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Revista Brasileira de Ensino de Fı́sica, v. 26, n. 3, p.

283 - 286, (2004)


www.sbfisica.org.br

Notas e Discussões

Forças de vı́nculo no caso holônomo


(Forces of constraint in the holonomic case)

Nivaldo A. Lemos1
Departamento de Fı́sica Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
Recebido em 20/02/04; Aceito em 25/06/04

É possı́vel, por meios simples e diretos, encontrar as forças de vı́nculo para sistemas holônomos empregando
as equações de Lagrange mas sem o uso da técnica dos multiplicadores de Lagrange. O método é descrito em
sua generalidade e sua eficácia é demonstrada com a ajuda de alguns exemplos tı́picos.
Palavras-chave: dinâmica lagrangiana, forças de vı́nculo.

It is possible, by simple and direct means, to find the forces of constraint for holonomic systems employing
Lagrange’s equations but without the use of the Lagrange multiplier technique. The method is described in its
generality, and its effectiveness is demonstrated with the help of a few typical examples.
Keywords: Lagrangian dynamics, forces of constraint.

1. Introdução A dedução das equações de Lagrange para sis-


temas holônomos contendo N partı́culas começa de-
compondo a força sobre a i-ésima partı́cula como
Os textos clássicos de mecânica analı́tica mostram (a)
como o método dos multiplicadores de Lagrange incor- Fi = F i + fi , (1)
pora uma extensa classe de vı́nculos não-holônomos (a)
onde Fi é a força aplicada e fi é a força de vı́nculo.
ao escopo do formalismo lagrangiano, ressaltam que De modo geral, as forças aplicadas é que devem ser
as forças de vı́nculo emergem automaticamente como consideradas as verdadeiras causas do movimento, as
um valioso subproduto da técnica e costumam notar, forças de vı́nculo servindo meramente para assegurar a
em seguida, que o método também funciona quando preservação das restrições geométricas ou cinemáticas
os vı́nculos são holônomos [1]. Às vezes, o método no decurso do tempo. A hipótese − verdadeira na
é introduzido primordialmente para lidar com vı́nculos quase totalidade das situações de interesse fı́sico − de
holônomos, e somente mais tarde assinala-se que ele que o trabalho virtual total das forças de vı́nculo é zero
também abrange certos vı́nculos não-holônomos [2]. conduz ao princı́pio de d’Alembert
Qualquer que seja o caminho seguido, permanece o X (a)
fato de que, usualmente, os exemplos escolhidos para (ṗi − Fi ) · δri = 0 , (2)
ilustrar o método são sistemas sujeitos a vı́nculos i
holônomos [1,2]. Isto deixa o estudante com a falsa no qual as forças de vı́nculo não mais aparecem (os δr i
impressão de que, na dinâmica lagrangiana, um apelo são deslocamentos virtuais).
a multiplicadores de Lagrange é inescapável caso se Quando os vı́nculos são holônomos, existem coor-
esteja interessado em obter as forças de vı́nculo. O denadas generalizadas q1 , . . . , qn tais que
propósito desta nota é chamar a atenção para o fato de
ri = ri (q1 , . . . , qn , t) , i = 1, . . . , N , (3)
que, no caso holônomo, as forças de vı́nculo podem ser
obtidas de forma simples e direta sem recorrer a multi- e as equações de vı́nculo são identicamente satisfeitas.
plicadores de espécie alguma. Se as forças aplicadas são dedutı́veis de um potencial
1
Enviar correspondência para Nivaldo A. Lemos. E-mail: nivaldo@if.uff.br.

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escalar V (r1 , . . . , rN , t), isto é, coordenada generalizada. A lagrangiana torna-se


