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Parecer Técnico ao Projeto de Decreto Legislativo do Senado Federal n.

539/2012

O Projeto de Decreto Legislativo 539/2012 tem como objeto a convocação de


Plebiscito, de âmbito nacional, para consulta dos eleitores no primeiro turno das
eleições de 2014, sobre a alteração da maioridade penal. Eis aredação do decreto:

Art. 1º É convocado, nos termos do art. 49, XV, da Constituição


Federal e da Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1998, plebiscito, de
âmbito nacional, para consultar os eleitores sobre a alteração da
maioridade penal de dezoito para dezesseis anos.

Art. 2º O plebiscito de que trata este Decreto Legislativo realizarse-á


juntamente com o primeiro turno das eleições de 2014, para deliberar
sobre a seguinte questão: “Você é a favor da alteração da maioridade
penal de dezoito para dezesseis anos?”. Parágrafo único. Fica sustada a
tramitação das proposições legislativas cuja matéria constitua objeto desta
consulta popular, até que o resultado das urnas seja proclamado, na
forma do art. 9º da Lei nº 9.709, de 1998.

Art. 3º O Presidente da Mesa do Congresso Nacional dará ciência da


aprovação deste ato convocatório ao Tribunal Superior Eleitoral, para os
efeitos previstos no art. 8º da Lei nº 9.709, de 1998.

1
Art. 4º Este Decreto Legislativo entra em vigor na data de sua
publicação.

I - Histórico das Propostas de Redução da Maioridade Penal

Desde o século XIX, a questão da criminalidade infanto juvenil no Brasil perpassou


uma série de discursos e práticas no saber jurídico, nas práticas institucionais (tanto
em termos assistenciais e pedagógicos, como numa perspectiva punitiva e
reformadora) voltadas aos adolescentes autores de atos infracionais na tentativa de
solucionar a questão da criminalidade das crianças e adolescentes ou de outro modo,
a questão do “menor”.

De um modo geral, as diferentes formas de organização do sistema da justiça


criminal (Roda dos Expostos, Código Criminal do Império, o Código Penal de
1890, o Código de Menores de 1927, a FUNABEM e as FEBEM´s) basearam-se na
construção de um aparato médico-jurídico-assistencial, que se dividiu em prevenção
(vigiar a criança), recuperação (reabilitar a criança e o adolescente criminoso),
educação (disciplinar a criança ao trabalho) e na repressão (conter crianças e
adolescentes delinqüentes) (SPOSATO, 2001)1. Vale observar a ementa das
principais leis: o Código de Menores de 1927 previa a proteção e assistência; o Código
de Menores de 1979 previa, além da proteção e assistência, a vigilância.
Esta preocupação com a criminalidade infanto-juvenil (que se manifesta de tempos
em tempos no discurso favorável a diminuição da maioridade penal) vem
funcionando durante este tempo, mais como um instrumento de marginalização da
população pobre do que uma ampliação e um reconhecimento dos direitos civis dos
jovens (Alvarez, 1997).

É, portanto, na tentativa de romper com as antigas concepções higienistas,


assistencialistas e repressoras que predominaram no tratamento à infância e

1 SPOSATO, K. B. Pedagogia do medo: adolescentes em conflito com a lei e as propostas de


redução da idade penal. Cadernos Adenauer, Rio de Janeiro, v .6, p.31-49, 2001.

2
juventude no Brasil, que o Estatuto da Criança e do Adolescente é promulgado em
1990 (lei 8.069). O ECA colocou a questão da infância e juventude no centro do
ordenamento jurídico brasileiro, em consonância com os movimentos internacionais
de direitos e proteção da criança e do adolescente colocando-os agora, como
sujeitos de direitos.

Mesmo com esses avanços o ECA é constantemente criticado por diferentes setores
da sociedade (meios de comunicação, deputados, organizações civis) por não
possuir medidas “punitivas”, mas “somente” as chamadas sócio educativas. Estes
setores reclamam que o ECA mantém impunes os adolescentes autores de atos
infracionais, motivo pelo qual se faria necessária a redução da idade penal para
conter supostas “ondas” de criminalidade em cuja atual configuração de violência
urbana seriam os jovens seus principais atores e responsáveis. Assim, crianças e
adolescentes brasileiros são vistos historicamente como objeto de intervenção das
instâncias de correção e das chamadas instituições de ortopedia social (ADORNO,
2002).

