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LUIZ MOTT

A revolução
homossexual:
o poder
de um mito

LUIZ MOTT é professor


do Departamento de
Antropologia da UFBa e
presidente do Grupo Gay
da Bahia.

40 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 40-59, março/maio 2001


política&participação “Sodoma quer dizer traição. Gomorra, rebelião”
(Frei Felipe Moreira, 1645).

“O buraco do meu cu é revolucionário!”


(Guy Hocquenghem , 1980).

N
os últimos quatro mil anos, nas dife-
rentes civilizações que serviram de
matriz à cultura ocidental, a homos-
sexualidade foi rotulada por diversos
nomes atrozes que refletem o alto grau de reprovação as-
sociado a esta performance erótica: abominação; crime con-
tra a natureza; pecado nefando; vício dos bugres; abominável
pecado de sodomia; velhacaria; descaração; desvio; doença;
viadagem; frescura, etc. (1). E os homossexuais – mais os
do sexo masculino do que as lésbicas – foram condenados
a diferentes penas de morte: apedrejados, segundo a Lei
Judaica; decapitados, por ordem de Constantino em 342
d. C.; enforcados, afogados ou queimados nas fogueiras
da Inquisição, durante a Idade Média e até os tempos
modernos; despedaçados na boca de um canhão, como se
registrou no Maranhão colonial (2); queimados pelos
1 Wayne Dynes (ed.), Encyclo-
nazistas nos campos de concentração (3). Hoje, no Brasil, pedia of Homosexuality, New
York, Garland, 1990;
a cada dois dias, um gay, travesti, transexual ou lésbica é Homolexis: a Historical and
Cultural Lexicon of Homo-
sexuality, New York, Gai Sa-
brutalmente assassinado, vítima da homofobia – o ódio à ber Monograph, 1985.
2 Luiz Mott, A Inquisição no
homossexualidade (4), fazendo de nosso país o campeão Maranhão, São Luís, Editora
da Universidade Federal do
mundial de crimes homofóbicos. Por todo o país, pais e Maranhão, 1994.
3 George Haggerty (ed.), Gay
mães proclamam sem pejo: “prefiro um filho ladrão do Histories and Cultures, New
York, Garland Publishing Inco,
que homossexual” ou “antes uma filha prostituta do que 2000.
4 Luiz Mott e Marcelo Cerqueira,
lésbica” (5). Causa Mortis : Homofobia ,
Salvador, Editora Grupo Gay
da Bahia, 2001.
O objetivo deste ensaio é reconstituir a gênese e o sig-
5 Luiz Mott, Violação dos Direi-
tos Humanos e Assassinato de
nificado da homofobia em nossa sociedade: através da Homossexuais no Brasil, Sal-
vador, Editora Grupo Gay da
etno-história mostrarei que nossa intolerância anti-homos- Bahia, 2000.

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sexual tem suas raízes na tradição judaico- que permanece ainda hoje como o maior
cristã, que desde cedo percebeu o caráter tabu do mundo moderno: a homossexuali-
ameaçador, político e revolucionário da ho- dade (6). Sua gênese teve lugar por volta de
mossexualidade, daí transformar o sexo e quatro mil anos passados, na Caldéia, quan-
amor entre pessoas do mesmo gênero em do um velho pastor, Abraão, divulga junto
crime abominável e o mais detestável de a sua parentela e vizinhança certas revela-
todos os pecados. Hoje, quando se ouve de ções que assegurava ter recebido do pró-
norte a sul do Brasil esta sentença de mor- prio Deus, escolhendo-o como fundador de
te: “Veado tem mais é que morrer!”, in- um povo predestinado. Elabora-se então,
conscientemente, está-se repetindo um ve- nesse momento, um projeto civilizatório
redicto que foi atribuído à própria vontade que vai se tornar o mito fundador não só do
divina, imaginando-se assim evitar, atra- povo judeu, como da própria história
vés da repressão e aniquilação dos prati- genealógica das três principais religiões do
cantes do “amor que não ousa dizer o nome”, mundo moderno: judaísmo, cristianismo e
a destruição da própria humanidade. islamismo.
Discutirei igualmente como a homofo- Segundo se pode ler no primeiro livro da
bia judaico-cristã tornou-se ainda mais vi- Bíblia, o Gênesis, Abrão teria nascido em
rulenta em nosso país, devido ao escravismo Ur, na Caldéia, casado com Sara, que era
colonial, na medida em que os “efemina- estéril. Conjecturam os historiadores e
dos” eram vistos e tratados como perigosa exegetas que, por volta do ano 1800 a. C.,
ameaça à hegemonia do macho branco e à toda sua família e agregados partem em di-
continuidade do projeto colonizador do reção à terra de Canaã, estabelecendo-se em
Novo Mundo. Demonstrarei que a homos- Harã, onde seu progenitor Taré falece aos
sexualidade carrega na sua própria essên- 205 anos de idade. É aí que tem início o
cia aspectos explosivos, representando uma diálogo de Javé com Abrão e a origem do
verdadeira revolução dos costumes, na mito que serviu de base e justificativa não só
medida em que questiona, ameaça e pode à posterior condenação do homoerotismo,
destruir os mesmos alicerces em que se mas da violenta sexofobia que vai caracteri-
escoram a moral e a sexualidade na cultura zar e distinguir a cultura sexual judaica da
tradicional do Ocidente. Uma revolução sexualidade dos povos circundantes (7).
positiva, convém não se esquecer, pois nos Eis a versão original do mito:
obriga a repensar diversos axiomas
fundantes de nossa cultura hodierna, que “O Senhor disse a Abrão: Deixa tua terra,
de forma irrefletida e perversa persistem tua família e a casa de teu pai e vai para a
em nossa ideologia e modus vivendi, fazen- terra que eu te mostrar. Farei de ti uma
do da terra, e de nosso Brasil, não um para- grande nação. Eu te abençoarei e exaltarei
íso terreal, mas um vale de lágrimas, e da o teu nome, e tu serás uma fonte de bênção.
sexualidade e das relações de gênero, a fonte Todas as famílias da terra serão benditas
de tanta violência, tragédia e morte. em ti… Tornarei tua posteridade tão nume-
rosa como o pó da terra… Levanta os olhos
para os céus e conta as estrelas se és ca-
6 John Boswell, Same Sex Unions
paz… Pois assim será a tua descendência…
in Pre-Modern Europe, New
York, Villard Books, 1994; A INVENÇÃO DE UM MITO E A Eu dou esta terra aos teus descendentes,
Christine Downing, Myths and
Mysteries of Same-Sex Love, desde a torrente do Egito até o grande rio
New York, Continuum, 1996. SACRALIZAÇÃO DE UM Eufrates…” (8).
7 Salomon Reinach, Orpheus:
Histoire Générale des Religions,
Paris, Alcide Picard, Editeur, PRECONCEITO Passam-se anos, e Abrão e Sara conti-
1909; Jack Miles, Deus: uma
Biografia, São Paulo, Compa- nuavam sem descendentes consangüíneos.
nhia das Letras, 1997. É perfeitamente possível datar a origem Ao completar 99 anos, Javé aparece-lhe,
8 Bíblia Sagrada, São Paulo, e explicar o background de um dos mitos ratificando a promessa: “Quero fazer uma
Editora Ave Maria, 1985.
Gênesis, 12:1; 13:14; 15:18. mais significativos da cultura ocidental, e aliança contigo e multiplicarei ao infinito a

