotência envolta por um conflito bélico e ansiosa por estudos estratégicos.

Tais condicionantes representam importantes peças interpretativas do conteúdo


intelectual do realismo, que reforça, e é reforçado, pelo contexto da Guerra Fria, como
também pela própria identidade bélica da nação americada, marcada por muitas disputas
desde sua independência71. Afinal, como todo fenômeno social, tais contenciosos
impulsionaram leituras analíticas (qual foi o realismo durante a Guerra Fria) que então se
incorporam ao substrato ideacional da sociedade, passando, por sua vez, a orientar os
formuladores políticos em suas práticas.

De forma abreviada, a origem política desse pensamento coadunou-se com um grupo


atuante em meados de 1940, cujas ideias, sob signo de axioma Riga72, advogavam por uma
postura americana mais austera com relação a URSS, pautada na crítica ideológica às práticas
soviéticas, julgadas expansionistas e antidemocráticas (GUZZINI, 1998). Impulsionada por
nomes como George F. Kennan, Loy Henderson e Charles Bohlen, tal perspectiva fortalece-se
a partir da administração de Truman, que a dota de suporte institucional, caracterizando a
conhecida ―política de contenção‖73. Essa prática orientará grande parte das movimentações
norte-americanas durante o contencioso, expressando a resposta de um país, cujos olhos
vestiram-se de lentes realistas para a análise do conflito e das políticas do bloco inimigo, no
caso, a União Soviética (GUZZINI, 1998).

71
Dentre as quais, exemplificam: a Guerra Mexicano-Americana (1846-1848); a Guerra Hispano-Americana
(1898); a Guerra Civil Americana (1861-19865), dentre outras.
72
O axioma Riga representa um conjunto de visões assim denominadas devido ao local onde estava instalado um
grupo de especialistas no estudo do regime soviético, dentre os quais: George F. Kennan, Loy Henderson e
Charles Bohlen. Após a revolução Bolchevique, Riga, na Letônia, passa a integrar a URSS (GUZZINI, 1998).
73
A ―Doutrina Truman‖ (março de 1947) e seu aprofundamento pelo ―Plano Marshall‖ (junho de 1947)
expressam as aplicações práticas desse programa de contenção do expansionismo soviético. Por outro lado,
alguns anos depois, o conflito entre a nação americana e o Vietnã (1965-73) e os efeitos consequentes
representaram o colapso daquela política de contenção e o início de um período de distensão (détente) das
tensões entre EUA e URSS.
83

Desse modo, conduzidos por George Kennan, os servidores norte-americanos


apreendem as ações da URSS como sendo partes de uma política de poder, pragmaticamente
voltada ao estabelecimento de esferas de influência, e cuja ação desconsiderava predicados
éticos ou legais, ao passo que se pautava em uma análise de interesse e correlação de forças
(GUZZINI, 1998). Como consequência da edificação gradual dessa percepção de mundo
separado por duas antípodas, as estratégias internacionais dos EUA passaram a adotar um
olhar total, preocupado com o equilíbrio de poder mundial e, por conseguinte, com a
contenção da influência comunista, sob uma lógica de soma zero.

Ademais, a extensão do conflito majora a relevância política do Departamento de


Defesa americano, aumentando-se os recursos dedicados ao mesmo. Com isso, crescem as
pesquisas financiadas por esse órgão, tornando a segurança nacional tanto um tema central da
agenda pública, como reforçando sua posição de destaque dentre os objetos de estudo do
campo das Relações Internacionais.

Portanto, embora o vínculo entre as elaborações realistas e as políticas governamentais


não fosse integralmente convergente, podemos concluir, sem riscos de arbitrariedade, que a
primeira onda daqueles intelectuais integrou as bases para o novo pensamento, e para a
política externa americana na segunda metade do século XX. As perspectivas conceituais de
personalidades como Hans Morgenthau, Arnold Wolfers, Henry Kissinger, George Kennan,
Osgood, Walt Rostow e McGeorge Bundy serviram aos interesses da época, auxiliando em
funções como:

Exorcise isolationism, and justify a permanent and global involvement in world


affairs; rationalize the accumulation of power, the techniques of intervention,
and the methods of containment apparently required by the cold war; explain to
a public of idealists why international politics does not leave much leeway for pure
good will, and indeed besmirches purity; appease the frustrations of the
bellicose by showing why unlimited force or extremism on behalf of liberty was
no virtue; and reassure a nation eager for ultimate accommodation, about the
possibility of both avoiding war and achieving its ideals (HOFFMANN, 1977, p.
48).

Diante deste quadro, desenha-se a reciprocidade entre as contingências políticas dos


EUA e o realismo clássico, cujas entrelinhas normativas teriam atuado sobre a consciência
social americana até os anos finais de 1950. Em termos ontológicos, as tantas guerras travadas
pelo EUA para sua independência e constituição, além das desilusões com o sistema de
segurança coletiva, conhecido como Liga das Nações, e a violenta experiência da II Guerra
Mundial, seguida da ascensão de um conflito bipolar, legitimaram a política de poder como
84

base metafísica dos estudos lançados às relações internacionais naquele país. Assim, nesse
período, o fortalecimento dos valores74 realistas, e a presença de imigrantes europeus75 dentre
seu principais autores, trouxe para o campo teórico uma preocupação particular com a
histórica e um interesse especial nas dinâmicas de poder.

De forma geral, tais transformações na área direcionaram-se, especialmente, às


inovações ontológicas, sem que uma alteração epistemológica fosse necessariamente
generalizada. Afinal, nessa fase original da disciplina, a tradição epistemológica da
comunidade acadêmica norte-americana, ainda encontrava-se mesclada às tendências teóricas
e filosóficas da migração alemã. Como explica Alker e Biersketer (1984), entre 1930 e 1940,
escritores importantes como, Arnold Toynbee, E.H. Carr, Hans Morgenthau e Quincy Wright
buscaram oferecer uma versão científica e moderna dos discursos históricos tradicionais,
muito embora cada qual se apoiasse em uma concepção distinta sobre o que seria um modelo
adequado de ciência. Assim,

For traditionalists, international practice has been seen as more of a practical art than
a natural science. Indeed all traditionalists highly value the study of diplomatic
history, but realists are more likely than communitarians to find in such history
evidence for timeless descriptive and prescriptive laws linking power, survival and
national interests (ALKER; BIERSTEKER, 1984, p. 124-125).

Conquanto os debates epistemológicos fossem difusos entre as correntes existentes, no


âmbito ontológico a delimitação se fez mais intensa, sobretudo, quanto aos assuntos de uma
suposta agenda da disciplina nos EUA. Essa, que destacou o fenômeno das guerras, e sua
prevenção, como objeto de estudo geral, uma vez que seria a expressão histórica das
movimentações sociais em torno do elemento de potência.

Conclusivamente, o realismo clássico surge da práxis política norte-americana


assumindo um logo temático endereçado à nação. Tal qualidade é legada às produções de
Waltz que mantém em suas principais publicações a linha temática associada à compreensão
dos fenômenos bélicos do sistema de Estados, e a percepção metafísica de um mundo político
externo dinamizado por estratégias de poder e recursos materiais. Nesse sentido, como
apontou Ashley:

74
―Traditionally, realists have valued prudence, respected the sovereignty of great powers and been concerned
with maintaining world order for one or several of them, while their ‗communitarian‘ opponents (to suggest a
less pejorative label) have sought legal, religious, societal, historical or other communitarian bases for
international government of some kind‖ (ALKER; BIERSTEKER, 1984, p. 124).
75
Especialmente, na figura de Hans Morgenthau .
85

In neorealist eyes [...] classical realists were quite correct in their emphasis on
power, national interest, and the historically effective political agency of the state.
Unfortunately, when held up to modern scientific standards of theory, these classical
realits scholars seemed to fall woefully short (ASHLLEY, 1986, p. 260).

Sendo assim, a movimentação epistêmica – apontada no primeiro capítulo – que


diferencia a proposta de Waltz de seus precedentes consolida-se no campo das ciências sociais
americanas, principalmente, durante a década 1960, caracterizando o período em que as
tendências racionalistas dos EUA ganham fluidez. Impulsionados pela relevância das
pesquisas tecnológicas – crescente desde seu papel central na vitória dos Aliados, e
imprescindível na disputa nuclear – e pelo relativo sucesso das pesquisas pragmáticas e
empíricas, os discursos behavioristas76 alcançam posição privilegiada durante a segunda
metade do século XX, especialmente nos EUA (ALKER; BIERSTEKER, 1984).

2.3.2.3 Quando Descartes encontra Mcnamara (1960-1970): the epistemic drift e a


racionalização do discurso político americano

Nessa fase, entre as décadas de 1960 e 1970, delineia-se o amadurecimento do Estado


intervencionista e a centralidade do Departamento de Defesa Nacional. Paralelamente, emerge
uma nova onda de pesquisadores realistas que inicia dois movimentos de especialização: um
temático, ainda focado nos estudos estratégicos, mas preocupados com a nova dinâmica de
uma guerra termonuclear; e outro metódico, sob forte influência dos modelos teóricos
econômicos, como os suportes da teoria da escolha racional. Assim, the epistemic drift, como
denominou Wagner (1991), delimitou-se especificamente entre os anos finais de 1950 ao
início de 1970, e expressou uma fase de integração consensual entre cientistas sociais e atores
políticos, em que ambos exerceram apoio mútuo às reformas respectivas.

O aprofundamento da Guerra Fria e os imperativos da nova função de polícia


internacional estimularam nos EUA a criação de consultorias e entidades de pesquisas
voltadas à promoção de controles sociais e avanços tecnológicos. Como apontou S. M.
Amadae (2003), o aspecto racionalista dos estudos e das análises estadunidenses pode ser

76
Os autores Alker e Biersteker (1984) referem-se ao modelo científico behaviorista por meio de uma concepção
inclusiva. Nessa, são destacados os comprometimentos metódicos comuns aos adeptos de tal modelo, como:
adesão filosófica à apreensão neutra e objetiva da realidade, representada pela estratégia metódica pautada na
construção de hipóteses, empiricamente testáveis; ou, em outras palavras, uma admiração pelo rigor lógico-
empírico das ciências naturais, comprometido com a identificação de leis objetivas, eternas e universais, e com
uma capacidade gerenciamento social, pautado num expertise técnico. Em termos específicos, a tradição
behaviorista seria representada pelas teorias neorrealistas (exemplo, Theory of International Politics, K. Waltz) e
liberal-internacionalista (ex., Power and Interdependence, R. Keohane).
86

compreendido por meio de uma práxis política do país, em especial nos assuntos de defesa e
segurança. Para aquela autora, o desenvolvimento da teoria da escolha racional efetivou-se
inicialmente no âmbito da segurança nacional, passando posteriormente à institucionalização
acadêmica.

Assim, na área de interesse internacional, os pesquisadores conectados a Washington


elaboraram redes de intercâmbio intelectual oficiais. Após 1960, os analistas foram postos de
fato no centro de formulação política, ao contrário do caráter consultivo da relação nas duas
décadas anteriores (HOFFMANN, 1977). Com a vitória eleitoral de John F. Kennedy em
1961, e a posse subsequente de Robert Mcnamara como Secretário de Defesa (1961-1968),
inicia-se um movimento de reorganização do Pentágono, que ascende como um dos órgãos
federais centrais, absorvendo 10% da verba do país, e 50% de cada dólar de imposto
(AMADAE, 2003).

Tal cenário intensificou-se dado a ocorrência, em 1962, da conhecida crise dos mísseis
de Cuba; um evento significativo pelo impacto que exerceu sobre o status quo da Guerra Fria.
Em outras palavras, durante essa crise a competição entre as duas superpotências alcançou
níveis mais diretos e conflituosos, o que, somado aos perigos de uma guerra nuclear, agravou
o ambiente de reflexão estratégica. Por conseguinte, esse fenômeno acarretou transformações
no cenário internacional, especialmente com relação a sua agenda que passa a atentar-se aos
cálculos e planejamentos que administrassem as ameaças de um conflito nuclear, encontrando
soluções eficazes.

Assim, sob nova administração, os processos decisórios do Pentágono foram


gradativamente redefinidos, passando a atuar sob bases racionais e objetivas, advindas da
influência dos think tanks, como a RAND Corporation. Criada na década de 1940, tal
corporação caracterizou-se como primeiro órgão autônomo de pesquisa militar americana, a
ponto de tornar-se, nas palavras de Amadae (2003), a instituição arquetípica da Guerra Fria.
No final da década de 1950, as linhas de pesquisas da instituição dedicavam-se à estratégia, à
logística e à guerra termonuclear, todas sob a rubrica das análises de sistema. Pautados numa
metodologia interdiciplinar e quantitativa, os cientistas da RAND ambicionavam desenvolver
uma ciência total da guerra, por meio da qual os problemas estratégicos, não importam quão
complexos, poderiam ser solucionados por uma análise política racional, rigorosa e objetiva.

Sob administração de H. Rowan Gaither Jr., a corporação passa a receber auxílio


financeiro da Fundação Ford, destacando-se dentre os centros de produção intelectual do país
e expandindo sua influência sobre os quadros acadêmicos. Com intuito de oferecer conselhos
87

políticos ao governo, tal grupo representava o prestígio das instituições filantrópicas e civis
que usufruíam de um papel privilegiado frente aos agentes federais. Isso porque, acreditava-se
que, ao contrário desses últimos, os grupos intelectuais seriam suficientemente neutros para
sustentar pesquisas objetivas e desprovidas das controvérsias partidárias (AMADAE, 2003).

Conforme defende Amadae (2003), a emergência da teoria da escolha racional esteve


vinculada ao papel da RAND Corporation, e de instituições afins, na promoção dessas
tecnologias de decisão racional e de análise sistêmicas, que posteriormente conferiram efeitos
derrame sobre os padrões de escolha pública do governo federal, e dos currículos
universitários.

Rational choice theory as a social scientific method and rational policy analysis as a
decision technology share key theorists, core ideas, institutional venues, and source
of funding. Any attempt to understand the phenomenal success of rational choice
theory within the social sciences must acknowledge the interconnections between
rational choice as a decision tool for government policy initiatives and as an
explanatory device for predicting the outcomes of human action (AMADAE, 2003,
p. 28).

O princípio ordenador desses mecanismos decisórios assentava-se na objetividade e


no rigor científico orientados a uma administração racional da sociedade. Em termos
normativos, a expansão dos programas da RAND divulgou uma postura favorável à liderança
social de uma elite educada que não pertencesse à arena pública – que Amadae (2003)
denomina de ―elite tecnocrática‖ – cujo expertise ―could guide the nation through challenging
policy decisions‖ (AMADAE, 2003, p.36).

Entusiasta dessa ideia, Robert Mcnamara assume o Departamento de Defesa


comprometido com a transposição das análises racionais para o aparato governamental.
Ainda, antes de inserir-se no quadro burocrático do Estado, Mcnamara ocupava a presidência
da companhia Ford Motor, que lhe rendeu uma experiência profissional particular com as
técnicas de gestão racional da empresa (fordismo) levadas consigo para a administração
pública. Assim, enquanto secretário, Mcnamara buscou sistematizar as burocracias federais e
racionalizar o tradicional modus operandi dos militares77.

77
Numa leitura pragmática, tal fidelidade aos desígnios da ciência ocupou função instrumental nas mãos de
Mcnamara. Este que encontrou naqueles métodos um meio eficiente para estabelecer outro critério de
autoridade, que não a experiência militar – ausente em sua formação pessoal. Assim, as técnicas de decisão
racional, dotadas de credibilidade social per si, legitimariam a execução do sistema de defesa proposto,
substituindo o poder dos oficiais militares pelo domínio exercido por Mcnamara, sustentado pela elite tecnocrata
da RAND.
88

Por essa perspectiva, os processos decisórios seriam, pois, esvaziados da política strito
senso, cedendo lugar ao argumento da neutralidade e objetividade da escolha racional e da
autoridade científica. Acreditava-se que o método de resolução de problemas desenvolvido
pela RAND produzia planos realísticos e racionais, sendo assim valorizados por expressarem
resultados supostamente despersonalizados, desburocratizados, e, sobretudo, despolitizados.
As chamadas técnicas de decisão racional expressavam um regime de produção de
conhecimento, orientado a maximizar a capacidade militar em vista de alcançar os objetivos
nacionais; além de promover tecnologias que aperfeiçoassem as escolhas estratégicas, como a
racionalização da gestão por meio do programa de planejamento orçamentário (o ―PPBS‖).

A aplicação desse programa na organização militar permitiu o acesso da linguagem


econômica (inputs/outputs) à área de estratégia e operações. A inserção da lógica ―custo-
benefício‖ nas atividades decisórias da segurança nacional operou o reconhecimento das
análises políticas como método viável, que então transbordou para as demais agências
federais, em especial, nos programas de assistência social do presidente Lyndon Johnson
(1963 a 1969).

Desse ponto de vista doméstico, B. Wittrock, P. Wagner e H. Wollmann (1991)


explicam as tendências racionalistas a partir do modelo de interação entre o Estado e a
sociedade. Assim, o aprofundamento do Estado intervencionista nos EUA e das instituições
de assistência social em meados de 1960 resultou em demandas paralelas por análises e
orientações das ciências sociais que auxiliassem na barreia aos processos sociais deletérios,
como pobreza, aglomerações urbanas e poluição ambiental. A sociedade capitalista-industrial
norte-americana, sob os moldes keynesianos78, amplia a atuação estatal que ultrapassa o
campo das políticas econômicas inserindo-se no quadro das questões sociais.

Entrementes, houve inchaço do setor público, cuja aspiração por planejamentos


racionais demandou um contrato de reformulação mútua das instituições políticas e de
pesquisa social. Os programas da reforma democrática da administração de Lyndon Johnson,
como The War on Poverty e Great Society Program, exemplificam a demanda governamental
por recursos analíticos e informações universitárias, cuja produção passava a assumir um viés
mais empírico, e pragmático (WAGNER; WITTROCK; WOLLMANN, 1991).

78
Ressaltando os princípios cartesianos subscritos na consciência social americana, a ação de intervenção estatal
é descrita, e legitimada, como um processo de racionalização do mercado de trabalho e da produção, mediante a
aplicação de controles sociais. Isso é, ao invés de constituírem custos, legitimados por aparato moral, as políticas
sociais representariam investimentos preventivos e racionais, em vista do desenvolvimento econômico da nação.
89

Tão logo transcorriam os anos de 1960, o congresso norte-americano também tornou


obrigatório aos poderes, executivo e legislativo, a elaboração de uma pesquisa avaliativa a fim
de supervisionar seus funcionamentos e produções (WAGNER; WITTROCK; WOLLMANN,
1991). Esse procedimento, por conseguinte, acarretou no aprimoramento das burocracias
governamentais, em termos de suas capacidades analíticas, e o aprofundamento daqueles
valores científicos. Segundo Wagner e Wittrock (1991), os atores federais contaram com o
suporte da ―coligação para reforma‖, composta por pesquisadores, universidades e políticos,
de cujos esforços emergiu, por exemplo, o Office of Economic Opportunity 79.

Assim, a criação de novas instituições de pesquisa voltadas ao pragmatismo federal


conduziu à validação de novos modelos cognitivos. Além de influírem nos objetos estudados,
a institucionalização da área representou a ―modernização‖ dos métodos de pesquisas sociais,
que passam a operar com análises empíricas, neopositivistas e, sobretudo, quantitativas.

[Werner] Jann describes public-policy training in the United States as showing a


preference for data rather than theoretical understanding, for microeconomics rather
than political science, and for a professional rather than a disciplinary orientation
(WAGNER et al., 1991, p. 14).

Dessa forma, a ampla validação dos modelos econômicos de racionalidade nos EUA
seria credora de sua institucionalização anterior como prática social, que facilitou sua
circulação, antes mesmo de um reconhecimento acadêmico. Na perspectiva de Amadae
(2003), o modelo do ator racional estratégico inaugurado pela teoria dos jogos na década de
1940, antes de se tornar popular entre os economistas, já era utilizado para o estudo das duas
superpotências integradas pelo conflito nuclear. Assim, a crescente relevância do
Departamento de Defesa no país, seguida pela implantação ampliada dos planejamentos
orçamentários e das análises de sistema sobre a máquina estatal norte-americana, geraram
demandas por profissionais qualificados, de modo a avançar tal influência sobre os currículos
universitários.

Conforme aponta a pesquisa de Amadae (2003), grande parte dos autores vinculados
ao modelo metodológico racional da economia (que, como exposto no capítulo 1, influi nas
bases metódicas de Waltz) esteve associada a esse mecanismo triplo, entre a sociedade, os
pesquisadores e as agências federais. E assim, Kenneth Arrow, um dos grandes nomes ligados

79
A agência Office of Economic Opportunity (OEO) foi criada em 1964 pelo presidente Lyndon Johnson, como
parte da agenda legislativa para reforma nacional (Great Society). Àquele órgão foi delegada a função de
coordenação dos programas sociais do governo, incluindo as ações do War on Poverty.
90

a escolha racional, formulou Social Choice and Individual Values no verão de 1948 enquanto
compunha o quadro dos pesquisadores da RAND Corporation. Do mesmo modo, Anthony
Downs, James Buchanan, e Mancur Olson, importantes autores do campo, integraram o corpo
de consultores da RAND nos anos anteriores à formulação de seus textos.

Sob estímulo de Thomas Schelling, ex-pesquisador da RAND, a Kennedy School of


Government abrigou esse movimento de reforma curricular. Ainda em Harvard, o então
secretário de defesa, Robert Mcnamara, estimulou, durante todo seu mandato, colóquios que
discutissem ideias integrantes da agenda política da época. Nesse sentido, relembramos que
justamente na ocasião de um seminário sobre o controle de armas realizado em Harvard, em
conjunto com Massachusetts Institute of Technology (MIT), Kenneth Waltz lança a discussão
sobre a estabilidade do mundo bipolar, exposta em seu artigo (The Stability of a Bipolar World)
publicado em 1964.

Naquela ocasião, o autor mostra-se vanguarda no debate ainda incipiente acerca da


qualidade bipolar da nova ordem80. Por outro lado, essa concepção de um sistema de
antípodas dinamizado por uma estrutura orientada ao equilibro de poder já começava a ser
estimulado pelo governo de Kennedy. Este, em confluência com os relatórios estatísticos
federais, identificou certa vulnerabilidade na postura defensiva dos EUA (the missele gap),
sobretudo após o lançamento do satélite soviético Sputnik I. Com isso, a política
governamental passa a privilegiar o desenvolvimento armamentista, a fim de pacificar,
militarizando-se. Ou seja, teve início a estratégia second-strike counterforce, pautada no
desenvolvimento em massa de arsenal nuclear, suficiente para evitar uma ofensiva soviética,
devido à insustentabilidade de uma possível retaliação americana.

Tal ideia ganha eco acadêmico no premiado artigo de Waltz, The Spread of Nuclear
Weapons, publicado em 1981, no qual o autor formula uma explicação racional para a paz
derivada do conflito nuclear. No entanto, cabe notarmos que o fundamento para essas noções
já preenchia as reflexões de Waltz há alguns anos, como vemos no popular Theory of
International Politics, ou What will the spread of nuclear weapons do to the world?
International Political Effects of the Spread of Nuclear Weapons, ambos publicados em 1979.

O ambiente intelectual, e a estabilidade decorrente da corrida armamentista entre dois


blocos, celebram a tendência de Waltz, já indicada em meados 1960, ao olhar sistêmico e

80
Ao relembrar tal contexto, Kenneth Waltz (informação verbal) ressalta o aspecto controverso que a percepção
de um mundo reorganizado em dois polos possuía nas conversas acadêmicas e políticas da época. Afinal, como
declara o autor, durante o curso inicial da Guerra Fria as ideias sobre o papel da Europa, ou mesmo sobre os
desígnios do bloco soviético ainda eram bastante nebulosas.
91

racional dedicado aos temas consoantes à segurança nacional. Se nos atentarmos à produção
bibliográfica daquele autor, podemos notar uma progressão paralela às transformações
temáticas e metódicas assinaladas pelos condicionantes político-sociais. Dessa forma,
enquanto as publicações81 de Waltz, entre 1959 e 1962, caracterizaram-se por debates
filosóficos e teóricos, sobretudo sobre a temática das guerras, a partir de 1964 em diante,
assumem tom pragmático, em que grande parte dos artigos e livros discorre sobre análises
voltadas às políticas de segurança e defesa, em especial sobre a guerra nuclear, ou acerca das
características e formas de gerenciamento da estrutura internacional82.

Ademais, e, por fim, sugerimos uma correlação entre as reflexões de Waltz e as


orientações do núcleo metodológico das instituições governamentais norte-americanas, em
específico do departamento de defesa nacional:

The theory of rational action had interlocking descriptive, normative, and


prescriptive components, and was developed to inform action respecting nuclear
strategy and complex questions of weapons procurement. This set of conditions
inspiring the early development of the rational toolbox helps to explain why the
theory typically carries the self-referential presumption of intentional rational
calculation on the part of actors, which must resemble something analogous to the
theory itself. It also explains how the academic world of rational choice theory in the
U.S. social sciences seems only a breath away from the world of policy analysis: the
two began in one motion, with one set of theoreticians defining, supporting, and
championing the same basic idea set in two contexts (AMADAE, 2003, p. 77-78).

Como veremos, tal congruência permanece, ou mesmo se intensifica, durante os anos


seguintes. O paralelismo entre as orientações intelectuais de Waltz e a lógica política
americana explicita-se, especialmente, durante a década de 1970, quando o autor publica seu
conhecido livro Theory of International Politics, e outros artigos que abordam as relações
internacionais, sob uma perspectiva americana, racional e militarizada.

2.3.2.4 Cristalizando o passado: a controversa ascensão neorrealista em meio ao


desfecho bipolar

O modo pelo qual Waltz abordou a temática do conflito interestatal no final da década
de 1970 foi geralmente considerado normativamente controverso aos temores da época. Esse
adjetivo, oferecido pelo próprio autor – ―realism is, to put it mildly, controversial‖ (WALTZ,

81
Em 1959, Waltz publicou: Political Philosophy and the Study of International Relations: Theoretical Aspects
of International Relations; Man, the State, and War: A Theoretical Analysis e, Reason, Will, and Weapons. Três
anos depois, em junho de 1962, foi editado Kant, Liberalism, and War.
82
Ver tabela na página 94 e 95
92

informação verbal, grifo nosso) – refere-se à aparente incompatibilidade entre as propostas de


um pacifismo mediado por armas nucleares, e os acontecimentos políticos do período
imediatamente anterior à publicação da TIP, conhecidos sob o signo da détente83, e os quais
estimularam anseios pelo fim da disposição bipolar, e a amenização dos assuntos militares.

O afrouxamento das tensões internacionais com o bloco soviético, seguido da crise do


petróleo, incentivou o surgimento de novas dinâmicas globais que impulsionaram publicações
associadas aos estudos sobre a economia política internacional, sobre os atores transnacionais
e os processos de interdependência e cooperação globais. Ou seja, os novos pesquisadores, de
forma geral, mostravam-se dispostos a uma ruptura com o quadro militar, estadocêntrico e
sistêmico84 dos objetos de estudo do campo.

Conquanto distinta da perspectiva tradicional do realismo, a elaboração conceitual


dessas vertentes – como expuseram os autores neoliberais85 – foi legitimada pelos mesmos
valores científicos que fundaram o neorrealismo. Esses valores orientavam-se pela
identificação dos condicionantes responsáveis pelas dinâmicas internacionais, a fim de
controlar, ou evitar, as situações similares no futuro. Tal premissa servia à preocupação
política de gerenciar a crise, administrando os riscos e otimizando a eficiência em solucionar
as disputas (GUZZINI, 1991).

Assim, embora com focos analíticos divergentes, grande parte dos estudos da década
de 1970 e início de 1980, como também os programas de pós-graduação em Relações
Internacionais das principais universidades americanas, mantiveram a predileção pelo
interesse técnico da ciência, investido em teorias orientadas por explicações causais,
delegando uma posição secundária às construções metodologicamente direcionadas ao
entendimento interpretativo, ou ao viés crítico (BIERSKETER, 2009). Logo, ao passo que tal

83
Détente é um termo francês, referente a ―relaxamento‖ ou ―distensão‖. Esse termo tem sido geralmente
vinculado à política internacional em curso no final da década de 1960 até o início de 1980, quando, durante a
Guerra Fria, há uma redução da tensão entre os EUA e a URSS. Para mais informações, ver: GARTHOFF,
Raymond L. Détente and confrontation: American-Soviet relations from Nixon to Reagan, revised edition.
Washington: The Brookings Institution Press, 1994.
84
Dentre os pesquisadores que romperam com o estudo restrito ao terceiro nível de analise, destacamos Graham
T. Allison, cuja formulação teórica, publicada em 1971, argumentou a favor da relevância das variáveis
domésticas (burocracias, organizações, processos cognitivo, etc.) na compreensão dos processos decisórios da
política externa dos Estados, utilizando, para tal, um estudo das decisões políticas envolvendo o caso específico
dos mísseis em Cuba. No aspecto teórico, Allison propôs quatro modelos analíticos: 1. Modelo do ator racional
(causalidade: estratégia internacional); 2. Modelo do processo organizacional (causalidade: burocracias); 3.
Modelo da política governamental (causalidade: estratégias domésticas); 4. Modelo cognitivo (causalidade:
psicologia) (ALLISON, 1971).
85
Dentre esses autores, ver: KEOHANE, R.; NYE, J. Power and Interdependence: World Politics in
Transition. 1977.; KRASNER, S. (ed) International Regimes. New York: Cornell University Press, 1983.;
HASS, E. Beyond the Nations State. Stanford: Stanford University Press, 1964.
93

período tenha possibilitado a abertura do campo das RI à discussão, ele o fez principalmente
em termos ontológicos, deixando as questões de natureza metodológicas à parte dos
embates86.

Como avaliam as pesquisas sociológicas (GUZZINI, 1998; BIERSKETER, 2009), a


manutenção dos modelos hipotético-nomológicos como preferência metodológica dos
teóricos de RI nos EUA deveu-se a consonância desse estilo às contínuas demandas políticas
de uma superpotência. Assim, tomados por anseios de ―gerenciar‖, seja o sistema de poder
internacional e/ou a economia mundial, os políticos e intelectuais americanos recorreram às
epistemologias racionalistas e positivistas;

To manage is to control, and the responsible ―manager‖ that tries to lead the world
needs to understand its dynamics in causal terms. Scholars become engaged in this
larger project, not because they all necessarily want to ―advise the Prince‖ (…), but
because they tend to share the assumptions of the political leadership that the world
needs to be managed, that we should conceptualize and address issues on a global
scale, and that it is important to try to make the world a better place. Causal models
and arguments serve this function, and the academy is actively engaged in their
production. (BIERSKETER, 2009, p. 323).

Com isso, a tonalidade controversa da perspectiva de Waltz, refere-se antes a natureza


polêmica de seus discursos mantenedores do raciocínio militar-estratégico, do que devido a
uma ruptura profunda com os moldes científicos do mainstream norte-americano. Ademais, o
período vigente e imediatamente posterior à publicação da TIP (a década de 1980, posterior à
detente, e anterior ao fim do conflito bipolar) favoreceu sua ascensão no quadro ideacional da
nação, dado a transformação dos fatos pelo endurecimento das tensões bélicas, que esfriaram
os postulados interdependentistas inaugurados anteriormente.

