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Castro Alves visto por Pedro Calmon

Edivaldo Boaventura

Castro Alves ocupa um espaço de quase quarenta anos, na obra de Pedro Calmon.
Certamente é a descrição da vida e obra do poeta que lhe tomou mais tempo, indo de 1935,
com Vida e Amores de Castro Alves, a 1973, quando deu à estampa Castro Alves, o homem
e a obra. Com a biografia do poeta, houve, entretanto, um fato singular na produção
intelectual do historiador que não sucedeu com as demais vidas biografadas - Calmon a
escreveu ou reescreveu várias vezes.
O interesse pela vida e obra do autor de Espumas flutuantes não se limitou ao
estabelecimento de sua biografia. Foi muito mais adiante. Ao poeta Castro Alves, ele se
ligava também pela participação nos festejos comemorativos. Presenciou a inauguração da
estátua, na Praça Castro Alves, em Salvador, no centenário da Independência do Brasil na
Bahia, em 1923, com o governador J.J. Seabra a declamar “Ode ao Dois de Julho”. No
centenário de nascimento, tomou parte ativa, sendo o orador, pela Bahia, na sessão magna
de 14 de março de 1947. Igualmente, foi presença no centenário de morte, em 6 de julho
de1971. E sugeriu a construção do parque Histórico Castro Alves, falando na sua
inauguração, na manhã luminosa de 8 de março de1971.
Houve, assim, uma contribuição altamente significativa, plena de erudição, por tudo
que dizia respeito ao autor de “O Navio negreiro”. Mas, de todo esse universo tocado por
Pedro Calmon, vamos nos deter, tão somente, em alguns aspectos de sua participação no
desenvolvimento biográfico do poeta. Isso é, as fontes, as etapas e as avaliações no
processo biográfico a que chegou Pedro Calmon e que constituem a proposição deste
trabalho.

O marco inicial: Vida e amores de Castro Alves

Vida e amores de Castro Alves foi editado em1935. Além da explicação inicial,
estrutura-se em 23 capítulos. Acompanhando as normas da biografia como obra de arte,
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como sugere Maurois, Calmon observou na ordem cronológica, um dos postulados da


biografia moderna.
Enumera Xavier Marques, Afrânio Peixoto, Constâncio Alves, Isaías Alves, acerca
das poesias juvenis, Sílvio Romero, Múcio Teixeira et alii. Quanto às fontes secundárias, as
mais referenciadas foram Xavier Marques e Abílio César Borges, serve-se de Raul Pompéia
como fonte literária. Como Alfredo de Carvalho continua sendo o melhor informante do
poeta Castro Alves, no período recifense. Não somente Calmon, anteriormente, Múcio
Teixeira e Xavier Marques receberam ajuda de Adelaide, irmã predileta do poeta.
No comentário ao seu primeiro livro sobre Castro Alves, o próprio autor determina-
lhe o escopo: “Fizemos a biografia do cantor dos escravos, numa tentativa de explicar-lhe a
ação social, no meio histórico e no pequeno mundo em que viveu”. Vida e amores foi
apenas o começo. Calmon usou e aproveitou como fonte primordial o depoimento. Tem
outras notas, mas ainda faltam certos detalhes biográficos com os quais irá completar as
obras seguintes. Com referência às irmãs Amzalack, por exemplo, cita duas, Ester e Simy,
quando na realidade foram três, Ester, Simy eMary. Elas se ligam à inspiração de
“Hebréia”, canto de um poeta romântico cristão, voltado constantemente para o
conhecimento bíblico, para o povo judeu e para Deus.
Por fim, de Vida e amores, com o mesmo formato e ano, há uma segunda edição,
apenas com maior número de páginas e mais um capítulo intitulado “O tamarineiro”.
Transposto o marco inicial, vamos alcançar a segunda etapa desse processo,
assinalada com a biografia do centenário de nascimento, em 1947.