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tua descendência… De agora em diante não criar novos guerreiros capazes de enfrentar
te chamarás mais Abrão, e sim Abraão, que os violentos inimigos, esses, sempre dese-
quer dizer pai de uma multidão de povos…” josos de curvar o orgulho daquela pequenina
É sintomático que exatamente após essa tribo de pastores endogâmicos, que
aliança estabelecida entre Javé e Abraão, propalava ser o único povo escolhido pelo
pouco antes de Sara engravidar, são verdadeiro Deus, Javé, o Deus dos Exérci-
destruídas as cidades de Sodoma e Gomor- tos. E que tratava os povos vizinhos como
ra, o principal símbolo da homossexuali- gentios, e suas divindades, como falsos
dade no mundo antigo. Motivo: “o seu pe- deuses.
cado era muito grande!” (9). Logo em se- Cada gota de esperma desperdiçado
guida nasce Isac, a prova de que para Deus passou a constituir verdadeiro crime de lesa-
nada é impossível, concretizando-se assim nacionalidade, pois todo sêmen deveria ser
a primeira profecia. Adulto, Isac casa-se depositado no único receptáculo capaz de
com Rebeca, dando origem ao povo hebreu. reproduzir um novo ser humano: o vaso
Segundo ensina a etnodemografia, po- natural da mulher. Daí o Levítico condenar
demos dividir as diferentes sociedades à pena de morte os que praticassem a
humanas em dois grandes complexos no masturbação, o coito interrompido (“ona-
que tange a seu projeto civilizatório: de um nismo”), o bestialismo e a homossexuali-
lado as culturas pró-natalistas, que esti- dade. “Não te deitarás com um homem
mulam a procriação, aspiram à longevidade como se fosse mulher: isto é uma abomina-
máxima, reprimem e diabolizam o sexo não- ção. Não terás comércio com um animal,
reprodutivo, canalizando toda a energia para não te contaminares com ele. Uma
sexual para a multiplicação máxima da mulher não se prostituirá a um animal, isto
espécie; do outro, as sociedades antinata- é uma abominação” (11).
listas, que limitam os nascimentos, estimu- A relação homoerótica masculina foi
lam práticas anticoncepcionais, abortíferas mais perseguida do que os demais atos não-
ou mesmo o infanticídio, onde o sexo visa reprodutivos por uma simples lógica arit-
primordialmente o prazer e não a reprodu- mética: são dois “semeadores” que desper-
ção (10). diçam a semente vital, diferentemente de
Nós, os povos espiritualmente descen- quando um homem se masturba ou man-
dentes de Abraão, judeus, cristãos e mu- tém relação com algum animal, ocorrendo
çulmanos, somos herdeiros típicos da ideo- a perda de apenas um produtor da semente
logia demográfica pró-natalista, onde a re- vital. É dentro desta lógica, visando a
ligião e a moral ensinam que o sexo se maximização do aproveitamento do esper-
destina precipuamente à reprodução, ten- ma, que o Antigo Testamento praticamen-
do como base a ordem do Divino do Cria- te ignorou a existência do lesbianismo den-
dor: “crescei e multiplicai-vos”. tro do povo judeu. A relação sexual entre
Rodeados por nações antigas, superpo- duas mulheres não representava a menor
pulosas e poderosas – assírios, babilônicos, ameaça ao projeto super-reprodutivo tribal,
caldeus, hititas, egípcios –, os hebreus, este posto que nessa sociedade machista e pa-
pequenino bando de pastores nômades, não triarcal não se levava em conta o interesse
tinham outro caminho para atingir seu ou desejo sexual das fêmeas, mas a vonta-
ambicioso projeto civilizatório: fazer filho, de e o prazer do macho e seu orgulho em
fazer muitos filhos, engravidando ao máxi- demonstrar, com farta prole, sua potência e 9 Gênesis, 18:20.
mo suas mulheres e escravas, a fim de cum- poder. Mesmo lésbicas, as filhas de Eva 10 Dennis Werner, On the So-
cietal Acceptance or Rejection
prir a promessa feita por Javé ao patriarca eram obrigadas a se casar e oferecer seu of Male Homosexuality, M. A.
Abraão: “Multiplicarei a tua posteridade vaso natural à procriação. Thesis, Junter College, 1975;
“A Cross-cultural Perspective on
como as estrelas do céu e as areias do mar!”. Um outro elemento ideológico, também Teory and Research on Male
Homosexuality”, in Journal of
Destarte, o exercício da sexualidade pas- de inspiração mitológica, reforçou ainda Homosexuality , vol. 4 (4),
sou a ter apenas um objetivo: povoar de mais o direcionamento da libido exclusi- Summer/1979, pp. 345-62.
estrelas-humanas as areias do deserto, pro- vamente para a reprodução, e a conseqüen- 11 Levítico, 18:22.