Nesse sentido, emergem as diferentesPropostas de Emenda à Constituição Federal


ou Projetos de Decretos Legislativos que tramitamna Câmara dos Deputados e no
Senado Federal desde 19932. Esses projetos propõem reduzir a imputabilidade penal
dos atuais dezoito para dezesseis anos de idade, ou, em alguns casos, até quatorze ou
doze anos, modificando assim a redação do artigo 228 da Constituição Federal.

Conforme expomos a seguir, o PDS n° 539 de 2012 é inconstitucional. Tal proposta


não pode ser objeto de deliberação, visto que: i) a afirmação da idade penal faz parte
dos direitose garantias constitucionais fundamentais de natureza individual,
portanto, irrevogáveis; ii) o Brasil ésignatário dos tratados internacionais - a exemplo
da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU de 1989 – que confirmam os
18 anos como marco de idade penal; iii) as taxas de incidência infracional estão
caindo desde o início do século XX, iv) a ‘irresponsabilidade penal da criança e do
adolescente’ é um mito.
2 PEC 171/1993 Deputado Benedito Domingos.
3
I – A maioridade penal é Cláusula Pétrea.

A redução da idade penal é imbuída de uma questão constitucional fundamental: ela


é cláusula pétrea, sendo parte dos direitos e garantias fundamentais individuais de
nossa Constituição Federal de 1988. É o que consta do art. 60, §4º, da Carta Maior:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:


§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.

Ora, se consta da Carta Magna que as garantias constitucionais individuais não


podem ser revogadas senão por meio de nova Constituinte Originária; e se os
direitos e garantias individuais estão espalhados ao longo da Constituição Federal, a
exemplo do constante de seu art. 228 (idade penal aos 18 anos de idade); concluí-se
que esse marco etário poderá ser alterado somente a partir da vigência de nova
Constituição Federal, não vindo um plebiscito ou uma emenda constitucional a ter
força suficiente para sua revogação.
Em outra medida, cabe dizer que a Constituição de 1988 inseriu a resposta do
Estado frente atos infracionais cometidos por adolescentes no sistema de
garantiasconstitucionais e penais. Isto, no plano jurídico, define que:

1) Como crianças e adolescentes gozam de todos os direitos


fundamentais atribuídos a quaisquer cidadãos (art. 5°, CF, e art. 3º,
ECA), além dos direitos especiais constantes do Estatuto da Criança e
do Adolescente, que ainda reserva ao Estado a única opção de
promoção de atos discriminatórios positivos, sendo-lhe vedado

4
executar ações que tenham a finalidade protetiva, que ampliem os
direitos das crianças e adolescentes (art. 5º, ECA)
2) reconhece que a resposta do Estado contra o adolescente comporta
privação de liberdade (art. 227, § 3°, V, CF): na democracias não há
prisão sem o devido processo legal e o sistema constitucional de garantias (art.
5º, incisos XXXVII a LXVIII, CF). AConstituição Federal, ainda,
guarda norma expressa sobre a reserva da prisão como conseqüência
de prática de crime (art. 5°, LXVII), sendo autorizadas apenas duas
exceções constitucionais, que não se aplicam, por definição, a crianças
e adolescentes3.

Desse modo, a Constituição Federal confere a crianças e adolescentes todas as


garantias de natureza penal e processual penal conferida aos adultos, mas em
respeito à condição peculiar de crianças e adolescentes em fase de desenvolvimento,
assegurou-lhe mais garantias (garantias especiais, exclusivas de crianças e
adolescentes), também em relação à resposta do Estado quando estes cometem atos
infracionais. Trata-se de conquistas sociais admitidas e assumidas pela sociedade,
que, por sua vez, deve abrir mão do retrocesso e lançar mão de criatividade e ações
em busca da superação de novos desafios, muitos deles decorrentes da própria
assunção do contemporâneo marco regulatório dos direitos humanos universais.

