(Fernando Pessoa) (“Alberto Caeiro”) (Fernando Pessoa) Não sou nada. Sou um guardador de rebanhos. Ó mar salgado, quanto do teu sal Nunca serei nada. O rebanho é os meus pensamentos São lágrimas de Portugal! Não posso querer ser nada. E os meus pensamentos são todos sensações. Por te cruzarmos, quantas mães choraram, À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Penso com os olhos e com os ouvidos Quantos filhos em vão rezaram! Janelas do meu quarto, E com as mãos e os pés Quantas noivas ficaram por casar Do meu quarto de um dos milhões do mundo. E com o nariz e a boca. Para que fosses nosso, ó mar! que ninguém sabe quem é Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la ( E se soubessem quem é, o que saberiam?), E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Valeu a pena? Tudo vale a pena Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Por isso quando num dia de calor Se a alma não é pequena. Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Me sinto triste de gozá-lo tanto. Quem quer passar além do Bojador Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, E me deito ao comprido na erva, Tem que passar além da dor. Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, E fecho os olhos quentes, Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Com a morte a por umidade nas paredes Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Mas nele é que espelhou o céu. e cabelos brancos nos homens, Sei a verdade e sou feliz. Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Para ser grande, sê inteiro: nada Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, (“Ricardo Reis”) Tenho Mais Almas que Uma E não tivesse mais irmandade com as coisas (“Ricardo Reis”) Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua Para ser grande, sê inteiro: nada A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada Teu exagera ou exclui. Vivem em nós inúmeros; De dentro da minha cabeça, Se penso ou sinto, ignoro E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Quem é que pensa ou sente. Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és Sou somente o lugar Estou hoje dividido entre a lealdade que devo No mínimo que fazes. Onde se sente ou pensa. À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Assim em cada lago a lua toda Tenho mais almas que uma. Falhei em tudo. Brilha, porque alta vive Há mais eus do que eu mesmo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. Existo todavia A aprendizagem que me deram, Todas as Cartas de Amor são Ridículas Indiferente a todos. Desci dela pela janela das traseiras da casa. (“Álvaro de Campos”) Faço-os calar: eu falo.
Todas as cartas de amor são Os impulsos cruzados
Poema em linha reta Ridículas. Do que sinto ou não sinto (“Álvaro de Campos”) Não seriam cartas de amor se não fossem Disputam em quem sou. Ridículas. Ignoro-os. Nada ditam Nunca conheci quem tivesse levado porrada. A quem me sei: eu 'screvo Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. Também escrevi em meu tempo cartas de amor, E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Como as outras, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Ridículas. O Mundo não se Fez para Pensarmos Nele Indesculpavelmente sujo. (“Alberto Caeiro”) Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, As cartas de amor, se há amor, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Têm de ser O meu olhar é nítido como um girassol. Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Ridículas. Tenho o costume de andar pelas estradas Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Olhando para a direita e para a esquerda, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Mas, afinal, E de, vez em quando olhando para trás... Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Só as criaturas que nunca escreveram E o que vejo a cada momento Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Cartas de amor É aquilo que nunca antes eu tinha visto, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, É que são E eu sei dar por isso muito bem... Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado Ridículas. [sem pagar, Sei ter o pasmo essencial Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Quem me dera no tempo em que escrevia Que tem uma criança se, ao nascer, Para fora da possibilidade do soco; Sem dar por isso Reparasse que nascera deveras... Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Cartas de amor Sinto-me nascido a cada momento Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Ridículas. Para a eterna novidade do Mundo... Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, A verdade é que hoje Creio no mundo como num malmequer, Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida… As minhas memórias Porque o vejo. Mas não penso nele Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Dessas cartas de amor Porque pensar é não compreender ... Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; É que são Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Ridículas. O Mundo não se fez para pensarmos nele Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. (Pensar é estar doente dos olhos) Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? (Todas as palavras esdrúxulas, Mas para olharmos para ele e estarmos de Ó príncipes, meus irmãos, Como os sentimentos esdrúxulos, acordo... Arre, estou farto de semideuses! São naturalmente Onde é que há gente no mundo? Ridículas.) Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Se falo na Natureza não é porque saiba o que Poderão as mulheres não os terem amado, ela é, Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca! Mas porque a amo, e amo-a por isso, E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Porque quem ama nunca sabe o que ama Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Nem sabe por que ama, nem o que é amar ... Eu, que venho sido vil, literalmente vil, Amar é a eterna inocência, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. E a única inocência não pensar...