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te criminalização dos atos sexuais não- naturalidade da divisão sexual do traba-
procriativos, notadamente da performance lho e dos papéis de gênero.
que mais desperdiçava o sêmen vital, a Grande parte da condenação à cópula
sodomia homossexual. Trata-se do mito do anal heterossexual, divulgada nos manus-
nascimento do Messias: o enviado de Deus, critos de comentários rabínicos, nos com-
nascido de uma virgem, encarregado por pêndios de teologia moral e manuais de con-
Javé de instaurar a utopia a que todos aspi- fessores, explica-se por uma simples ra-
ravam, transformando as espadas em ara- zão: o perigo da confusão dos vasos.
dos, os rios em correntes de leite e mel, De acordo com a terminologia anatô-
onde os leões e cordeiros viveriam para mica dos tratados de moral cristã e dos re-
sempre em paz (12). Esse paradisíaco rei- gimentos do Santo Ofício da Inquisição, o
no da abundância e da concórdia dependia corpo humano comporta dois vasos: as mu-
apenas de um simples ato para tornar-se lheres possuem o vaso natural ou diantei-
realidade: o nascimento do messias através ro, onde o membro viril derrama a semente
de uma cópula heterossexual. De modo que, de homem; mulheres e homens possuem o
ao se desperdiçar o sêmen, não era apenas vaso traseiro, também referido nos séculos
um novo pastor/guerreiro que deixava de passados como vaso prepóstero, traseira,
nascer: o próprio Messias estava sendo im- via posterior ou via do curso. Em alguns
pedido de trazer a felicidade ao povo elei- processos inquisitoriais, inclusive no Bra-
to, um crime de lesa-divindade. sil, percebe-se um temor obsessivo, por par-
É este, portanto, o mito fundador que te dos amantes mais descontrolados, de
inspirou o projeto civilizatório e expansio- terem inadvertida, ou maliciosamente, con-
nismo demográfico dos povos descenden- fundido os vasos, copulando “à moda de
tes de Abraão, justificando a brutal conde- Sodoma” em vez de usar o vaso dianteiro.
nação ao homoerotismo masculino e, em Na Bahia, em 1591, o cônego Jácome de
decorrência, a própria destruição dos prin- Queiroz, 46 anos, morador em Itapoã, con-
cipais nichos simbólicos desse abominável fessou perante o Visitador do Santo Ofício
desperdício do sêmen, as cidades de que “numa noite levou à sua casa uma moça
Sodoma e Gomorra e suas cinco sucursais mameluca de 6 ou 7 anos, escrava, que
diabólicas, a Pentápolis (13). andava vendendo peixe pela rua, e depois
de cear e se encher de vinho, cuidando que
corrompia a dita moça pelo vaso natural, a
penetrou pelo vaso traseiro e nele teve pe-
RAÍZES DA HOMOFOBIA: O MEDO netração… E outra vez, querendo corrom-
per outra moça, Esperança, sua escrava de
DA REVOLUÇÃO HOMOSSEXUAL 7 anos, a penetrou também pelo traseiro”
(14). O remorso desse cônego pedófilo e
Para nossos ancestrais judeus e, poste- seu crime não eram a infantilidade e pureza
riormente, em toda a cristandade, o pre- dessas duas meninas pré-púberes, mas o
12 Isaías 7:13; 65:25; Joel, 4:10. conceito homofóbico tinha como justifica- fato de ter praticado, mesmo que afetado
13 Gênesis, 18. tiva inconsciente não apenas o desperdício pelo vinho, “o abominável crime de
14 Confissões da Bahia, 1591- do sêmen, visto como uma espécie de con- sodomia, o mais torpe, sujo e desonesto
1592, Primeira Visitação do trole perverso da natalidade, temendo-se, pecado” (15).
Santo Ofício às Partes do Bra-
sil, Rio de Janeiro, F. Briguiet, mais que a peste, a ameaça desestabiliza- Os moralistas e donos de poder sempre
1935, pp. 46-47.
dora representada pelos amantes do mes- condenaram e reprimiram a tentação de se
15 Luiz Mott, “Pedofilia e Pede-
rastia no Brasil Antigo”, in Mary
mo sexo, na medida em que importantes usar o vaso traseiro, como via ou locus do
del Priore (ed.), História da costumes tradicionais eram colocados em prazer, como solução para evitar a gravi-
Criança no Brasil, São Paulo,
Contexto, 1991. xeque pelo revolucionário estilo de vida dez ou até, no caso do sexo com mulheres
16 Lujo Basserman, História da dos sodomitas: o sexo prazer desvinculado públicas, como alternativa menos perigosa
Prostituição. Uma Interpretação da procriação, a tentação da androginia e de contágio das doenças do mundo (“mal
Cultural, Rio de Janeiro, Civili-
zação Brasileira, 1968. da unissexualidade, o questionamento da gálico”, entre outras) (16). Isto no que se