A essa dinâmica atribui-se a expressão vedação do retrocesso social (SILVA,


2010)4, segundo a qual a sociedade brasileira não pode abandonar as conquistas
sociais, em especial aquelas positivadas na Carta Federal e reconhecida a todo e
qualquer cidadão brasileiro. Em outra ordem, é como se o Parlamento Federal
decidisse impor um plebiscito para que a sociedade decida se deseja rever o caráter
universal do sistema único de saúde, colocando-o em cheque. Não há, portanto, lei
ou mecanismo subjacente à Constituição Federal que possa veicular decisões

3 Prisão civil de curta duração para devedores de alimentos e depositários infiéis; situações jurídicas
nas quais crianças e adolescentes, porque são incapazes civilmente, nunca podem estar.
4 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2010.

5
contrárias às conquistas históricas do povo brasileiro.II – O valor constitucional
dos documentos internacionais assinados pelo Brasil.A Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança – ratificada internamente pelo Decreto
99.710/90 – estabelece que criança (no Brasil, compreendida como as fases de
criança e adolescente) é o sujeito que se encontra até os 18 anos de idade. Trata-se
do primeiro marco etário para definições de direitos, deveres e políticas públicas
correspondentes. Esse documento internacional alinha-se a outros, como as Regras
Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores
(Regras de Beijing, 1985), e as Diretrizes das Nações Unidas para a
Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riad, 1990). Todos esses
documentos confirmam que a idade penal deve dividir a fase adulta da fase infanto-
adolescente, e, portanto, distinguir os tratamentos estatais perante a prática
delituosa.A Constituição Federal, por sua vez, estabelece em seu art. 5º, § 3º, que: Os
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais. Nesse sentido, se as premissas são:

a) A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança é


documento subscrito e ratificado internamente pelo Brasil;
b) Conforme apregoa a Carta Magna Brasileira, todo documento
internacional assinado no exterior e ratificado em âmbito interno terá
valor constitucional;
Logo:
c) A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e os demais
tratados, pactos e diretrizes dos quais o Brasil é signatário são
documentos com status constitucional.

Nessa medida, se trata de documentos de valor constitucional, podem ser revogados


ou contrariados apenas se não se tratarem de cláusula pétrea, seguindo as premissas
e o raciocínio do primeiro item dessa arrazoado. E, como tratam de garantias
constitucionais – que reforçam as já previstas pela Assembléia Constituinte -,
asseguram, indubitavelmente, a perenidade dessa norma e desse direito de qualquer

6
adolescente brasileiro, independentemente de ter cometido ato infracional. Nasce
com o direito de ser tratado de modo diferente, de receber, portanto, uma
discriminação positiva.

Segundo Machado5 (2006, p.107):“Neste passo, cumpre frisar que, se o direito de liberdade
da pessoa física criança ou adolescente possui as especificidades já referidas no item II supra, é de
ver que a imaturidade/vulnerabilidade do sujeito de direito, na Democracia não pode ser invocada
para discriminá-lo negativamente. A desequiparação jurídica que a Constituição de 1988 criou
para crianças e adolescentes é a desequiparação jurídica protetiva, que é própria da atual fase de
evolução da proteção aos direitos humanose que vem adotada na Convenção dos Direitos da
Criança e do Adolescente (ONU, 1989).”

Dentre estas garantias, estabeleceu-se a inimputabilidade penal para a pessoa até


dezoito anos de idade incompletos, que vem expressa nos artigos 228 e 227, § 3 º, V,
última parte, do texto constitucional. Este marco normativo diferencia-se da
inimputabilidade penal que vigorava no o paradigma menorista, pois,segundo
Machado(ibid, p.108): “[...]era uma inimputabilidade penal que impunha a crianças e
adolescentes tratamento penal severamente mais gravoso que aquele reservado aos
adultos (impunha uma medida de segurança perpétua, sem incidência da reserva
legal, do contraditório e da ampla defesa, entre outras salvaguardas.”