Dessa forma, com olhos conclusivos, podemos captar na produção bibliográfica do


autor tendências significativas aos apontamentos anteriores referentes à influência contextual
da Guerra Fria, em termos de agenda ontológica e, sobretudo, metódica. Para essa avaliação,
olhemos o quadro abaixo que tentou compilar as principais produções de Waltz, conforme o
período de publicação e o estilo temático. Para tanto, seguimos a classificação que o autor

86
A este momento, geralmente denota-se o termo ―debate neo-neo‖ por envolver um período essencialmente
centrado nas discussões teóricas entre as versões neorrealistas e neoliberais das teorias de RI. A princípio, as
partes constituintes desse debate despontam como perspectivas distintas voltadas, cada qual, para o estudo de
uma esfera particular do sistema – uma centrada nas questões de natureza essencialmente político-estratégicas, e
a outra focada nas questões sobre a economia política internacional. Todavia, em termos epistemológicos, o
debate torna-se mais um diálogo, uma vez que ambas as vertentes partem de uma percepção racionalista da
ciência. Em suma, as características centrais do debate, responsáveis por diferenciar os polos, são de natureza
essencialmente ontológica, derivadas das reflexões que cada vertente realiza sobre: a natureza e conseqüência da
anarquia; os ganhos absolutos e ganhos relativos; a atuação das instituições e a possibilidade de cooperação; etc.
94

realiza no livro Realism and International Politics (2008), por meio da qual seus trabalhos,
entre livros e artigos, são divididos em quatro categorias: Teoria, Política Internacional,
Relações Militares e Política Externa87. Lembramos que, naquele livro, Waltz classifica 23 de
seus principais artigos. Para essa análise, acrescentamos outras 24 publicações, a fim de
obtermos uma visão mais ampla sobre a produção intelectual de Waltz entre 1950 e 2000.

Quadro 1
Principais títulos de artigos e de livros de Kenneth Waltz, classificados conforme ano de
publicação e categorias (Teoria, Política Internacional, Relações Militares e Política Externa).

Fins de 1950
1 -―Man, the State, and War: a theoretical analysis‖ (1959)
Teoria
2 - "Political philosophy and the study of international relations" (1959)
Política
Internacional
Relações
Militares 1 - "Reason, will, and weapons" (1959)*
Política Externa
Década de 1960
1 - "Kant, liberalism and war" (1962)*
Teoria
2 - "Realities, Assumptions and Simulations" (1968)
1 -―The stability of a bipolar world‖ (1964)*
Política 2 - "Contention and management in international relations" (1965)*
Internacional 3 - "International structure, national force, and the balance of world power"
(1967)*
Relações
Militares
1 - "The politics of peace" (1967)*
2 - "Foreign policy and democratic politics: the american and british
Política Externa
experience" (1967)
3 - "The politics of british military policy" (1968)
Década de 1970
1 - "Conflict in world politics" (1971)*
Teoria 2 - "Theory of International Relations" (1975)
3 - "Theory of International Relations" (1979)
Política 1 - The myth of national interdependence (1970)*
Internacional 2 - "Interdependence in Theory and Practice" (1978)
Relações 1 - "The use of force: military power and international politics" (1971)
Militares 2 - "What will the spread of nuclear weapons do to the world?" (1979)
1 - "America's European policy viewed in global perspective" (1974)*
Política Externa
2 - "Foreign Policy: An Anthology of Syllabi" (1970)

87
Tais classes dizem respeito à natureza das questões discutidas, ou, ao menos, à sua perspectiva central.
Explicitamos, contudo, a dificuldade de se traçar uma única especialidade a um texto, o qual normalmente
mescla questões representadas por cada uma das categorias, sendo elas próprias bastante intercambiáveis. Porém,
nosso propósito não é o de um estudo taxológico preciso dessas publicações, mas sim de uma compreensão das
possíveis dinâmicas da consciência intelectual coletiva do autor. Nesse sentido, justificamos nossa opção por
seguir a lógica de classificação realizada pelo próprio Waltz, a qual por si reflete uma autoimagem dos assuntos
considerados mais pertinentes e centrais a sua produção.
95

Quadro 1 (Continuação)
Principais títulos de artigos e de livros de Kenneth Waltz, classificados conforme ano de
publicação e categorias (Teoria, Política Internacional, Relações Militares e Política Externa).

Década de 1980
1 - "Reflections on Theory of International Politics: a response to my
Teoria critics" (1986)*
2 - "The origins of war in neorealist theory" (1988)*
Política
Internacional
1 - "A Strategy for the rapid deployment force" (1981)
Relações 2 - "The spread of nuclear weapons" (1981)
Militares 3 - "The central balance and security in Northeast Asia" (1982)
4 - "Toward nuclear peace" (1983)*
5 - "Yes to minimal deterrence, No to abolition" (1988)
6 - "Strategic defenses and the problem of War" (1989)
Política Externa 1 - "Another gap?" (1981)*
Década de 1990
1 - "Realist thought and neorealist theory" (1990)*
Teoria 2 - "Evaluating theories" (1997)*
3 - "International Politics is Not Foreign Policy" (1996)
1 - "The emerging structure of international politics" (1993)*
Política
2 - "The new world order" (1993)
Internacional
3 - "Globalization and governance" (1999)*
1 - "Nuclear myths and political realities" (1990)*
2 - "On the nature of states and their recourse to violence" (1990)
Relações
3 - "The spread of nuclear weapons: a debate" (1995)
Militares
4 - "A reply" (to critics of Sagan and Waltz) (1995)*
5 - "Thoughts about virtual nuclear arsenals" (1997)
1 - "America as a model for the world? A foreign policy perspective"
Política Externa (1991)*
2 - "East-West relations after the Cold War" (1997)
Anos 2000
Teoria 1 - "Thoughts about assaying theories" (2003)*
Política 1 - "Structural realism after the Cold War" (2000)*
Internacional 2 - "The continuity of international politics" (2002)*
Relações 1 - The spread of nuclear wapons: a debate Renewed" (2002)
Militares 2 - "NATO's expansion: a realist view" (2000)
Política Externa

Fonte: elaborado pela autora.


Observação: os artigos marcados com o símbolo asterisco (*) referem-se àqueles originalmente classificados por
Kenneth Waltz, em: WALTZ, Kenneth. Realism and International Politics. New York: Routledge, 2008.
96

Gráfico 1
Porcentagem relativa das produções conforme categoria/ano.
70%
60%
50%
40% Teoria
Política Internacional
30%
Temas militares
20% Política Externa

10%
0%
1950 1960 1970 1980 1990 2000

A partir desse quadro, percebemos que, no final da década de 1950, quando Waltz
titula-se doutor, as preferências pela teoria política prevalecem. Já na década de 1960,
captamos a prevalência dos trabalhos analíticos (75%), os quais se dividiam,
equilibradamente, entre ―política internacional‖ e ―política externa‖. Desses, todos, com
exceção de um, tratam de uma ordem gerida por políticas de poder associando-se, pois, a
temas como a bipolaridade e políticas militares. Já nos anos de 1970, a categoria teórica ganha
impulso pela publicação da TIP, embora as demais áreas continuem significativas. Nesse
grupo, destaca-se a nova questão da interdependência, nos estudos sobre a política
internacional, e o incremento da categoria militar renovada pelas reflexões sobre as estratégias
nucleares.

No campo das teorias, vale ressalva quanto à convergência ontológica aos temas
citados, geralmente preocupados com o gerenciamento das relações internacionais e a
compreensão dos mecanismos causais em curso nas dinâmicas de poder. Como é sabido,
durante as décadas supracitadas, enquanto a Guerra Fria atingia os picos, ora da deterrence,
ora da détente, Waltz dedicou-se ao estudo dos efeitos estruturantes do sistema internacional
no comportamento geral das unidades. Partindo do princípio sobre a natureza anárquica da
ordem externa, o autor elabora sobre a fragilidade das relações pacíficas dentre seus
elementos, os Estados, decorrentes da dificuldade de se administrar os riscos e equilibrar os
interesses numa realidade tensionada. Dessa forma, Waltz conclui a relevância de questionar-
se sobre as melhores condições de gerenciamento dos eventos e contextos instáveis do
sistema: se numa estrutura bipolar, ou se multipolar.
97

Portanto, influenciado pelas preocupações normativas da época, Waltz ateve-se com


especial atenção à dinâmica desenvolvida entre as duas superpotências contemporâneas, os
EUA e a URSS. E ao analisar aquele contexto, o autor identificou uma possibilidade de
relações pacíficas, vinculando-a como variável dependente dos imperativos de uma estrutura
bipolar: ―In a world in which two states united in their mutual antagonism far overshadow any
other, the incentives to a calculated response stand out most clearly, and the sanctions against
irresponsible behavior achieve their greatest force‖ (WALTZ, 1979, p.173). Nesse sentido, o
autor acrescenta um importante fator, a saber: as armas nucleares. Para Waltz, essa tecnologia
atua como mecanismo de reforço para a estabilidade do modelo bipolar – ―a stability
reinforced by second-strike nuclear weapons‖ (WALTZ, 1979, p. 195). Assim, ao tratar da
‗paz prolongada‘ como decorrência de um mundo bipolar, Waltz a qualifica pelas condições
beligerantes da Guerra Fria. Sobre o assunto, o autor lança sua controversa, e reconhecida,
tese sobre a propagação positiva das tecnologias nucleares;

In a bipolar world, we expect competition to be keen, yet manageable. But to believe


that bipolarity alone accounts for the ―long peace‖ between the United States and
Soviet Union is difficult. Given the depth and extent of the distrust felt by both
parties, one may easily believe that one or another of the crises that they have
experience would, in earlier times, have drawn them into war. For a fuller
explanation of why that did not happen, we must look to that great force of peace:
nuclear weapons (WALTZ, 1988, p. 624).

Ao analisar tais aplicações teóricas do neorrealismo sob uma perspectiva histórica


ampla, Adam R. C. Humphreys sugere: ―Waltz's account of bipolarity does not explain the
Cold War: it reflects the Cold War‖ (2006, p. 152). Com isso, Humphreys pretende apontar as
falhas do autor neorrealista que, à luz de uma avaliação racionalista, equivocou-se ao fazer
uso reverso dos materiais históricos: ao invés de testar a teoria, os elementos empíricos da
Guerra Fria foram utilizados para gerá-la88. Porém, à parte da crítica metateórica quanto à
lógica metodológica do neorrealismo, ressaltamos os argumentos de Humphreys pelas
análises que apresenta acerca dos vínculos entre a construção neorrealista e as condições
históricas, políticas e culturais da nação americana na segunda metade do século XX;

88
Isso porque contesta-se a real natureza do mecanismo nuclear, se um ‗reforço‘, ou se uma ‗causa‘. Ou seja, em
condições preenchidas pela presença nuclear, a estabilidade relacionar-se-ia à organização bipolar da estrutura,
ou à existência per si das armas de destruição em massa? Seguindo esse raciocínio, e sob o julgo positivista, tal
inferência acerca da qualidade estável da bipolaridade parece fugir aos propósitos do neorrealismo (centrado na
explicação dos efeitos da estrutura sobre as dinâmicas de balanceamento entre os Estados), refletindo muito
possivelmente a influência da realidade da Guerra Fria sobre os raciocínios do autor, ao invés de uma derivação
lógica de seus pressupostos teóricos (HUMPHERYS, 2006).
98

Although Waltz seeks to show how multipolar and bipolar systems differ, thus
demonstrating the importance of system structure, his theory explains only that
states pursuing survival in an anarchic system will balance and that more balancing
options are available in multipolar systems. His general account of the nature of
bipolar systems draws heavily on the particular history of the Cold War
(HUMPHREYS, 2006, p. 156).

Por isso, na visão de Humphreys, a conclusão de Waltz acerca das características das
relações bipolares, não constituiria uma inferência estrutural genuína, mas, pelo contrário,
uma resposta às condições específicas das tensões entre a URSS e os EUA. Ou seja, ao
apontar uma transformação do nível das unidades (obtenção de tecnologia nuclear) capaz de
influir num efeito estrutural (a guerra) – ―hot wars originate in the structure of international
politics. So does the Cold War, with its temperature kept low by the presence of nuclear
weapons‖ (WALTZ, 1988 p. 628 grifo nosso) – Waltz exemplifica seu papel como sujeito
histórico, inserido num grupo social com interesses específicos. Nesse horizonte, ―the vision
of the Cold War that Waltz reproduces is distinctly realist: Waltz largely ignores factors not
directly related to the dynamics of power politics‖(HUMPHREYS, 2006, p. 168).

Por fim, tais reflexões analíticas sobre o trabalho teórico de Waltz serão retomadas no
próximo capítulo. Por ora, apoiado nos apontamentos desse tópico, nosso olhar orienta-se a
conclusão, segundo a qual a teoria neorrealista inaugurada na TIP resultaria de uma soma
entre passado e presente, no qual os princípios da realpolitik do realismo clássico (política de
poder) são reunidos aos elementos epistemológicos e metódicos de um debate nacional que
lhe era contemporâneo (década de 1960 e 1970). Ademais, a proposta do realismo estrutural
acrescentou as preocupações com o novo fenômeno nuclear, e a prudência estratégica
(realismo defensivo) de um período em que cada movimento deveria ser calculado no quadro
de equilíbrios possíveis. Com isso, a teoria neorrealista absorveu sua posição social inserida
nos quadros de uma superpotência, expressando um ‗mundo social‘ centrado na agenda
política dos EUA, para a qual os demais países e eventos externos àquela constituiriam fator
marginal. Ou seja, constesta-se a validade universal das pressupostos dessa teoria, por meio
do esclarecimento de seus fundamentos sociais e vínculos históricos.

A seguir, passemos a terceira face da co-constituição circular realizada entre a teoria


de Waltz, os contextos sócio-políticos, e, por fim, as ciências sociais americanas. Afinal, tal
conceito de interação implica numa outra causalidade, a saber: o universo acadêmico. Ou seja,
o modo como o objeto de estudo estabelecido pelo neorrealismo foi apreendido – i.e, sua
concepção científica – reflete valores da sociedade americana, condicionados não só pelos
99

contextos sócio-históricos, como também pelas dinâmicas particulares ao universo acadêmico


das ciências sociais. Por meio desse âmbito dispomos de predicados que auxiliam,
fundamentalmente, na interpretação das escolhas metodológicas aplicadas no realismo
estrutural.

2.4 Ensino e pesquisa das RI nos EUA: um breve exame

Durante seu desenvolvimento, a disciplina das RI associou-se a modelos de pesquisa


variados, mas geralmente vinculados à ciência política, sobretudo, no caso da academia norte-
americana. Em sua trajetória particular, o realismo estrutural de Waltz apresentou-se como
um texto ancorado em bases ―científicas‖, muito embora este adjetivo constitua um vocábulo
polissêmico, ou seja, passível de expressar concepções distintas, conforme seus intérpretes.
No entanto, no caso do movimento neorrealista, tal acepção normalmente faz menção aos
entendimentos racionalistas, associados aos anseios da sociedade americana.

Modelando as predisposições intelectuais da sociedade americana, destacamos dois


componentes institucionais. Conforme abordado no tópico anterior, o primeiro deles aludiu
aos processos históricos de modernização e consolidação das estruturas políticas e culturais
do país. O segundo, ao qual nos dedicamos nesse tópico, refere-se às instituições acadêmicas.
Essas que, durante o período citado, reformaram-se de modo a constituírem entidades
orientadas para a pesquisa e para a profissionalização das disciplinas.

A ação dos indivíduos, sejam eles pesquisadores ou não, ajuda-nos a compreender as


mudanças no conhecimento humano e sua relação com o ambiente social. Organizados
coletivamente, tais agentes reúnem-se em instituições educacionais, criando e alterando linhas
de pensamento e práticas que, quando compartilhadas, voltam a influir sobre seus
participantes. Existiriam, pois, padrões de estudo que atuam como sistemas seletivos das
inovações disciplinares propostas socialmente (WAGNER; WITTROCK; WOLLMANN,
1991). Assim, as instituições influem na direção do movimento espacial das ideias,
funcionando como mecanismos de elaboração, promoção, ou retenção dos processos
intelectuais.

Portanto, atentamo-nos brevemente ao desenvolvimento da estrutura de pesquisa e sua


evolução conjunta aos modelos intelectuais, captando sua atuação sobre as bases
100

condicionantes do neorrealismo. Afinal, seja como discente, ou na posição de professor,


Waltz compôs, e foi composto, por aquelas estruturas de ideias, valores e interesses
acadêmicos, que já vinham sendo edificados antes de sua contemporaneidade. Por isso,
compreendemos que a produção daquele autor não pode ser abstraída de sua posição social e
histórica inserida num movimento ideacional coletivo, e num quadro particular das
instituições de pesquisa norte-americanas.

2.4.1 A constituição das RI como disciplina: oportunidades institucionais

Nos anos de viragem entre os séculos XIX e XX a natureza associativa das


organizações de pesquisa – como American Social Science Association – converte-se em
grupos especializados, como American Economic Association (1885); American Political
Science Association (1903); e American Sociological Society (1905). Tal fase representou o
processo de profissionalização das ‗humanidades‘ que passaram então a se constituírem por
identidades programáticas distintas, e processos de reorientação cognitiva:

In the late nineteenth century when the separate organizations split out from the
American Social Science Association, they shared "a commitment to an empirical,
often and increasingly quantitative, methodology and to some conception of the
usefulness of scientific knowledge for the allegedly neutral solution of social
problems (WAGNER et al., 1991, p. 347).

A emergência de universidades modernas dotadas de um sistema educacional liberal


orientado a pesquisas aplicadas marcou o período em que se estabelecem as ciências sociais
nos EUA, bem como os novos trabalhos empíricos e as agendas progressistas. A estrutura
acadêmica norte-americana, embora originalmente pautada no modelo universitário alemão,
logo adquire particularidades, expandindo sua capacidade de ensino e pesquisa em um ritmo
acelerado perto dos passos intermitentes dos países europeus. Por este olhar comparativo,
percebemos no contexto nacional estadunidense um quadro de experiências distintas e
capazes de criar universidades que, nas palavras de Wæver, "were more adaptive, less
dependent on the state, and had strong presidential leadership instead‖ (1988, p. 712).

A natureza autônoma das instituições de pesquisa é moldada logo nas primeiras


décadas do século XX. A partir de 1920, uma combinação de fatores gerou prosperidade: as
ciências sociais norte-americanas estabilizaram-se pelo suporte público e privado, e
acresceram credibilidade por meio de uma base metodológica validada socialmente. Destaca-
101

se, à época, a escola de Chicago que atuou como vanguarda do movimento em prol de um
conhecimento metódico e congruente às problemáticas urbano-industriais do período
(WAGNER; WITTROCK; WOLLMANN, 1991).

Desse modo, além dos esforços internos da academia, revelou-se o importante apoio
da iniciativa privada. Fundações como o grupo Rockefeller e Carnegie representaram suportes
significativos no processo inicial de criação de institutos de pesquisa. Tais fundações também
apoiaram projetos governamentais, como na administração de Herbet Hoover (1929-1933)
com o programa President’s Research Committee on Social Trends89.

Do lado estatal, alguns presidentes também destacaram-se pelo amplo investimento


direcionado à pesquisa, e pela criação do sistema in-and-out, pelo qual os intelectuais
americanos eram postos em contato direto com os departamentos do governo, compondo uma
equipe, entre servidores e acadêmicos, para os processos de tomadas de decisões
(HOFFMANN, 1977). Na origem desses intercâmbios, destaca-se Franklin Roosevelt (1933-
45) que proveu um contato de intensidade inédita entre os pesquisadores e os espaços de
formulação política (WAGNER; WITTROCK; WOLLMANN, 1991).

Dessa experiência formaram-se os estudiosos que posteriormente impulsionaram um


campo de trabalho próprio e autônomo às pesquisas de orientação especificamente política,
qual ocorreu nos anos em curso, e posteriores, à Segunda Guerra Mundial. Entre as décadas
de 1940 e 1950, o vínculo entre as estruturas, acadêmica e política, possuía caráter consultivo,
pelo qual um grupo, composto por servidores públicos, empresários e advogados, voltava-se
às universidades em busca de informações, dados empíricos e ideias. Ademais, nesse período
de reconstrução econômica do pós-guerra, as pesquisas mais favorecidas foram aquelas
ligadas aos departamentos com maiores recursos, no caso, o departamento de Defesa –
ascendente, dado o clima de deterrence nuclear (HOFFMANN, 1977).

89
President's Committee on Social Trends foi criado em 1929 pelo presidente Herbert Hoover. Para ele, as
ciências sociais eram capazes de obter conclusões para o progresso social a partir da acumulação e estudos de
dados estatísticos. Assim, tal comitê constituía um grupo composto por cientistas sociais e oficiais das fundações
dedicados na coleta de informações sobre as principais instituições sociais e seus comportamentos. Wesley
Mitchell, economista da Columbia University, foi o presidente de tal instituição, compartilhando com o
presidente Hoover, a perspectiva de uma ciência quantitativa. No cargo de diretores e assistentes de pesquisas,
havia dois outros docentes da Columbia, quais foram William Ogburn e Howard Odum. O relatório final do
comitê, Recent Social Trends, finalizou-se em 1932, incluindo temas diversificados, como questões agrícolas,
tributação e finanças públicas. Todavia, embora bem elaborado, o documento sofreu críticas quanto à sua
utilidade devido às deficiências do método empírico. Essas falhas resultaram da confiança na obviedade e
neutralidade dos dados, que implicou um relatório sem qualquer tipo de comentário que interpretasse as
estatísticas, ou fizesse sugestões de políticas públicas, visto que tais análises eram considerados desvios
subjetivos. Ver: Karl, Barry D. Presidential Planning and Social Research: Mr. Hoover's Experts. In:
Perspectives in American History, p. 347-409, 1969.
102

No entanto, a década de 1960 marca o ponto de viragem dessa relação, que atinge
níveis mais profundos e profissionais. Assim, o tom consultivo é substituído pela reunião, de
fato, entre elementos acadêmicos e os membros tradicionais das agências federais, em que os
primeiros passam a atuar como uma espécie de ―procônsules‖ (HOFFMANN, 1977, p.49).
Logo, desenvolvem-se importantes redes de intercâmbio profissional entre pesquisadores,
fundações filantrópicas, e as demandas do governo – como exemplificado na seção 2.3.2.3
pela relação entre think-tanks (RAND Corporation), financiamento privado (Fundação Ford),
universidades (pesquisadores Havard, MIT) e governo (Departamento de Defesa).

Outra variável explicativa para fluidez do processo de institucionalização das ciências


sociais nos EUA seria a natureza ‗jovem‘ de seus departamentos, que, ao revés da experiência
europeia, não possuíam interesses enraizados capazes de opor-se e, logo, retardar, os
procedimentos. A quase independência financeira e a rara regulação pública proviam as
universidades com autonomia, além de gerar a diversidade, dada a ausência de tradições
feudais ou rotinas intelectuais (HOFFMANN, 1977). Somando-se a tal aspecto, a comunidade
científica norte-americana apresentava-se horizontal e individualista, contudo, pouco
polarizada. Com isso, facilitou-se a expansão dos debates participativos, em que os membros
usufruíam de isonomia, ao invés da relação hierárquica comum à tradição alemã (GALTUNG,
1981). Estimulavam-se, dessa forma, a competição e a especialização, e, por conseguinte, o
desenvolvimento geral das pesquisas. Portanto, a ampla divulgação e expansão da educação
superior nos EUA possibilitaram a multiplicação dos departamentos de ciência política que,
por sua vez, puderam servir de matriz teórica ao campo das Relações Internacionais.

Ora, finalmente, aproximações com a agenda pública, auxílio financeiro de fundações


filantrópicas e flexibilidade resumem as características institucionais particulares das ciências
sociais norte-americanas, as quais, segundo Hoffmann (1977), constituem parte das células
responsáveis pelas oportunidades e características que o campo das humanidades no geral – e
da ciência política, ou das RI, em particular – tiveram nos EUA. Sobre esse ponto, antes de
continuarmos, julgamos necessária a ponderação sobre a tendência, especialmente sobre as
reflexões de Hoffmann, em associar a origem da disciplina das Relações Internacionais com o
período de hegemonia estadunidense após a Segunda Guerra Mundial. Certamente, adotamos
a relevância de tal período e seus desdobramentos para o desenvolvimento nacional da
disciplina, porém o fazemos visando sua qualidade metódica enquanto recorte temporal, ou
melhor, por constituir o quadro contextual das produções de Waltz.
103

Todavia, como aponta Thomas J. Biersteker (2009) cabe compreendermos os riscos de


determinadas taxonomias do campo, apreendendo as linhas normativas implícitas em
determinadas delimitações. Logo, dotados de um olhar menos americanizado, podemos
expandi-lo e perceber que os estudos globais sobre o Internacional não são credores restritos
do ―século Americano‖, ou mesmo, não estão limitados aos métodos da ciência social dessa
nação;

Important works of twentieth-century International Relations scholarship – from


Norman Angell‘s The Great Illusion to V. I. Lenin‘s Imperialism and E.H. Carr‘s
classic The Twenty Year‘s Crisis – were published and widely discussed long before
the application of American social science methods to international relations
(BIERSTEKER, 2009, p. 308).

Por outro lado, relembramos nosso intuito em operar com um trabalho teórico segundo
a posição social e a autoimagem de seu autor, Kenneth Waltz, por meio do qual justificamos
nosso desvelamento do campo pela ótica dos pesquisadores norte-americanos. Por isso,
voltando para a reflexão quanto ao saldo da transição de um modelo associativo para uma
ciência social profissionalizada e especializada podemos, igualmente, enxergá-lo por meio de
lentes distintas. Na visão de Shils (1970), a criação de um padrão analítico estável e durável
para os estudos sociais, representou um avanço intelectual significativo; ao passo que, pela
perspectivas mais críticas (HORKHEIMER, 2000; ASHLEY, 1984), aquela mesma
transformação iniciou o movimento pelo qual os pesquisadores norte-americanos demarcaram
seu espaço no campo, definindo os fundamentos da ciência social moderna por meio de
vocábulos positivistas e a-históricos, os quais orientam a conhecida postura tecnocrata das
investigações dos cientistas políticos do país.

Tais características alcançam o campo de Relações Internacionais nos EUA,


especialmente por aquela erguer-se sobre as fundações da ciência política. Naquele país, os
estudos de RI constituem uma subárea do campo maior da ciência política – ao contrário dos
currículos de outros países, como no Brasil, onde as RI destacaram-se do departamento de
ciência política, constituindo um curso autônomo, embora ainda interconectados. Vejamos,
então, as características intelectuais daquela subárea, conforme lecionada pela comunidade
estadunidense.
104

2.4.2 O estudo das RI nos EUA: tradições teóricas

Como apontávamos na seção 2.3, a sociedade norte-americana nas décadas de 1950 à


1970 legitimou os estudos orientados pelo racionalismo epistemológico. Em decorrência, uma
pesquisa realizada por Alker e Biersteker (1984)90, sobre a literatura aplicada nos programas
de RI das principais universidades dos EUA nos anos 1980, demonstrou uma concentração de
70% das produções lidas no método behaviorista/científico91. Dentre esses textos, 72%
delimitavam-se ontologicamente como teorias neorrealistas, de modo que, à época, tais
autores concluíram: ―the questions asked, the values assumed, the issues addressed, and the
debates considered [...] have been nearly all addressed from within the narrow confines of a
single epistemological tradition‖(ALKER, BIERSTEKER, 1984, p. 128) 92 .

Em um estudo mais recente, Biersteker (2009) reforçou tal caráter dos currículos
acadêmicos em Relações Internacionais nos EUA. Segundo o autor, os principais
departamentos das universidades93 americanas, que oferecem doutorado no campo das RI,
possuem orientação teórica racionalista e positivista, com destaque especial a UC-Berkeley94
que apresentou 70% do programa curricular concentrado em literaturas epistemologicamente
voltadas à escolha racional aplicada95.

Tal desenvolvimento expressa um acúmulo histórico favorecido, também, por


questões editoriais, de modo que os veículos de comunicação da área – jornais e revistas –
90
Nesse estudo, os autores analisaram 17 currículos das principais cursos de RI nos EUA, durante a década de
1980. A partir deles, classificaram a literatura da área em três categorias metódicas, tradicionalistas
(representado pelas teorias realistas e idealistas); behavioristas (neorrealismo e liberal-internacionalismo) e
dialéticos (marxismo e radicais). Dos textos analisados, a primeira categoria englobava 20% da literatura
aplicada nas universidades; a segunda categoria, 70%, e a terceira expressando 10%. Dentre os trabalhos da
primeira categoria, 82% caracterizavam-se como teorias realistas, enquanto da segunda, 72% aproximavam-se
do neorrealismo. Com isso, deduziram não só uma tendência metódica dos textos, como também ontológica.
91
Ver nota 76.
92
Nesse estudo, os autores chamam atenção para a marginalização dos trabalhos inseridos na tradição dialética,
quais seriam os estudos marxistas sobre o imperialismo, a dependência ou o sistema mundial do capitalismo, na
área de RI nos EUA. Como Alker e Biersketer apontam: ―It is probably true that more attention is paid to
dialectical scholarship in international political economy courses, and therefore in the curriculum as a whole.
However, even in those courses it has been our frequent discovery that most of the attention is focused on
debates within the behavioral traditions (on regimes or between interdependence and neo-mercantilism) rather
than on theoretical developments within neo-Marxist scholarship or ongoing debates between dialectical and
behavioral writers‖ (1984, p.140).
93
As universidades analisadas por Biersketer foram: Yale, Harvard, Princeton, Stanford, Berkeley, Chicago,
Michigan, Columbia, UCSD e MIT (BIERSTEKER, 2009)
94
Kenneth Waltz aposentou-se da função docente na UC Berkeley em 1994, tendo lecionado por grande parte de
sua vida no departamento de ciência política dessa instituição.
95
―Applied rational choice (ARC), which contains non-formalized rationalism, or what Wæver termed ‗soft
rational choice‘, and includes most neorealist [included Waltz‘s theory], and most neoliberal institutionalism‖
(BIERSTEKER, 2009, p. 315).
105

representam, ademais, uma estrutura nacionalista, monolíngue e masculinizada


(BIERSTEKER, 2009). Esse ‗fechamento‘ da comunidade acadêmica, voltada à literatura de
autores autóctones, ou daqueles cuja formação deu-se nos EUA, intensifica, por conseguinte,
a conexão entre essas teorias e a agenda da política externa nacional. Assim, como sugere
Biersketer (2009), tal provincianismo por parte dos quadros intelectuais inseridos no contexto
acadêmico norte-americano impulsiona a valorização do eco, em contraposição ao
cosmopolitismo de ideias.