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refere ao trato erótico heterossexual, em- seres vivos em machos e fêmeas. Ou como
bora a maior repressão incidisse exatamente diversas vezes me disseram apologetica-
contra os adeptos da cópula anal entre mente alguns protestantes mais simplórios:
machos – tanto que não chega a 5% o nú- “se Deus tivesse planejado o homossexua-
mero de prisões de mulheres e homens lismo, teria criado Adão e Ivo e não Adão
envolvidos em relações anais, se compara- e Eva…”. Para estes, repito o douto co-
dos com os copuladores homoeróticos – mentário do Filho de Deus: “Bem-aven-
aplicando-se pena máxima da fogueira re- turados os pobres de espírito…”.
gistrando-se tão-somente aos parceiros do Como outros “desvios” sexuais, na óti-
mesmo sexo (17). ca veterotestamentária, o amor entre dois
Repetimos: a sodomia homossexual homens também foi considerado por Deus
sempre foi mais reprimida do que o sexo como abominação gravíssima, punível com
anal heterossexual por duas razões: por a morte por apedrejamento, posto que o
serem dois os indivíduos a desperdiçarem macho foi criado exclusivamente para de-
o esperma, e por ameaçarem não apenas o positar seu esperma no vaso natural da fê-
projeto demográfico expansionista, primei- mea. Os sodomitas, ao contrário, além de
ro dos judeus, depois da cristandade e do usarem um vaso impuro, correm o risco de
Islão, mas por ostentarem os homens misturar matérias inconciliáveis, a cândida
sodomitas um estilo de vida incompatível semente do homem com o vil excremento
com os pressupostos fundantes da família fecal.
patriarcal de tradição abraâmica (18). Num mundo de extrema violência como
Ensina a antropóloga inglesa Mary era o cenário bíblico na Antigüidade – con-
Douglas, ao interpretar as abominações do sulte-se o Livro de Josué como ilustração –
Levítico, que o nosso Deus, por ser puro aquele bando de pastores nômades desen-
espírito, não tolera a mistura: “Vós sereis volveu códigos de sociabilidade e papéis
santos porque eu sou santo’, disse o Se- sociais fortemente hierarquizados e rudes,
nhor. A santidade é exemplificada pela in- pois a segurança e a sobrevivência das mu-
tegridade. A santidade requer que os indi- lheres, crianças, dos anciãos e rebanho,
víduos se conformem à classe à qual per- dependiam vitalmente da força física indi-
tencem. E a santidade requer que diferen- vidual e coletiva dos machos adultos. Tor-
tes classes de coisas não se confundam. nou-se crucial o fortalecimento e dureza do
Outro conjunto de preceitos aperfeiçoa esta papel de gênero masculino, a rígida divi-
idéia. A santidade significa manter distin- são sexual, de um lado o mundo dos super-
tas as categorias da criação. Ser santo é ser homens, ligado às armas, à guerra, ao 17 Luiz Mott, “Pagode Português:
a Subcultura Gay em Portugal
total, ser uno. A santidade é unidade, inte- enfrentamento do mundo hostil; do outro, nos Tempos da Inquisição”, in
gridade, perfeição dos indivíduos e das o mundo feminino, submisso, doméstico, Ciência e Cultura, vol. 40,
fev./1980, pp. 120-39;
espécies” (19). voltado para a prole, recluso. Misoginia “Justitia et Misericordia: a
Inquisição Portuguesa e a Re-
Não é só o Levítico que rejeita a mistu- institucionalizada que se refletia inclusive pressão ao Nefando Pecado
ra: também no Apocalipse, João, “o discí- no espaço marginal ocupado pelas mulhe- de Sodomia”, in Anita
Novinsky et al. (eds.),
pulo que Jesus amava”, reforça o mesmo res no culto javédico, devendo ficar confi- Inquisição: Ensaios sobre Men-
talidade, Heresias e Arte, São
dogma: “Por que não és frio, nem quente, nadas nos corredores laterais fora do salão Paulo, Edusp/Expressão e
e sim morno, eu te vomitarei!” (20). Na principal da sinagoga, postura, aliás, que o Cultura, 1992, pp. 703-38.

classificação bíblica dos animais, dos atos principal teórico do cristianismo, o ex- 18 R. Trumbach, “Sodomite Sub-
cultures, Sodomitical Roles and
e condutas puras e impuras, impera fariseu Paulo, reforçou ao determinar que the Gender Revolution of the
irredutível maniqueísmo: a indistinção das as filhas de Eva jamais usassem a palavra XVIIth Century: The Recent
Historiography”, in Eighteenth-
categorias representa mais do que uma em público (21). Century Life, no 1985, pp. 109-
21.
aberração, é uma abominação detestável, Como muitos outros povos, também os
19 Mary Douglas, Pureza e Peri-
um horror. Por exemplo, “um homem dor- descendentes de Abraão herdaram forte go, São Paulo, Perspectiva,
mir com outro homem como se fosse mu- tradição falocrática: o macho tem no falo a 1976, p. 70.

lher” é abominável pois contradiz a ordem origem e legitimação do seu poder. A mu- 20 Apocalipse, 3:16.
natural prevista pelo Criador, ao dividir os lher vale, primeiro, pelo hímen intacto; 21 I Coríntios, 14:34.