A biografia do centenário de nascimento:


História de Castro Alves

A História de Castro Alves traz o selo da José Olympio, na coleção “O romance da


vida”, de biógrafos e memoralistas do mundo, publicada em 1947. É bem mais ilustrada do
que a edição anterior.
A História é uma obra que atende às exigências da documentação. Privilegiando as
fontes primárias escritas, estabelece um mais apurado arranjo cronológico. A partir desta
obra, Calmon superou o ensaio biográfico que tinha escrito sobre o poeta. E o conseguiu
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pela riqueza do material coletado, desdobrado em notas explicativas, e pela apresentação de


novos episódios. Para tanto, muito concorreram as investigações de Anfrísia Santiago,
educadora e pesquisadora baiana, em arquivos, cartórios e jornais de Salvador.
Comparando as fontes, Anfrísia está para a História, documentalmente falando, como
Adelaide de Castro Alves Guimarães para a Vida e amores, no plano das informações orais.
Exemplifica muito bem a cena do falecimento do seu irmão poeta. O relato da intimidade
dramática da sua passagem para a região do silêncio deve-se à irmã predileta de Cecéu.
Pesquisas outras nos arquivos das faculdades de Direito do Recife e de São Paulo
muito esclarecem a estada do poeta nessas duas capitais, ambas importantíssimas para a sua
formação intelectual e sentimental, bem assim, para a divulgação de sua poesia e do seu
sucesso. Em Pernambuco, as buscas de Francisco Cacheté, na Biblioteca Pública, no
Recife, são constantemente referidas por Calmon.
As pesquisas documentais foram fundamentais para determinar bens, heranças e
casamentos concernentes aos antepassados próximos, especialmente o avô “Periquitão”, o
major Silva Castro. Como apoio literário, o poema “Paraguaçu”, de Santos Titara, serviu
para o melhor conhecimento desse fantástico herói do Dois de Julho. O próprio inventário
de Silva Castro, localizado por Anfrísia Santiago, dimensionou a fortuna e explicou a
origem da fazenda Cabaceiras do Paraguaçu, local de nascimento de Castro Alves. Mais
informações sobre o local de nascimento estão no “Diário” de Antônio José Alves, pai do
poeta, publicado por Mercedes Dantas. Constituiu-se em outra fonte importante pela
exatidão das notas quanto a dia, local e hora de nascimento de Castro Alves. A propósito do
berço natal, Calmon aponta, pelo menos, cinco descrições da sede da fazenda, a saber, de
Pedreira Franco, Augusto Guimarães, Xavier Marques, Afrânio Peixoto e Anfilófio de
Castro. Cabaceiras toma nesta edição o lugar devido em repercussão e recordações nas
poesias identificadas pelo biógrafo. Um documento importante encontrado por Calmon foi
a tese de doutorado de Antônio José Alves, Considerações sobre os enterramentos por
abuso praticados nas igrejas e recintos das cidades (Bahia,1841). Documento não utilizado
por qualquer estudo anterior acerca da vida do poeta.
Um outro ponto esclarecido por Calmon refere-se à autoria da poesia de Castro Alves
saudando o seu antigo professor, dom Antônio de Macêdo Costa, de passagem para
assumir a diocese do Pará, a bordo do navio “Ceres”. Para Xavier Marques, a poesia era
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da lavra do irmão, José Antônio de Castro Alves, em nove décimas, publicada no “Diário da
Bahia”, mas com assinatura de Antônio Carvalhal. Pois bem, essas estrofes que Castro
Alves dedicou ao mestre de Macedo Costa, como também “Ao dia Dois de Julho”,
respectivamente, de 1861 e 1863.
Naquela edição, Calmon iniciou os paralelos entre Castro Alves e Camões. Do
mesmo modo, entre Castro Alves e Fagundes Varela, demonstrando, principalmente, a
semelhança de títulos de poesias como “Vozes da América” e “Vozes d’África”.
Ultrapassando o segundo marco, chegamos ao terceiro e último estágio desse
processo biográfico, com o livro Castro Alves: o homem e a obra.