O olhar espelhado, focado nas elaborações internas, implicaria, pois, a tendência


comum às formulações positivistas em atribuir um tom universalista às suas explicações,
embora permaneçam inseridas numa agenda espacialmente e temporalmente localizada.
Como pontuou Biersteker: ―the issues that motivate our research, the concepts we employ, the
global scope of the problems we address, and even the terminology we use (…) mirror many
of the concerns of U.S policy-makers and the problems they confront on a global scale‖
(2009, p. 321).

Logo, a pouca abertura às produções exteriores reforçou-se por meio dos corpos
editoriais dos principais jornais e revistas do campo, que atuaram no fortalecimento da
tendência à reprodução intelectual entre os pesquisadores nos EUA, especialmente com
relação à orientação epistemológica. A análise de Wæver96 (1998) acerca das orientações
metateóricas dos meios de publicação científica do campo contribui para essa reflexão. O
olhar transversal dessa pesquisa nos permite captar de modo mais nítido a intersecção entre as
tradições ideológicas nacionais e as linhas de investigação respectivas, pela qual se conclui o
contraste entre um interesse teórico europeu pelo construtivismo e pós-modernismo, e a
preferência americana pelos discursos da escolha racional. Assim, se comparados à Inglaterra,
os intelectuais estadunidenses particularizam-se pela valorização da sofisticação metódica e
empírica nas pesquisas, ao passo que, noutro país, destaca-se a inclinação intelectual ao tom

96
De forma geral, o autor analisa os quatro principais veículos de publicação acadêmica sobre RI entre 1970-95,
dos quais, dois são americanos (International Studies Quarterly e International Organization) e os outros dois,
europeus (European Journal of International Relations e Review of International Studies). Em termos
taxômicos, Wæver (1998) cria 5 categorias ( ―1-formalized rational choice, game theory, and modeling; 2-
quantitative studies; 3- nonformalized rationalism; 4- non-postmodern constructivism; and 5- the radicals")
em torno do eixo epistemológico, racionalistas-reflexistas. Com isso, identifica-se que as três filiações
racionalistas somavam 77.9% dos textos publicados na International Studies Quarterly, e 63.9% daqueles
promovidos pela I.O.; enquanto que, as duas formas de ―reflexisvismo‖, representavam, nesses mesmos jornais,
apenas 7.8% e 25% das publicações respectivas. Na contramão das comunicações americanas, as mídias
europeias apresentaram na pesquisa de Wæver uma média de 42.3% (European Journal) e 17.4% (Review of
International Studies) de textos racionalistas, ao passo que as metodologias pós-positivistas configuraram um
geral de 40.4% e 40.6% das produções de tais revistas (WÆVER, 1998, p. 702).
106

filosófico e moral nos estudos (WAGNER et al., 1991). Sobre esse assunto, Steve Smith
corrobora:

At present the U.S IR community adheres to one dominant theory, rationalism,


which is engaged in debate with a form of constructivism. Other, reflectivist
approaches receive little attention in U.S. journals, text books or syllabi. That picture
is not found in the rest of the world, where IR is a far more pluralist subject, with no
one theoretical approach dominant (SMITH, 2002, p.81).

Dentre as razões para essa disposição da disciplina das Relações Internacionais nos
EUA, Wæver explica:

In the post-behavioral period, economic methodology has increasingly replaced


behaviorism as the method that organizes the discipline. This development occurred
for three reasons: (1) for IR to become more scientific, scholars have generally
used economics as the most relevant model to emulate; (2) scholars needed
methodology to replace the state as the conceptual core of the discipline, and (3)
scholars thereby established correspondence with the political level, where, as
argued by Lowi, economics has replaced law as the language of the state
(WÆVER, 1998, p. 714-715).

Como assinalado no primeiro capítulo, os fundamentos da teoria da escolha racional


demarcaram as principais produções do campo das RI na década de 1970 e 1980, quais foram
os reconhecidos, Theory of International Politics de Kenneth Waltz (1979) e After Hegemony:
Cooperation and Discord in the World Political Economy, de Robert. O. Keohane (1984).
Conforma apontou os tópicos anteriores, esse modelo teórico (escolha racional) amplamente
difundido na segunda metade do século XX aproxima-se de uma epistemologia modernista na
medida em que, consoante ao projeto iluminista, constitui suporte à democracia liberal por
meio da defesa de valores, como: liberdade de pesquisa, universalismo e autonomia individual
(AMADAE, 2003).

Nesse sentido, além dos valores oitocentistas, a perspectiva neorrealista de Waltz –


assim como a própria sociedade americana – projeta uma forte influência da tradição
filosófica liberal. Por liberalismo, compreendemos seu sentido enquanto ontologia política
(uma teoria da ação social, centrada no individualismo e no cálculo racional dos interesses),
ao invés do vocativo à corrente teórica específica do campo das RI. Daí, a origem remota do
estado de anarquia, ou melhor, da problemática da ordem – ponto de partida do realismo
estrutural – que surge já com os pensadores liberais do século dezessete, a exemplo de John
Locke, Jean-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes.
107

Como esclareceu Gerson Moura (1990), as incertezas e temores de um momento em


que os EUA, pela primeira vez, passavam a desempenhar um papel de superpotência no plano
político-internacional criaram na sociedade aversões aos fatores conflituosos e contingentes,
ao passo que se intensificaram as demandas por explicações que apontassem os elementos de
continuidade da experiência nacional, sob o anseio em delinear um ―caráter especificamente
americano‖ (MOURA, 1990, p.11). Com isso, a segunda metade do século XX assistiu a
emergência do interesse da intelectualidade pela história das ideias e pelos estudos
empenhados na retomada da identidade nacional. Dessa forma, como aponta aquele autor, o
período do pós-guerra catalisou a revivescência das ideias de Toqueville (reeditado seis vezes
no período entre 1945-1982) que sublinhavam o caráter particular da história americana,
como nação liberal e democrática. Por conseguinte, revigorou-se a noção de que o espectro
político americano havia sido, desde os primórdios, fortemente tomado pelos princípios do
liberalismo burguês, corporificados na herança intelectual de John Locke (MOURA, 1990).

Segundo essa perspectiva, as certezas epistemológicas – ou seja, a utilização de


modelos teóricos que desenhassem um comportamento humano permanente – apresentaram-
se como uma espécie de solução ao pluralismo radical (ou o relativismo moral) do período
(MOURA, 1990). E assim, dentre os demais condicionantes, a abordagem de uma sociedade
atomística e racional, típica ao liberalismo, é importada para as bases metódicas e para a
natureza política do sistema conceitual neorrealista, em especial de Waltz, por meio dos
legados de Adam Smith. Portanto, em termos epistemológicos, a tradição intelectual liberal
renova-se nas RI pelas análises racionais, em que a ontologia individualista é transferida do
―indivíduo‖ em si, para outras ―unidades primitivas‖, sejam elas Estados ou firmas, capazes
de efetuar o cálculo instrumental (WÆVER, 1998).

A fase de ascensão da produção neorrealista representou, simultaneamente, um


período de descenso da influência europeia na disciplina das RI nos EUA, e de ascensão das
vertentes liberais. Ou seja, iniciou-se um movimento na contramão da década de 1940,
quando a presença de europeus no cenário intelectual americano – como Morgenthau, Carr e
Aron – facilitou a inserção da tradição continental na área, mesclando a investigação
pragmatista do país, com questões de viés mais teórico, histórico e filosófico. Distintamente, a
geração da segunda metade do século XX, na qual Waltz se insere, buscou reconstruir o
campo sob premissas metodológicas mais rígidas, possivelmente acompanhando os passos
das demais ciências sociais americanas, e das demandas institucionais da nação:
108

Although the Realpolitik tradition was the main import from Europe, this is not
simply the story of "the fall of realism": Waltz's realism is (in this sense)
liberal realism and very much an Americanized form of theory. Neorealism's
microeconomic reformulation of realism is probably the clearest example of de-
Europeanization. Liberalism has become the shared premise of American
mainstream rationalism (WÆVER, 1998, p. 722)

Tais parâmetros não são particulares ao neorrealismo formulado por Waltz; mas, ao
contrário, expressam tendências do mainstream da disciplina das RI nos EUA. Por fim, como
conclui Steve Smith, ―in the U.S. the central feature is the dominance of rationalism, with an
emerging consensus around rational choice theory as a method, and this has the powerful
effect of defining what counts as acceptable scholarship‖ (2002, p.81). Assim, ao revés do que
buscamos identificar nesse capítulo, a tendência racionalista predominante na disciplina
americana conduziu seus autores a prescindirem a autorreflexão acerca dos vínculos históricos
entre suas teorias e o contexto político, social e cultural que os englobam. Em substituição,
naquele modelo, os teóricos frequentemente entendem sua atividade como um exercício
debruçado sobre ―um mundo exterior‖ ao qual é possível aplicar os imperativos da razão
científica, constituindo um padrão seletivo e valorativo para as demais investigações.

Com isso, o neorrealismo se abstém da perspectiva de renovação gerada pela prática


reflexiva permanente, e pela consciência da relação dialética entre teoria e prática. Dessa
forma, como aborda o terceiro capítulo (a seguir), as vias contestatórias daquela teoria são
ocultadas, uma vez que os postulados propostos são entendidos como parte de um
conhecimento, que capta o mundo ―como ele é‖. Muito embora, conforme analisamos, e
procuramos expor nesse capítulo, tal potencial transcendental seja questionado pela relação
circular entre as relações de poder sociais e as estruturas lógicas prevalentes.

2.5 Conclusão: O neorrealismo como narrativa política

Nesse capítulo, buscamos identificar os fundamentos sociais e históricos do realismo


estrutural elaborado por Kenneth Waltz. Desse modo, captamos um paralelo entre o ―mundo
social‖ estudado pelo neorrealismo (suas entidades e processos ontológicos) e a agenda
político-social da nação americana na segunda metade do século XX. Em conjunto,
concluímos a aproximação entre a base teórica do neorrealismo, pautada no critério
109

pragmático de utilidade instrumental, e os valores emanados da sociedade americana, e de


seus correlatos acadêmicos durante aquele período.

Destarte, a produção de Waltz origina-se num período em que a sociedade americana


experimentava mais intensamente a transferência de um modelo característico da economia de
mercado, para a organização pública. Nesse sentido, os desenvolvimentos da dimensão
econômica passam a ter um papel mais abrangente, ―incorporando esferas anteriormente
pensadas como portadoras de características soberanas‖ (CARVALHO, 2006, p.15-16). A
acepção de um raciocínio instrumental, envolto num substrato social competitivo comum à
tendência individualista da economia de mercado e ao pensamento liberal, é reportada ao
modelo teórico neorrealista que então participa de um debate amplo no interior do
liberalismo, a respeito da possibilidade de uma sociedade [no caso, do sistema internacional]
autorregulada (CARVALHO, 2006).

Assim, enquanto a teoria neorrealista de Waltz argumenta sobre a natureza objetiva de


suas proposições, sua narrativa possui imperativos normativos expressos na descrição do que
seria a realidade internacional, bem como dispõe prescrições políticas aos atores, ao
estabelecer os comportamentos prováveis relacionados à racionalidade instrumental e à
política de poder explicados no primeiro capítulo. Tais características associonadas às
escolhas metódicas do neorrealismo voltam a ser alvo de investigação no capítulo seguinte, o
qual se apoia nos enunciados dessa seção que intentou revelar, por meio de uma sociologia do
conhecimento, o caráter existencial originário dos conceitos chave do neorrealismo. Afinal,
tal revelação expõe os limites políticos da teoria neorrealista, visto que auxilia na subversão
da proposição sobre leis generalizantes. Como defendem alguns teóricos críticos (COX, 1981;
ASHLEY, 1981, 1984; RUGGIE, 1983), a noção de estrutura política internacional, que o
neorrealismo descreve como sendo o padrão universal, ou permanente, constituiria, pelo
contrário, a consequência de condições históricas específicas (a Guerra Fria).

Nesse sentido, como argumenta Walker (1987), ao invés de representar uma posição
teórica per si, o realismo político é compreendido como um dos lados de um debate delineado
por disputas metafísicas: ―claims to realism in international political theory carry meanings
and implications from a much broader discourse about politics and philosophy‖ (WALKER,
1987, p.67). Por isso, as dificuldades do neorrealismo em captar as transformações e as
práticas das relações internacionais contemporâneas não se devem apenas às aspirações
universalistas sobre o estudo da política internacional, mas também, e talvez
fundamentalmente, em termos do desafio que o historicismo representava para o pensamento
110

filosófico iluminista (WALKER, 1987). Esse, que influiu amplamente no modo de ser e
pensar da sociedade americana, de modo que a análise dos aportes neorrealistas torna-se um
exercício indissociável do olhar sobre a ciência moderna.

De forma imbricada, destacam-se os riscos de se encarar os estandartes expostos no


realismo estrutural como sendo trans-históricos e transculturais, visto que objetificam uma
determinada concepção de sociedade, de ciência e de política. Em outras palavras, a
problemática lançada refere-se ao momento em que as concepções sobre as RI dos EUA
tornam-se hegemônicas (dado a força política do país, o escopo de sua comunidade
acadêmica, e a predominância editorial de seus jornais e revistas) a ponto de pressionarem
uma extensão espacial desses pressupostos às demais comunidades acadêmicas do globo.

Problematizam-se, pois, os efeitos decorrentes da ampliação irrefletida dos


pressupostos ontológicos, metodológicos e epistemológicos presentes nos aportes do realismo
estrutural (SMITH, 2002). Afinal, se tais parâmetros expressam uma realidade social, e
acadêmica particular, a expansão daqueles para os demais países constituiria, não raro, um ato
político. Isso porque a prevalência de uma visão específica sobre como edificar o
conhecimento, acaba por contribuir com a construção de uma realidade também específica; de
modo que o mainstream da disciplina nos EUA tende a dispor certas questões, as quais nem
sempre convergem com a agenda política de outras comunidades;

Thus gender inequalities are either domestic politics or private or both, and
questions of migration, the environment, human rights and cultural clashes either are
seen as falling outside the core of the discipline or are features to be studied
according to the canon of the social science enterprise, which thereby reconstitutes
them as atomistic and external. Similarly, the massive economic inequalities in the
world are seen as having to do with the discipline of economics, or as falling into the
field of domestic politics or development (SMITH, 2002, p. 82).

Nesse ponto, cabe o reconhecimento quanto à própria localização histórica e social de


nossa pesquisa, a qual é fruto de um curso ―jovem‖, disposto num país em desenvolvimento,
com perspectivas e experiências particulares. Faz-se esta declaração sociológica como
autoconsciência necessária entre a produção intelectual, os contextos e as identidades de
nosso ambiente. E o fazemos sem associação a uma falha metódica no trabalho, qual seria, se
a atividade científica fosse compreendida enquanto reflexo puro e passivo de um conteúdo
externo. Contudo, adotamos definição distinta: crê-se numa posição teórica, que é também
histórica e social, visto que reconhece sua validade enquanto provedora de sentidos
vinculados a uma dimensão cultural que os circunscreve.
111

Ademais, a importância dessa reflexão é majorada pelo quadro ainda não consolidado
de estudos brasileiros que versem sobre as teorias de Relações Internacionais, sob uma
perspectiva localizada. Nesse sentido, a presente proposta reafirma sua composição sincera –
embora incipiente – ao movimento de estudo comprometido com uma leitura contemporânea
dos modelos conceituais preponderantes, como expressos no neorrealismo, realizada por meio
de lentes historicamente marginalizadas, como as do Brasil e dos demais países em
desenvolvimento, ou subdesenvolvidos.

Por fim, crê-se que os dois capítulos apresentados lançaram suportes interpretativos
importantes para a construção do debate posterior, por meio do qual se possa balancear a
aplicabilidade da teoria neorrealista aos fenômenos contemporâneos, bem como pensar os
efeitos de sua adoção por países com identidades distintas daquelas que deram origem aos
conceitos de Waltz. A perspectiva sociológica exposta nesse capítulo expõe a importância dos
atores e intelectuais externos ao contexto norte-americano ―reflect upon just how much of
what are assumed by U.S. scholars to be global, timeless patterns, experiences, or
universalizing tendencies are in fact the product of a particular American concern and
perspective at a given point in time (BIERSTEKER, 2009, p. 321). Ou seja, a necessidade de
repensarmos o conteúdo de nossa agenda de estudos.

Em parte, são essas as questões que permeiam o pano de fundo do capítulo seguinte
que, a partir dessa perspectiva da teoria como construto social – e não mais uma expressão
verossímil per si – pode, então, empreender sua análise metateórica, que visa problematizar o
neorrealismo avaliando sua influência sobre nossos aparatos cognitivos e, por conseguinte,
sobre nossos ‗horizontes de expectativas‘ vinculados a ação social. Afinal, como se intentou
analisar, a interpretação do realismo está associada a um modo de pensar desenvolvido nos
EUA e na Europa, o qual é informado por acepções filosóficas e políticas específicas. Nesse
sentido, analisaremos a imagem da política internacional proposta por essa teoria, a partir de
seu conceito sobre o sujeito político e suas potencialidades de agência. Com isso, almeja-se
identificar as possíveis consequências políticas e, não raro, éticas, da predominância
metodológica e filosófica do modelo neorrealista sobre o campo geral das RI.
112

3 ENTRE AS MARGENS DA PALAVRA: SOBRE O SUJEITO POLÍTICO


INTERNACIONAL

Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra97

3.1 Introdução

Conforme exposto no capítulo anterior, é possível considerar a produção humana de


conhecimento como uma atividade partícipe do mundo social, em que se estabelece uma
relação de co-construção entre a teoria e a prática. Desse modo, semelhante aos estímulos que
o neorrealismo recebeu durante a Guerra Fria, o período contemporâneo à presente
dissertação oferece um novo leque de acontecimentos, os quais têm expandido o debate
teórico do campo das RI.

Esse ambiente, estruturado após o conflito bipolar, proporcionou novos processos


políticos, econômicos e sociais, os quais evidenciam questões que escapam ao escopo
estritamente político-militar e racionalista das teorias tradicionais sobre as relações
internacionais. Nas palavras de Bertrand Badie (2008), o contexto global contemporâneo
incita mutações pedagógicas, científicas e intelectuais, as quais demandam explanações
desvinculadas das noções clássicas da realpolitik – abordadas no primeiro capítulo.

Assim, de forma abreviada, a sociedade pós-industrial, e o sistema político


internacional posterior à Guerra Fria, experimentam um novo ciclo de transformações, o qual
implicou a redefinição das estruturas políticas, e das práticas sociais pela emergência de
novos atores, pela transformação da agência do próprio Estado, e também das agendas
públicas, ampliadas em objetivos e motivações. Logo, esse cenário tem impulsionado,
igualmente, a reflexão acerca dos pressupostos epistemológicos convencionais utilizados para
apreender o cenário prévio, pondo à prova muitos dos valores científicos fundados no período
moderno, e prevalentes, ainda hoje, na produção das RI, especialmente nas norte-americanas
com alcance global.

97
Cf. VELOSO, Caetano; NASCIMENTO, Milton [Compositores]. A Terceira Margem do Rio. Intérprete:
VELOSO, Caetano. In: VELOSO, Caetano. Circuladô Vivo. São Paulo: Polygram, 1992. 1 CD (ca. 1h. 5 min.).
Faixa 10 (4 min. 32 s).
113

Conforme apontado no segundo capítulo, os princípios cartesianos de racionalidade


presentes no neorrealismo puderam desenvolver-se eficazmente, em parte, devido à base
material oferecida pela sociedade norte-americana. Essa, que absorveu normativamente o
projeto Iluminista do século XVII, então vinculado à emergência do secularismo e do
individualismo como valores sociais. Assim, os princípios iluministas, pautados na busca pela
previsibilidade, foram reatualizados no século XX pela institucionalização de sistemas
racionais de regulação e controle da sociedade, apoiados na linguagem técnica dos modelos
das ciências naturais, ou, ainda, das pesquisas econômicas.

Nesse sentido, inserido no ―consenso ortodoxo‖ do pensamento moderno, as reflexões


sistemáticas de Waltz sobre o Internacional passam a compor o grupo de assunções alvos
daquela espécie de crise fundacional referente a um suposto descompasso intelectual entre os
aparatos científicos modernos e os fenômenos atuais. Nessa linha, destacam-se os debates que
problematizam a visão positivista acerca da unificação das ciências, pelos quais se questiona a
validade do conhecimento social produzido sob critérios metódicos originalmente criados
para as ciências naturais.

Essas posições compõem o mosaico de interpretações que perpassam a reflexão


filosófica acerca de uma lógica metodológica própria às ciências humanas. Embora plurais,
essas perspectivas podem ser examinadas pela forma sumária do denominado ―discurso pós-
positivista‖: aqui entendido como um movimento intelectual crítico, questionador das bases
epistemológicas e filosóficas fundadoras das disciplinas humanísticas, o qual propõe uma
reflexão acerca da metanarrativa hegemônica no ocidente, bem como da operacionalidade da
razão moderna. Tais correntes partem, pois, da ideia de que a dinâmica da fenomenologia
mundial, principalmente após a década de 1980, teria iniciado um processo de esgotamento da
filosofia moderna no campo dos discursos teóricos.

De acordo com certas perspectivas analíticas, como a abordagem sobre a Dialética do


Esclarecimento realizada pela Escola de Frankfurt, o legado científico iluminista produziu
resultados paradoxais. Para essa corrente, os saldos do processo histórico da modernidade são
incompatíveis com o projeto que se pode inferir das pretensões de seus fundadores. Esses que,
como Descartes, estabeleciam inicialmente a vinculação entre empreendimento teórico e suas
aplicações práticas.

Na perspectiva crítica da Escola de Frankfurt, a ideia de autonomia da razão vinculada


à conquista da liberdade mostrou-se contraditória com o desenvolvimento da ciência e da
técnica. Isso porque, a fim de dotar o conhecimento de um caráter sistemático, operou-se a
114

ideia de "unidade da razão", a qual pressupunha diferenciação entre fundamento sensível e


fundamento intelectual, sendo, este último, aquele capaz de concretizar as pretensões de
objetividade. Como consequência dessa integridade da razão, segue-se a unidade do método e
do objeto. E, dessa forma, dentro do processo de teorização, a ideia de controle expressou-se
na necessidade de subordinar todo conhecimento a um modelo formal específico de
racionalidade.

Todavia, tal subordinação, quando aplicada às ciências humanas, implicou uma


autodestruição do Esclarecimento, uma vez que os procedimentos de objetivação, abstração e
categorização, decorrentes daquele modelo, estendem ao sujeito a lógica de estabilidade
tautológica, pensada para os fenômenos naturais. E assim, produz-se a passividade deste,
enquanto alvo de conhecimento. Seria, portanto, nessas representações reificadas do sujeito
que se encontraria a aporia elucidada por Adorno e Horkheimer, visto que, por meio delas, a
emancipação converte-se em submissão, e o progresso em regressão.

Nesse trabalho, partimos da ideia de que esse processo, decorrente de um


enquadramento metodológico, possui repercussões relevantes dentro da esfera de produção
teórica das RI, já que o emprego do suporte epistemológico racionalista perpassa as principais
correntes teóricas deste campo de estudo. Como assinalado nos capítulos anteriores, a grande
repercussão das teorias da escolha racional e teorias dos jogos pode ser entendida como
reflexo contemporâneo dessa adequação ao método cientificista98. Nesse sentido, a própria
sistematização da teoria neorrealista nos EUA realizou-se no contexto vinculado a essa
preocupação dos pesquisadores com o ajustamento teórico a um tipo de rigor científico e de
objetividade conceitual específicos. E assim, o realismo estrutural de Waltz ―sought to place
realist thought on a firmer social scientific footing‖ (WALT, 2002, p.20).

Portanto, depreende-se que o neorrealismo de Waltz buscou posicionar-se como


solução teórica para as falhas do pensamento clássico, de modo que a adoção de uma
perspectiva epistemológica cartesiana somada à lógica metodológica da microeconomia foi
compreendida dentro da esfera cognitiva das RI enquanto expressões de um progresso
científico. Progresso esse que, contudo, potencializa um processo dialético, nos termos

98
Da mesma forma, percebe-se na categorização entre Racionalistas e Reflexivistas - realizada por Keohane na
International Studies Association, ISA, em 1988 - a corroboração dos critérios de objetividade científica como
condição de validação teórica na disciplina. Afinal, como aponta James Der Derian, as críticas de Keohane
possuem uma insinuação implícita de que um 'programa de pesquisa genuíno' está pautado nos ditames
iluminados da reflexão racionalista, em contraposição à produção pós-positivista (DER DERIAN, 1990)
115

frakfurtianos, por meio do qual as intenções originárias de Waltz sofrem inversões durante
seu desenvolvimento.

Por este raciocínio, sugere-se que as consequências do pressuposto de objetividade e


racionalidade instrumental criaram contradições potenciais na produção teórica neorrealista,
semelhantes àquelas presentes no desenvolvimento da razão iluminista, tal como expressa a
díade autonomia e dominação. Ou seja, propõe-se que ao substituir ―o conceito pela fórmula,
a causa pela regra e pela probabilidade‖ (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 21), a corrente
realista de Waltz problematiza seu intuito de revigorar os postulados do realismo político,
especialmente aqueles relacionados ao sujeito político estatal. Afinal, ao orientar sua
construção teórica pela identificação de uma lógica causal unidirecional, selecionada pelo
grau de universalidade, Waltz reduz a multiplicidade de condutas à ordem, a história ao fato, e
o heterogêneo ao comparável. E, com isso, a política é projetada teoricamente como um
exercício puramente técnico do cálculo instrumental, perdendo, pois, a base prática vinculada
ao empreendimento criativo, ou reflexivo, por meio do qual os atores repensam seus objetivos
e elaboram coletivamente novos projetos.

Pois, são esses os apontamentos centrais do debate travado nessa terceira parte,
quando, de posse das explicações dos capítulos anteriores, edificamos uma reflexão acerca
dos desdobramentos conceituais do neorrealismo, segundo uma perspectiva voltada aos
efeitos daquele processo teórico de adequação da realidade a um modelo específico de
objetividade. Tal recorte auxilia na edificação de questões relevantes para um
equacionamento crítico do problema da razão instrumental, em que focamos na atuação dos
agentes políticos:

Quando a relação cognitiva se estabelece de sujeito a sujeitos a objetividade neutra


opera necessariamente de forma reducionista, pois supõe a identificação entre
prática histórica e objeto natural. Ora, tal identificação pode ser tratada em dois
níveis: como equívoco metodológico, no plano da epistemologia; e como
procedimento de reificação, no plano da ética (LEOPOLDO e SILVA, 1997, p. 18).

Ou seja, ao analisar os fundamentos da vertente neorrealista, intenta-se elaborar uma


compreensão naqueles dois planos: acerca dos limites interpretativos que tal teoria apresenta
no campo epistemológico, conjuntamente a uma crítica ao ethos dessa instrumentalidade
racional. Por isso, nesse capítulo, propomos uma reflexão relacionada ao conceito do sujeito
político internacional, o qual, embora considerado marginal pelo olhar sistêmico de Waltz,
oferece as bases sobre as quais esse autor consegue desenvolver sua teoria. Como apontou
116

Ashley (1986), a influência que a microeconomia encerrou na teoria de Waltz, resultou numa
dependência fulcral desta para com os conceitos elaborados na esfera do ator unitário (os
Estados); sem os quais a definição da estrutura como força independente não seria possível.

Sendo assim, desenvolvemos nosso estudo entre aquelas margens, ou seja, sobre as
entrelinhas dos conceitos que envolvem os agentes políticos, partindo da ideia de que a teoria
neorrealista formula uma concepção de autonomia das unidades, que nega a heteronomia
como componente da relação entre elas, ao passo que, dialeticamente, a radicaliza na
mediação entre o agente e a estrutura. Em ambos os casos, o produto seria um processo de
desativação do ator político, enquanto unidade crítica e criativa. Mais especificamente,
propomos que os conceitos neorrealistas operam sob a alienação99 da história como práxis
social, culminando na prescrição da política como uma espécie de ―egoísmo generalizado‖
associado à automatização das ações sociais pela subordinação da liberdade às pressões
estruturais.

Abreviadamente, esse último comentário crítico sugere mais claramente a análise


aludida na ideia dos silêncios da teoria neorrealista expressa na hipótese desse trabalho que
relaciona-se à marginalização da história como prática100, ou do sujeito como ser que age.
Propõe-se, então, uma investigação da relação agente-estrutura, e dos mecanismos que
promovem um ator político (o Estado) que, no extremo, mostrar-se-ia diluído numa
‗heteronomia radicalizada‘101 associada à coerção estrutural despojada de uma resposta
constitutiva dos níveis das unidades e dos processos. Num segundo momento, nossa alegação

99
Conforme apresentado no ―Dicionário do pensamento Marxista‖ (1988), a alienação, no sentido que lhe é dado
por Marx, seria a ―ação pela qual (ou estado no qual) um indivíduo, um grupo, uma instituição ou uma sociedade
se tornam (ou permanecem) alheios, estranhos, enfim, alienados aos resultados ou produtos de sua própria
atividade (e à atividade ela mesma) e/ou à natureza na qual vivem, e/ou a outros seres humanos, e também a si
mesmos (às suas possibilidades humanas construídas historicamente)‖ (BOTTOMORE, 1988, p.5). Assim, a
alienação ou auto-alienação adviria da desativação do sujeito histórico, que ocorre quando sua configuração é
tomada como única e verdadeira, logo, invariável; ou quando o mundo sobre o qual atua já está dado a ponto de
não poder agir de forma prática e crítica (no sentido revolucionário). Enquanto fato objetivo, a alienação
resumiria uma categoria sociológica que expressa a transformação objetiva da atividade do homem, ou da
sociedade, numa força independente que lhe domina e lhe é contrária, conduzindo o sujeito ativo à objeto no
processo social. (BOTTOMORE, 1988).
100
Essa ideia faz referência à formulação de Ashley (1981), segundo a qual o estruturalismo neorrealista nega a
dimensão histórica de quatro formas: como progresso, como prática, como poder e como política. Naquele
segundo sentido, a negação se faz sobre o ator político destituído de suas qualidades de sujeito consciente e
potencialmente transformador da realidade, o qual se encontra, pois, silenciado.
101
A expressão adverbial ―radicalizada‘ faz-se necessária por compor a causa central da subordinação do sujeito
à estrutura. Isso porque cremos que a heteronomia, como define Onuf (1989), constitui condição implicada a
toda interação social. Portanto, o questionamento não recai sobre a estrutura gerar influência em seus
componentes, qual seria condição sine qua non da relação, mas sim sobre a radicalidade dessa heteronomia que,
sem contrapartida constitutiva por parte dos elementos, acaba exercendo o domínio, ao invés da co-constituição
sobre aqueles. Ou seja, a heteronomia, embora antinomia da autonomia, não seria sua negação, mas sim uma
relação dialética. Já, por ―heteronomia radicalizada‖, lemos uma relação de ‗dominação‘, essa sim pressupondo
relações de subordinação.
117

refere-se ao relacionamento entre os agentes, focalizado na atribuição subjetiva que Waltz


formula para os Estados. Entendemos que a acepção de tal categoria como transcendental ao
mundo intersubjetivo, e sua limitação à substância instrumental, abstrai os pressupostos
teóricos de uma ação política participativa, e da política como consenso.