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depois de deflorada por seu legítimo mari- ções vitais de manutenção dessa socieda-
do e senhor, vale pela fertilidade de suas de, sobretudo no tocante à subsistência
entranhas e fidelidade a seu esposo. Falo- material e à segurança. Daí Javé abominar
cracia e himenolatria (22) tornaram-se va- quem ousasse vestir-se com roupa do sexo
lores sustentados pelas noções de honra e oposto. Mulheres masculinizadas, guerrei-
vergonha (23). O levirato – aquele antigo ras, foram até honradas com as bênçãos di-
costume judaico de a viúva ser apropriada vinas, em certos momentos de crise da his-
pelo cunhado sobrevivente – ratifica os tória de Israel. Homem efeminado, ou ves-
direitos do macho sobre todas as mulheres tido de mulher, abominação! Os opostos
do clã. Mulher de meu irmão não será usa- têm de ser mantidos como garantia de que
da por macho estranho: a adúltera e a falsa os fortes continuarão defendendo e man-
virgem eram igualmente condenadas à pena dando nos fracos.
de morte por apedrejamento (24). Acresce-se um crucial fator de afirma-
Nesse contexto de rígida divisão sexual ção religiosa na oposição de nossos ances-
e superioridade masculina, o travestismo e trais à homossexualidade masculina e ao
inversão de gênero, fenômenos observa- travestismo: a condenação da idolatria dos
dos em maior ou menor grau na maioria das pagãos, cujos rituais incluíam a presença
sociedades antigas e contemporâneas (25), de prostitutos sagrados, sacerdotes e deu-
eram repelidos como impertinente desafio ses que tinham no homoerotismo a realiza-
à ordem divina e, portanto, gravíssima abo- ção de nobres ideais de piedade e virtude.
minação: a tentação de alguns homens de Segundo ensinam as modernas pesquisas
vestir-se e viver como se mulheres fossem de exegese bíblica e história comparada das
era severamente punida. “A mulher não se religiões, diversos povos vizinhos dos ju-
vestirá de homem, nem o homem se vestirá deus praticavam a kadeshah, a prostituição
de mulher: aquele que o fizer, será abomi- sagrada, cabendo aos prostitutos homosse-
nável diante do Senhor teu Deus!” (26). xuais, os kadesh, importante papel nos ri-
Para o judaísmo, a unissexualidade é tuais de hierodulia. Assim, ao condenar a
22 Afrânio Peixoto, Sexologia Fo- sempre uma abominação, porém em grau relação sexual entre homens, além dos pre-
rense, Rio de Janeiro, Guana-
diferente de gravidade moral: a mulher que conceitos machistas acima apontados, há
bara, 1934. Este autor baiano
foi quem mais divulgou a ex- se traveste representa uma invasão indébita de se levar em conta na homofobia bíblica
pressão “himenolatria”, enfati-
zando sua importância na cons- no universo próprio dos homens, uma a intenção de negar e abominar a tentação
trução da moral-sexual brasilei- usurpação e ameaça à hegemonia do ma- da idolatria gentílica, que tinha no homoe-
ra naquela época.
cho. Desvio mais fácil de ser controlado e rotismo uma forma piedosa de culto à di-
23 J. G. Peristiany, Honra e Vergo-
nha: Valores das Sociedades com conseqüências menos deletérias. O vindade (28).
Mediterrânicas, Lisboa, Funda-
ção Calouste Gulbenkian,
travestismo no homem representava, e con- Mais que o travestismo, o maior perigo
1988. tinua representando, ameaça muito maior, representado pelo homoerotismo sempre foi
24 Levítico, 2:,10; Deuteronômio, pois é visto como rebaixamento do sexo o questionamento da naturalidade dos pa-
22:2; 13:21.
forte, desonra e sobretudo abdicação im- péis de gênero atribuídos aos dois sexos. Um
25 Vern L. Bullough, Sexual Vari-
ance in Society and History, Chi- perdoável do direito natural e divino à homem que abdica do privilégio de ser guer-
cago, The Chicago University hegemonia do sexo forte. Um homem ves- reiro, ou mesmo de servir como sacerdote
Press, 1976.
tido de mulher rebaixa-se à condição de no altar do Deus dos Exércitos, optando por
26 Deuteronômio, 22:5.
sexo frágil, segundo sexo – ou melhor, ter- tarefas e ocupações inferiores identificadas
27 Vern L. Bullough, Science in
Bedroom . A History of Sex ceiro sexo, para utilizar a terminologia com o universo feminino, provoca uma cri-
Research , New York, Basic muito em voga nos meados do século XIX se estrutural de proporções imprevisíveis,
Books, 1994.
(27). pois tal novidade poderia se tornar preva-
28 E. M. Yamaguchi, “Cultic
Prostitution: a Case Study in Assim sendo, o desejo da androginia ou lente, ameaçando gravemente a perpetuida-
Cultural Diffusion”, in Orient and
Occident, Kevelear, Verlag
da unissexualidade, mais do que uma mera de deste povo e segurança nacional. Muitos
Butzon & Becker, 1973, pp. desobediência estética, era visto como pe- gays, em incontáveis sociedades, distin-
213-22; T. Jonathan Horner,
Jonathan Loved David: Homo- rigosa ameaça à separação e tradicional guem-se dos demais machos exatamente por
sexuality in Biblical Times , antagonismo dos papéis de macho e fêmea, esse hibridismo comportamental e ocupa-
Philadelphia, Westminster,
1978. não apenas no vestir e agir, como nas fun- cional, quando não pela inversão total de

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PRECONCEITO
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 papéis e tarefas socioeconômicas, novidade
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 performática que põe em risco a tradicional
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 divisão sexual do trabalho.
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Outro grave perigo representado pelos
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 sodomitas seria a invasão do homoerotismo
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
nas hostes guerreiras e acampamentos de
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 pastores. Em sociedades rigidamente divi-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 didas pelas fronteiras do sexo, onde homens
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 passavam boa parte do dia isolados entre si,
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 prolongando-se ainda mais tal apartação nos
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 períodos de guerra, a permanência dessas
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 comunidades unissexuais torna quase
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 incontrolável o pipocar de interações
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 homoeróticas. Diversos são os exemplos de
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 povos guerreiros, como os gregos, os índios
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 caduveus, entre outros, cujas culturas, for-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 temente inspiradas pela ideologia antinata-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 lista, permitiam e facilitavam a constituição
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 de parcerias homossexuais nas campanhas
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 militares e academias, predominando nal-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 gumas formações históricas, como entre
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 nossos ameríndios, a formação de “casais”,
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 onde uma das partes assumia papel andrógi-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 no ou tipicamente feminino (29), noutras,
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 como entre os dóricos, os dois parceiros
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 mantinham postura viril, numa relação que
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 a antropologia chamaria de reciprocidade
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 equilibrada (30).
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
NAS TREVAS DO PRECONCEITO
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Um traço significativo chama a atenção
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 no estudo da homossexualidade ocidental:
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 a inexistência de comprovação de que a lei
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 de Moisés, condenando à morte por
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 apedrejamento “o homem que dormir com
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 outro homem como se fosse mulher”, te-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 nha efetivamente sido cumprida. Nas es-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 crituras sagradas não há referência a ne-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 nhuma execução, e durante os muitos sécu-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 los que os judeus estiveram submetidos a
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 29 Luiz Mott, “Ethno-histoire de
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 diferentes cativeiros, depois que o Reino
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 l’Homossexualité en Amérique
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Latine”, in François Crouzet
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 da Judéia perdeu sua independência, não
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 (ed.), Pour l’Histoire du Brésil,
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 dispunham de autonomia legal para aplicar Paris, L’Harmattan, 2000, pp.
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 285-303.
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 a pena de morte de acordo com as prescri-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 30 K. J. Dover, A Homossexuali-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 ções do Levítico (31). Curioso que, em vez
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 dade na Grécia Antiga, São
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Paulo, Nova Alexandria,
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 de cenas de apedrejamento, o Antigo Tes-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 1994.
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 tamento revela quando menos “um caso de
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 31 Wayne Dynes, op. cit., “Post-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 amor descaradamente homossexual: a ami- Biblical Judaism”, p. 642.