Portanto, a inimputabilidade penal atual impede a aplicação da sanção criminal (das


penas reservadas aos adultos). E isso configura não apenas preceito penal, mas
constitucional pétreo, de modo que se permite alteração apenas se promulgada nova
Carta Magna.
Ao assim determinar, a Assembleia Constituinte de 1988 ponderou sobre os valores
individuais e sociais na situação específica de crime cometido por adolescente,
optando pela enorme capacidade de autotransformação, que é própria do ser
humano, impondo a prevalência de medidas protetivas e educativas e instituindo as

5 “MACHADO, MARTHA .T. Sistema Especial de proteção da liberdade do adolescente na


Constituição brasileira de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente. In: ILANUD, ABMP,
SEDH, UNFPA (Orgs) Justiça Adolescente e Ato Infracional: socioeducação e responsabilização.São Paulo,
2006, p.87-123”.
7
garantias de excepcionalidade e brevidade da privação de liberdade (art.227, § 3º, V),
que o ECA tratou de concretizar. Destarte: “Importante destacar que a excepcionalidade
não é só das medidas privativas de liberdade (no ECA, internação e semi-liberdade), mas sim uma
excepcionalidade da própria imposição de qualquer medida sócio-educativa...E veja-se que a
excepcionalidade do sistema de responsabilização de crianças e adolescentes vem e consonância com o
princípio da intervenção mínima, contido nos documentos da ONU: Diretrizes de Riad;
Assembleia Geral Resolução 45/112-1990), art 5º, caput, ‘e’ e ‘f ‘, e art 6º; Regras de Tóquio
(AG 45/110 – 1990 – medidas não privativas de liberdade) – art. 2.6” (ibid, p.109-110).

Sobre esse aspecto, também nos diz Dallari: “A previsão de tratamento jurídico diferente
daquele que se aplica aos adultos é um direito dos menores de 18 anos, que são pessoas,
indivíduos,sujeitos de direitos. De acordo com o artigo 60, § 4º, da Constituição, não poderá ser
objeto de deliberação proposta de emenda constitucional tendente a abolir garantias individuais”
(DALLARI, 2001, p. 25).

III – As taxas de incidência infracional estão caindo desde o iníciodo século


XX.
Em poucas palavras, podemos informar que as taxas de incidência de ato infracional
têm caído significativamente ao longo do século XX. É o que extraímos da
literatura. Segundo Marcio Antonio Cabral dos Santos, “entre 1900 e 1916, o
coeficiente de prisões por dez mil habitantes era distribuído da seguinte forma”:
307,32 crimes cometidos por adultos e 275,14 delitos cometidos por crianças e
adolescentes, o que sugere uma proporção de quase 50% para cada faixa etária
(SANTOS: 214)6.
Atualmente, temos a proporção de 10% dos crimes cometidos pela adolescência, o
que significa drástica redução da participação desses jovens nas ações delituosas, por
diversos motivos, entre elas, o próprio aumento da idade penal (à época da primeira
constatação, vigorava o Código Penal da Republica – 1890 -, pelo qual se instituía a
responsabilização penal especial entre os 09 e 17 anos de idade), bem como os

6 SANTOS, Marcio Antonio Cabral dos. História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006.

8
novos modelos de Estado que acentuaram seu papel de executor de políticas
públicas sociais, fundamentais para o desenvolvimento humano.

Vale frisar que atualmente, os dados da Secretaria Especial de Direitos Humanos


indicam um estabilização das taxas de atos infracionais privados de liberdade desde
2007: cerca de 16 mil adolescentes. Ainda, sobre este aspecto, a pesquisa do CNJ da
série “Pensando o Direito” (2010)7 constatou que:“...os dados coletados junto aos
Tribunais de Justiça e Superior Tribunal de Justiça em matéria de medida socioeducativa de
internação, e posteriormente, a observação de casos junto às Varas da Infância e Juventude de São
Paulo, Porto Alegre, Recife e Salvador, permitiram concluir que, apesar das propostas garantidoras
do Estatuto, a prática forense nem sempre está com ela alinhada. Foi possível constatar que a
medida de internação é sistematicamente imposta com baixa fundamentação legal. Em muitos
casos, sem a devida consideração dos requisitos legais exigidos pelo ECA.”