Nessa primeira esfera relacional (agente-estrutura) discutimos, especificamente, a


concessão de objetividade à ‗totalidade‘ estrutural que culmina em um reducionismo
arriscado, por tornar o sistema social algo alheio, independente, e, não raro, sobreposto às
condutas estatais. Isso é, uma estrutura cujos processos podem gerar condutas conformistas.
Por conseguinte, e num segundo nível, avalia-se em que medida a expressão do ator pelo
modelo do homo economicus pode desdobrar-se num conceito de política empobrecido.

Conjuntamente, tais reflexões projetam a hipótese inicial de que o neorrealismo,


embora refinado cientificamente, pode gerar um processo dialético pelo qual o propósito do
sujeito epistêmico autônomo, assim como a soberania atribuída aos atores sociais, converte-se
numa imagem final de dominação: intérprete e agente social desativados de suas
potencialidades avaliativas e reflexivas, devido a uma teoria tendente a graus de
conservadorismo. Logo, nesse tópico, o processo será compreendido em dois momentos
distintos, embora relacionados, e vinculados a uma mesma conduta de Waltz, a saber: o uso
da racionalidade instrumental como método, e como ontologia.

Por fim, além da argumentação crítica, empreenderemos breves arguições acerca dos
modelos alternativos ao exposto por Waltz. Nesse sentido, ressaltamos a concepção mais
inclusiva de estrutura social, em que se estabelece uma relação dialógica entre as unidades, e
entre essas e a estrutura. Tal mediação refere-se, especialmente, às propostas distintas de
racionalidade e de autonomia dos atores sociais, decorrente de uma visão epistemológica
também diferente do neorrealismo. Nesse sentido, projeta-se o olhar sociológico das vertentes
pós-positivistas como mecanismo capaz de inserir a ação política social numa perspectiva
sistêmica sem que essa recaia num objetivismo mecanicista, ou no extremo oposto, o
subjetivismo.

3.2 A dialética da anarquia: sobre a ficção do Estado livre

Como exposto no primeiro capítulo, a proposta teórica de Waltz centra-se na


concepção da ordem internacional enquanto cenário regido pelas forças inobserváveis de uma
118

estrutura social subscrita às práticas políticas. Tal estrutura dinamiza seus componentes pelo
princípio chave da anarquia, segundo o qual a independência entre as partes, dotadas de
autonomia, cria espontaneamente um ambiente competitivo, gerador de um equilíbrio entre as
partes.

Tal caracterização assume a relevância da ontologia do liberalismo, e da


normatividade econômica na qualificação da ordem internacional. Assim, seguindo essas
tradições, Waltz define a ordem internacional como um agregado de agentes autointeressados,
livres, e tendentes ao cálculo utilitário para a determinação de suas ações. Este segundo
estatuto, que postula a liberdade dos indivíduos num ambiente coletivo, merece atenção
especial por representar condição essencial para a emergência estrutural, nos termos do
neorrealismo. Afinal, a definição de uma sociabilidade competitiva funda-se num campo
sociopolítico composto pela justaposição de entidades estatais igualmente livres: ―the
presumption of anarchy need not be stripped of additional assumptions and practices, for it is
the bare-bones account of society as ‗a lot of free individuals‘‖ (ONUF, 1989, p.166).

Nessa concepção, a harmonização dos comportamentos resulta da autorregulação


provida espontaneamente por Estados que estão em condições de isonomia política a ponto de
efetivar escolhas autônomas. Tal autonomia realiza-se na medida em que cada qual detém o
controle sobre o curso de suas ações e capacidades, de modo que ―State develop their own
strategies, chart their own courses, make their own decisions about how to meet whatever
needs they experience and whatever desires they develop‖ (WALTZ, 1979, p. 96).

Logo, a liberdade assim delimitada representa o contexto propício aos esforços


autônomos orientados à satisfação dos próprios interesses. Isso ocorre devido à leitura estreita
que Waltz realiza da noção de diferenciação entre as partes, que reduzida ao setor político
(capacidade de governar, ou seja, soberania), torna as entidades semelhantes e independentes,
sobrando-lhes apenas fracos laços sociais associados à distinção material, dada em termos de
poder. Nesse sentido, Waltz acrescenta: ―sovereignty of states has never entailed their
insulation from the effects of other states‘action. To be sovereign an to be dependent are not
contradictory conditions‖ (WALTZ, 1979, p. 96).

No entanto, é importante ressaltarmos que a relação de dependência referida trata-se


da consideração restrita ao atrelamento mútuo das ações racionais entre os competidores num
cenário de disputa estratégica - ―it is no more contradictory to say that sovereign states are
always constrained and often tightly so than it is to say that free individuals often make
decisions under heavy pressure of events‖ (WALTZ, 1979, p.96). Isso é, trata-se de um
119

reconhecimento dos condicionantes do jogo estratégico, os quais, porquanto possam influir


nas ações (meios), não o fazem sobre a orientação subjetiva dos atores, que adviria de uma
dimensão privada, sendo cada agente o gerador autônomo de seu próprio fim.

A capacidade do ator se autogovernar102 com relação aos interesses existentes no


processo interativo revela sua parcela de liberdade assumida enquanto característica
compartilhada entre as unidades. Sendo assim, para o neorrealismo, sob influência da
microecomômica, ―it is impossible to describe international structures without first fashioning
a concept of the state-as-actor‖ (ASHLEY, 1986, p.271). Nesse sentido, a validade das
pressões da estrutura internacional enquanto força independente é retirada dessa premissa do
Estado como ator isolado (apto a deter e controlar sua personalidade e capacidades); ou seja,
enquanto projeção solipsista que o Estado faz de si mesmo.

Porém, quando confrontada com a vivência prática dialógica dos indivíduos entre si e
com a sociedade, essa condição de uma autonomia como ―ser para si‖, torna-se problemática
uma vez que despojada de predicados de co-constituição socializantes. Nesse sentido, no
âmbito metódico, a assunção dessa acepção de liberdade só pode ser efetivada se restrita ao
plano formal. Ou seja, se objetivada pela postulação de um mundo social estanque, onde as
particularidades do domínio humano são mecanizadas pela confluência com o mundo natural,
de modo que as diferenças entre os atores é reduzida ―to the standardized expression of their
abstract individuality, namely, the pursuit of self-interest‖ (MARCUSE, 1988, p.150).

Nesse cenário, o sujeito exerce sua autonomia em função de uma relação objetivada
com os demais elementos, e os resultados coletivos compõem uma realidade externa,
espontânea, e independente das esferas intersubjetivas. Todavia, sob tais condições, excluídas
de contingências, o sujeito é despojado de suas potencialidades de transformação,
submetendo-se aos imperativos da determinação. Com isso, revela-se o possível processo
dialético da ciência social naturalista: os sujeitos, desprovidos de prática, tornam-se ―vítimas‖
da própria lei transcendental que autonomamente criaram. Ou seja, a própria autonomia,

102
Voltando-se às reflexões filosóficas precedentes, tal concepção de autonomia, vinculada à ideia de
subjetivação livre dos imperativos sociais, remete-nos às categorias criadas por Immanuel Kant quando discute a
questão da moralidade. Nos termos desse intelectual, a autonomia esta vinculada à capacidade da razão humana
em criar normas e fins éticos, independentemente de experiências exteriores. Dessa forma, propõe-se que as
regras às quais os homens se submetem derivam de uma lei moral que reside em si próprios; com isso, o homem,
inserido no mundo social ou dos costumes – per se um espaço indeterminado –, é capaz de se autodeterminar,
seguindo apenas sua vontade autônoma. Em oposição, a heteronomia representa o enfraquecimento daquela
‗razão pura‘ pelo exercício prevalente da faculdade dos desejos. Ou seja, nesse caso, a definição da ação realiza-
se condicionalmente aos elementos contingentes da situação, que dominam as determinações estratégicas. Tais
conceitos são dotados de sentido transcendental, de modo que a heteronomia despojada dos atributos de
liberdade estaria vinculada ao mundo natural e às leis que a regem, sendo, por isso, um contexto da
determinação, desprovido de caminhos para a ativação do indivíduo, qual seria a máxima da autonomia.
120

quando inserida no domínio das forças naturais, revela-se dominação, afinal, ―como a
realidade subjetiva e a realidade social são ‗naturalizadas‘ de modo a ocultar sua origem
humana, os valores e códigos de conduta permanecem praticamente impermeáveis à revisão
crítica‖ (INGRAM, 1994, p. 44-45).

Eis que, comparativamente, sugerimos a aporia de Waltz: sua explanação sobre a


anarquia internacional pressupõe a autonomia das partes, a qual só pode ser efetivada se
associada à uma acepção de subjetividade normativa transcendente ao mundo social. Com
isso, Waltz assumiu a racionalidade instrumental e utilitária, omitindo a heteronomia das
relações humanas na constituição das identidades e admitindo a autonomia e racionalidade
―enquanto possibilidade de se tomar decisões a partir de critérios estritamente pessoais‖
(AVRITZER, 1996, p.90). Logo, criou-se um ambiente de interação objetivado, em que a
impossibilidade de se exercer influência sobre os demais, torna a lógica estrutural da
autoajuda um dever, que, antes de tudo, reproduz a ordem dada, criando uma teoria porta-voz
da adaptabilidade como conduta política.

Paralelamente aos comentários feitos à moralidade kantiana, que começa com a


liberdade ―mas termina com a sujeição do sujeito ao imperativo do dever, o dever de
subordinação da própria vontade à vontade da lei universal‖ (FREITAG, 1989, p.14), o
postulado de autonomia das unidades culminaria na subordinação da mesma às pressões do
sistema de autoajuda. Assim, o modelo formulado por Waltz elaboraria sujeitos políticos
dialeticamente alienados de suas práticas e integrados à conduta de assimilação de leis
regulares e da normatividade da estrutura.

A fim de compreender esse processo dialético, comecemos pelo que julgamos sua
causa: a escolha metodológica de Waltz. Como assinalado, a concepção neorrealista sobre a
estrutura política advém de um quadro científico pautado na racionalização das políticas
internacionais. Segundo Horkheimer (2000), a instrumentalização da razão científica limita a
funcionalidade dos conceitos à sumarização técnica e auxiliar dos dados factuais. Assim, com
intuito de organizar e esclarecer a base objetiva, a teoria dissocia os fenômenos sociais
estudados de suas potencialidades contingentes, criando conceitos fundados na continuidade,
da qual retiram seu valor como instrumentos úteis ao controle intelectual dos acontecimentos.

Nesse sentido, o substrato positivista do realismo estrutural deixou de reconhecer a


separação entre o mundo social (espaço da contingência) e o mundo natural (espaço da
necessidade), identificando, portanto, as leis sociais com as leis físicas. Para tal, Waltz
precisou eliminar as variáveis responsáveis pela indeterminação do mundo social, quais
121

seriam aquelas relacionadas ao nível dos processos – da interação entre as partes, para além
da relação organizacional reconhecida. Entrementes, a noção multicausal da ação social, em
que o ator modela sua conduta a partir da interação com sistemas social, cultural e individual,
é substituída pelo modelo posicional da estrutura, no qual os agentes relacionam-se
considerando apenas suas dimensões materiais.

Em outras palavras, no modelo posicional da estrutura, as preferências e as formas de


ação relacionam-se à posição dos atores (independente dos demais atributos do Estado que a
ocupe), i.e., referem-se aos condicionantes materiais da unidade, e não a um processo de troca
intersubjetiva entre as dimensões coletivas e particulares do ator estatal. Assim, para o
neorrealismo, a agência política torna-se um conceito estreito, limitado às premissas diádicas
sobre assimetrias de poder e de autoridade.

Ademais, embora negue a validade da segunda variável (diferenciação formal entre as


partes), Waltz o faz segundo critérios funcionais internos dos subsistemas (o Estado e sua
soberania), obscurecendo o papel desses enquanto componentes de uma segunda sociedade: a
estrutura internacional. Nesse sentido, lemos nas posições do neorrealismo (relacionadas à
distribuição de poder material) a noção implícita dos papéis sociais, conforme delineia o
funcionalismo estrutural. Por essa perspectiva, cada posição contribui especificamente na
manutenção da ordem total (equilíbrio de poder), projetando, cada qual, expectativas
comportamentais fixas. Como anunciou Waltz, a mudança de posicionamento afeta
diretamente a conduta dos Estados, que a cada posição ―had to adjust to a different kind of
world that made a different kind of policy and different kinds of action, appropriate or
inappropriate‖ (WALTZ, informação verbal)103.

Nesse sentido, a herança do funcionalismo estrutural sobre a teoria neorrealista


projeta-se na conexão entre posição e racionalidade, de modo que a orientação das condutas
políticas restringe-se à execução eficaz dos papéis em prol da preservação do equilíbrio de
poder geral, e da manutenção do poder pessoal. Assim, o sentido das ações é restrito aos
termos operacionais, sem referência à intencionalidade do agente, ou mesmo a outra atividade
que atribuísse significado às práticas. Dessa forma, ressaltado seu aspecto operacional, a
racionalidade dos atores sociais passa a ser avaliada apenas segundo seu papel na efetivação
dos interesses particulares, ou melhor, de acordo com os graus de eficiência alcançados na

103
Entrevista concedida por Kenneth Waltz em 2003 ao programa ―Conversations with History‖, produzido por
Harry Kreisler com apoio do Instituto de Relações Internacionais da UC-Berkeley.
122

realização de dado objetivo. Insere-se, pois, a lógica da consequência como único filtro social
das condutas – ―Behaviors are selected for their consequences‖ (WALTZ, 1979, p.76).

Ao ser dissociado de uma relação intencional com a realidade (objetiva, social e


subjetiva), o ator passa por uma abstração moral, visto que sua ―ação perde qualquer conteúdo
cognitivo, normativo e expressivo e não mais pode ser avaliada criticamente‖ (INGRAM,
1994, p.50). No realismo, a formalização da razão (instrumentalizada) desautoriza os agentes
a avaliarem os objetivos conforme categorias como justiça, igualdade, e tolerância. A
correção ou não de um ato é avaliada apenas pela adequação de seus resultados para com um
objetivo pré-estipulado pela estrutura. Por conseguinte, o ator político é delimitado enquanto
entidade com preocupações unicamente possessivas, e orientadas à otimização da política de
poder. Segue-se, daí, que toda ação deve servir a algum propósito, de modo que as práticas
desviadas da noção de utilidade, ou que não busquem salvaguardar as condições de
sobrevivência, são destituídas de sentido. Nesse horizonte, significado e efeito são sinônimos,
e, por isso, uma conduta dotada de sentido seria aquela associada ao ‗efeito‘ do equilíbrio de
poder, mantenedor da estrutura social.

Como apresentado no primeiro capítulo, tal processo é catalisado pelos mecanismos de


manutenção da ordem: competição e socialização, afinal, ―because roles are necessary to the
functioning of the system, structural functionalists expect that units detrimental to the system
will be selected out — rather than the role impacting the functioning of the system, these roles
fall by the wayside‖ (GODDARD; NEXON, 2005 p.20). Portanto, os mecanismos seletivos
da estrutura internacional criam limites às experiências, e, assim, os comportamentos
desviantes são marginalizados e preteridos de benefícios sociais. Ou seja, toda conduta não
mimética dos comportamentos bem sucedidos é julgada uma imprudência capaz de implicar o
afastamento automático desse agente desviante pela coletividade – ―Ridicule may bring
deviants into line or cause them to leave the group‖ (WALTZ, 1979, p. 76).

Neste ponto, insere-se uma reflexão importante acerca das implicações da restrição
subjetiva do ator aos atributos materiais. Como sabemos, a distribuição desigual das
capacidades geram uma hierarquia entre as posições, capaz de desfazer a ilusão de uma
competição justa, de modo que a ordem internacional ―it‘s one which the major actors, those
of greater capability, set the scene in which the others must act‖ (WALTZ, informação
verbal)104. Logo, a ficção dos estados livres é expressa concretamente na noção de que

104
Idem nota 103.
123

―competitive systems are regulated, so to speak, by the ‗rationality‘ of the more successful
competitors‖ (WALTZ, 1979, p. 76).

Dessa forma, a isonomia de condições proporcionada por uma suposta autonomia


decisória dos atores é contraposta pela heteronomia implícita na restrição que o ambiente
impõe sobre os Estados nas posições ‗menores‘. Nesse sentido, o mecanismo de socialização
cumpre papel pedagógico distinto a cada unidade, de modo que aos atores localizados em uma
posição inferior cabe o aprendizado das condutas conforme os padrões dispostos pela
estrutura (ou seja, pelas superpotências);

Once socialized, an individual acts as expected in a role, not necessarily for any
conscious reason, but because she has internalized the particular behavior associated
with the position. Acting in such a way, therefore, becomes an individual preference
— although a product of the social system, the individual perceives the role‘s
mandate as a personal need (GODDARD; NEXON, 2005 p. 20).

Logo, a socialização significa o ajustamento dos comportamentos com as regras


normativas da estrutura, mesmo que essas sejam implícitas: "Socialization brings members of
a group into conformity with its norms‖ (WALTZ, 1979, p. 76). Conforme apresenta a
concepção de Onuf (1994), as interações sociais são comumente mediadas por regras, que
vinculam os agentes entre si, e eles com a sociedade. Nesse mesmo sentido, Dessler (1989)
argumenta que ―all social action depends on the preexistence of rules, implying that even
under anarchy, rules are an essential prerequisite for action‖ (p. 458).

Por essa perspectiva normalizada, o ator torna-se sujeito consciente e ativo, quando
existem regras que o facultem à participação social. Em outras palavras, seu comportamento
dependerá do modo em que a ‗ação‘ e a ‗norma‘ são relacionadas, ou mediadas. Como
assinalado, no neorrealismo tal mediação é realizada pela noção de racionalidade instrumental
(capacidade que unidades têm de calcular os custos e escolher a melhor conduta dentre as
demais) que surge como solução metodológica aos propósitos positivista da ciência, a fim de
homogeneizar as condutas dos atores, mediando uniformemente a ação das unidades e as
normas comportamentais da estrutura.

Nesse sentido, a concepção em termos instrumentais postula-se como mera regulação


entre meios e fins pessoais, distanciando o sujeito da condição de questionador das normas, e,
portanto, dos próprios canais de ativação sobre a estrutura. Segundo Weber, além da lógica
instrumental, a ação social presumiria outros três tipos de orientações possíveis: a
racionalidade por valores; por afetividade e pela tradição. Portanto, a delimitação monológica
124

dentro das fronteiras instrumentais caracterizaria a individualização da ação social, visto que
apartada das dimensões sociais e culturais do processo de subjetivação, e de todo atributo
móbil, não relacionado à identidade pré-estruturada. Nessa concepção, o sujeito é desposado
daquilo que Weber denota como ―racionalidade substantiva‖, ou que Habermas define como
―razão prática‖ – ambas relacionadas à capacidade do ator conferir julgamentos aos fins e aos
meios.

Da mesma forma, Horkheimer (2000) disserta sobre essa orientação cognitivo-


instrumental como sendo uma faculdade intelectual de coordenação, cuja eficiência é
majorada pela desconsideração de quaisquer fatores não intelectuais, como as emoções. No
entanto, como ressalta Horkheimer, nessa definição a razão enquanto faculdade de pensar
renuncia à tarefa de julgar as ações e o modo de vida vigente. Nesse sentido, a neutralização
da razão (despojada de qualquer relação com o conteúdo objetivo e de seu poder de julgá-lo)
acaba por reduzir a si própria, atribuindo-se o papel de executora, mais preocupada com os
meios do que com os fins. Neutralizada, a razão torna-se impotente, e tendente ao ‗senso
comum‘.

Por conseguinte, o ator social descrito nesses termos, quando inserido num coletivo
com regulamentos estipulados, tenderia à postura de adequação comportamental. Dessa
forma, a questão pedagógica da socialização é reduzida à assimilação e à obediência das
regras, em que os ‗educandos‘, embora se achem autônomos, estariam assimilando uma
norma disposta heteronimamente. É neste aspecto que a racionalidade estatal, conforme
definida por Waltz, perderia sua espontaneidade e produtividade criativa, ou seja, perderia sua
própria subjetividade.

Voltando-se para a esfera da interação entre os agentes, percebemos que a conduta


adaptativa prescrita pela teoria neorrealista recai, especialmente, sobre os Estados mais fracos
que, restringidos a sua condição material, e individual, não encontram meios para escapar à
hegemonia dos mais fortes. A imparcialidade da anarquia opera por meio de um processo de
alienação das partes que seguem condutas dispostas pelos Estados mais fortes, dado as
assimetrias derivadas da distribuição de capacidades. Assim, ao passo que a ‗política de
poder‘ pressupõe um ator com potência capaz de atuar como sujeito, aos demais Estados, a
anarquia torna-se antes um domínio da restrição, do que um ambiente provedor de
possibilidade de ações.

Nesse cenário, a história como prática é substituída por uma espécie de escapismo
moral e de conduta apolítica, pelos quais a única responsabilidade a que os Estados menores
125

se submetem seria a responsabilidade sobre ―pensar‖ ou ―raciocinar‖ corretamente – isto é,


conforme os termos da escolha racional e as preocupações desposadas em cada posição.
Assim, ao contrário dos modelos construtivistas em que a norma assume uma natureza
essencialmente co-constitutiva (servem como meios para que os atores construam, em mútua
relação, suas identidades e motivações), as normas no neorrealismo são de natureza
regulatória envolvendo baixo grau de co-construção, visto que apenas dispõe sobre o modo
como as unidades devem se comportar. Ou seja, constituem ―a public claims, backed by
sanctions, that prescribe, proscribe, or permit specified behavior for designated actors in
defined circumstances. Such rules take the form, ‗actor A should do X‘‖ (DESSLER, 1989, p.
457).

Por esse quadro, os atores mais fracos ajustam seu comportamento ao modelo disposto
pelas posições hegemônicas esperando, assim, receber os benefícios da segurança, e não
sofrerem os efeitos deletérios da conduta desviante. A tendência ao simulacro especular do
comportamento das superpotências mostra-se, pois, uma decorrência da racionalidade
instrumental, conforme disposta pelo neorrealismo. Ademais, as normas internalizadas pelo
medo das sanções atuam como restrição das condutas em prol da preservação da estrutura
social. Por isso, os comportamentos prescritos pela estrutura neorrealista projetam uma
relação mimética entre os atores, de modo que ser racional assemelha-se a não ser refratário,
conduzindo ao conformismo com a realidade tal como ela é disposta.

À solidariedade mecânica corresponde uma percepção heterônoma da lei, que se


impõe com autoridade implacável ao indivíduo, que sofre punições não para repor o
dano causado em caso de transgressão da norma, mas para reafirmar diante do
coletivo a validade da norma violada. A punição do infrator constitui lição de moral
para os demais membros do grupo, por isso geralmente é pública, tem efeito
demonstrativo e sua função é reafirmar a solidariedade (mecânica = automatizada)
do grupo (FREITAG, 1989, p. 15).

Por conseguinte, como comentou Habermas, um processo de socialização nesses


termos aborda um sujeito social como sendo repositório de hábitos, papéis e competências
miméticas, que limitam a liberdade ao invés de fortalecê-la (INGRAM, 1994). Nos conceitos
de Durkheim, o aprendizado das normas sociais possui um efeito duplo: ao passo que oferece
similitude, também assegura a diversidade, permitindo as especializações, responsáveis pela
cooperação e coesão sociais. Todavia, num ambiente sem essa diferenciação entre as partes
(como postulou Waltz ao desativar a variável relacionada a tal distinção) o processo
126

pedagógico fica restrito à perpetuação e ao reforço das semelhanças comportamentais


essenciais à vida coletiva.

Assim, à medida que se demonstram independentes entre si, as unidades tornam-se,


proporcionalmente, mais submetidas à estrutura e sem canais para retroinformá-la, afinal,

A articulação do interesse último do Estado como sendo um chamamento


mandatório, portanto a ele exógeno, o transforma em coisa da anarquia, o reifica e
desloca a responsabilidade pela perpetração da violência em uma dimensão que não
pode ser atingida porque tentá-lo seria não entender a lógica da pressão estrutural
sistêmica, que é transnacional e desligada do eventual contexto histórico (COSTA;
SELIS; SOARES, 2009, p. 216).

Ora, despojados dos potenciais intersubjetivos, a socialização perde o valor


pedagógico enquanto diálogo. Limitados aos atributos posicionais, os atores são preteridos
das chances de formulação contínua e coletiva de seus interesses e expectativas. Por
conseguinte, o potencial de escolha e definições de meios e fins é substituído pela adequação
permanente à lógica da autoajuda. Dessa forma, a evolução social implícita no neorrealismo
envolveria apenas o plano da capacidade de aprendizado inserida nos limites de variação
permitida pelo princípio organizador, posto que exclui o segundo plano de institucionalização
progressiva de novos potenciais de aprendizado, realizado nas dimensões ideacionais,
culturais e morais do ator, que condicionariam os aprendizados cognitivos instrumentais que,
por sua vez, condicionariam mudanças no sistema.

Para alguns analistas, tal ausência de um elemento progressivo aponta uma incoerência
de Waltz com seu suporte sociológico durkheimiano. Conforme apontou Buzan e Albert
(2010), Waltz opera com uma diferenciação segmentada para referir-se ao ambiente
internacional. Nessa perspectiva, ―differentiation is where every social subsystem is the equal
of, and functionally similar to, every other social subsystem […] In IR it points to anarchic
systems of states as ‗like units‘‖ (BUZAN; ALBERT, 2010, p. 318). Assim, estabeleceu-se
uma equivalência entre a ordem internacional, e a solidariedade mecânica de Durkheim.
Todavia, essa postura refletiria uma interpretação problemática das propostas desse sociólogo,
afinal, segundo Ruggie, Waltz abstraiu a fator da ―densidade dinâmica‖, que, nos termos de
Durkheim, seria o elemento capaz de alterar os fatos sociais, e que englobaria ―the quantity,
velocity, and diversity of transactions that go on within society‖ (RUGGIE, 1986, p. 148) .

Esse ‗equívoco‘ teria excluído da teoria neorrealista o componente responsável pela


consciência da transformação, a saber: os processos interativos. Esse componente seria aquele
127

capaz de conferir um senso histórico à estrutura, uma vez que seu reconhecimento ampliaria o
conceito de estrutura, inserindo outras variáveis que impulsionariam a transferência da
coletividade de uma organização segmentada (sistema), para uma forma mais complexa de
diferenciação (sociedade). Assim dentre as forças motivacionais da evolução social, a ideia de
Durkheim sobre a densidade dinâmica representa o vetor material capaz de levar a ordem
internacional até uma forma de sociedade diferenciada funcionalmente, e gerida pela coesão
orgânica (BUZAN; ALBERT, 2010).

Dessa forma, ao objetivar os atributos sociais do espaço público internacional pela


racionalidade econômica, e ao reduzir a sensibilidade histórica dos conceitos, ―structuralists
adopt a posture that denies the role of practice in the making and possible transformation of
social order‖ (ASHLEY, 1986, p. 267). Ao fim, a autonomia potencial das unidades, como
forma social espontânea, é contraposta à roupagem final da unidade reduzida a engrenagem
da estrutura internacional. Isso quer dizer que, ao mesmo tempo em que o postulado da
anarquia pressupõe um interesse estatal livre dos imperativos sociais, a continuidade desse
princípio organizador, ou a validade do equilíbrio de poder enquanto ferramenta teórica
demanda uma subjetividade restrita ao raciocínio instrumental. Com isso, a ordem
internacional prescreve uma racionalidade disciplinada (e não livre) às pressões de uma
sociabilidade competitiva.

Assim, encerra-se um ciclo tautológico entre agente instrumental e estrutura anárquica,


tendo em vista que Waltz atinge a independência das pressões da estrutura sobre as partes
enquanto função de um ator isolado e tendente à duplicação das condutas. Ou seja, a
perpetuação dos efeitos estruturais sobre as unidades realizou-se sob a condenação dessas
últimas à esfera da consciência auto-objetivante, que possibilitou as condições da anarquia,
enquanto consciência coletiva rudimentar sobreposta ao desenvolvimento das
individualidades. Nessa teoria, os agentes da ação projetam-se como objetos epistemológicos,
mas se silenciam enquanto sujeitos atuantes na ordem vigente.

Dessa questão, retiram-se os traços mais preocupantes do reducionismo sociológico de


Waltz, que estabelece a preservação da sociedade sobre a atuação das partes, culminando
numa teoria sistêmica que ―contains only a reproductive logic, but no transformational logic‖
(RUGGIE, 1986, p. 152). Como atentou Ruggie (1986), a aplicação do modelo posicional
(que marginaliza os níveis das unidades e processos), e a restrição dos atores à lógica utilitária
conduziram o neorrealismo a um equívoco metodológico, em que a continuidade dos efeitos
da estrutura constitui antes o produto de premissas, do que uma hipótese comprovada. Ou
128

ainda, ―the tendency towards equilibrium is a necessary result of the analytical assumptions of
the theory itself, not a by-product of feedback mechanisms that can be traced empirically‖
(GODDARD; NEXON, 2005, p.33).

Nas palavras de Dessler, ―Rationality is thus not merely an assumption about the
manner in which nations calculate and act; it is also an assumption about the means through
which those actions are carried out‖ (DESSLER, 1989, p. 459). Nessa sentença, o autor expõe
como a aplicação da racionalidade do tipo instrumental, orientada por valores utilitários,
constitui uma escolha metodologicamente viável à perpetuação de um ambiente competitivo
não conflituoso. Por meio dela, as ações (ou os meios) consoantes ao interesse em si refletem
a interiorização das regras comportamentais prescrita pela estrutura, uma vez que só ganham
sentido se assimiladas num contexto competitivo, no qual, então, tal seria a conduta bem
sucedida. Nesse sentido;

There is a latent normative element which derives from the assumption of neo-realist
theory: security within the postulate inter-state system depends upon each of the
major actors understanding this system in the same way, that is to say, upon each of
them adopting neo-realist rationality as a guide to action. Neo-realist theory derives
from its foundations the prediction that actors, from their experiences within the
system, will tend to think in this way, but the theory also performs a proselytizing
function as the advocate of this form of rationality (COX, 1981, p. 132).

Por conseguinte, a ontologia neorrealista prescrita na normatividade estrutural é


elevada à ideal por meio de uma descrição específica de racionalidade. A consideração
monológica da orientação instrumental criou um conceito de estrutura demasiadamente
estreito, e por isso capaz de assegurar sua prevalência sobre entidades desativadas dos
potenciais transformadores. Isso é, criou-se um conceito de estrutura, que se refere à ordem
internacional como sendo uma ordem natural, sobre a qual as contingências históricas são
negadas, ou tornadas triviais. Com isso, o neorrealismo naturaliza a ordem vigente, dispondo
limites ao movimento do sistema internacional: ―the texture of international politics remains
highly constant, patterns recur, and events repeat themselves endlessly‖ (WALTZ, 1979, p.
66). Nesse conceito, a anarquia culmina em condições de ações que viciam a criatividade, a
sociabilidade e a racionalidade do Estado, que se dispõe normativamente à conservação do
status quo.