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zade imorredoura entre Davi e Jônatas”. al, já seria utilizada desde o século XIII, na
Apesar de alguns biblistas insistirem que língua catalã-provençal, como equivalente
se tratava de um amor meramente espiritu- de “rapaz alegre”. Ainda nesta linha, pre-
al, a que rotulam de ágape, cada vez mais, tendem os seguidores desta corrente inter-
os exegetas entendem que se tratava mes- pretativa que a própria associação da des-
mo do amor inspirado em eros, “o mesmo truição de Sodoma e Gomorra, e a conse-
tipo de relação existente entre Aquiles e qüente identificação da “sodomia” à cópu-
Pátroclo na Ilíada, à de Gilgamesh e la anal, foi uma construção historicamente
Enquidu na Epopéia de Gilgamesh, e à de datada, a partir do primeiro século da era
Alexandre Magno e Hefestion”. Afirma- cristã, com nítida influência do estoicismo,
ção tão ousada não é de um militante gay, tanto que uma dezena de profetas e o pró-
mas do sacerdote Tom Horner, doutor em prio Cristo atribuem a destruição dessas
Literatura Religiosa pela Universidade de duas cidades não à imoralidade sexual,
Columbia, autor de O Sexo na Bíblia (32). muito menos ao homoerotismo, mas a ou-
As palavras de Davi, quando da morte de tros pecados considerados na época mere-
seu parceiro, não deixam dúvidas dessa cedores de severa punição divina, como a
paixão homoerótica: “Meu coração chora falta de hospitalidade e a impiedade (35).
por tua causa, meu irmão Jônatas; quão Portanto, foi com base numa interpretação
agradável me eras: mais delicioso me era o errônea, e em contradição aos principais
teu amor do que o amor das mulheres” (33). escritores bíblicos, inclusive aos comentá-
Segundo analisa o mesmo estudioso, “tais rios do próprio Filho de Deus, que alguns
homens não eram de forma alguma efemi- padres da Igreja passaram a identificar o
nados: eram guerreiros amigos, essencial- pecado de Sodoma com a homossexualida-
mente bissexuais”. de, elaborando argumentos teológicos que
Duas correntes de historiadores dispu- serviram de justificativa para a punição de
tam entre si a melhor interpretação da evo- seus praticantes (36).
lução da intolerância anti-homossexual na Segundo o dr. Boswell, teria sido somente
tradição judaico-cristã. A explicação tradi- a partir do século XIII que a Europa presen-
cional, inspirada nos próprios textos bíbli- cia o desenvolvimento generalizado de dois
cos e no historiador Josephus, contempo- ódios que marcarão profundamente nosso
râneo de Cristo, defende que desde os tem- mundo no último milênio: a homofobia e o
pos do Levítico, sem solução de continui- anti-semitismo. No caso da intolerância anti-
dade, predominou a intolerância máxima homossexual, é sobretudo graças ao
contra os “sodomitas”, assim como em re- dominicano Santo Tomás de Aquino (1225-
lação às demais expressões sexuais que não 1274) que a sodomia passa a ser oficialmen-
32 Tom Horner, O Sexo na Bíblia, fossem a conjugalidade monogâmica. te considerada peccatum contra naturam, e
Lisboa, Futura, 1980.
A outra interpretação, com base nas os homossexuais confirmados como provo-
33 II Samuel, 1:26.
eruditas e inéditas pesquisas do dr. John cadores de castigos divinos e toda sorte de
34 Eis o que o “Doutor Iluminado”,
o beato e mártir Lúlio, escrevia Boswell, em seu clássico Christianity, So- calamidades à cristandade:
em 1277: “Dize, louco de
amor: Como se obtém a maior
cial Tolerance and Homosexuality, defen-
comparação e semelhança? – de que o primeiro milênio do cristianismo “Sobre todos os pecados, bem parece ser o
Com o amigo e o amado, res-
pondeu. – E por que motivo? – foi muito mais tolerante à homossexuali- mais torpe, sujo e desonesto o pecado de
Pelo amor que há entre os dois, dade do que vulgarmente se imagina: pa- Sodomia, e não é achado um outro tão abor-
retrucou”. Raimundo Lúlio, Livro
do Amigo e do Amado, São dres, reis e nobres, até santos, foram publi- recido ante a Deus e o mundo, pois por ele
Paulo, Loyola, 1989, p. 94.
camente reconhecidos como amantes do não somente é feita ofensa ao Criador da
35 Anthony Kosnick et al., A Sexua-
lidade Humana. Novos Rumos
mesmo sexo; poesia e prosa, de inspiração natureza, que é Deus, mais ainda se pode
do Pensamento Católico Ame- cortesã ou mística, cantam o amor pelo dizer, que toda a natureza criada, assim
ricano , Petrópolis, Vozes,
1983, p. 239. amigo (34); a própria expressão gay, popu- celestial como humana, é grandemente
36 Mark D. Jordan, The Invention larizada nos meados do século XX nos ofendida: somente falando os homens nes-
of Sodomy in Christian Theo- países de língua inglesa, e depois univer- te pecado, sem outro ato algum, tão grande
logy, Chicago, The University
of Chicago Press, 1997. salmente, como sinônimo de homossexu- é o seu aborrecimento que o ar não o pode