 ∂V ∂V ∂V 
(a)
Fi = −∇i V = − î + ĵ + k̂ , (4)
∂xi ∂yi ∂zi

argumentos bem conhecidos [1] levam do princı́pio de


d’Alembert às equações de Lagrange

d  ∂L  ∂L
− =0 , k = 1, . . . , n . (5)
dt ∂ q̇k ∂qk

A lagrangiana é dada por L = T − V , onde T é a


energia cinética total do sistema. As forças de vı́nculo
não aparecem nas equações de Lagrange porque o po-
tencial V refere-se apenas às forças aplicadas, e esta é
uma das grandes virtudes do formalismo lagrangiano.
Caso estejamos interessados nas forças de vı́nculo,
devemos retornar à formulação newtoniana. Intro-
duzindo a decomposição (1) nas equações de movi-
mento de Newton
Figura 1 - Máquina de Atwood.
mi r̈i = Fi , i = 1, . . . , N , (6)

obtém-se m1 + m 2 2
L= ẋ1 + (m1 − m2 )gx1 + m2 g` , (11)
2
(a)
fi = mi r̈i − Fi . (7)
da qual resulta a única equação de Lagrange:
De acordo com esta equação, as forças de vı́nculo d  ∂L  ∂L
podem ser determinadas adotando o seguinte proced- − = 0 =⇒ (m1 + m2 )ẍ1 =
dt ∂ ẋ1 ∂x1
imento simples: (i) calcule a aceleração r̈i tomando
(m1 − m2 )g . (12)
a segunda derivada de (3); (ii) elimine as aceleraç ões
generalizadas q̈k por meio das equações de Lagrange A fim de encontrar a tensão no fio, executemos
(a)
(5); (iii) calcule Fi por meio de (4); (iv) insira os as duas primeiras instruç ões de nossa receita. A
resultados dos passos anteriores em (7) para obter as aceleração da primeira massa é
forças de vı́nculo.
Exemplo 1. Como primeiro e venerável exemplo, m1 − m 2
r̈1 = ẍ1 î = g î , (13)
consideremos a máquina de Atwood, que consiste em m1 + m 2
duas massas unidas por um fio leve e inextensı́vel pas- onde a equação de Lagrange (12) foi usada (î é o vetor
sando por uma polia de massa desprezı́vel (ver Fig. 1). unitário apontando verticalmente para baixo). Como
Escolhendo um eixo vertical x orientado para baixo, a (a)
terceiro passo, escrevemos F1 = −∇1 V = m1 g î,
energia cinética é que é o peso da primeira massa. Finalmente, intro-
m1 2 m2 2 duzindo esses resultados em (7) encontramos o resul-
T = ẋ + ẋ , (8)
2 1 2 2 tado bem conhecido
e o potencial das forças aplicadas é 2m1 m2
f1 = m1 r̈1 − m1 g î = − g î , (14)
m1 + m 2
V = −m1 gx1 − m2 gx2 . (9)
o sinal negativo indicando que a tensão no fio aponta
O vı́nculo holônomo verticalmente para cima.
x1 + x 2 = ` , (10) Exemplo 2. Uma conta desliza sem atrito ao longo
de uma fio rı́gido que gira uniformemente num plano
onde ` é uma constante, nos permite tomar x 1 como no espaço vazio (ou num plano horizontal próximo à
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superfı́cie da Terra). Se r é a distância da conta ao compõe-se da energia cinética do centro de massa e da


eixo de rotação, as coordenadas cartesianas da conta energia de rotação em torno do centro de massa, isto é,
no plano do movimento são dadas por
m 2 1
T = (ṙ + r 2 θ̇ 2 ) + I φ̇2 , (21)
x = r cos ωt , y = r sen ωt , (15) 2 2
onde ω é a velocidade angular constante de rotação. onde I = ma2 /2 é o momento de inércia do cilindro
Não há forças aplicadas, de modo que a lagrangiana é em torno do seu eixo de simetria. A energia potencial
é V = mgy = mgr cos θ, de modo que a lagrangiana
m 2 m escreve-se
L=T = (ẋ + ẏ 2 ) = (ṙ 2 + ω 2 r 2 ) , (16)
2 2
e a única equação de Lagrange é m 2 ma2 2
L= (ṙ + r 2 θ̇ 2 ) + φ̇ − mgr cos θ . (22)
2 4
d  ∂L  ∂L
− = 0 =⇒ r̈ = ω 2 r . (17)
dt ∂ ṙ ∂r
As componentes cartesianas da aceleração da conta
são
d2
ẍ = (r cos ωt)
dt2
= r̈ cos ωt − 2ω ṙ sen ωt − ω 2 r cos ωt
= −2ω ṙ sen ωt , (18)

d2
ÿ = (r sen ωt)
dt2
= r̈ sen ωt + 2ω ṙ cos ωt − ω 2 r sen ωt
= 2ω ṙ cos ωt , (19) Figura 2 - Cilindro rolando sem deslizar sobre cilindro fixo.