A fixação de categorias comportamentais, que postula uma imobilidade do tempo e


espaço, projetaria, pois, as tendências conservadoras do discurso neorrealista. Dessas questões
129

metódicas, resulta uma reflexão prática significativa, qual seria: a problemática da elevação
de uma definição de realidade, isso é, de uma perspectiva imersa numa dimensão cultural
particular, ao status de ideal. Perspectiva essa que, dado os condicionantes assinalados no
segundo capítulo, aproximar-se-ia do imaginário político norte-americano. Nesse mesmo
sentido, problematiza-se a possível função ideológica desdobrada dos postulados
metodológicos que prescrevem a subordinação dos atores à normatividade da estrutura
anárquica. Afinal, a proposta de Waltz absorve um comprometimento com a formulação de
um campo sociopolítico associado à normatividade prescrita pela lógica política competitiva,
sintomática das lentes das superpotências, como os EUA. Nesse cenário, os efeitos práticos da
desativação conceitual dos atores políticos frente à anarquia revelam-se especialmente
problemáticos, uma vez que denunciam as consequências políticas da adoção, por parte dos
países menores, de uma perspectiva fundada numa ‗teoria da ação social‘ que prescreve o
automatismo e a adaptação como linhas normativas centrais da prática internacional.

Nesse sentido, a objetivação da ordem internacional pelo estabelecimento do


movimento perpétuo do mecanismo do equilíbrio de poder representaria uma legislação em
defesa da cristalização de uma configuração política histórica, e, por isso, em parte oposta à
autonomia dos indivíduos em repensarem coletivamente as estruturas da sociedade e de
transformá-la. A autorreprodução do modelo de Vestfália, anunciada pelos mecanismos
reguladores da estrutura anárquica, opõe-se à natureza contingente do mundo social – como
argumentou Ruggie acerca da omissão neorrealista dos modelos prévios (medieval) e
posteriores (pós-moderno) ao sistema de Estado-nação. Seria, portanto, nesse aspecto que a
produção teórica de Waltz se adequaria à concepção de Cox (1981) acerca do estilo problem-
solving:

Moreover, the assumption of fixity is not merely a convenience of method, but also
an ideological bias. Problem-solving theories can be represented in the broader
perspective of critical theory, as serving a particular national, sectional, or class
interest, which are comfortable within the given order (COX, 1981, p. 129).

Tal revelação, antes de apontar uma crítica metódica, demonstra a limitação política
daquele discurso. Ou seja, não se questiona essencialmente a existência de um
posicionamento normativo, uma vez que, a nosso ver, toda teoria política pressupõe graus de
natureza prescritiva. O que de fato problematizamos é a pretensão científica do neorrealismo
em omitir tal propriedade, mantendo os imperativos realistas, sob o bastião da ciência
objetiva, que qualificaria seu discurso como neutro, e, logo, ‗real‘. Dessa forma, os intérpretes
130

seriam alienados da inscrição da simbologia neorrealista num movimento e num debate


historicamente localizado.

Esse enunciado, contudo, não pretende negar a elegância e o poder que a ferramenta
neorrealista apresenta do ponto de vista explanatório, e para determinados fenômenos. Por
outro lado, reflete-se sobre como o fôlego simplificador de seus conceitos efetivou-se à custa
da ‗respiração‘ das entidades sociais, que perdem o qualitativo animado e crítico para se
postularem como unidades homogênias, igualmente esvaziadas de atributos culturais ou
ideacionais, substituídos por raciocínios rotinizados.

Como assinalado no começo dessa seção, Waltz define a objetivação da arena política
como geradora da igualdade, e da liberdade, entre as unidades. Dessa forma, apoiado na
‗impessoalidade‘ ou ‗indiferença‘ da interação sistêmica, aquele autor consegue provar a
capacidade da estrutura (assim como o mercado é descrito pela microeconomia) em exercer
suas próprias condições de normatividade. Todavia, cria-se uma esfera pública com fins
impassíveis de avaliação crítica, visto que se estabelece atores desprovidos das
potencialidades morais, afetivas, e de memória histórica. Entrementes, o postulado do
individualismo mostrou-se consistente com a teoria estrutural neorrealista, ambos inscritos
num movimento tendente à dominação burocrática da imaginação política.

Tal efeito será analisado no tópico seguinte, no qual questionamos as lacunas práticas
deixadas pela incompatibilidade entre as exigências sociais de uma sociedade composta por
relações dialógicas, e a imagem neorrealista desenhada pela justaposição estática das
unidades, governadas por leis externas.

3.3 A individualização da racionalidade política e a banalização da ética.

Na seção anterior, refletimos sobre a ordem internacional anárquica enquanto


prescritora da adoção conceitual de um ator individual, cujas ações projetam-se numa trilha
autointeressada. Dessa análise, concluímos um ciclo de objetivação que favorece a
sobreposição da estrutura a um agente que, inicialmente postulado pela liberdade subjetiva,
finaliza-se como um ego cativo do presente. A adoção da racionalidade instrumental e
individualizada torna-se amnéstico das funções subjetivas (e intersubjetivas) que capacitariam
o ator a transcender as normas comportamentais dispostas pela estrutura, criando-se, então,
131

uma ontologia social capaz de submeter seus componentes a uma teleologia social
competitiva.

Logo, ao invés de representar mera ferramenta metódica, essa acepção do ator


apresenta-se como uma premissa relevante aos desenvolvimentos da teoria política subscrita
no neorrealismo. Por isso, embora constitua uma categoria analítica, e não descritiva, a noção
do ator político à forma do economic man atua sobre nosso entendimento do mundo político,
uma vez que é responsável por um conjunto de desdobramentos normativos significativos à
imagem teórica neorrealista.

E por que é importante interpretar esses desdobramentos? Porque dentro do quadro


teórico do campo, a teoria neorrealista de Waltz representa uma forma hegemônica de
realização de um imaginário sociopolítico particular. Como explicitamos no segundo capítulo,
o neorrealismo apoia-se, e desenvolve-se a partir da institucionalização do mundo moderno, e
interpreta o mundo social sob a perspectiva de uma superpotência, cuja política interna, e
externa, internalizou a secularização, a eficiência e racionalização como valores práticos de
conduta.

Nesse sentido, conforme apontado por Avritzer (1996), a questão da racionalidade e da


liberdade enquanto satisfação dos interesses individuais, cuja ação correlata abrevia-se pela
maximização dos caminhos orientados a tal fim, reflete os pressupostos societários que
fundam a economia capitalista e a sociedade moderna, sendo, portanto, uma perspectiva
inscrita num movimento espacial e temporalmente localizado. Até o final do século XVIII não
existia uma sociedade orientada pela economia de mercado, dessa forma, o "indivíduo
racional" apresentar-se-ia como produto do desenvolvimento desse modelo e não o contrário.
Paralelamente, como apontou Ruggie (1986), a sociedade configurada pelo sistema de
Estados-nação também é inédita aos tempos modernos, nesse sentido o postulado de
sociabilidade dessas entidades funda-se numa concepção particular, que serve à tentativa
intelectual de provar a possibilidade de se reconstruir a sociedade a partir dos interesses
privados. Assim, a definição do Estado neorrealista engloba uma consciência coletiva
contemporânea adéqua à concepção da harmonização de interesses pela regulação espontânea
das expectativas particulares, dado que postulado de vontades concorrentes, racionalmente
irredutíveis, justificaria a orquestração da estrutura.

Conforma já assinalado, a expansão dessa racionalidade econômica para o âmbito das


esferas sociais realizou-se com o advento das instituições modernas, acompanhadas de um
enquadramento epistemológico paralelo das ciências sociais norte-americanas adaptadas ao
132

paradigma econômico. O vínculo do neorrealismo com uma explicação técnica da política, em


que as forças sociais dinamizam-se à parte das considerações intersubjetivistas dos atores,
implicou a adoção de uma ação social associada estritamente a valores estratégicos e
possessivos, sintomáticos da tendência individualista da economia de mercado: ―International
politics is structurally similar to a market economy insofar as the self-help principle is
allowed to operate in the latter‖(WALTZ, 1979, p. 91).

Com o objetivo de alcançar a maestria técnica, o neorrealismo abandonou qualquer


fonte de inspiração moral, ou preferência normativa. Seguindo o propósito de Thomas
Hobbes, Waltz procurou efetivar a transformação da política em ciência, reduzindo a primeira
a uma atividade limitada à prescrição de soluções técnicas aos problemas da sociedade.
Consistente com o habitus do departamento de defesa norte-americano durante grande parte
da Guerra Fria, a ciência neorrealista dedicou-se a oferecer suporte para a avaliação dos
objetivos e dos meios mais eficazes para alcançá-los – de modo que, por outro lado, ela não
nos assiste a refletir sobre quais objetivos seriam meritórios, ou mesmo moralmente
discutíveis.

Dessa forma, a metodologia das ciências exatas (importada para as RI) abstrai-se da
função de esclarecer questões éticas relativas, por exemplo, à justiça social, à normatização do
ambiente internacional, ou à autoridade política. Nesse sentido, insere-se o processo de
autonomia da ciência moderna que associamos à abstração de Descartes sobre os modelos da
ética, da história e da poesia, de forma que o neorrealismo partiu da mesma dissociação, da
qual se opôs moralidade e política. Desse modo, influenciado pelas concepções da ciência
moderna, o neorrealismo focou-se na competência técnica, desconsiderando os demais
aspectos de análise e interpretação, como os componentes prático-morais e prático-estéticos.
Logo, enquanto força produtiva, tal saber atuaria no reforço daquela tecnocracia disposta
pelos aparatos sociais, reduzindo as questões práticas ao fim do progresso técnico-científico.
Este que, então, transporia a fundamentação do conhecimento para atingir as esferas de
proposições normativas que coordenam a sociedade, de modo que a noção de reificação se
estenderia aos domínios da subjetividade e intersubjetividade da vida prática.

Esse processo de racionalização do discurso foi bastante analisado pelos autores da


Escola de Frankfurt, os quais viram na emergência do capitalismo, e da sociedade moderna, a
sedimentação do fundamento social necessário para a articulação metodológica de um
interesse investido na dominação. Dentre eles, Habermas destacou-se pelas análises
perpassadas por um propósito moral, orientado à retomada do aspecto simbólico da esfera de
133

reprodução social, que entendemos como um processo de ativação solidária dos sujeitos. Sob
esse intuito, Habermas confronta as garantias positivistas relacionadas à certeza
epistemológica, a partir da noção de intersubjetividade da vida social, que rompe com a
filosofia do sujeito, substituindo-a por uma teoria social. Nesse sentido, o autor sugere uma
perspectiva dual da sociedade, postulada entre o ‗mundo vivo‘ e o ‗sistema‘, que
correspondem a diferentes domínios da interação social, inseridos na recuperação intelectual
da teoria da ação. Logo, em cada esfera predomina um tipo específico de conduta social: ação
comunicativa e ação estratégica, respectivamente.

Por outro lado, como assinalado na seção anterior, a concepção neorrealista assume
uma consideração estreita da lógica constitutiva da ordem internacional, a qual se refere
unicamente à satisfação sistêmico-racional das necessidades da sociedade. Logo, a explicação
da socialização neorrealista realizou-se pela omissão dos elementos teóricos da ação, o que
teria garantido um estudo fora das questões da ―personality/subjectivity, intentionality and
normative theory‖ (WEBER, 2005, p.206). Apoiado numa esfera à parte dos mecanismos de
entendimento mútuo, o neorrealismo adota uma perspectiva monolítica da racionalidade
estendendo para todo domínio da socialização dos Estados um tipo de relação objetivada e
orientada em termos estratégicos.

Tal atitude, possibilitou a pesquisa empírica e a sofisticação teórica, em que ―the


objectified world of ‗autopoetic‘ social systems guarantees the routinised execution of tasks
associated with social reproduction‖ (WEBER, 2005, p.203). Contudo, o escopo dessa
estrutura ―make their public organisation by will and communal decision impossible and
implausible‖ (WEBER, 2005, p.203). Assim, conforme explica Ingram,

A superimposição da ordem social a um quadro de referência teleológica leva à


redução das normas ao status de simples meio. Sem ter fundamento na comunicação,
a interação social não passa de um empenho estratégico, que depende de decisão
não-livre, no sentido kantiano (Willkür), dos atores envolvidos – inexplicável e de
moralidade irrestrita (INGRAM, 1994, p.183).

Revelam-se, pois, os efeitos deletérios da racionalidade instrumental, reatualizada sob


a forma das tensões geradas pelas coordenações sociais ―medializadas‖ pelo poder. Essas que,
ao estenderem-se aos domínios do mundo da vida, ameaçam esvaziá-lo de seu propósito
participativo. Segundo aborda Avritzer (1996), o equívoco das teorias que restringem o plano
da ação política ao cálculo racional estratégico estaria justamente no não reconhecimento da
expressão dual da sociabilidade – que absorveria tanto o nível do raciocínio cognitivo-
134

instrumental, como da reflexão intersubjetiva. Isso porque, ao negarem essa segunda


concepção, acabam abstraindo também o fundamento consensual da política moderna, haja
vista que o conceito de intersubjetividade sustenta-se na ideia de reconhecimento do ‗outro‘;
diferentemente do princípio do individualismo metodológico, a partir do qual o conceito de
racionalidade instrumental é formulado.

Segundo esse cientista político, tal reconciliação entre os modos de sociabilidade é


importante por negar a a esfera egoísta da ação social como sendo a única dimensão de
sociabilidade moderna. Afinal, para Avritzer (1996), a introdução da variável técnica nos
estudos políticos dá margem apenas para reflexões acerca de um espaço social dotado de uma
complexificação administrativa e, por isso, incapaz de oferecer um ambiente gerador de
participação social. A impossibilidade de ações consensuais na arena política internacional
corroboraria a heteronomia estrutural implícita na díade ―racionalidade e reificação‖ da
produção moderna, em oposição a uma noção de autonomia ligada à ―racionalidade e
participação‖.

Acordado com essa reflexão, esse tópico contesta a extensão absoluta daqueles
pressupostos às esferas da vida política internacional onde historicamente coexistem outras
formas de ação, para além da lógica monolítica da racionalidade econômica. Propomos que tal
postura revela a tensão gerada na contradição entre as condições normativas de reprodução
social, que geram expectativas de participação coletiva, e os requisitos da política de poder,
que exige a manutenção da posição estrutural pela apropriação privada do status de potência

Como fez Habermas sobre a esfera da vida sistêmica, problematizamos o ethos da


estrutura neorrealista enquanto dissolvedor das formas orgânicas de vida, e gerador de ações
políticas empobrecidas. Afinal, propõe-se que a elevação da orientação instrumental (arquiteta
da esfera econômica e da sociabilidade competitiva) como sendo único substrato da ação
social implicou uma teoria erigida sob pilares de uma ordem anárquica burocratizada.
Ressaltamos, ademais, e sob o suporte das seções anteriores, que tais efeitos seriam antes uma
consequência de escolhas metodológicas e teóricas fundadas socialmente, do que de uma
representação propositiva sobre uma ontologia social naturalmente apolítica. Ou seja, a partir
da aplicação de ferramentas tidas como cientificamente rigorosas, o neorrealismo buscou a
objetividade ausente nos estudos precedentes, não obstante, tenha possivelmente recaído em
um segundo tipo de fetichismo: a própria ciência.

A adoção do modelo do homo economicus insere-se nesse processo. Consoante com as


pretensões metódicas de Waltz, tal categoria implicou a padronização analítica da conduta
135

política e a construção dedutiva de proposições generalizantes pela identificação de


mecanismos e relações causais entre atores. No entanto, porquanto possua vantagens
metodológicas do ponto de vista positivista, a redução da ação social à função estrutural e ao
raciocínio instrumental, não se efetivou sem algumas perdas. Afinal, para tal, o neorrealismo
deixou de problematizar, sobretudo, acerca dos postulados orientados à cultura, normas,
interesses, e preferências que encerram o ambiente político interestatal. A abstração do
contexto sociocultural que fundamenta as ações políticas internacionais criou uma imagem
estatal uniforme ao longo do tempo, e por isso trans-histórica.

No tópico anterior, vimos que tal abstração implicou uma relação agente-estrutura do
tipo regulatória, por meio do qual as unidades precisam conformar suas condutas à
normatividade da estrutura. E quanto à relação entre os agentes, qual teoria da ação desdobra-
se da racionalidade instrumental? Embora Waltz não se detenha sobre essa esfera, sua teoria
constrói-se essencialmente sobre ela, sendo o equilíbrio de poder um mecanismo fundado
num tipo específico de interação, qual seria a conduta estratégica.

Para Habermas (1988), a metodologia e os conceitos básicos de ação social se


acompanham mutuamente. Sendo assim, nessa perspectiva, as modalidades de ação social
estão intimamente ligadas a um tipo específico de orientação epistemológica. Na ação
comunicativa encontra-se uma relação intersubjetiva, na qual os indivíduos se reconhecem e
interagem. Essa ação definida em termos de ―sujeito-sujeito é, entretanto, substituída pela
relação ―sujeito-objeto‖ quando se trata da ação estratégica.

Este último caso espelha a definição de Waltz e apresenta uma interação realizada de
forma objetivada, em que os elementos da relação se entendem como meio para alcançar seus
fins privados. Ressalta-se neste aspecto uma concepção pré-social da racionalidade, que
abstrai a formação identitária realizada pela interação dos componentes da comunidade
internacional. Ou seja, evidencia-se o uso técnico desse vocábulo, a racionalidade,
direcionada à eficácia e não ao consenso social da realidade, visto que situada fora da esfera
do universo da relação dos sujeitos, e por isso distante da ideia de ação social dialógica
(SILVA, 2001). Assim, de acordo com a ação política estratégica definida pelo neorrealismo,
os atores são tidos como egoístas e racionais e o sistema dinamizado pelas suas atitudes e
coerções calculadas. A função dessa conduta seria influenciar seu opositor, cuja orientação
central foca-se no êxito.
136

A anarquia neorrealista representaria, pois, uma coletividade que, na transição para o


sistema estatal moderno, teria perdido todo sentido de Gemeinschaft105. Todavia, essa
concepção de Waltz omite a noção crucial relacionada ao sentido de associação que, a par de
qualquer processo de diferenciação, expressa um vínculo entre seus componentes.

The obvious difficulty with it is that the segmentary/mechanical form is lifted from a
sociological context in which Durkheim understood it as a type of society integrated
by a shared identity (Larkins, 1994: 252), and moved to an IR one in which it is
understood as a mere system, operating mechanically as an anarchic struggle for
power/survival without any integrating social content […] Durkheim‘s
mechanical/segmentary logic presupposes a social context, whereas Waltz‘s
anarchic system one precisely does not (BUZAN; ALBERT, 2010, p. 324).

Assim, a desativação das potencialidades participativas do ator é alcançada no


neorrealismo por meio da ―racionalização‖ (ou ‗colonização‘, nos termos de Habermas) da
dimensão social da interação, a qual já foi aqui referida como o ―mundo da vida‖ de
Habermas, ou mesmo a ―comunidade societária‖ de Parsons, ou, por fim, para aproximarmos
do legado de Waltz, a noção de ―consciência coletiva‖ de Durkheim. Destarte, a interação
social e a socialização passam a associar-se à cognição objetiva e à projeção interior, ao invés
de representarem funções, por mínimas que sejam, da compreensão consensual (INGRAM,
1994).

Como elucidam as leituras sociológicas (RUGGIE, 1986; BUZAN E ALBERT, 2010),


o estabelecimento da interação objetivada como único substrato da ordem internacional
reforçou-se, portanto, por meio de uma interpretação estrita de Waltz acerca do conceito de
―diferenciação‖:

Because Waltz has narrowed the meaning of functional differentiation down into the
purely political (functions of government, sovereignty), his reading of Durkheim can
only go from segmentary to stratificatory. Being purely political, Waltz‘s ‗functional
differentiation‘ is not, and cannot be, functional differentiation in the sociological
meaning because only one sector — politics — is in play. It can only be
stratificatory differentiation, a point underlined by Waltz‘s focus on great powers
and polarity (BUZAN; ALBERT, 2010, p. 324).

105
Buzan (1993) aponta para a sistematização do sociólogo alemão Ferdinand Tönnies, que distinguiu as formas
de organização social entre dois tipos: Gemeinschaft e Gesellschaft. O primeiro termo refere-se às
―comunidades‖ impulsionadas pela vontade essencial (força orgânica e instintiva), em que os laços são
construídos com base em sentimentos, experiências e identidade comuns. Gesellschaft, por sua vez, denotaria as
―associações‖ impessoais, baseadas no raciocínio instrumental de defesa do autointeresse, e caracterizadas pelo
contrato devido à heterogeneidade dos sistemas de crenças. Nesta última, predominam as ações utilitariamente
calculadas, em que pesam as considerações de eficiência política e econômica, enquanto nas sociedades do tipo
gemeinschaft prevaleceriam os laços sentimentais e tradicionais entre os indivíduos.
137

Dessa forma, o foco nas característica políticas e materialistas teria eximido Waltz de
construir uma teoria social sobre a PI. A remoção do elemento social exclui os setores de
atividade não envolvidos com a dimensão política nos termos de Vestfália. Logo, a noção de
territorialidade nacional é inscrita como o limite entre os subsistemas reconhecidos.
Instituições e atores que atuem fora desse modelo são silenciados. Por sua vez, o mecanismo
impessoal do poder (no seu sentido material) é tomado como único mediador da coordenação
social na arena política internacional.

O aparato administrativo do poder enquanto mecanismo diretivo das ações


internacionais gera um processo paralelo de abstração da esfera pública, cada vez mais
tecnificada, e compreendida como mera realização funcional dos interesses privados. Na
concepção estratégica, a linguagem é entendida como meramente instrumental, ou seja,
enquanto elemento dissociado das práticas e instituições servindo apenas como racionalização
do interesse. Isto é, as normas sociais são secundarizadas, e passam a ser compreendidas
como ferramentas de manipulação em prol de interesses utilitários no jogo social e político. A
construção compartilhada de valores e normas representa a imposição de um bem coletivo
sobre as vontades individuais, e, por isso, é avaliada como contrária à lógica da ação racional
orientada à maximização dos interesses particulares.

A escolha epistemológica pelo individualismo, e a definição do sistema enquanto um


agregado de elementos extrinsecamente relacionados acarretariam uma espécie de
moralização da ―razão de Estado‖, enquanto interesse privado, construindo uma perspectiva
política que é, ao mesmo tempo, apolítica. Isso porque quando a política é entendida como
exercício intersubjetivo, esta passa a estar imersa na esfera subjetiva do ator, porém não se
vincula estritamente à dimensão dos interesses do mesmo. As condições de isonomia,
características de uma vida pública autêntica, adviriam de um despojamento dos interesses
particulares puros da função política, uma vez que se elabora a importante distinção entre as
dimensões da subjetividade (vinculada à autonomia) e da particularidade (relacionada aos
interesses) dos sujeitos. Nesse sentido, a política decorreria dos laços que unem os agentes no
espaço público não constituindo, pois, uma qualidade privada das unidades, mas sim uma
atividade alocada nesse ―entre‖ (espaço comum), que comunga as esferas autônomas e
heterônomas, e define-se como lócus da política. Afinal, é nesse cenário que a subjetividade
dos indivíduos pode atuar coletivamente, sem abandonar-se a si mesma.

Ora, a partir dessa concepção, entendemos a apoliticidade do conceito de ordem


internacional definida pela teoria neorrealista, que abstrai justamente esse cenário de
138

reconhecimento mútuo, substituído pelo desenho estritamente posicional da estrutura. No


nível da ação, isso se deve à lógica utilitarista que não efetiva a separação entre as dimensões
particulares e subjetivas, que, ao se confundirem, resultam numa ação estatal postulada como
atividade regida pelos padrões do individualismo possessivo, e num conceito de Anarquia
projetada como sistema pautado nos parâmetros funcionais da razão instrumental.

Dessa forma, a objetivação da relação entre os Estados oferece à ação política


internacional um tipo de juízo fundado num critério de eficácia técnica – um juízo
determinante em oposição a um juízo reflexionante, como define Kant106. Ou seja, o
neorrealismo abstrai o agir reflexivo, cujo princípio chave seria justamente a liberdade do
agente em poder construir coletivamente a norma e não apenas segui-la. Isso é, silencia-se o
ato de julgar enquanto capacidade humana circunscrita na instância subjetiva, mas com
escopo coletivo. Assim, como apontamos na seção anterior, o neorrealismo de Waltz
renunciaria à força dos sujeitos (sejam indivíduos ou sociedades) em avaliarem as
singularidades concretas, então substituída por um ato mecânico de adequação a um sistema
objetivamente dado. Com isso, oculta-se o pensar comunitário culminando numa abstração da
dimensão política dos sujeitos, onde ocorreria esse tipo de juízo associado à interconexão de
subjetividade e alteridade.

Ademais, ao definir uma raison d´État rígida, cria-se um fundamento privado de


legitimação moral que, por sua vez, transforma os compromissos assumidos individualmente
pelo Estado em valores sociais e políticos. A associação entre moral e interesses particulares
gera efeitos sobre o significado da ética. Essa que, compreendida como uma prática histórica,
apresenta-se numa forma peculiar (e geralmente implícita) nos postulados neorrealistas:

Like positivist science, technical realism conceives of itself as value neutral and tries
not at all to establish an objective basis for values, ethics, and ends. In so doing,
though, it implicitly sanctions a particular kind of ethics: a decisionistic ethics
based only on the individual actor's personal commitment, belief, or faith
(ASHLEY, 1981, p. 233).

106
Sobre as faculdades do juízo, Kant estabelece duas categorias: juízo determinante e o juízo reflexivo. Com
relação ao primeiro, delimitam-se as situações em que o agente, para avaliar determinado caso, utiliza o
raciocínio técnico, pautado na aplicação de regras, leis ou princípios pré-estabelecidos a casos particulares, a
fim de, então, julgar sua qualidade. Em outras palavras, a faculdade do julgar determinante seria ―a capacidade
de subsumir a regras, isto é, de discernir se algo se encontra subordinado a dada regra, ou não‖ (KANT, 1989,
p. 177-178). Por outro lado, nas situações em que não haja tais critérios a priori, ou seja, quando tratar-se de
um caso novo, sem precedentes, o ator deve aplicar o juízo reflexionante. Este consiste, pois, no processo de
reflexão em que só o particular é dado, de modo que a classificação deve ser feita a partir da ipseidade do
julgado. Por meio desse último raciocínio, evita-se a prática tecnificada, uma vez que não se toma como
parâmetro uma norma ditada anteriormente, mas sim a existência concreta da situação, que, então, liberaria a
razão para o raciocínio espontâneo.
139

Dessa forma, o exercício da política representaria uma relação negativa entre essa
atividade e a ética comunitária. Afinal, a aplicação do julgamento moral é indissociável da
condição de liberdade no processo de escolha, de modo que nas condições extremas, onde
domina a lei da causalidade, ou a lei da razão pura, tal esfera de julgamento seria supérflua,
visto que já se configura sob os imperativos do mundo sensível, ou inteligível. Nesses casos
de ausência dialógica, o sentido de liberdade associa-se à esfera privada, e, com isso, o
sentido autônomo do interesse público global é submetido ao plano secundário, visto que sua
realidade passa a estar meramente vinculada à articulação racional dos interesses estatais,
definidos em termos de poder. Como afirma Enrique Dussel, o utilitarismo tende a simplificar
ao máximo a ordem ética e política para, com isso, poder controlar racionalmente a estratégia
militar, o business econômico e político (2000, p. 109). Nesse sentido, a racionalização da
estrutura internacional implicaria na perda de sentido ―sintomática da fragmentação da
sociedade em egos isolados, movidos pelo autointeresse, desprovidos de fibra moral, do
sentido compartilhado de valor e de propósito necessário para distinguir a personalidade e o
caráter‖ (INGRAM, 1994, p. 91).

Dessa forma, a agência política dos atores é preterida das chances de transformação de
suas relações através da comunicação e dos valores e regras das instituições, bem como
limitada em sua capacidade de edificar modelos alternativos de organização política. Afinal,
os tipos de interesses envolvidos no jogo estratégico seriam unicamente individuais, não
havendo uma distinção entre a vontade pública e privada. A preponderância conceitual da
anarquia como um espaço destituído do componente social e organizado por interesses
egoístas favorece, então, o processo de desagregação coletiva. Tal condição resultou
teoricamente na abstração de estados permanentes de cooperação e ações consensuais, de
forma geral.

Ora, a admissão pelo realismo da ideia cognitivo-instrumental da maximização dos


interesses estatais como substrato único da ação social geraria, por fim, implicações políticas,
na medida em que reduz o fundamento normativo deste campo à capacidade individual de
autopreservação. Comum aos discursos teóricos dessa escola, as tentativas de se criar "éticas
da política" refletem, pois, a busca de codificação das ações e comportamentos dentro da
pretensão objetiva de controle. Entretanto, tal atitude, dialeticamente, demonstra um processo
de "naturalização" das relações sociais e a reificação da conduta política.
140

Em suma, o processo de despolitização do espaço público internacional resume-se


pelos postulados neorrealistas que subvertem a tradição do debate e do combate político,
esvaziando-os do componente plural e dinâmico. Com isso, Waltz, como grande parte dos
neorrealistas, deslocou a questão da moralidade para a esfera da vida no interior dos Estados,
para onde, paralelamente, também foi circunscrita a política enquanto atividade vinculada
àquelas preocupações. A ordem externa, por sua vez, define-se negativamente às
considerações domésticas. Como aponta Walker (1993), as relações internacionais foram
perpassadas pela diferenciação espacial, cuja separação geopolítica delimita comunidades
territoriais particulares, seguidas pela separação normativa dos cenários:

Spatially, the principle of state sovereignty fixes a clear demarcation between life
inside and outside a centred political community. Within states, universalists
aspirations to the good, the true and the beautiful may be realizable, but only within
a spatially delimited territory (WALKER, 1993, p. 62).

Ademais, nosso intuito com a ênfase nessa questão da moralização da política


internacional não procura manter uma díade, substituindo o polo da particularidade pela
universalidade, mas sim propõe o questionamento da noção de política, e da própria ciência
que dela emerge, afinal, como apontado por Ashley, a metodologia que limita a ciência a uma
atividade técnica, reduz também a prática política à lógica econômica, e neutraliza as
faculdades críticas daquela. Ou ainda, nas palavras de Walker, ―between states, however, the
lack of community can be taken to imply the impossibility of history as a progressive
teleology, and thus the possibility merely of recurrence and repetition‖ (WALKER, 1993, p.
63).

Retoma-se, então, o possível aspecto neutralizador da teoria que, por meio da


definição da ação estatal enquanto essencialmente estratégica, isenta de responsabilidades
éticas, e de ações interativas permanentes entre os atores, negaria por extensão as
potencialidades de transformações sociais da ordem posta. O sujeito político, por sua vez,
passa por uma reificação categorial que, no extremo, pode nos levar ao questionamento da
própria autenticidade criativa dessa ação estatal. Assim, a coerção da estrutura internacional,
em termos waltzianos, unida ao raciocínio utilitário de um ator atomista, supõe um espaço
político diminuto e estático.