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sofrer, mas naturalmente fica corrompido nização até o presente.
e perde sua natural virtude. Por este pecado Começo analisando a percepção do peri-
lançou Deus o dilúvio sobre a terra e por go representado pela crescente presença da
este pecado soverteu as cidades de Sodoma sodomia no mundo eclesiástico medieval e
e Gomorra; por este pecado foi destruída a a reação da hierarquia católica visando à
Ordem dos Templários por toda a Cristan- erradicação desse perigoso pecado.
dade em um dia. Portanto mandamos que Embora os livros penitenciais – que
todo homem que tal pecado fizer, por qual- serviam como orientação teológica aos con-
quer guisa que ser possa, seja queimado e fessores, desde o século VI até o X – con-
feito pelo fogo em pó, por tal que já nunca tenham sempre, quando menos, um cânone
de seu e corpo e sepultura possa ser ouvida condenatório da sodomia, é São Pedro
memória” (37). Damiani (1007-1072) o primeiro autor a
dedicar toda uma obra à incriminação da
Como se constata, diversas tragédias da homossexualidade. Trata-se do clássico
história humana foram atribuídas aos aman- Liber Gomorrhianus (Livro de Gomorra),
tes do mesmo sexo: o dilúvio universal, a datado de 1049, oferecido ao papa Leão
destruição de Sodoma, Gomorra e das cin- IX, onde este escrupuloso sacerdote pro-
co cidades circundantes. O principal teólo- põe uma pastoral dirigida aos clérigos a
go franciscano medieval, São Boaventura fim de fazê-los abandonar o abominável
(1221-1274), defendia que a razão da de- pecado de sodomia, sugerindo igualmente
mora de Jesus Cristo se encarnar, desde a medidas punitivas contra os relapsos. O
remota promessa feita por Javé a Abraão, motivo que o levou a escrever tal obra é
se devia ao fato de a terra estar sobremanei- indicado logo no prefácio: “o crescimento 37 A. A. Aguiar, Evolução da
Pederastia e do Lesbismo na
ra infestada de sodomitas, e que na noite de deste vergonhoso e abominável vício”, se- Europa, separata de Arquivo
da Universidade de Lisboa, vol.
Natal morreram multidões dessas imundas gundo ele, perigosíssimo e hediondo. Seu XI, 1926, p. 519.
criaturas (38). Além de ter causado o texto é um dos libelos mais homofóbicos 38 “Na noite do Natal, poucas
desmantelamento da famigerada Ordem que se escreveu em toda história humana: horas antes que nascesse Je-
sus, houve queima geral no
dos Templários (1123-1312), atribui-se aos “A sodomia ultrapassa a sordidez de todos mundo todo, como dizem mui-
homossexuais a derrocada de dois grandes os vícios. É a morte dos corpos, a destrui- tos graves doutores da Igreja,
que Deus fez nos infamados
impérios antigos: a queda do Império Ro- ção das almas. Este vício possui a carne, do vício de sodomia. Nosso
pai São Boaventura é um dos
mano e a perda da Andaluzia pelos mouros. extingue a luz da mente. Expulsa o Espírito doutores que isto dizem e, na
Razões abundavam, no imaginário popu- Santo do templo do coração humano, intro- verdade, a razão assim o pe-
dia, porque como havia de pôr
lar, para se temer o amor homoerótico! (39). duz o Diabo, que incita à luxúria. Induz ao a pureza do céu, Jesus Cristo,
o pé na terra, estando com tão
Tomarei, como fio condutor para inter- erro, remove completamente a verdade da diabólica luxúria contamina-
pretar o recrudescimento da intolerância mente que foi ludibriada, abre o inferno, da?” (Frei Anselmo de Jesus,
Sermão do Auto de Fé, Lisboa,
anti-homossexual na baixa Idade Média, fecha a porta do paraíso. Este vício tenta 1621, Biblioteca Nacional de
três hipóteses, todas elas direta ou indireta- derrubar as paredes da casa celestial e tra- Lisboa, Reservados, 21767-8).

mente vinculadas ao temor do componente balha na restauração das muralhas recons- 39 Josiah Blackmore, e Gregory
S. Hutcheson, Queer Iberia:
perturbador e revolucionário associado à truídas de Sodoma, pois viola a sobrieda- Sexualities, Cultures and Cross-
ings from the Middle Ages to
homossexualidade, a saber: tentativa de de, mata a modéstia, sufoca a castidade e The Renaissance , London,
expurgar a expansão do homoerotismo no extirpa a irreparável virgindade com a ada- Duew University Press, 1999.

clero e nas ordens religiosas; reação à ga do contágio impuro. Conspurca tudo, 40 São Pedro Damiani, Book of
Gomorrah. A Eleventh-Century
depopulação da Europa decorrente da desonrando tudo com sua nódoa, poluindo Treatise against Clerical Homo-
peste negra; estratégia para impedir a tudo. Não permite nada puro, nada limpo, sexual Practices, Waterloo,
Wilfrid Laurier University Press,
vulgarização do amor erótico/romântico nada além da imundície” (40). 1982.
como móvel das uniões conjugais. Diversos historiadores confirmam que, 41 Michael Goodich, The Unmen-
tionable Vice. Homosexuality
Meu escopo ao vistoriar estas macro- durante boa parte da Idade Média, a sodomia in the Later Medieval Period,
tendências da ideologia moral-sexual da passou a ser popularmente conhecida como Santa Barbara, Ross-Erikson,
Publisher, 1979; Jeffrey
cristandade ocidental é ambicioso: referen- vício dos clérigos, de tal modo era cultuada Richards, Sexo, Desvio e Da-
ciá-las à gênese da homofobia tal qual se dentro dos conventos, mosteiros, igrejas e nação. As Minorias da Idade
Média, Rio de Janeiro, Jorge
cristalizou no Brasil desde a época da colo- cabidos (41). Minhas pesquisas na docu- Zahar, 1993, p. 140.