IV – O mito da irresponsabilidade penal do adolescente

Por último, vale citarmos mais uma característica importante acerca do debate sobre
a redução da inimputabilidade penal: o mito da irresponsabilidade penal do
adolescente. Segundo o Volpi8, esta idéia se baseia na concepção de que o
adolescente é incitado a cometer um ato infracional porque a atual legislação é
branda quanto a sua punição. Confunde-se então, inimputabilidade com impunidade
e se esquece que existem as medidas sócio-educativas que até o momento ainda não
foram implementadas integralmente em nosso país, para responsabilização dos
adolescentes.Assim sendo, estas propostas reafirmam uma perspectiva
criminalizadora dos jovens no Brasil, pois a educação para a cidadania defendida
pelo ECA continua em posição de subordinação à perspectiva punitiva e

7
ECA: Apuração do Ato Infracional Atribuído a Adolescentes. Série Pensando o Direito, Nº
26/2010. Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Secretaria de Assuntos Legislativos do
Ministério da Justiça (SAL).
8 VOLPI, M. Sem liberdade, sem direitos: a privação de liberdade na percepção do adolescente. São Paulo:

Cortez, 2001.
9
criminalizadora dos antigos Códigos de Menores, uma vez que a mentalidade
jurídica no Brasil permanece predominantemente encarceradora9.

Por outro lado, as taxas juvenis de vitimização quase duplicaram (ou mais) em
relação àpopulação total. Em 2010, enquanto a taxa de homicídio do total da
população negra foi de 36,0, a dos jovens negros foi de 72,0.Entre os jovens, a
diferença entre brancos e negros foi mais drástica: as taxas de homicídio de jovens
brancos caíram no período analisado de 40,6 para 28,3; enquanto a dos jovens
negros cresceu de 69,6 para 72,010.

Assim, a vitimização de jovens negros, que, em 2002, era de 71,7%, no ano de 2010
pulou para 153,9%: morrem, proporcionalmente, duas vezes e meia mais jovens
negros que brancos.Um fato que merece especial atenção no último Mapa da
Violência é a idade das vítimas. Observa-se que não há diferenças significativas de
taxas de homicídio entre brancos e negros até os 12 anos de idade. Entretanto, nesse
ponto inicia-se um duplo processo: por um lado, um íngreme crescimento da
violência homicida, tanto branca quanto negra, que se avoluma
significativamente até os 20/21 anos de idade das vítimas. Se esse crescimento
se observa tanto entre os brancos quanto entre os negros, nesse último caso, o
incremento é marcadamente mais elevado: entre os 12 e os 21 anos de idade, as
taxas brancas passam de 1,3 para 37,3 em cada 100 mil; aumenta 29 vezes. Já
as taxas negras passam, nesse intervalo, de 2,0 para 89,6, aumentando 46
vezes.

9 Segundo (Kosminsky, 1993, p. 179-80) a identidade da criança internada é construída por duas
forças contraditórias: o processo de padronização e domesticação imposto pela instituição, e pela
afirmação da sua individualidade. Ou seja, essa tensão produzida pelo processo de domesticação e
padronização e, simultaneamente, pela busca da resistência expressa em gestos de rebeldia, é gerada
em uma instituição rigidamente burocratizada, que delimita o campo da sociabilidade infantil. O
problema refere-se ao duplo abandono em que se encontra a criança, pois, impedida de viver com a
família, a criança passa a viver em uma estrutura estatal burocratizada, em que funcionários
entendem suas ações apenas como modalidade de prestação de serviços, de amparo material,
operando nos precários limites da racionalidade institucional. Imersos nesta racionalidade, os
funcionários da instituição ‘especializados’, tratam as crianças no quadro das relações impessoais e
assim, a instituição nega a possibilidade de um agir coletivo entre os jovens e reproduz o estigma de
“futuro marginal”, alimentando o que discursivamente ela procura negar: o abandono e a
marginalidade.
10Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil / JulioJacoboWaiselfisz – Rio de

Janeiro: CEBELA, FLACSO; Brasília: SEPPIR/PR, 2012.