tendo sido usada a Eq. (17). Como não há forças apli- Neste problema há dois vı́nculos holônomos, a
cadas, a Eq. (7) fornece saber:

f = mr̈ = −2mω ṙ sen ωt î + 2mω ṙ cos ωt ĵ = r θ̇ = aφ̇


−2mω ṙ êθ , (20) (vı́nculo de rolar sem deslizar) ; (23)

onde êθ = − sen ωt î + cos ωt ĵ é o vetor unitário


r =a+b (vı́nculo de contato) . (24)
perpendicular ao fio, pois θ = ωt. A força de
vı́nculo é perpendicular ao fio, resultado esperado dada O vı́nculo de rolar sem deslizar exprime a exi-
a ausência de atrito de deslizamento. gência de que o centro de massa do cilindro mova-se
Exemplo 3. Como terceiro e último exemplo, com velocidade vθ = r θ̇ igual àquela gerada por sua
consideremos um cilindro de raio a que rola sem rotação com velocidade angular φ̇ em torno do eixo
deslizar sobre um cilindro fixo de raio b, problema instantâneo de rotação, que passa pelo ponto de con-
que encontra-se resolvido detalhadamente em [2] pelo tato entre os cilindros. Substituindo (23) e (24) em (22)
método dos multiplicadores de Lagrange. Sejam x, y resulta a lagrangiana reduzida
coordenadas cartesianas com origem no centro do
cilindro fixo: o eixo x é horizontal e o eixo y é verti- 3m
L= (a + b)2 θ̇ 2 − mg(a + b) cos θ , (25)
cal orientado para cima. Seja φ o ângulo de rotação do 4
cilindro móvel em torno do seu eixo de simetria. É con-
veniente introduzir coordenadas polares r e θ do cen- da qual decorre a equação de Lagrange
tro do cilindro móvel, com θ contado a partir do eixo 3m
y (vide Fig. 2). A energia cinética do cilindro móvel (a + b)2 θ̈ − mg(a + b) sen θ = 0 . (26)
2
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As componentes cartesianas da aceleração do cen- Em particular, a força de reação normal do cilindro


tro de massa do cilindro são fixo sobre o cilindro móvel é a componente radial de f ,
isto é,
d2
ẍ = [(a + b) sen θ]
dt2 fr = f · êr = f · ( sen θ î + cos θ ĵ) =
= (a + b)θ̈ cos θ − (a + b)θ̇ 2 sen θ
mg cos θ − m(a + b)θ̇ 2 . (30)
2g
= sen θ cos θ − (a + b)θ̇ 2 sen θ , (27)
3 Comparado com o tratamento tradicional deste
problema pela técnica dos multiplicadores de Lagrange
[2], o presente método revela-se mais conciso e direto.
d2 Outra vantagem geral do método é que o vetor
ÿ = [(a + b) cos θ]
dt2 força de vı́nculo sobre cada partı́cula é obtido dire-
= −(a + b)θ̈ sen θ − (a + b)θ̇ 2 cos θ tamente, sem passar primeiro pelas determinação de
2g suas componentes generalizadas em termos dos mul-
= − sen2 θ − (a + b)θ̇ 2 cos θ , (28)
3 tiplicadores de Lagrange. O método é limitado, con-
onde a Eq. (26) foi usada. tudo, pois só é aplicável quando todos os vı́nculos são
A força aplicada é F(a) = −mg ĵ, de modo que a holônomos.
força de vı́nculo sobre o cilindro móvel é

 
Referências
2mg
f = mr̈−F(a) = 2
sen θ cos θ−m(a+b)θ̇ sen θ î− [1] H. Goldstein, Classical Mechanics (Addison-Wesley,
3 Reading, MA, 1980), 2a edição.

  [2] A.L. Fetter e J.D. Walecka, Theoretical Mechanics


2mg 2 2 of Particles and Continua (McGraw-Hill, New York,
sen θ + m(a + b)θ̇ cos θ − mg ĵ . (29) 1980).
3

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