A construção de um conceito tecnicista e utilitário de política realizada por Waltz


pode, então, ser identificada com o aspecto formalista da razão subjetiva na atividade
científica, como declarou Horkheimer. Nesse sentido, insere-se a reflexão acerca do discurso
141

normativo associado às escolhas epistemológicas e metódicas do neorrealismo. Tal aparato


adentrou a teoria analisada por meio da superestrutura cultural de Waltz, sendo assim, como
vimos, tal inserção não foi computada pela base teórica explicativa da teoria fundada na ideia
da neutralidade axiológica. Por isso, como apontou Ashley, o realismo estrutural não provê
uma base objetiva para acessar ―their historical dependence, ideological distortions, and/or
truth content. Whether or not one agrees or disagrees with these norms, ethics, and mores
remains purely a matter of personal choice‖ (ASHLEY, 1981, 233).

Dessa forma, ressalta-se a tensão criada pela metodologia implicada no neorrealismo.


Afinal, as propostas teóricas de Waltz partem de imperativos intersubjetivos que conferem
significado aos seus postulados, embora sua filiação positivista/racionalista procure abstrair
tal decodificação. Logo, para escapar desse ‗subjetivismo‘, a ciência neorrealista limitou as
pretensões práticas/hermenêuticas da mesma estabelecendo os predicados da ―política do
poder‖ como sendo a ―tradição verdadeira‖ (ou o ―mundo como ele é‖).

Ao delimitar sua ontologia ao ‗mundo da determinação‘ (em oposição a um mundo do


‗dever ser‘), o neorrealismo impôs limites às considerações práticas alternativas, compreendo
as tendências opostas (movimentos transnacionais, empenhos à ética cosmopolitas, etc) como
externalidades transgressoras. Os programas ou práticas que promovam algum tipo de
consenso coletivo, e ultrapassem os limites da ―política de poder‖, são esvaziados de sentido,
restando-lhes apenas o tratamento instrumental, por meio do qual são abstraídos e julgados
irracionais aos objetivos políticos.

Desse modo, pautado na reconstrução técnico-científica da corrente realista clássica, o


neorrealismo de Waltz conseguiu manter a ―política de poder‖ como uma característica
endêmica das relações internacionais. Por isso, nas ocasiões em que surgem ações que
procurem romper os limites impostos por aquela tradição, ou mesmo sugerir outras formas de
condução prática, revela-se a comumente, e contundente, resposta neorrealista: ―não sejam
irracionais‖. Afinal, o mundo à parte da lógica operativa da razão científica é compreendido
como compêndio idealista, capaz de arruinar a ordem posta.

Assim, aponta-se a confluência entre as escolhas metodológicas e epistemológicas do


neorrealismo, e o mundo da ação social que ele informa. Ou, em outras palavras, como
sugeriu Ashley, é importante captarmos a compatibilidade entre a racionalidade científica e a
manutenção da ―política de poder‖, afinal, ―reducing reason to purposive rationality, gauging
action solely in terms of the efficiency of means, and one-sidedly concentrating on the ‗is‘
realists are ‗scientific men‘‖ (ASHLEY, 1981, p. 235). Ademais, como refletiu Cox,
142

The assumption of fixity is not merely a convenience of method, but also an


ideological bias […] Indeed, the purpose served by problem-solving theory is
conservative, since it aims to solve the problems arising in various parts of a
complex whole in order to smooth the functioning of the whole. This aim rather
belies the frequent claim of problem-solving theory to be value-free. It is
methodologically value-free insofar as it treats the variables it considers as objects
(as the chemist treats molecules or the physicist forces and motion); but it is value-
bound by virtue of the fact that it implicitly accepts the prevailing order as its own
framework (COX, 1981, p. 129-130).

Por conseguinte, reforça-se a consistência entre a proposta teórica neorrealista e a


imaginação política de uma superpotência. Afinal, por se propor a orientar o exercício
eficiente do controle sobre o desenho anárquico vigente e ao negar a possibilidade dos atores
ordenarem o mundo de outra forma que não a disposta por tal estrutura, a teoria neorrealista
torna-se bastante atrativa à audiência dos Estados centrais e privilegiados pelo status-quo.
Deste modo, a base técnica oferecida pela teoria neorrealista poderá manter-se prevalente,
mesmo com os desenvolvimentos práticos contemporâneos, na medida em que aqueles que
podem exercer controle sobre a PI continuem encontrando nela uma orientação consistente
com suas preocupações. Como advertiu Ashley,

As long as at least some powers find guidance in the theory, grasp objective
forces identified in it, and, wielding these forces, bend others to the system within
which their own success is assured, the technical theoretical base of realism
proves itself in its own terms (ASHLEY, 1981, p.225).

Dessa forma, os ecos prescritivos da teoria lançam questões sobre as relações de poder
que impulsionam a legitimação, e manutenção, do aporte teórico neorrealista como discurso
central para a formulação da imaginação política sobre as relações internacionais, em especial
nas academias da América continental, onde ainda haveria um tipo de colonialismo
intelectual. Essa problemática majora-se por referir-se ainda à manutenção de uma concepção
de política, muitas vezes em descompasso com as demandas contemporâneas dos países
menos desenvolvidos. Afinal, embora confluente com o período da Guerra Fria, esse discurso
parece perder fôlego analítico frente a um quadro político diverso, e cada vez mais
necessitado de uma retomada humanista;

A consideração do problema ético ao longo de muitos séculos o tomou como


matéria de estrito foro íntimo. A ética tradicional tornou-se o padrão do indivíduo
isolado, autônomo, responsável, autor de seus próprios princípios, sem referir-se a
autoridade exterior. A responsabilidade particular da pessoa, contudo, na fase
inaugurada nos anos 1990, parece ser estendida também agora às "pessoas morais",
143

ou seja, às instituições e aos indivíduos que, por força de investidura política, estão
delas incumbidos (MARTINS, 2001, p.15).

Como reclama Walker (1993), nas condições atuais, em que experimentamos


reincidências à violência, somadas às novas formas de inclusão e exclusão advindas das
tecnologias de produção, das quais segue também a fragilidade do meio ambiente, torna-se
inquestionável a urgência do debate sobre tais aspectos práticos em escala global. Para tanto,
faz-se necessário um aparato teórico capaz de interpretar (e, para isso, reconhecer) tais
dinâmicas – geralmente atribuídas às agendas públicas dos países menos desenvolvidos – bem
como absorver a natureza ético-político dessa discussão. Todavia, a base intelectual provida
pelo neorrealismo, se não questionada, soa-nos insuficiente para sustentar a reconexão entre
política e moralidade, ou mesmo para um repensar ontológico sobre os outros sujeitos. Nesse
sentido, torna-se cada vez mais relevante a emergência das novas correntes que admitam a
―potencialidade em um sistema sociopolítico não instrumental, criado por uma socialização
reflexiva sobre crenças ou normas diversificadas‖ (CARVALHO, 2006, p.235), como serão
apontadas no tópico a seguir.

3.4 Asas da palavra: além das margens e do silêncio

Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra107

Nos tópicos anteriores, captamos as formas pelas quais a construção da ciência


neorrealista demonstra-se, ao menos parcialmente, um processo de abstração de tradições
intelectuais e culturais, e também de opções sociais e políticas alternativas àquelas absorvidas
no quadro teórico assinalado. Tais silêncios tornaram impronunciáveis as necessidades e
práticas de sujeitos coletivos, cujas dinâmicas escapam ao modelo do ator racional e suas
fronteiras. A forma com que essas entidades percebem o mundo, e nele engajam-se, foi
abstraída sob a égide dos valores universais autorizados pela ‗razão‘, não obstante, conforme

107
Cf. VELOSO, Caetano; NASCIMENTO, Milton [Compositores]. A Terceira Margem do Rio. Intérprete:
VELOSO, Caetano. In: VELOSO, Caetano. Circuladô Vivo. São Paulo: Polygram, 1992. 1 CD (ca. 1h. 5 min.).
Faixa 10 (4 min. 32 s).
144

expusemos, tais valores representem geralmente a cristalização de uma perspectiva particular


sobre as formas de conduta prática.

Nas palavras do sociólogo Boaventura de Souza Santos, ―o silêncio é, pois, uma


construção que se afirma como sintoma de um bloqueio de uma potencialidade que não pode
ser desenvolvida‖ (2002, p.30). Nesse sentido, as enunciações da última seção revelaram as
implicações políticas de uma teoria que considera o Outro (no caso, os Estados sem potência)
um objeto, ou seja, estabelece-se a não existência desse enquanto sujeito coletivo,
potencialmente contestador da ordem e com características particulares.

Dentre as formas de se produzir a ‗não existência‘, destacamos duas que cremos


consistente com a teoria neorrealista: a lógica da monocultura e da classificação social, as
quais são responsáveis pela naturalização das diferenças. Assim, ao estender a racionalidade
econômica a todos os atores, como critério de sobrevivência e igualdade sistêmica, o autor,
além de prescrever uma conduta não refratária desses frente às regras da estrutura, também
abstrai as diferenças, obstruindo os canais pelos quais os atores poderiam manifestar-se –
esferas de interação comunicativa /intersubjetiva –, desconsiderando, por decorrência, outros
tipos de agência que, por sua vez, poderiam revelar outros tipos de entidades ontológicas.

A ideia de racionalidade comum prescrita nos postulados neorrealitas ―reinforces the


non-historical mode of thinking. Other modes of thought are to be castigated as inapt, and
incomprehensible in their own terms‖ (COX, 1981, p.132). Nesse ponto, conforme
desenvolveu a reflexão da seção 3.3 desse capítulo, a ausência de diversidade implica a falta
de solidariedade; daí, a necessidade de ampliação simbólica das formas de conhecimento, de
práticas e de agentes, cuja multiplicidade deve ser credibilizada frente aos padrões
hegemônicos (SANTOS, 2002).

Sendo assim, e visando a necessidade de reformular o vínculo entre a epistemologia, a


ontologia e a ética política, algumas correntes teóricas da década de 1990 passaram a
problematizar o foco exclusivo nas prerrogativas da organização estrutural do sistema
anárquico como diretivos da ação dos Estados, uma vez que tal atenção acaba por abstrair a
pluralidade de agências do cenário internacional, e por banalizar as problemáticas de natureza
humanística. É, pois, com vistas nesse horizonte, que empreendemos breves arguições acerca
dos modelos alternativos ao exposto por Waltz. Nossa preocupação é construir uma reflexão
abrangente e inclusiva, que lance (sem a pretensão de esgotar) as principais noções teóricas
propostas para esse debate sobre os limites epistêmicos e conceituais da abordagem
145

neorrealista, focados na busca por aberturas emancipatórias da ação dos sujeitos, sejam eles
indivíduos ou coletividades.

Nesse sentido, ressaltamos a crença na singularidade das ciências sociais, e na


demanda subsequente por métodos específicos a elas, como ponto chave das novas propostas
teóricas do chamado terceiro debate, as quais serão privilegiadas nessa breve exposição.
Afinal, presume-se que a renovação epistêmica e metódica concebe perspectivas
interpretativas bastante inovadoras, tanto nos empreendimentos de compreensão como nas
propostas de retomada ontológicas.

Dentre as vantagens dos discursos vinculados metodologicamente ao pluralismo, ao


historicismo e à normatividade, revela-se o desenvolvimento de um quadro teórico capaz de
ler o mundo político internacional por meio de lentes que captam um ambiente intersubjetivo,
em que as unidades se relacionam socialmente. A adoção de um foco histórico possibilita o
exame das variadas formas de interação entre os sistemas e as sociedades internacionais desde
a era pré-moderna, perpassando ao sistema de Vestfália, até a ordem global contemporânea,
presumindo que o cenário a partir de 1990 catalisou vias para tais desenvolvimentos.

Desse modo, os elementos presentes na realidade internacional, da qual se destacam,


exponencialmente, questões culturais, responsabilidades éticas, bens-comuns globais, dentre
outros, revelam as complexidades da sociabilidade entre os membros desse meio. Com isso,
são demandadas, paralelamente, estruturas cognitivas capazes de interpretar o entrelaçamento
das atividades desenvolvidas no ambiente social internacional. Nesse sentido, perspectivas
reducionistas, como a de Waltz, perdem em fôlego analítico, em comparação com os
ferramentais teóricos comprometidos com visões sociológicas e históricas, das quais se
aproxima, por exemplo, a Escola Inglesa, as teorias feministas, os teóricos neomarxistas,
construtivistas, pós-estruturalistas, e pós-coloniais.

Essas vertentes críticas impulsionadas pela onda pós-positivista orientaram-se para a


renovação do escopo teórico do campo naqueles termos, advogando por uma crítica
epistemológica que retomasse as preocupações centradas nas consequências das teorias sobre
o mundo. Segundo a crítica pós-moderna, a razão e a verdade foram hegemonicamente
identificadas com o modus operandi da metodologia naturalista, em que a suposição de uma
realidade apriorística, possibilitaria o desvelamento de ‗verdades científicas‘. No entanto,
para aquela corrente, tal empreendimento universalizante vincula-se ―a um processo de
centralização de perspectivas, implicando necessariamente na marginalização de ‗outras
146

verdades‘. Dessa forma, a consolidação e coerência da ciência são conseguidas pela produção
e reprodução de alteridades oprimidas‖ (COSTA; SELIS; SOARES, 2009, p.212).

Como questionam as teorias feministas108, as teorias tradicionais, das quais desponta o


neorrealismo de Waltz, espelham um viés homocêntrico no qual o feminino é associado às
questões irracionais, privadas e, por isso, são frequentemente marginalizadas dos discursos
das RI. Do mesmo modo, outros temas, como a questão ecológica, os direitos humanos, a
pobreza, e a fome, seriam igualmente inferiorizados e descritos negativamente aos predicados
do mundo político. Ao estabelecer a centralidade da perspectiva materialista, o realismo
estrutural abstraiu de sua agenda o debate sobre as questões que não se esgotam nas
preocupações político-militares suprimindo, outrossim, as vias de ―humanização‖ do Estado,
que pressupõe descrições para além da ―caixa preta‖ realista.

Para tais linhas, a adoção monolítica do discurso cientificista pelo neorrealismo gerou
certas anomalias conceituais, produzidas pela inadequação dos métodos que negam a
intersubjetividade do mundo social. Nesse raciocínio, intelectuais, como Roger Epp (1998),
argumentam sobre a vulnerabilidade da orientação neorrealista em relação aos processos
surgidos com o fim do conflito bipolar, e aos subsequentes desafios interpretativistas
colocados ao positivismo. Simultaneamente, destaca-se a retomada de fôlego das correntes
antes marginalizadas, cujos conceitos têm expandido a disciplina das RI em termos espaciais,
culturais e cronológicos.

Compartilhando percepção igualmente otimista, Richard Falk exemplifica que a


concepção da sociedade de Estados, geralmente vinculada à Escola Inglesa, torna-se
interessante enquanto ferramenta analítica contemporânea por ser capaz de capturar os
paradoxos da vida internacional (BELLAMY, 2005). Ou seja, reconhece o caráter
particularista dos Estados que compõem a realidade global – tendo em vista sua orientação em
prol do autointeresse – sem desconsiderar, entretanto, a possibilidades destes atores criarem e
compartilharem valores e interesses comuns, ressaltando a ação do aprendizado enquanto
elemento interativo dessas unidades109.

108
Cf. TICKNER, J. Ann. You Just Don´t Understand: Troubled Engagements between Feminists and IR
Theorists. International Studies Quarterly, v.41, n.4, p. 611-632, 1997.; _______. What Is Your Research
Program? Some Feminism Answers to International Relations Methodological Questions. International Studies
Quarterly, v.49, p.1-21, 2005. Ou ainda: SYLVESTER, Christine. The Contributions of Feminist Theory to
International Relations. In: SMITH, S.; BOOTH, K.; ZALEWSKI, M. (Orgs). International Theory:
Positivism and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press, p 254-278, 1996.
109
Da mesma forma, Alex Bellamy (2005) considera a concepção de Sociedade Internacional uma contribuição
conceitual importante, por operar simultaneamente com elementos de tensão – cooperação e conflito – do mundo
político, capaz de identificar as fontes de mudanças e as forças causais desta realidade. Em suas palavras: Most
147

A questão da normatividade dos trabalhos da Escola Inglesa110 levanta questões


relacionadas à percepção dos agentes políticos, de seus princípios e circunstâncias, entendidos
como vetores na formação e manutenção da rede internacional. A abertura das mediações para
elementos além do poder material traz para o centro da discussão fatores como o
entendimento e a linguagem, falada ou não. Ou seja, um conjunto de ideias, conceitos e
categorias que são produzidas, reproduzidas, e transformadas em um quadro particular de
práticas por meio das quais se confere significado à realidade social e física (BEREJIKIAN;
DRYZEK, 2000, p. 207).

Nesse sentido, destacam-se as reflexões que leem a sociedade internacional como algo
semelhante a ―experiência dialógica‖ em torno de bases normativas de coexistência. Nessa
linha, Andrew Linklater111, ou os conhecidos construtivistas, Nicholas Onuf e Friedrich
Kratochwill, dentre outros, declaram a importância do interesse prático-hermenêutico na
análise da ordem internacional. Tais autores acentuam o papel da racionalidade normativa que
implica efeito constitutivo sobre as identidades. Ou seja, assumem os agentes enquanto
entidades conectadas ao ambiente social e ao sistema coletivo de significados compartilhados
– sejam esses, normas (expectativa coletiva sobre um comportamento adequado para uma
dada identidade), ou o próprio conhecimento sobre as relações sociais.

significantly, the School's approach combines a concept of international society that captures elements of
conflict and cooperation in world politics and the tension between the pursuit of order and the promotion of
justice with a form of methodological pluralism that promises to generate significant empirical insight on the
subject (BELLAMY, 2005, p. 3).
110
Tais elementos normativos característicos dessa Escola derivam, em grande parte, da obra de Hedley Bull, The
Anarchical Society (2002), na qual o autor expõs sete proposições centrais que, de forma geral, constroem um
guia normativo, voltado à defesa da vida, verdade e propriedade – definidas como os três objetivos elementares e
universais da vida social. Essas premissas são traduzidas na esfera internacional pela limitação da violência entre
Estados, pela observância dos acordos internacionais, e, por fim, pela segurança das propriedades pertencentes à
jurisdição de cada soberania estatal. Dentre os sete pontos, ressalta-se, também, a busca por ordem e justiça,
motivadas pela ação das regras e instituições que compõem a sociedade internacional moderna; concluindo com
a crença progressista na eficácia desta estrutura (SUGANAMI, 2005). Sendo assim, Bull tratou o cenário
internacional sob a perspectiva do sistema de Estados nacionais, porém, diferentemente dos realistas, postulou
que tais unidades, embora soberanas, poderiam submeter suas ações às instituições de regulação comum,
edificando uma comunidade. A estabilidade da ordem adviria, então, dessa base comum relacionada aos
interesses, valores, normas e instituições que compõem a sociedade internacional.
111
Linklater compõe a nova geração da conhecida Escola Inglesa, agora voltada aos desafios apontados pela
configuração contemporânea das relações internacionais. Dentre os nomes ligados à esse novo grupo, temos:
Nicholas Wheeler, Samuel Makinda, Tonny Knudsen, Tim Dunne, Jennifer M. Welsh, Roger Epp, Iver B.
Newmann, Andrew Hurrell e Kai Alderson. Os componentes dessa corrente tendem a aproximar-se do debate
pós-positivista, particularizado pelo comprometimento com a construção de uma agenda ética cosmopolita,
facilitada pelos potenciais normativos dos textos clássicos. Com base nas formulações de Habermas, Linklater
procura resgatar a dimensão ética das questões suscitadas pelas relações internacionais, em específico pela
dualidade cidadão/estrangeiro. Dessa forma, aquele autor questiona as práticas de exclusão providas pela divisão
do mundo em coletividades nacionais, por meio de uma ética do discurso, a qual crê ser capaz de acessar uma
racionalidade prático-moral, responsável pela criação de normas, instituições e ações associadas aos interesses da
humanidade como um todo, e não apenas entre os cidadãos de um mesmo país.
148

Essa perspectiva, direcionada a uma compreensão interpretativa das relações


internacionais, favorece o entendimento da contingência dos processos de tomada de decisão;
das diferentes percepções que os atores podem ter de um mesmo evento, e também da forma
como os valores culturais interferem na prática diplomática e na política internacional
(DUNNE, 1998). Com tal suporte, a ‗razão pura‘ nos termos de Kant, ou a razão instrumental
dos modelos econômicos transformam-se num conceito dialógico, que pressupõe o ator social
enquanto componente de esferas autônomas, e coletivas.

Ademais, a lógica da ação subscrita na perspectiva normativa sugere comportamentos


que, para além da adequação à regra, podem também questioná-la. A contestação da norma
geralmente insere-se nos momentos de escolha entre as regras que são plurais, e, não raro,
conflitantes. Tal situação112 circunscreve as condutas argumentativas, em que os elementos
sociais dispõem-se numa disputa por estabelecer uma tradição ideacional. Entra em cena,
portanto, a racionalidade discursiva. Nesse aspecto, ressalta-se a inserção das proposições de
Habermas nos estudos sobre as dinâmicas interestatais, as quais delinearam uma mudança de
paradigma, expresso na teoria da ação comunicativa.

De posse dessa teleologia dialógica, as análises sob suporte epistemológico


construtivista informam um conceito mais robusto de agência. Nele, encontramos um olhar
mais antropológico orientado aos agentes – compreendidos como entidades motivados por
interesses, valores e representações simbólicas. Traduz-se, dessa forma, a inserção dos fatores
socioculturais, ideacionais e identitários que envolvem e influem as formulações da política
internacional113. Porém, ao contrário dos estudos cognitivos, orientados às bases psicológicas
do ator no nível individual, os construtivistas do campo das RI geralmente apreendem a
questões ideacionais a partir de uma perspectiva mais holista, em que o contexto linguístico e
social compõem a estrutura que participa da modelagem da política internacional. Essa
abordagem faz uso de uma ontologia intermediária, situada entre a postura do individualismo

112
De acordo com Risse (2000) o construtivismo engloba tanto a lógica da adequação, como o que ele chama de
―lógica argumentativa‖. Esta ultima atua nos momentos em que os atores sociais desafiam os critérios de
validação inerentes às afirmações causais (discursos teóricos) ou normativas (discursos práticos) e assim buscam
um consenso comunicativo sobre seus entendimentos das situações e justificativas para seus princípios.
Pressupõe-se, pois, que no ambiente discursivo as preferências e interesses dos atores não são fixas, mas, pelo
contrário, estão sujeitas a contestações.
113
De modo geral, os debates contemporâneos em política externa vêm reconhecendo cada vez mais o impacto
dos fatores ideacionais sobre os conteúdos e rumos dos processos decisórios e seus desdobramentos. Nas
palavras de Hudson (2007), tal iluminação cria um ponto de intersecção entre os determinantes materiais e
ideacionais do comportamento político. Assim, os construtivistas têm sugerido um modelo teórico mais
dinâmico e criativo aos estudos tradicionais das RI, uma vez que põe em cheque a noção de uma realidade
objetiva, chamando atenção para a construção social da mesma.
149

e do estruturalismo e pautada na noção de uma relação de co-constituição entre os agentes


humanos e seu ambiente social – um sistema coletivo de significados compartilhados.

Assim, as vertentes apoiadas na teoria social e na filosofia alemã, em específico nas


produções de Jürgen Habermas, entendem a racionalidade comunicativa, disposta nas
instituições e práticas político-sociais, como ferramenta de contenção, mesmo que parcial, das
distorções das relações guiadas pela dimensão material e atomista da razão instrumental.
Nesse sentido, as ideias e o sistema de crenças são transformadas em práticas por meio do
processo comunicativo, que envolve a persuasão, argumentação e deliberação. Insere-se, pois,
uma terceira lógica de variação comportamental no debate entre o construtivismo social e a
escolha racional. Tal controvérsia, previamente estabelecida pela distinção entre a ―lógica da
consequência‖ (descrita nos discursos da escolha racional) e a ―lógica da adequação‖
(abordada pelo institucionalismo sociológico), adquire outra fonte de explicação, a saber: a
―lógica da argumentação‖ (RISSE, 2000). A essa nova variável caberia função de interpretar o
engajamento dos atores em processos de busca pela verdade com o objetivo de alcançarem
um mútuo entendimento, por meio de consenso comunicativo114.

Dessa forma, seguindo Habermas a subjetividade dos agentes advém de um ambiente


de escolha onde os atores não possuem identidade e preferências pré-determinadas. Assume-
se, por exemplo, que em situações de deliberação os agentes desafiam os critérios de
validação inerentes às suas afirmações causais ou normativas e buscam, por meio da
comunicação coletiva, um entendimento comum acerca das relações de causa e efeito do
mundo e um consenso que dê sustentação aos seus princípios. O aspecto intersubjetivo dessa
relação expõe um tipo de interação na qual os indivíduos se reconhecem e interagem. Assim,
a dimensão egoísta e estática do objetivo estratégico é substituída por uma subjetividade
social, em que os atores iniciam uma negociação, ou tomam uma decisão, dispostos a
construir suas preferências durante o processo interativo. Sugere-se uma subjetividade
articulada a um espaço político que amplia as possibilidades de ação por se vincularem aos
instrumentos de escolha e discussão deliberativa num processo político democrático.

114
Todavia, cabe ressaltarmos a consciência quanto à característica complexa dos fenômenos humanos, que, não
raro, admitem condicionantes múltiplos e distintos para um único objeto. Dessa maneira, como aponta Risse
(2000), as análises devem partir de uma perspectiva dialética do comportamento dos atores internacionais,
alocando-o dentro de um continuum, pelo qual se desenvolvem ações alternadas e mescladas entre os três tipos
ideais (racionalidade instrumental, o raciocínio normativo, ou a lógica comunicativa). Portanto, durante a
atividade analítica, reconhece-se não só a coexistência entre os tipos de racionalidade, mas também seu
atrelamento recíproco que origina um movimento contínuo de construção, em que cada lógica pode assumir
graus distintos de intensidade conforme espaço e tempo. Com isso, o sistema internacional perderia seu aspecto
estático prescrito pelas teorias neorrealistas, passando a assumir vetores de transformação e de intersecção entre
os agentes e a estrutura.
150

Nesse sentido, a inserção dos mecanismos de convencimento nos conduz a um tipo de


relação em que os fatores materiais, como o poder, são preteridos por outras formas de
influência. Tal dedução torna-se importante para a análise de situações em que os Estados
pequenos, ou os atores não estatais, são empoderados de forma a impactar a discussão e
influir na decisão dos demais, sem que haja menção estrita ao seu status militar ou econômico.
Dessa forma, ao contrário do que prescrevem os realistas, no processo interativo os atores sem
potência podem se destacar pelo uso de um modelo alternativo de conduta: a argumentação.

A admissão de uma lógica de ação e interação social distinta do modelo da escolha


racional desfaz a inexorabilidade da caixa-preta estatal, criando outras racionalidades e
objetivos para os atores da arena externa. De acordo com Harald Müller, a concepção
habermasiana de racionalidade, capacita os estudiosos das RI a analisarem fenômenos que as
teorias utilitárias não conseguem explicar, ou que o fazem por suposições ad hoc. Questões
como a formação do conceito de justiça ou de confiança entre os atores, e a própria ideia de
aprendizado mediante negociações, ganham uma perspectiva holista e interpretativa pelo
construtivismo115.

Conclusivamente, a lógica argumentativa revigora a noção de ―sujeitos‖, uma vez que


se destaca a capacidade dos atores sociais em produzir e reproduzir a estrutura intersubjetiva
de significados. Por outro lado, o papel constitutivo das ideias renovaria igualmente os
mecanismos de aprendizado e socialização sociais responsáveis por conectar os níveis de
análise e demonstrar a mútua relação entre agente político e estrutura internacional. Assim,
essa concepção alargada dos sujeitos gera efeito sobre os estudos sistêmicos. Nesse caso, a
proposta construtivista formulada por Alexander Wendt (1999) exemplifica uma vertente que
assumiu proximidade com a construção sistêmica de Waltz, embora trabalhe com um conceito
de estrutura ampliado, contrário à concepção materialista116 e racionalista, que vincula a

115
Segundo Risse (2000), o tipo de agência estudada pelo construtivismo constitui um ferramental útil para as
análises voltadas ao entendimento do espaço público internacional. Nesse último âmbito, a variável
intersubjetiva permite que aprofundemos nosso entendimento sobre como os atores acordam sobre as regras
básicas da negociação, e alcançam níveis ‗ótimos‘ de cooperação. Ademais, a concepção de que ―as ideias
importam‖, pois modelam os interesses dos atores, amplia o quadro analítico da área inserindo o papel dos
agentes transnacionais na proposição de novas questões e novas soluções para a agenda internacional (RISSE,
2000). Na esfera pública, os atores materialmente fracos ganham poder, por ser um âmbito mais aberto, em
termos do acesso ao discurso, além de tender à prevalência dos argumentos morais e legitimados, sobre aqueles
orientados pela lógica privada. Assim, ao analisar os processos de formação de interesses nessa esfera, os
construtivistas inserem não só novos atores, como também novos temas, como a ética internacional, até então
marginalizada pelos estudos tradicionais.
116
Opondo-se ao aspecto estático da "lógica causal" realista, Wendt questionou a validade, e autenticidade do
modelo estrutural materialista, pautado na distribuição das capacidades como fator causal primário, uma vez que
esse seria inconsistente por desconsiderar a noção implícita em si, qual seria: a distribuição de interesses entre os
151

estrutura estritamente às forças materiais e aos efeitos da anarquia. Isso é, porquanto aceite a
condição anárquica do sistema, a capacidade ofensiva dos Estados e sua busca racional pela
sobrevivência, a formulação construtivista de Wendt amplia e redireciona os vetores de
influência da estrutura, devido ao novo aspecto sociológico dos mesmos. Por conseguinte, a
natureza da política internacional é redefinida pela inclusão de novos atributos subjetivos do
Estado, em que os interesses, as identidades e até mesmo o significado do poder (recursos
materiais) seriam constituídos por ideias, resultantes do processo de interação entre aqueles.

Nessa perspectiva, a cultura, o conhecimento e as expectativas compartilhados, são


entendidos como consequências das ações práticas dos agentes, de modo que a lógica causal
do sistema constitui-se dialeticamente. A partir da noção de reciprocidade, Wendt procura
desfazer a visão unidirecional da influência na relação estrutura-agente: o processo de
interação dos atores age sobre a estrutura social, ao mesmo tempo em que esta gera efeitos na
identidade e nos interesses dos primeiros. Assim, o modelo da autoajuda deixa de ser o padrão
comportamental da estrutural, o qual poderá tender ao conflito ou a cooperação, conforme as
variadas formas de internalização das normas por parte dos atores durante o processo
socializante, e ao longo do tempo.