10
Vale frisar que a maior parte das Propostas apresentadas na Câmara dos Deputados
e no Senado Federal, favoráveis à Redução da Maioridade Penal são apresentadas
em momentos de forte mobilização de setores da grande mídia, mas somente
quando a vítima de um ato infracional é de classe média ou alta. Foram os casos das
propostas apresentadas no período 2003-2007, sempre referenciados nos crimes da
jovem Liana Friedenbach, em São Paulo, e do garoto João Hélio, no Rio de Janeiro.
Vale frisar também que estes dois casos aconteceram em São Paulo e Rio de Janeiro,
cidades nas quais estes dois meios de comunicação possuem suas sedes e
repercutiram estes crimes de modo exacerbado. A revista Veja São Paulo de
19/11/2003 colocou a foto de Liana como capa de sua edição semanal com os
dizeres “Até Quando?”; e a Veja Nacional colocou a foto de João Hélio na capa de
sua edição de 14/02/2007 com a frase “Não Vamos Fazer Nada?”. (CAMPOS,
2009)11

Ora, se as propostas de inimputabilidade penal forem relacionadas em consonância


com os dados acima, podemos concluir que, após 21 anos da promulgação do
Estatuto, a perspectiva punitiva da criminalização permanece presidindo as decisões
e registramos que a história de séculos de punições e mortes não se muda só com a
lei, mas também com a sua legitimidade social12.

É preciso defender as conquistas democráticas do Estatuto da Criança e do


Adolescente aprofundando-as para assegurar o efetivo respeito à integridade das
crianças e adolescentes, bem como os encarar, enfim, como sujeitos de direitos na
contínua conciliação entre democracia e segurança pública.

Acreditamos que a redução da idade penal no Brasil, como ponderou Adorno


(2002)13, também se apresenta para nós como uma questão problemática. Os jovens
no Brasil foram introduzidos no mundo adulto muito cedo, vivenciaram
experiências precocemente, como trabalho, sexualidade, num contexto de

11
CAMPOS, Marcelo da Silveira. Mídia e Política: a construção da agenda nas propostas de redução
da maioridade penal na Câmara dos Deputados. OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 15, nº 2,
Novembro, 2009, p.478-509.
12 PASSETI, E. Crianças Carentes e políticas públicas. In: PRIORE, M. (Org). História da criança no

Brasil. São Paulo: Contexto, 1999.


13 ADORNO, S. Adolescentes, crime e violência. In: ABRAMO, H.W; FREITAS. M.V. de;

SPOSITO, M.P (Orgs). Juventude em Debate. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2002.
11
desigualdade social, de desigualdade de direitos, efeitos estes agravados num
contexto de globalização.

Esses jovens, imersos num processo da 'criança sem infância’, talvez não tenham o
dito discernimento que tanto o direito penal moderno, como os redatores das
propostas favoráveis a redução da idade penal, a mídia e outros setores da sociedade
afirmam veemente que os adolescentes já possuem. Mas, ainda assim, afirmamos
que possuem o discernimento necessário à vida, cujo exercício é prejudicado – e
então, algumas possíveis causas para as práticas infracionais – por fatores indiretos
costumeiramente denominados exclusão social, vulnerabilidade e risco social,
impossibilidade de participação política etc.Não foram esgotadas, no Brasil, as
formas de atenção que se pode oferecer a estes jovens, seja pelas escolas, pelas
instituições de assistência, pela família, pela maior distribuição da riqueza, pela
aplicação efetiva do ECA.

Portanto, uma eventual redução da maioridade penal aparece de forma cruel no


Brasil, pois, num país atingido por fortes desigualdades sociais e desigualdades de
direitos,as propostas favoráveis à redução da maioridade penal são cúmplices deste
processo de criminalização da pobreza, jogando para o aparelho carcerário-punitivo
os grupos e indivíduos mais vulneráveis psicologicamente, socialmente,
economicamente, culturalmente.(SOUZA e CAMPOS, 2007)14.