Última edição: Castro Alves, o homem e a obra


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Castro Alves: o homem e a obra, editado também pela José Olympio, em 1973,
integra a coleção “Documentos Brasileiros”, volume número 158. Não somente é a última,
como é também a maior de todas, com 353 páginas, 40 capítulos, apêndices, inúmeras
ilustrações e um extra-texto, em caderno especial.
Nessa última edição, camadas justapostas e acumuladas de dados se integram. De
1935 a 1973, Calmon foi revisando e corrigindo, melhorando e pesquisando, acrescentando
e suprimindo cada vez mais dados e episódios sobre a vida de Cecéu, contínua preocupação
de sua vida intelectual.
Quando saiu essa última biografia, confessou que preferia escrever um novo trabalho
a tirar uma nova edição. Exclamou, no pórtico do livro: “Este é um livro novo”.
Se nas anteriores o estilo inconfundível manifesta-se como expressão literária
legítima, nessa última atinge o ponto máximo da informação e da expressão. Soube
combinar, concertadamente, os requisitos da moderna biografia, na busca verídica do
personagem biografado, com as evidências empíricas da investigação histórica. Vida e obra
combinam-se. Nem a vida romanesca encobre a obra, nem a obra, épica e lírica, engole a
vida.
Por tudo isso, nunca é demais repetir com Maourois: “Publicar uma biografia,
anunciá-la como biografia, não como um romance, é anunciar fatos verídicos e um biógrafo
deve ao seu leitor a verdade antes de tudo”. Foi o que realizou Pedro Calmon. A edição de
1973 é mais rica em notas do que as anteriores. Dentre outros aspectos, examina
detidamente, sob o prima genealógico, a ancestralidade ilustre e a descendência colateral
superveniente. Os parentes conservam não somente a tradição, mas também informações. E
por falar em parentes, amplia a epopéia do “Fabuloso Periquitão”. Perquire o mistério dos
olhos negros de origem zíngara. Conjetura a inspiração de “O navio negreiro”. O possível
antecedente basco Chinfrin, que depois mudou de nome para Águia. Pedro Calmon desce
fundo na poesia de Castro Alves para a exegese dos episódios de sua acidentada existência.
Calmon alcança com esta terceira e última etapa a biografia mais documentada e mais
completa que há do poeta até o presente. É obra de leitura, para os que conhecem a vida e
obra de Castro Alves. Para os demais, pela riqueza de dados, constitui-se em obra de
consulta .
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Pelas suas edições sobre Castro Alves, Calmon acompanhava e marcava a vida do
poeta projetada na glória. Com o esforço pessoal, balizava com seus livros as datas
significativas de Castro Alves.

Além das três etapas

Afora esses três marcos assinalados e comentados, existem, pelo menos, duas outras
obras que dizem respeito a Castro Alves: A bala de ouro e Para conhecer melhor Castro
Alves. Essa última apresenta as cronologias que contextualizam, didaticamente, a biografia.
Mas não obedecem a linha de pesquisa para o estabelecimento do processo biográfico do
poeta. Escreveu ainda prefácios e apresentações, como aquele para o livro de Waldemar de
Oliveira, e inúmeros artigos.
Tirante tudo o mais que Pedro escreveu, somente a sua contribuição à construção da
biografia de Cecéu consagraria o escritor. É que Pedro Calmon trabalhava todos os dias,
como se cada um fosse o último, conforme o depoimento de Pedro Calmon Filho.
Parafraseando Mourois, finalizemos: “O biógrafo [como Pedro Calmon] que sabe
fazer passar pelo relato dos fatos a idéia poética do destino, aquela da fuga do tempo e da
humanidade da condição humana, nos traz uma secreta doçura”.

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