Pela concepção ampliada de estrutura, Wendt buscou manter a proposta sistêmica do


neorrealismo incluindo elementos que solucionassem o impasse da lógica reprodutiva
daquele. Com isso, sua corrente construtivista alargou a "terceira imagem" do estudo
internacional incluindo nela variáveis antes exógenas e funcionalmente inativas, e a
possibilidade de transformação no sistema, reativada pela relação de co-constituição entre
agente e estrutura. Constituindo-se como uma análise explicativa de como estruturas sociais
aparentemente naturais são, na verdade, efeitos da prática, Wendt substitui o determinismo
dos realistas por um relativismo social, pelo qual a dimensão intersubjetiva do conhecimento
(normas, valores, etc) varia seus níveis de constrangimento conforme o grau de internalização
e compartilhamento das ideias.

Nessa linha, outros críticos ao sistema filosófico idealista, ou ao sociológico


positivista, propuseram modelos de construção subjetiva fundamentado no materialismo
histórico-dialético e na ontologia dialógica. Nesse sentido, a autonomia como ―ser para si‖
parte de uma relação de alteridade, constituindo um processo contínuo de criação e
transformação, em que ambos os lados, sociedade e sujeito, refletem um papel constituinte (e

Estados. Nesse sentido, as alterações posicionais do sistema dar-se-iam, apenas, quando também alterados os
interesses dos estados - expansionistas ou mantenedores do status quo.
152

constituível) na formação do pensamento e das práticas. Pressupõe-se, assim, uma concepção


inclusiva de estrutura, por meio da qual seria possível conceituar uma relação sócio-
pedagógica em que os elementos ultrapassam a lógica regulatória. Afinal, por essa perspectiva
as motivações não são dadas a priori, seja pelo indivíduo isolado, ou pela sociedade
reguladora, mas, pelo contrário, constitui uma faculdade individual em síntese com aspectos
‗socializantes‘ e ‗comunicativos‘. Ou seja, por meio dessa concepção, insere-se
conceitualmente a prática com intencionalidade de mudança, em que a construção provida
pela intersubjetividade torna-se práxis emancipadora dos Estados descobertos da caixa preta
dos modelos tradicionais.

Apoiado nessas premissas comunitárias refletidas no conceito de sociedade


internacional, Watson (1992) centrou sua produção intelectual na tentativa de escapar ao
perigo da reificação dos elementos da realidade internacional, ressaltando os riscos de se
interpretar os eventos dessa como se a sociedade internacional fosse seu único elemento ou
mesmo, o dominante. Portanto, tal autor enfatizou a noção de coexistência entre estruturas
políticas diversas – sistema e sociedade internacionais –, destacando a proposta de uma
investigação bem mais complexa e menos simplificadora da esfera social. Para tal, Watson
(1992) alocou a dinâmica internacional dentro de um continuum, pelo qual se desenvolvem as
relações, alternadas entre dois estágios extremos, a saber: as múltiplas independências (ou
pura anarquia), orientado pelo desejo de autonomia das unidades; e, do outro lado, o império
caracterizado pela relação hierárquica. Com isso, criou-se a metáfora do pêndulo, que traduz
o mecanismo por meio do qual se realizam as transformações de sociabilidade internacional,
deslocadas entre as antípodas, porém num movimento tendente aos estágios intermediários
entre a hegemonia e o domínio.

Assim, os estudos desse autor contribuem para o fortalecimento da perspectiva


histórica, uma vez que inserem dinamicidade à arena internacional. Ademais, admitir um
ambiente internacional híbrido, composto por entidades com diferentes tipos de estruturação,
também tem sido um empreendimento relevante das produções do ‗Sul global‘. Afinal, essa
perspectiva favorece os estudos orientados a objetos com tal assimetria, como as análises que
se dedicam aos sistemas coletivos que envolvem os países em desenvolvimento, ou
subdesenvolvidos, sob uma perspectiva diversa daquela da comunidade europeia. Presumem-
se outras estruturas de poder regionais, nas quais diferentes tipos de sociedades, e de atores
internacionais podem existir sob o mesmo sistema internacional.
153

Nesse sentido, inserem-se os pensadores latino-americanos que, segundo Raúl Bernal-


Meza, têm composto uma comunidade epistêmica fundada essencialmente no enfoque
sistêmico e no estudo sobre o ―desenvolvimento‖. Segundo Bernal-Meza, a questão do
desenvolvimento configura o ponto chave ―del pensamiento y la praxis sobre las relaciones
internacionales de América Latina‖ (MEZA, 2005, p.29), particularizando essa região, com
relação a agenda dos países desenvolvidos, geralmente centrada nas questões de conflito e de
segurança. Tal grupo, constituído principalmente por estudiosos do Brasil e da Argentina,
compõe, nas palavras do autor, a ―escola latino-americana‖. Essa aproximação não ambiciona
a sistematização de um corpo conceitual uniforme, dado a multiplicidade de abordagens e
enfoques que representam essa região. Por outro lado, a existência de similaridades
metodológicas, comumente associadas à lógica histórico-estruturalista, seria responsável pela
decantação das correntes latino-americanas num mesmo signo paradigmático.

A ―escola latino-americana‖ representaria, pois, um grupo amplo, cujas contribuições


comungam do método histórico, e também do objeto de estudo, geralmente associado aos
desafios da região nos processos de inserção internacional, projetados na ênfase nas questões
do desenvolvimento econômico, político e social desses países e sua relação com a política
externa dos mesmos. Ademais, essa categorização refere-se, em especial, aos pensadores
latino-americanos que, conquanto se dediquem à questão do subdesenvolvimento, não se
enquadram na linha estruturalista da CEPAL117 – impulsionada Celso Furtado e Raúl Prebisch
– a partir da qual se desenvolveu a conhecida Teoria da Dependência118.

Os autores dependentistas inauguraram as abordagens voltadas para a economia


política, dando origem a uma filosofia, ou teoria da história, que fundamentou as narrativas
vindas da periferia. Por sua vez, os pesquisadores do eixo Brasil-Argentina elucidado por
117
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), é uma das cinco comissões regionais
criadas pelas Nações Unidas (ONU) a fim de monitorar as políticas de desenvolvimento econômico nos países
dessa região.
118
Nessa linha, autores vinculados aos estudos sobre o Desenvolvimento, como Theotônio dos Santos, André
Gunder Frank, Arghiri Emmanuel, Samir Amin, Ruy Mauro Marini, Immanuel Wallerstein, dentre outros,
admitiram o caráter heterogêneo das unidades que compõem o cenário internacional, cuja face política estaria
indissociável das dinâmicas produtivas globais. Logo, essa assertiva propõe que o subdesenvolvimento, ou
melhor, a condição de dependência dos países periféricos seria o produto do desenvolvimento das economias
capitalistas dos Estados centrais, que confere diferentes papéis aos atores dispostos nessas posições. O enfoque
dessas análises recai sobre os mecanismos de exploração dos países pobres, sendo, pois, um recorte
economicista. De fato, essas análises inovam pela perspectiva, embora mantenham a concepção funcional do
Estado, delineada pelo modelo da racionalidade instrumental, cujos limites para a teorização das relações
internacionais abordamos nos tópicos anteriores. Para uma aproximação com o debate, ver: FRANK, A. G. The
Development of Underdevelopment. Monthly Review. v. 18, n.4, p. 17-31, set/1966.; MARINI, R. M.
Dialética da Dependência. Petrópolis: Vozes/ Buenos Aires: Clacso, 2000.; WALLERSTEIN, Immanuel. A
reestruturação capitalista e o sistema-mundo. In: GENTILI, Pablo (Org.), Globalização excludente.
Desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial. 3ª Ed. Petrópolis: Vozes, Buenos Aires:
CLACSO, 2001. p. 223-251.
154

Meza dedicam-se, principalmente, ao estudo da região do Prata, buscando superar as análises


monocausais e reducionistas, além de repensar o dilema do desenvolvimento sob a
perspectiva de um mundo globalizado. Dentre seus expoentes, estão: Mario Rapoport, Raúl
Bernal-Meza, Luciano Tomassini e Aldo Ferrer, orientados ao debate sobre a globalização e
os modelos de desenvolvimento; Amado Luiz Cervo119 e José Paradiso dedicados ao estudo
dos modelos de inserção internacional dos países do sul; e Edmundo A. Heredia que analisa a
América do Sul por uma perspectiva ―geocultural‖, e ―étnico-cultural‖.

De forma geral, esses autores representam a retomada do ―olhar‖ localizado, e do


método histórico, que percebe a complexidade do mundo social, cujos elementos variam ao
longo do tempo, assim como os sistemas políticos que se associam a ela. Com isso, a estrutura
social internacional perde seu aspecto estático, prescrito pela teoria neorrealista, passando a
assumir vetores de transformação120. Nesse sentido, um autor importante, e relacionado ao
resgate do neomarxismo para as RI, seria Robert Cox que, como frequentemente referido
nessa dissertação, oferece suporte à arguição quanto à essencialidade normativa, e histórica
das teorias. Sua elaboração conceitual assenta na historicidade das ordens mundiais, que
conforme se desenvolveram e se transformaram (como a transição da Pax Britannica para a
Pax Americana) destacaram distintas formas de agentes121, os quais, geralmente,
impulsionaram comportamentos diferenciados no cenário internacional.

Ao contrário do caráter mecanicista da estrutura social formulada pelo neorrealismo, a


concepção de Cox pretende-se complexa e abrangente, integrando as dimensões materiais,
ideacionais e institucionais que, combinadas, constrangem as ações dos atores, numa relação
de mútua determinação, variável conforme os períodos históricos. Essa definição apresenta
um dos ecos centrais de Gramsci nas RI; afinal, por meio da concepção gramsciana sobre

119
Ao lado de outros pesquisadores brasileiros, o prof. Dr. Amado Luiz Cervo compõe o grupo de estudiosos das
relações internacionais da Universidade de Brasília, recentemente denominado Escola de Brasília por Bernal-
Meza (2005), e que tem se destacado dentre as fontes intelectuais do país, na área das RI.
120
Como exposto, algumas dessas acepções apontam a possibilidade de uma sociedade internacional com
atrelamento social do tipo Gemeinschaft. Todavia, Little (2005) relembra, pertinentemente, que nesta discussão
não se pode sugerir que há uma tendência evolucionária operando nas relações internacionais, de forma a mover-
nos de um sistema internacional para uma sociedade internacional, ou de uma sociedade internacional
Gesellschaft para uma Gemeinschaft. Tais configurações têm coexistido desde as origens das estruturas
internacionais, e assim o fazem até hoje, constituindo um cenário plural e dinâmico.
121
As unidades de análise referenciadas por Cox configuram complexos contituídos pelo Estado e pela sociedade
civil. Logo, ao passo que o Estado permanece sendo um ator central, ele é entendido no seu sentido ―ampliado‖,
i.e, incluindo sua base social. Retomando os desdobramentos da noção de hegemonia de Gramsci, Cox disserta:
―when the administrative, executive and coercive apparatus of government was in effect constrained by the
hegemony of the leading class of a whole social formations, it became meaningless to limit the definition of the
state to those elements of government. To be meaningful, the notion of the state would also have to include the
underpinnings of the political structure in civil society‖ (COX, 1983, p.164).
155

hegemonia122, Cox resgata o fator normativo da esfera política, destacando-se das vertentes
economicistas do marxismo ortodoxo. A aplicação daquele conceito possibilitou a Cox
ultrapassar a consideração unívoca do poder material, reconhecendo o papel das ideias
compartilhadas intersubjetivamente e das instituições na construção das ordens políticas
mundiais, sem, contudo, recair no idealismo.

Admitir a diversidade de ações entre os atores – os quais, dentre suas funções, são
capazes de estabelecer relações sociais além do fim utilitário, ou seja, baseada numa
consciência de comunidade – desfaz a característica atomista oferecida pelos neorrealistas às
unidades, assim como, contesta-se a estrutura como mecanismo prescritor de ações
conformistas, ampliando-se teoricamente o espaço político, uma vez que a estrutura anárquica
deixa de se associar a uma só forma de sociabilidade possível. Expandem-se, pois, as
proposições acerca de moldes alternativos de organização política, inserindo a variável
normativa do dever-ser.

Ademais, o mundo pós-Guerra Fria também emerge como ambiente profícuo aos
debates que extrapolam o quadro analítico do sistema de Estados – como exemplificam as
reflexões acerca de redes sociais subnacionais, ordens regionais, ou mesmo, movimentos
sociais transnacionais. Logo, outros discursos inserem-se como instrumentos úteis ao
―alargamento‖ ontológico demandado pelos desafios pós-vestfalianos colocados às
perspectivas estadocentradas. Nesse âmbito, fazemos referência especial às autoras
feministas123, e aos pensadores pós-coloniais124.

122
Segundo Cox (1983), o conceito de hegemonia de Gramsci, quando aplicado às RI, não expressaria a
dominação estrita de um Estado sobre outro, ou mesmo uma espécie de eufemismo para o fenômeno do
imperialismo. A hegemonia, naquela perspectiva, descreve uma ordem mundial universal em concepção, ou seja,
não se trata de uma exploração direta entre dois Estados, mas sim de uma ordem na qual a maioria dos atores
(estatais ou não) identifica compatibilidade com seus interesses. De forma geral, Cox explica: ―Hegemony at the
international level is thus not merely an order among states. It is an order within a world economy with a
dominant mode of production which penetrates into all countries and links into other subordinate modes of
production. It is also a complex of international social relationships which connect the social classes of the
different countries. World hegemony is describable as a social structure, an economic structure, and a political
structure; and it cannot be simply one of these things but must be all three. World hegemony, furthermore, is
expressed in universal norms, institutions and mechanisms which lay down general rules of behavior for states
ad for those forces of civil society that act across national boundaries – rules which support the dominant mode
of production‖ (COX, 1983, p.171-172).
123
Para essas correntes, o conhecimento refletiria o interesse de grupos sociais particulares, detentores da
hegemonia ideacional (e, geralmente, material) na sociedade. Por isso, de forma geral tendem a destacar em suas
pesquisas a questão da exclusão e marginalização ontológica e epistemológica realizada pela via intelectual, que,
não raro, serviria à disputa social visto que projetariam as relações de poder endêmicas desse ambiente. Dessa
forma, o processo de legitimação científica da teoria neorrealista é avaliado pela ótica dos interesses que
possibilitaram tal ascensão, ao passo esse processo silenciou a relevância de outros grupos sociais, como o
feminino, e as comunidades descolonizadas.
124
Desde a formulação da teoria da dependência, os estudos pós-coloniais vêm destacando-se como contribuição
central dos pesquisadores de origem distinta do eixo EUA-Europa ocidental. Essa corrente é ampla e
156

Por meio dessas perspectivas destaca-se a relevância do reconhecimento da


diversidade no espaço público internacional125, onde outros movimentos questionam a retórica
hegemônica demonstrando formas de pensar distintas do raciocínio unicamente instrumental,
e contribuindo para retomada da faculdade reflexiva capaz de reelaborar o conteúdo da
estrutura vigente. Como também apontam os críticos ao modelo do ator racional, as vias de
ação prática são plurais, até mesmo nos contextos convencionalmente aludidos pela natureza
competitiva e utilitária:

A racionalidade também é baseada em processos de deliberação e justificação que


são fundados na vida social ordinária, frequentemente articulados com a tradição e
com os contextos normativos dos quais os agentes participam. Isso não quer dizer,
porém, que exista uma ação livre de imperativos estruturais, mas somente que entre
a esfera da agência individual e da estrutura social se interpõe – até mesmo no
ambiente competitivo de compartimentalização da racionalidade – uma abertura
reflexiva que potencializa questionamentos criativos das condições presentes. Na
medida em que o simbólico participa da razão, não se trata de alcançar uma
racionalidade absoluta uma consciência pura ou uma ética do discurso que procura
algum tipo de cooperação universal, mas sim indicar a relação e o movimento
interdependente que a capacidade reflexiva dos homens possui (CARVALHO, 2006,
p. 247).

A dinâmica internacional após a Guerra Fria lança luz sobre a emergência de novos
atores, a diversidade de atuação do próprio Estado, seguidas da ampliação dos espaços de
participação e da agenda política, ambos inseridos num leque complexo de modos de
interação e de instituições nas quais a ação acontece. Porém, o reconhecimento dessas novas
dinâmicas demanda a inovação dos nossos aparatos cognitivos, capazes de reelaborá-las.
Nesse sentido, ressaltam-se as correntes que inovaram a crítica epistêmica ao mainstream das
RI por meio de um olhar voltado à contestação da delimitação instrumental e utilitarista da
ciência, projetada em seus conceitos, como, no caso, sobre a ação política internacional.

diversificada, tendo como ponto de convergência o interesse investido no estudo das fronteiras, que, contudo,
podem ser fronteiras epistêmicas, éticas, nacionais, etc. A contestação daquilo que inclui e exclui conduz essa
vertente à crítica dos discursos tradicionais como formas de privar outros atores de terem narrativas próprias.
Para uma aproximação com esse debate, sugerimos: GROVOGUI, Siba N. Beyond Eurocentrism and
anarchy: memories of international order and institutions.New York: Mcmillan, 2006.; DARBY, Philip (ed).
At the edge of international relations: postcolonialism, gender and dependency. London: Pinter, 1997.;
BLANEY, David; INAYATULLAH, Naeem. International Relations and the Problem of Difference. New
York and London: Routledge, 2004.
125
Sobre esse assunto, Ashley (1986) argumenta que o postulado do estado como ator representa um
comprometimento metafísico do realismo, antes mesmo de constituir um suporte de natureza científica Nessa
perspectiva, a defesa do caráter pragmático da ciência – ―the motivation of the actors is assumed rather than
realistically described‖ (WALTZ, 1979, p.91) – serviria como barreira às críticas quanto à premissa estatista.
Afinal, tal conduta ocultaria o fato de que, ―the historically testable hypothesis that the state-as-actor construct
might be not a first-order given of internacional political life but part of a historical justificatory framework by
which dominant coalitions legitimize and secure consent for their precarious conditions of rule‖ (ASHLEY,
1986, p.270).
157

Por meio dessas abordagens, propomos que a política retomaria o elemento da


imaginação, enquanto faculdade dos atores capazes de formular imagens que reelaborem
criativamente a vida presente, sem que isso represente uma expressão necessária do ―real‖,
sendo, em grande parte, o contrário: uma dimensão do indeterminado e da liberdade. Assim,
antes de decodificar um espaço do combate entre iguais, ou uma pluralidade que procede
previamente de exclusões, o espaço público internacional pressuporia a diferença das visões
teleológicas, assumindo ―a dignidade das alternativas que seguem, as quais não podem ser
definidas a partir de simples dicotomias entre dimensões objetivas e ilusórias, lógicas e
ilógicas, racionais e irracionais‖ (CARVALHO, 2006, p.248).

Nesse quadro, o desafio sugerido às teorias racionalistas expõe-se no reconhecimento


da natureza plural da racionalidade, igualmente associada ―a uma reflexividade aberta à
configuração de novos projetos sociais. Uma forma concreta de discorrer, e não um domínio
transcendente voltado apenas para a manipulação de bens materiais ou dos homens‖
(CARVALHO, 2006, P.248). Nesse sentido, segundo Boaventura de Souza Santos (2002), o
fim dos silêncios que objetivam os sujeitos sociais, individuais ou coletivos, efetiva-se pela
aceitação do multiculturalismo e da diferença, de modo que se engaja na valorização dos
modos de perceber o mundo, e de atuação no mesmo.

Ademais, esse tipo de saber seria também um conhecimento normativo, muito embora
ressalte-se uma normatividade despojada de referenciais associados a universalismos
abstratos. Nessa perspectiva, argumenta-se por uma ―normatividade construída a partir do
chão das lutas sociais, de modo participativo e multicultural‖ (SANTOS, 2002, p.37). Para
aquele sociólogo, a resposta àqueles dilemas se assenta na inserção de uma ‗teoria da
tradução‘ como parte integrante da teoria crítica:

É por via da tradução e do que eu designo por hermenêutica dialópica que uma
necessidade, uma aspiração, uma prática numa dada cultura pode ser tornada
compreensível e inteligível para outra cultura. O conhecimento-emancipação não
aspira a uma grande teoria, aspira sim a uma teoria da tradução que sirva de suporte
epistemológico às práticas emancipatórias, todas elas finitas e incompletas e, por
isso, apenas sustentáveis quando ligadas em rede (SANTOS, 2002, p.31).

Essa proposta compõe um movimento mais amplo das ciências sociais que propõe
repensar o conhecimento sob novas perspectivas. De acordo, cremos que a construção do
pensamento político e social constitui um quadro verbal conjugado no gerúndio, de modo que
a consciência de sua incompletude essencial potencializa a atividade reflexiva como parte
ativa da transformação social, cujos atores permanecem construindo coletivamente sua ideias,
158

perpassadas pelos condicionantes objetivos da história. Por isso, o saber crítico e propositivo
sobre esse conjunto de teorias estabelecidas intersubjetivamente torna-se um dos elementos
centrais da disputa política contemporânea, especialmente para as vozes vindas da ‗margem‘.

Tal reflexão metateórica tem avançado bastante no campo das RI desde o final do
século XX, embora ainda centre-se nas elaborações advindas de pensadores inseridos entre o
eixo norte-americano e europeu. Certamente, esses aportes teóricos acrescentaram
contribuições intelectuais significativas ao debate, como apresentado em nossa arguição, e as
quais devem ser apreciadas, contando com a prudência intelectual nesse exercício de
importação conceitual. Por outro lado, assinalamos nosso entendimento sobre a necessidade
da ampliação das reflexões próprias aos países externos àquele eixo, especialmente no Brasil,
cujas produções permanecem tímidas, e projetadas a poucas áreas do amplo campo de estudo
das RI.

3.5 Conclusão: um balanço teórico sobre o neorrealismo

De modo algum é a dubiedade da antropologia naturalista que torna o positivismo uma filosofia pobre; é antes
a ausência de auto-reflexão, sua incapacidade de compreender suas próprias implicações filosóficas tanto na
ética quanto na epistemologia 126

Como expresso nessa epígrafe, o capítulo apresentado não visa desmerecer a validade
explicativa da teoria neorrealista, mas, sim, contestar suas implicações, e limites filosóficos,
tanto na esfera da ética política, como na epistemologia, que se expressam conceitualmente na
supressão de vias de emancipação social, especialmente para os intérpretes que compõem o
―outro‖ dessa teorização. Por esse motivo, nossa conclusão não se orienta a uma resposta
monolítica sobre a validade, ou não, das produções de Waltz: i.e, não cremos na classificação
do neorrealismo como um aporte que promoveu, em termos absolutos, o progresso ou o
regresso à área de produção de conhecimento das RI. Como apontou Toulmin, ―there is no
way of cutting ourselves free of our conceptual inheritance: all we are required to do is use
our experience critically and discriminatingly, refining and improving our inherited ideas, and
determining more exactly the limits to their scope‖ (1990, p. 179).

Portanto, a opção pelo via média naquela classificação é vista por essa pesquisa como
uma atitude que visa levar o debate por vias mais produtivas. Assim, cremos que um balanço

126
HORKHEIMER, Eclipse da Razão. São Paulo: Centauro Editora, 2000, p. 90.
159

da contribuição de Waltz para o campo de estudo da política internacional deve também


reconhecer sua qualidade enquanto ferramental pertinente às análises orientadas ao seu espaço
e tempo originais. Ou ainda, como explicou Cox, o neorrealismo, por constituir uma teoria de
solução de problemas, compõe um instrumento útil para a explicação dos sistemas estáveis,
como julgou-se ser o sistema internacional durante o conflito bipolar127. Ademais,
acrescentamos a relevância das proposições neorrealistas para o desenvolvimento do debate
contemporâneo, cujas correntes têm sido geralmente impulsionadas em oposição, ou a favor,
daquela teoria. Com isso, não negamos nossa análise sobre os limites do neorrealismo, mas
buscamos a crítica como construção.

Nessa concepção, cremos que uma postura crítica frente às análises conceituais
realizadas nesse capítulo implica, ao menos, três efeitos, a saber: a retomada da ontologia; a
atenção redirecionada à normatividade constitutiva; e, em decorrência, às implicações
políticas do conhecimento (NUNES, 2008). Neste presente saldo, destacamos, pois, as
preocupações analíticas centradas nas possíveis consequências que o conhecimento produz no
mundo, em substituição aos debates exclusivos sobre as questões de validação e produção do
conhecimento. Nessa atitude revela-se a procura pela renovação da relação entre a
epistemologia, a ontologia e a discussão prático-ética.

Assim, a retomada do olhar reflexivo sobre a aplicação das premissas filosóficas


modernas pelo neorrealismo expressa a necessidade de repensarmos o próprio sentido da
ciência que dispomos. Como exposto, os conceitos desdobrados da tentativa de uma
apreensão objetiva do mundo político geraram efeitos que instigam a análise não só sobre a
atividade, e os conceitos elaborados, mas sobre o significado da ciência neorrealista; essa que,
como nos diz Baudelaire, quando tomada pelo império da razão instrumental, pragmática e
funcionalista, corre o rico de desumanizar o pensamento e as práticas correlatas.

Conforme apontaram as reflexões de Horkheimer e Adorno (1985), a partir da segunda


metade do século XX assistimos ao questionamento não só da atividade, mas do sentido da
ciência. Como Weber, tais autores percebem o surgimento da racionalidade científica
moderna, como a supressão da racionalidade objetiva128, sobreposta pela confluência entre

127
Vale ressaltar que, para alguns autores a convenção sobre a estabilidade do período da Guerra fria é
contestável. Para esse debate, ver: BIGO, Didier. Novos olhares sobre os conflitos?. In: SMOUTS, Marie-Claude
(org). As novas relações internacionais. Brasília: Editora Unb, 2004.
128
Esta concepção fundou os sistemas filosóficos tais como de Platão, de Aristóteles, dos escolásticos e do
idealismo alemão, segundo os quais a racionalidade é um princípio inerente da realidade, não focalizados na
―coordenação de comportamentos e objetivos, mas sim nos conceitos tais como a ideia do bem supremo, o
problema do destino humano e o modo de realização dos fins últimos‖ (HORKHEIMER, 2000, p. 15). De
acordo com Horkheimer, essa concepção afirma ―a existência da razão não só como uma força da mente
160

razão formal, instrumental e subjetiva129 (INGRAM, 1987). Desse modo, os discursos há


muito viriam perdendo o contato com as preocupações práticas da vida humana, em favor de
uma construção teórica abstrata e, não raro, descontextualizada.

Nesse sentido, segundo Hegel, os tempos modernos caracterizaram-se pelo princípio


da autorrelação, isso é, da ‗subjetividade‘130. Essa premissa, orientada à liberdade subjetiva
dos indivíduos, agiu também sobre a ciência, que posta ao desencantamento da natureza,
libertou o sujeito cognoscente. Assim, atuando sobre os fundamentos do conhecimento, a
atividade intelectual teria abstraído as faculdades da razão prática e do discernimento moral,
implicando no distanciamento progressivo entre o sujeito conhecedor e o objeto conhecido.
Com isso, ―as múltiplas afinidades entre os entes são recalcadas pela única relação entre o
sujeito doador de sentido e o objeto sem sentido, entre o significado racional e o portador
ocasional do significado‖ (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 25).

Paralelamente, demonstramos como Waltz fundamentou sua atividade cognitiva no


relacionamento entre um sujeito epistêmico isolado e seu objeto, a qual, nos termos
filosóficos de Descartes, justifica-se pela capacidade ―da mente em representar
adequadamente ideias claras com uma referência objetiva‖ (INGRAM, 1987, p.100). No
entanto, essa postura de Waltz não empreende uma autorreflexão sobre ―a relação pragmática
entre autopreservação, conhecimento causal e intervenção instrumental‖ (INGRAM, 1987,
p.100), que, ao fim, se torna a base epistemológica desse estudo.

Dessa forma, no contexto dessas acepções, associamos a tentativa de religar aquela


tríade (epistemologia, ontologia e ética), com o caminho trilhado pelo conhecimento enquanto
exercício engajado no reconhecimento, uma vez que se questionam as teorias pautadas na

individual, mas também do mundo objetivo: nas relações entre os seres humanos e entre classes sociais, nas
instituições sociais, e na natureza e suas manifestações‖, afinal, nessa acepção, ―a estrutura objetiva e não apenas
o homem e seus propósitos, era o que determinava a avaliação dos pensamentos e das ações individuais. Esse
conceito de razão jamais exclui a razão subjetiva, mas simplesmente considerou-a a expressão parcial e limitada
de uma racionalidade universal‖ (HORKHEIMER, 2000, p. 14).
129
Esse tipo de razão foi vinculado por Horkheimer (2000) às faculdades de classificação, inferência e dedução,
ou seja, ao funcionamento abstrato do mecanismo de pensamento. Nesse sentido, a razão seria uma faculdade da
mente individual, em que apenas os sujeitos poderiam verdadeiramente possuí-la. Nas palavras daquele autor
―em última instância, a razão subjetiva se revela como capacidade de calcular probabilidades e desse modo
coordenar os meios corretos com um fim determinado‖ (HORKHEIMER, 2000, p. 15). Lembrando-se que esse
fim é tomado como racional no sentido subjetivo, isso é, de que servem ao interesse do sujeito quanto à auto-
preservação.
130
De acordo com Habermas, a expressão ‗subjetividade‘ expressa na obra de Hegel comporta quatro conotações,
a saber: ―(a) individualismo: no mundo moderno, a singularidade infinitamente particular pode fazer valer suas
pretensões; (b) direito de crítica: o princípio do mundo moderno exige que aquilo que deve ser reconhecido por
todos se mostre a cada um como algo legítimo; (c) autonomia da ação: é próprio dos tempos modernos que
queiramos responder pelo que fazemos; (d) por fim, a própria filosofia idealista: Hegel considera como obra dos
tempos modernos que a filosofia apreenda a ideia que se sabe de si mesma‖ (HABERMAS, 2000, p. 25-26).
161

caracterização do Outro como objeto, visando à transposição desse da condição objetivada,


para a posição de sujeito. Portanto, nesse capítulo investigamos a adoção da racionalidade
técnica na produção científica, uma vez que tal comprometimento de Waltz projeta-se sobre a
construção dos microfundamentos do neorrealismo, vinculados ao modelo da escolha
racional131, e responsáveis por esse Outro silênciado.

Como resultado, avaliamos a noção de estrutura internacional apresentada pelo


neorrealismo, focando-nos na teorização relativa aos sujeitos políticos e direcionada à
prescrição de práticas conservadoras. Embora Waltz argumente contra a centralidade das
questões relacionadas ao nível das unidades para sua proposta, contestamos tal afirmação
dado a imprescindibilidade que essa esfera representa para a sustentação da revisão estrutural
que ele realiza. Nesse sentido, e visto que geralmente irrefletidas, majoramos a relevância dos
estudos que se atentam à definição subjetiva dos atores políticos (no caso, os Estados), uma
vez que ela incide diretamente sobre a representação que os agentes fazem de si, influindo no
horizonte de possibilidades relacionado à prática política, definida intersubjetivamente.