Assim, com a aprovação do decreto legislativo, chegar-se-ia à conclusão de que os


jovens são “irrecuperáveis” atestando nossa incapacidade de lidar com o problema
da violência juvenil. Desse modo, a Doutrina deProteção Integral15 consagrada no

14 SOUZA, L.F. de. ; CAMPOS, M. S. . Redução da Maioridade Penal: Uma Análise dos Projetos
que tramitam na Câmara dos Deputados. In: Leonardo Sica (coord). (Org.). Revista Ultima Ratio.
1ed.Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, v. 1, p. 231-259.
15
“Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral à Criança”, conforme Emílio Garcia Mendez, engloba
a Convenção das Nações Unidas dos Direitos da Criança, As Regras Mínimas das Nações Unidas
para Administração da Justiça de Menores, As Regras Mínimas das Nações Unidas para a proteção
dos jovens privados de liberdade e as Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da
delinqüência juvenil. Este corpo de legislação internacional modifica total e definitivamente a velha
doutrina da situação irregular. A Doutrina da Proteção Integral foi adotada pela Constituição da
República, que a consagra em seu art. 227, tendo sido acolhida pelo plenário do Congresso
Constituinte pela extraordinária votação de 435 votos contra 8.

12
ECA é fundamental paraa construção de políticas de prevenção e enfrentamento à
criminalidade e, na forma mais gravosa, o homicídio dos jovens brasileiros.

V – Da Impossibilidade de Plebiscito para Reduzir a Maioridade Penal

O Projeto de Decreto Legislativo pretende submeter à plebiscito uma restrição a


direito fundamental consubstanciada na privação da liberdade de adolescentes,
matéria está insuscetível de disposição pela maioria, uma vez que isso irá
inevitavelmente configurar abuso de poder.

Ao promover consulta pública para a romper com direitos fundamentais reputados


pétreos pela Constituição da República, o Projeto atual irá abalar a própria estrutura
constitucional brasileira e, não obstante apresentar-se sob a roupagem de
democrático, irá na verdade ruir a própria democracia.

Os constitucionalistas apontam que o que caracteriza as democracias modernas é


justamente a autoimposição de limites, como garantia de sua própria sobrevivência.
Se não há limites para a democracia política ou formal, ou seja, se os princípios e
garantias constitucionais podem ser alterados a qualquer momento pela maioria, sem
qualquer limite, a própria democracia coloca-se em risco, pois ela mesma poderá ser
abolida pelo voto da maioria.

O Projeto, talcomo se coloca, não põe somente em risco a redução da maioridade


penal e por consequência a liberdade individual de adolescentes, a maioria deles
marginalizados e criminalizados, mas a própria segurança jurídica conferida pela
Constituição. O Projeto abre um precedente extremamente perigoso para a
exclusão indeterminada de direitos fundamentais sob o discurso da democracia
direta.

Desse modo, se houver alguma alteração constitucional resultante da presente


proposta, o caminho para a instalação de um estado autoritário estará pavimentado,
onde a tirania da maioria, por vezes manipulada para votar sem maiores reflexões
sobre as consequências de suas decisões, prevalece sobre a Constituição.

13
Nesse sentido, vale recordar a lição de Ferrajoli a respeito:

O garantismo, como técnica de limitação e disciplina dos poderes públicos,, voltado da


determinar o este não devem e o que devem decidir, pode bem se concebido como a
conotação (não formal, mas) estrutural e substancial da democracia: as garantias,
sejam liberais ou sociais, exprimem de fato os direitos fundamentais dos cidadãos
contra os poderes do Estado, os interesses dos fracos respectivamente aos dos fortes, a
tutela das minorias marginalizadas ou dissociadas em relação às maiorias integradas,
as razões de baixo relativamente às razões do alto.16

16Cf. Ferrajoli, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: EditoraRevista dos
Tribuanis, 2002. P. 693.
14

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