Como questionou Toynbee, ―no mundo da ação, sabemos como é desastroso tratar
animais ou seres humanos como se eles fossem paus e pedras. Por que devíamos supor que
esse tratamento fosse menos equivocado no mundo das ideias? (TOYNBEE, 1947, apud
HORKHEIMER, 2000, p. 30). Nessa frase, o autor contesta as consequências do movimento
de instrumentalização da linguagem, geralmente desdobrado numa conceituação equivocada
sobre o mundo social. Paralelamente, questionamos tal movimento no campo das RI,
concluindo a tendência da teoria neorrealista à formalização das forças políticas, que
estabelecem objetivos e fins, embora percam a capacidade intelectiva autorizada a avaliá-los e
a ligá-los a uma realidade histórica e social. Ou seja, refletimos sobre a abstração crítica e
moral dos agentes, decorrente de um tipo de racionalidade técnica aplicada aos Estados, que
se mostra problemática dado os riscos da normatização burocrática da ordem política
internacional.

Sobre essas questões, destacamos as limitações práticas de uma teoria que prescreve
uma conduta, por parte dos Estados materialmente fracos, incapaz de contestar da ordem, e de
elaborar, coletivamente, novas vias de atuação. Assim, sob o quadro fixo de escolhas
comportamentais da anarquia, os Estados são despojados do julgamento de suas ações, e da

131
Esse aporte teórico, segundo W. Carlsnaes, ―is essentially a meta-theoretical standpoint in the study of social
phenomena, and hence is foundational to political analysis rather than being a specific analytical or ‗theoretical‘
approach within IR‖ (2001, p. 339).
162

elaboração de uma agenda cuja pauta insira questões desvinculadas de um interesse


estritamente utilitário e particular.

Nessa linha, pergunta-se: como, em um cenário em que a fome, a pobreza, as ameaças


ao meio ambiente e os desafios da saúde ascendem de forma preocupante, a agenda política
internacional pode permanecer centrada em questões como o terrorismo internacional, ou
ameaças nucleares? Entendemos que a delimitação da discussão internacional nas pautas
políticas das superpotências reflete o silêncio contido nas teorias tradicionais sobre os atores
da margem, sejam eles Estados, ou não, cujos problemas permanecem, então,
impronunciáveis pela ciência racionalista, e pela ontologia neorrealista.

Nesse sentido, se analisado internamente, isso é, em relação à tradição que lhe


precede, e à qual se propõe seguimento, o neorrealismo representou a pretensão de
racionalização da PI. Porém, nesse processo, a autonomia do estudo deu lugar à certa
dominação intelectual, vinculada à fixação da imaginação política dentre as fronteiras dos
aportes interpretáveis de sua ontologia. Por isso, e com o suporte das análises do segundo
capítulo, sustentamos a revisão crítica desses aportes como parte de um movimento de
emancipação política, visto que também intelectual e cultural. A via cognitiva, quando
investida desse propósito, pode servir às falas suprimidas, sem que isso represente uma
alegação à desorganização lógico-argumentativa.

Sobre isso, finalizamos com a relevância das reflexões assinaladas na seção 3.4 desse
capítulo, as quais se dispõem a pensar a PI de formas diversas, reinserindo a valor da razão
prática como integrante da atividade intelectual, capaz de suscitar novas e variadas maneiras
de relacionamento objetivo com as relações internacionais. Com isso, emergem novas
abordagens teóricas, que ampliam a memória literária das sociedades, renovando o ―horizonte
de expectativas‖ dos atores, e, logo, as interpretações, e ações, desses sobre o mundo
internacional. Mundo esse que, cada vez mais, torna-se, também, um ambiente das relações
intersociais, interculturais, intereconômicas, dente outras vozes que, entre palavras e anti-
falas, fazem-se audíveis.
163

CONCLUSÃO FINAL

O estudo elaborado nessas páginas parte da periferia, embora ainda utilize a linguagem
do centro, como não deixaria de ser – e daí sua dificuldade – a ruptura que precisa emergir de
dentro. Afinal, presumimos nossa imersão na hegemonia cultural e intelectual dos atores do
núcleo político e econômico do globo, embora caracterizemo-nos distintamente daqueles. Por
conseguinte, estaríamos também imersos na ontologia daquela tradição, que situa suas
instituições ―como entes interpretáveis, como ideias conhecidas, como mediações ou
possibilidades internas ao horizonte da compreensão do ser‖ (DUSSEL, 1977, p.9).
Ontologicamente, isso significa que certos atores seriam sutilmente ocultados, como, no caso
dos complexos estatais da margem, que aparecem no neorrealismo como objetos epistêmicos,
mas estão omitidos enquanto sujeitos empíricos potencialmente distintos.

Seria, pois, a partir desse processo de centralização de perspectivas, que as teorias


tradicionais, como o neorrealismo, constituem a periferia, a qual precisa, então, pensar a si
mesma perante essa ―exterioridade‖, e encontrar um futuro de libertação, que os coloque em
movimento. Logo, propomos nessa dissertação uma análise aos ―silenciados‖, mas que
também é dirigida aos pensamentos hegemônicos, como proposta de um diálogo crítico que
precisa ser total, embora dispense a uniformidade. Ou seja, procuramos empreender uma
reflexão crítica que não visa ser uma exposição completa, ou universal, mas antes uma
expressão particular de rompimento com uma das formas de condicionamento, associados à
linguagem e à história, por meio da qual os atores das relações internacionais se veem, e, não
raro, quando interiorizadas, se autoemudecem. Partimos, então, da necessidade anterior de se
repensar a metafísica teórica que justifica o conservadorismo prático-político dos atores
subvertidos, mas que podem anelar outras vias de ação; isso é, contestou-se a introjeção
irrefletida da concepção neorrealista, que pode desdobrar-se em uma autocompreensão
limitada sobre a liberdade prática na conduta dos sujeitos políticos.

Assim, justificamos o estudo realizado nos três capítulos pela noção de que, ao
analisar nossos fundamentos impensados, colocamos tal senso comum em movimento,
abrindo novos horizontes antes ocultos pela delimitação do dito absoluto ou intransponível.
Dessa forma, essa dissertação comprometeu-se, mesmo que de modo incipiente, com um
processo de rompimento com os relativos abstratos, naturalizados e universalizados, e por isso
procurou inserir-se na prática pedagógica que visa romper com a legalidade transcendental do
164

racionalismo, reconhecendo que o sujeito do pensar, ou sujeito cognoscente, não é absoluto,


mas sim um ser finito, articulado a um núcleo histórico, social, e cultural, com práticas
fundantes.

Assim, deste estudo crítico sobre a natureza absoluta do conhecimento, decorreu a


noção de que toda teoria possui um fim prático, também denominado de ―interesse‖. De
acordo com Habermas, essa percepção, fundada nos interesses que orientam a produção de
conhecimento, poderia ser analiticamente concebida em três categorias132, as quais,
brevemente, seriam: 1) interesse prático-cognitivo; 2) interesse técnico-cognitivo; e, 3)
interesse cognitivo emancipatório. Como foi assinalado durante essa dissertação, o realismo
estrutural conservou-se próximo à tradição científica americana, cujos estudos sociais
direcionaram-se por aquela segunda tipologia dos interesses constitutivos da formulação
teórica. Nesse sentido, ―all realists are technical realists, at least in part, but it is in the so-
called "modern realism" of Kenneth Waltz that technical realism finds its starkest approval‖
(ASHLEY, 1981, p.215).

O interesse técnico orientou a produção de Waltz à descoberta de particularidades


causais dantes desconhecidas, a fim de melhor prover a sociedade com instrumentos de
controle frente aos desafios políticos. Logo, antes de focar-se em reflexões interpretativas
(hermenêuticas), o neorrealismo privilegiou a promoção de respostas explanatórias que
fossem úteis às demandas cognitivas do período, sintomáticas da premissa filosófica
instrumental acerca da função, e do valor, da ciência:

Technical realism is oriented by a technical cognitive interest. It sees the aim of


knowledge as the development of information – regarding universal laws and their
operation – that can expand powers of technical control over an objectified
environment. Its approach to inquiry and grounding is reminiscent of positivisitic
reconstructions of natural science (ASHLEY, 1981, p.210)

132
Seguindo a lógica habermasiana, Ashley resume: ―1) The practical cognitive interest: This is an interest in
knowledge as a basis for furthering mutual, intersubjective understanding. It guides knowledge toward the
development of "interpretations that make possible the orientations of action within common traditions."
The practical cognitive interest is the knowledge constitutive interest of the historical and cultural sciences. 2)
The technical cognitive interest: This is an interest in knowledge as a basis for extending control over
objects in the subject's environment (possibly including strategic dominance over other human beings). It
guides knowledge to obtain "information that expands powers of technical control." The technical cognitive
interest is the knowledge-constitutive interest of the empirical analytic sciences. 3) The emancipatory
cognitive interest: This is an interest in securing freedom from "hypostatized forces" and conditions of distorted
communication (e.g., ideology). It is rooted in the human capacities for the communicative exercise of
reflective reason in light of needs, knowledge, and rules; it guides knowledge to achieve human autonomy
and self-understanding by bringing to consciousness previously unapprehended determinants of the human
species' "self-formative process." The emancipatory interest is the knowledge-guiding interest of all critically
oriented sciences‖ (1981, p. 298).
165

Portanto, dentre os legados da normatividade moderna, destacamos a confiança do


neorrealismo na possibilidade de dominar os fenômenos sociais, à qual geralmente se
relaciona a crença em uma ciência que supusesse os pensamentos como esferas autônomas
frente aos objetos. Desse modo, o primeiro capítulo interpreta o compromisso explanatório de
Waltz como parte do propósito geral relacionado ao controle dos fenômenos internacionais
pela via intelectual, uma vez que conhecer suas causas permitiria apreender os meios de
governá-los, indo além da mera previsão, conferida pela observação empírica (WALTZ,
1979). Nesses termos, a teoria neorrealista guiou-se pelo interesse investido na previsão,
prescrição e controle das ações futuras, dispensando a função de mecanismo crítico de
transformação social.

Por aquele raciocínio, a liberdade dos indivíduos é compreendida como consequência


da aniquilação do desconhecido, alcançada pela identificação da ‗realidade repetida‘, que abre
o caminho para se escapar dos desígnios contingentes da vida humana. E assim, por meio da
aplicação da racionalidade instrumental como lógica científica, os analistas criam trabalhar no
domínio do que ―é‖ e não na esfera normativa do que ―deveria ser‖, sendo aquele um
princípio metodológico que dispensaria justificativa, e dotaria a ciência de objetividade
(ASHLEY, 1986).

Com isso, as deduções e hipóteses que fundamentam a explicação estrutural do


neorrealista (princípios da semelhança entre os estados, todos, soberanos e orientados à
sobrevivência; da condição anárquica do sistema internacional; e da distribuição de
capacidades, implicada na tendência geral do equilíbrio de poder) seriam úteis, na medida em
que decodificariam a lei probabilística dos fenômenos internacionais, oferecendo aos agentes
a liberdade advinda da possibilidade de compreender tal cenário, dotado com graus de
imutabilidade. Entretanto, tais acepções da epistemologia racionalista sobre a neutralidade do
fenômeno da subjetividade humana, e sobre o tratamento objetivo dos fatos para a construção
cognitiva, são problematizadas, visto que tal conduta, não raro, constitui uma certa
ingenuidade metafísica e gnosiológica da teoria.

Do ponto de vista da orientação técnico-cognitiva, a confiança na neutralidade e


objetividade dos conceitos demonstrou-se viável a Waltz, na medida em que os fundamentos
intersubjetivos que subscrevem sua construção teórica permanecem como alvos
inquestionáveis133. Todavia, a desautorização interpretativa e crítica dos processos

133
―The subjective process of theory construction, rendered mysterious, is bracketed and set beyond the scope of
rational inquiry and criticism. There is no allowance for questioning the background intersubjective
166

intersubjetivos não os tornam ausentes dos textos neorrealistas, como expresso no segundo
capítulo dessa dissertação. Por outro lado, a negação desses apontamentos por parte da
metodologia aplicada pelo neorrealismo permitiu que Waltz se postulasse cartesianamente
enquanto sujeito cognoscente capaz de apreender os ‗fatos‘ de forma neutra. E, assim, tudo
que lhe escapasse como valores ou percepções foi reduzido a relações reificadas134, no sentido
epistemológico. Segundo os teóricos críticos, esse tipo de conduta ―determina o trajeto da
desmitologização e do esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim como o
mito identifica o inanimado ao animado‖ (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.29). Tornadas
objetos, as relações humanas são preteridas dos predicados subjetivos podendo então ser
depuradas num conhecimento sintetizador, capaz de delinear uma direção na relação de
causalidade.

Embora tal conduta projete vantagens analíticas em determinados estudos, a lógica


epistemológica pautada na dicotomia entre o sujeito conhecedor e o objeto estudado, quando
aplicada ao domínio da política internacional, gera efeitos deletérios associados a um duplo
automatismo discutido no último capítulo desse trabalho. Tal consequência dual consiste na
mecanização tanto do mundo social (objetivado), como do sujeito cognoscente, que se veria
debruçado sobre uma estrutura social fixa na qual não pode exercer influência, a não ser
torná-la inteligível. A delimitação do objeto enquanto repetição, ou postulados de leis
generalizantes, reforçaria, pois, a teoria como instrumento conservador do status quo, e a
criação de conceitos que descreve o agente social como entidade conformista. Isso porque a
tendência em identificar graus de imutabilidade nas sequências causais apreendidas pela teoria
pressupõe uma naturalidade na ordem posta, que então dispõe o neorrealismo a prover a
adaptação de seus objetos ao que a teoria entende por realidade. Em decorrência, por essa
perspectiva, a noção inicial de liberdade e controle mostra-se deturpada, de modo que ―os
meios teóricos de transcender a realidade se tornam um disparate metafísico‖, e a realidade é
destituída de ―todo caráter objetivo que pudesse, pela lógica interna, dar razão a uma
realidade melhor‖ (HORKHEIMER, 2000, p. 88).

understandings that permit the theorist to arrive at just this "brilliant intuition," the background language of
experience through which his "creative idea" is communicable to others, or the background intersubjective
understandings that permit the theorist and others to agree on the facts in need of explaining. Nor is there
allowance for questioning the dependence of these background under – standings on evolving historical
conditions that might be beyond the frame of consciousness‖ (ASHLEY, 1981, p. 216-217).
134
Nesse sentido, a reificação refere-se à transformação das propriedades, relações ou ações humanas em
‗coisas‘, cujo caráter social aparece como uma característica objetiva conduzida conforme as leis do mundo
natural.
167

Sobre esse ponto, o trabalho investigou o conceito de política associado ao


desenvolvimento técnico do conhecimento. Avaliou-se, pois, os limites daquela acepção
confinada em condutas individualistas pré-estabelecidas, e, portanto, despojada dos
mecanismos que promovessem a participação coletiva. Propomos que, embora sob os intuitos
objetivos do interesse técnico, o conhecimento neorrealista absorveu um valor normativo
desdobrado das escolhas metódicas, o qual prescreve o exercício da política internacional
como sendo uma atividade despojada da liberdade na escolha comportamental, e nesse
sentido, sem fins contestatórios sobre a ordem vigente. Por isso, a agenda política do espaço
internacional torna-se, outrossim, restrita à ontologia realista, incapaz de comprometer-se com
temas sob uma perspectiva pós-nacional, como os direitos humanos, a ecologia, ou aqueles
externos às preocupações de uma superpotência, como: a pobreza, a fome, a exploração
econômica, dentre outros.

Nesse sentido, acrescentou-se a noção de que ―um discurso metódico, teórico,


científico pode ser ideológico, não por seu intrínseco desenvolvimento, mas por sua
pretensão, por seu ponto de partida, por seu projeto, pelo fato de servir de mediação a um
contexto que o explica e que marca seu sentido‖ (DUSSEL, 1977, p.170-171). Dessa forma,
esse trabalho compreendeu a assimilação do modelo estruturalista por Waltz como produto de
sua tentativa de alcançar ‗o terceiro mundo do conhecimento objetivo‘, nos termos de Popper,
compatível ao marco dos valores científicos da sociedade americana catalisados
especialmente por meio da linguagem econômica e tecnocrata prevalente nas instituições
políticas e sociais do país durante a Guerra Fria. Dessa forma, embora situado no âmbito
metodológico, o princípio da racionalidade instrumental partiu de uma acepção particular de
ciência, e desenvolveu uma perspectiva específica de organização social.

Muitos autores do campo (Walker, 1987; Cox, 1981; Ashley, 1986; Ruggie, 1986)
expressam essa postura, discutindo as aderências estruturalistas na área das RI, especialmente
durante a década de 1980, quando o ―giro estruturalista‖ teria demarcado grande parte das
teorias americanas, tanto daquela área, como do campo da política comparada, como
exemplificam os expoentes, ―Kenneth Waltz, Robert Keohane, Stephen Krasner, Robert
Gilpin, Robert Tucker, George Modelski, e Charles Kindleberger‖ (Ashley, 1986, p. 256-
257). Para aqueles autores, o intuito de Waltz em produzir inferências lógicas generalizantes o
conduziu a uma apreensão parcial da ordem internacional, pela qual se desconsiderou os
elementos que confeririam o vetor de contingência à estrutura, ou seja, aqueles responsáveis
pela reconstrução permanente das projeções do real.
168

Entrementes, despontam os comentários acerca das implicações ontológicas advindas


da qualidade a-histórica do conceito sobre a ‗estrutura política internacional‘ neorrealista, o
qual é descontextualizado em favor da elaboração de causas e efeitos gerais e de prescrições
teóricas. Daí, a relevância do estudo sobre as condições originárias do realismo estrutural, por
meio do qual contestamos o caráter transcendental de seus postulados, acentuando sua
qualidade histórica, e atendo-se a sua normatividade constitutiva, relacionada ao vocabulário
das instituições modernas, incrementadas pela emergência das economias de mercado, e pela
política externa na Guerra Fria. Logo, pôde-se avaliar no terceiro capítulo o possível vínculo
entre o modelo de racionalidade instrumental e um projeto de transformação comportamental
que implicou consequências para o entendimento da esfera social e política.

Após desenvolver a hipótese inicial dessa dissertação sobre as particularidades da


imaginação política exposta no neorrealismo, a qual torna-se diminuta, ou empobrecida, pelas
concepções científicas do autor, concluimos com a necessidade de repensarmos o sentido da
formalização da razão científica, a fim de avaliarmos o distanciamento que tal conduta criou
entre o neorrealismo e a particularidade ético-política da pesquisa social. Em outras palavras,
somos chamados a refletir sobre o papel do conhecimento acumulado no enriquecimento ou
no empobrecimento prático das nossas vidas (SANTOS, 2002, p. 60). Ou seja, questionarmos
o sentido das teorias decorrentes do modelo científico tradicional (o positivismo), e suas
implicações para os estudos, e para as práticas das relações internacionais.

Por isso, nosso argumento sintetiza-se na noção de que a reformulação do imaginário


político neorrealista em acepções capazes de prover mecanismos de emancipação (e ação)
social aos atores constitui um processo indissociável da leitura crítica daqueles aportes
científicos, seguida da proposição de metodologias mais compatíveis com o campo das
humanidades135. Ou seja, as respostas aos dilemas identificados na teoria neorrealista, passam
pela revisão de métodos passíveis de retomar o vínculo entre preocupações prático-éticas,

135
As dificuldades do enquadramento objetivo pelas pesquisas humanísticas derivam de seu objeto de estudo
particular, qual seja, o homem. O fator da intencionalidade, adicionado à conectividade entre as múltiplas
variáveis através do tempo, conferem ao mundo social o vetor de contingência, expresso na reconstrução
permanente das projeções do real. Sendo assim, os fenômenos do mundo social possuiriam um aspecto temporal
determinado e singular, o que dificultaria a elaboração de leis gerais e de vaticínios teóricos. Ainda sobre a
multicausalidade dos fenômenos, acresce-se a dificuldade que esta traz para a fragmentação dos mesmos em
variáveis independentes e dependentes ou, ao menos, ao estabelecimento de uma única direção na relação de
causalidade. Outro aspecto inerente desse tipo particular de estudo, seria a negação da prioridade ontológica
atribuída ao objeto. Ou seja, observador e observado estão conectados e, muitas vezes, exercem efeito
constitutivo um sobre o outro. Nesse sentido, a concepção de um conhecimento axiologicamente neutro é
questionada pela compreensão de que as dimensões subjetivas do pesquisador, inequivocamente, influenciam
tanto as interpretações que este fará de seu objeto, quanto as suas escolhas metódicas para o desenvolvimento da
pesquisa. Sendo assim, a consciência dessas particularidades, auxiliaria na tentativa de se evitar as trilhas da
reificação, e dos objetos abstratos, sem, contudo, desconsiderar a organização lógica do argumento.
169

ontológicas e epistemológicas, como se apresentam as correntes do debate pós-positivista,


ascendentes no campo das RI a partir da década de 1990.

Presumimos que tais opções metódicas renovam os objetos teorizados por meio da
retomada conceitual das esferas dialógicas próprias da relação heterônoma, mas não
estritamente dominadora, das entidades humanas. Afinal, a relação entre as esferas individuais
e coletivas disponibiliza a diversidade e mutabilidade à estrutura social, e a liberdade aos
sujeitos, desligados das formulações teóricas sobre subjetividades conservadoras da ordem.
Ademais, nessas acepções os atores retomam sua esfera moral, ou seja, a possibilidade de
julgamento implicado em escolhas, antes supérflua pela condição de um ser isolado. Entre os
extremos da lei da causalidade, ou da lei da razão absoluta, está a noção do ser como entidade
simultaneamente afetada pelas esferas sensíveis e inteligíveis, sendo essa natureza dual a
condição necessária para se falar em liberdade, num sentido ampliado (e não restrito a
arbitrariedade), visto que associado à heteronomia que inclui a alteridade (e a
responsabilidade) na fonte da moralidade.

Ademais, essa dissertação sugere a relevância dessa reflexão por parte dos agentes,
cujas forças criativas foram minimizadas idealmente pela concepção neorrealista. Isso é, pelos
atores que compõem os Estados da margem do sistema, ou por aqueles sem identificação
estatal. Como anunciado na Introdução desse trabalho, o reconhecimento intelectual das
subjetividades políticas como essencialmente móveis, criadoras, e produtoras de diversidade
revela-se especialmente importante pelo papel que a teoria desempenha na orientação da vida
social e política, sob a qual influi e é influenciada. Nesse contexto, a o reconhecimento do
Outro enquanto sujeito ativo funcionaria como mecanismo de combate contra a descrição
teórica redutora, que promove estratégias de exclusão e uniformidade.

Nesse sentido, percebemos a esfera de estudo sobre as RI como um espaço


potencialmente aberto – visto que relativamente jovem – para os empreendimentos de ruptura
com percepções excludentes e totalizantes. Por isso, as discussões travadas nessas páginas
visaram acompanhar a demanda pelo redirecionamento dos debates intelectuais reorientados
para uma discussão acerca da aplicabilidade das interpretações de um mundo que, antes de
possibilitar uma compreensão total, é balizado por assimetrias culturais, econômicas, políticas
e sociais que conferem um rol de experiências, vinculadas a visões plurais que expandem os
horizontes da área.

As tonalidades sócio-culturais do processo de escolhas epistemológica e ontológica,


que sustentam o neorrealismo, iluminam as possibilidades de novas formulações cujas
170

perspectivas podem ser reconhecidas, sem recaírem no descrédito da avaliação universalista.


Com o aprofundamento dos debates sobre metodologia nas ciências sociais a noção cartesiana
de que há um sistema de compreensão teórico capaz de oferecer certeza e coerência
inteligíveis universalmente, demonstra-se cada vez mais ilusória para aquele campo. Presume-
se que, conforme os processos culturais, e os diferentes estágios históricos em que as
sociedades se encontram, existam diferentes formas de se perceber, interpretar e compor as
relações sociais, ou mesmo, temporais e espaciais.

Tal afirmação parece se intensificar no contexto atual, em que a ordem social


apresenta-se cada vez mais global, interdependente, multicultural, e com movimentos
dinâmicos de transformação histórica. Logo, antes de preservar a estabilidade e a
uniformidade das ciências, advoga-se pela proteção da diversidade e da adaptabilidade do
conhecimento (TOULMIN, 1990). Afinal, a manutenção daqueles primeiros valores não se
efetivaria sem o risco de se reproduzir ideias (e instituições) incapazes de acompanhar as
demandas continuamente criadas pelas novas situações, ou mesmo de centralizar ―verdades‖,
em detrimentos de outras.

De acordo com o historiador Reinhart Koselleck, o cenário intelectual contemporâneo


à Guerra Fria apoiou-se na pretensão de uma consciência filosófica que englobasse toda a
humanidade, projetando, por conseguinte, o anseio por um modelo político compartilhado em
iguais dimensões (PEREIRA, 2004). Tal ambição, legada pela filosofia moderna, representou,
por outro lado, a própria negação, ou o encobrimento, do político. Por isso, segundo aquele
autor, o estudo do século XX implica o reexame crítico do pensamento iluminista. Ademais,
Kosellek acreditava que a investigação sobre os textos legados pelo passado deve ultrapassar
o âmbito intelectual, engajando-se na pesquisa de suas influências ontológicas, i.e, sobre o
mundo, sendo este mundo o horizonte, em que os atores buscam orientação para suas
condutas (PEREIRA, 2004).

Essa afirmação não visa desmerecer os avanços vinculados ao legado de pesadores


como Descartes e Newton, os quais são inquestionáveis; por outro lado, chama-se a atenção
para a urgência por pesquisas que se apresentem sensíveis à ação prática da teoria,
constituindo uma consciência a ser somada (e não substituída) à primeira herança. O processo
de ―humanização‖ das RI, demanda, pois, outras vias que complementem o racionalismo,
alterando seu formalismo absoluto. Nesse sentido, ascendem os princípios fundados na
horizontalidade e na tolerância, como vias intelectuais de reconhecimento dos ―outros‖
enquanto sujeitos.
171

Nesse cenário, assistiríamos ao retorno da ontologia que ascende como produto da


crítica à centralidade epistêmica, e vem preencher uma prevalência secular da epistemologia
como único critério de adequação intelectual. Assim, já no campo das ciências naturais,
biológicas e dos avanços tecnológicos, presenciamos a redução do espaço que separa os
aspectos técnicos das questões éticas, de modo que o conhecimento torna-se alvo de
contestação, conforme seu impacto na vida prática (TOULMIN, 1990). Com isso, lança-se luz
sobre a normatividade das teorias no campo das ciências sociais, visto que se reconhece, no
impacto político desses aportes sobre o mundo, um componente elementar do exercício
cognitivo.

Dessa forma, vemos a reinserção de assuntos práticos, locais, e transitórios, na agenda


de pesquisa das RI, cujo critério de avaliação aos poucos abandona os supostos graus de
abstração e universalidade dos objetos. Com isso, retoma-se o oral, o particular e o local,
projetados em metodologias preocupadas com a interpretação dos contextos retóricos da fala e
do pensamento, com os aspectos culturais e idiossincráticos dos objetos, ou mesmo com a
particularidade da opção ética dos estudos sociais. Ou seja, inicia-se um movimento
centrípeto das demais disciplinas como história, antropologia, e suas linhas metódicas, como a
hermenêutica, que passam a influenciar mais intensamente os estudos das RI, afinal, ―the
intellectual tasks for a science in which all the branches are accepted as equally serious call
for more subdisciplinary, transdiciplinary, and multidisciplinary reasoning‖ (TOULMIN,
1990, p.193).

Ademais, esse movimento acelera a abertura do campo para grupos que não possuíam
canais de expressão nos mecanismos formais da ciência. Desde Hobbes, as produções que
versam sobre teoria política ‗falaram‘ nos termos dos sistemas nacionais, e, com isso,

Our reflections on the order of society, as well as nature, are still dominated by the
Newtonian image of massive power, exerted by sovereign agency through the
operation of central force, and have lost our feeling for all the respects in which
social and political achievements depend on influence, more than on force. For the
moment, the varied political relations and interactions between transnational,
subnational and multinational entities, and the functions they can effectively serve,
still remain to be analyzed, by an ‗ecology of institutions‖ that has, as yet, scarcely
come into existence (TOULMIN, 1990, p. 208-209).

Os desafios impostos pela ordem atual nos levam a repensar a política para além dos
modelos desenvolvidos pelas correntes tradicionais, em que a capacidade material e o
raciocínio utilitário constituíam as forças motivacionais do sistema. No contexto
contemporâneo, as comunidades locais, ou os movimentos sociais transnacionais auxiliam na
172

transformação do imaginário político internacional136. Assim, reconhece-se as transformações


que ressaltam distintos atores, os quais participam ou estão diretamente envolvidos na
formulação das políticas na esfera pública internacional. A ação da sociedade civil, dos
movimentos sociais transnacionais e, até mesmo, de alguns organismos (para)governamentais
alteram em parte a natureza dos processos causais do sistema de Estados. Racionalidades
vistas como improváveis ao dito instinto hobessiano dos Estados nacionais, ou ao utilitarismo
dos mercados, tornam-se aplicáveis às dinâmicas dos atores sociais; e questões
desterritorializadas, de base cultural, ou interesses de escopo planetário, ganham força. Dessa
forma, abre-se espaço para preocupações relacionadas ao bem-estar do indivíduo, sua relação
com o meio-ambiente e com as demais coletividades.

Essas transformações retornam para o campo do conhecimento que passa a repensar a


dinâmica internacional, admitindo configurações que alteram os modelos de sociabilidade e
de espacialidade tradicionais do sistema. Com isso, é preciso que haja estruturas teóricas
capazes de absorver cognitivamente a ação renovada dos Estados, que em conjunto com os
demais atores sociais de alcance transnacional, cria novos territórios de ação política e
coletiva, e um novo imaginário social. Essas inovações perceptivas e cognitivas possibilitam,
pois, reconstruções espaciais (ligando esferas locais, regionais e globais), sociais
(―desterritorilizando‖ os direitos, que passam a incluir o conjunto da humanidade) e políticas
(criando novas estratégias de ação e luta). No âmbito internacional, tais ressignificações são
importantes uma vez que inserem novos temas de debate e ação prática, e alteram as relações
causais entre as esferas (sistêmicas e internas), além de proporem um guia alternativo aos
cálculos utilitários ou realistas, dos quais se destacam ações políticas coordenadas
preocupadas com a transparência e a opinião pública, constituindo fontes criativas
permanentes de novos problemas, novas soluções e novos projetos políticos. Ou seja, criam
brechas de atuação e emancipação dos agentes, sob uma atividade política ampliada.

136
Sobre isso,Toulmin disserta: ―When antinuclear demonstrators march with candles through the streets of
Leipzing, when prisoners of conscience bring General Pinochet's tortures into public scorn, when women's
organizations speak for their fellow-women in fundamentalist states, they question the nightmare side of the
modern inheritance, and challenge the moral authority of absolute, centralized nation-states. In this resistance,
the candles, voices, and other tools of powerless may seem of little help. Even the intellectual model of ecology,
with its decentralized concern for each distinct habitat, gives us little foundation for building institutions that are
more just. But, in the long run, we have seen power and force run up against their limits. In the third phase of
Modernity, the name of the game will be influence, not force‖ (TOULMIN, 1990, p.208).
173

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

As referências foram dipostas de modo que, primeiramente, seguem as publicações de


Kenneth Waltz, e, posteriormente, as demais fontes bibliográficas consultadas.

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