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mentação da Inquisição Portuguesa confir- ser místico e acético. Um clero homosse-
mam essa mesma tendência na Península xual coloca em xeque a própria seriedade
Ibérica ao longo dos séculos XVI ao XVIII: da vida monástica, por trazer o pecado da
numa lista de mais de 4 mil denunciados e/ sensualidade para dentro das dependências
ou confessados constantes nos Repertórios religiosas – o que era muito mais difícil de
do Nefando, assim como na relação de mais ser controlado do que as relações com o
de 400 sodomitas efetivamente presos e sexo oposto, posto que as mulheres sempre
processados pelo Santo Ofício, um terço foram rigidamente impedidas de entrar na
desses indivíduos eram clérigos, sacerdo- clausura (e vice-versa, no tocante aos ho-
tes e religiosos, valendo, por conseguinte, mens adentrarem-se em instituições femi-
também para o mundo ibérico a identifica- ninas).
ção da sodomia como vicium clericorum Se São Pedro Damiani distinguiu-se por
(42). sua cruzada contra a sodomia intraclaus-
Para evitar que os fiéis, ao serem recri- tros, um outro santo reformador direcionou
minados pelas autoridades eclesiásticas, particularmente sua pregação anti-sodo-
pela prática de condutas imorais, não repe- mítica aos libertinos do mundo: o francis-
tissem o ditado bíblico, “médico, cura-te a cano São Bernardino de Sena (1380-1444).
ti mesmo!” (43), urgia que a moralização
dos costumes se iniciasse dentro das pró- “Embora o pecado de sodomia fosse tradi-
prias hostes clericais, daí a importância do cionalmente referido como vício inomi-
Livro de Gomorra como marco dessa cam- nável, este não é decididamente o caso de
panha contra o relaxamento dos costumes Bernardino. Ele o menciona com tal fre-
intraclaustros. A forte presença do amor qüência que foi considerado o mais expres-
homossexual entre os clérigos colocava em sivo e vívido comentarista a respeito da
xeque um dos alicerces da moral cristã: a sodomia na Itália na baixa Idade Média…
superioridade da castidade e do celibato vis- sendo o principal responsável pela exacer-
à-vis não só a incontinência sexual, como bação da grande paúra do Quatrocento ita-
em face dos próprio matrimônio, posto que liano, a sodomia, inspirando a primeira
a Teologia Moral defendia que o estado perseguição do comportamento homosse-
religioso, com a adoção dos três votos (po- xual em larga escala na história européia,
breza, castidade e obediência), representa- registrado em Florença e outras cidades
va um estado mais elevado de perfeição do italianas. Ao lado do anti-semitismo e a an-
que a opção conjugal. Inúmeros católicos, siedade da caça às bruxas, a época de São
inclusive colonos do Brasil, foram denun- Bernardino é marcada pelo surgimento da
ciados e perseguidos pelas diversas intolerância à atividade homogenital, tal
inquisições modernas exatamente por de- qual está documentado na literatura e le-
fenderem a proposição herética que “é gislação eclesiástica e civil, podendo-se
42 Luiz Mott, “Pagode Português:
a Subcultura Gay em Portugal melhor casar do que ser padre” (44). Mais falar de uma sodomofobia como um fenô-
nos Tempos da Inquisição”, in ainda: Pedro Damiani estabelece vincula- meno de intolerância crescente através da
Ciência e Cultura, vol. 40, fev/
1980, pp. 120-39; R. Carras- ção direta entre a sodomia, heresia, lepra e Europa, tal qual foi estudada por Boswell e
co, Inquisición y Represión Se-
xual em Valencia, Barcelona,
o diabo, sendo considerado este pecado Greenberg” (45).
Laerte, 1985. mais grave do que o incesto.
43 Lucas, 4:23. A homossexualização do clero repre- Bernardino costumava afirmar que Flo-
44 Ronaldo Vainfas, Trópico dos sentava um enorme risco não só por servir rença era pior do que Sodoma e Gomorra,
Pecados. Moral, Sexualidade
e Inquisição no Brasil, Rio de de mau exemplo e estímulo para o relaxa- e que a Toscana tinha a mais baixa popula-
Janeiro, Campus, 1989. mento moral dos leigos, mas também, como ção do mundo por causa do grande número
45 Franco Mormando, The bem enfatizava Damiani, a presença de de amantes do mau pecado – atribuindo a
Preacher’s Demons. Bernardino
de Siena and the Social padres homossexuais desacreditava a pu- essa abominação a causa da peste que asso-
Underworld of Early Renaissance reza das relações dos “pais espirituais” com lou a Itália naquele período (46).
Italy, Chicago, The University of
Chicago Press, 1999. seus “filhos”, na medida em que tornava A opinião de São Bernardino de Sena,
46 J. Richards, op.cit., p. 149. carnal e libidinoso o que devia primar por relativamente ao papel dos amores unis-

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sexuais como causa da diminuição popula- Whitam, estudando diferentes culturas con-
cional, dá a pista para melhor entender o temporâneas, chegou à média de 6% como
recrudescimento da homofobia na baixa o total de homossexuais exclusivos, inde-
Idade Média e sua posterior legitimação, pendentemente do maior ou menor grau de
no mundo ibero-americano, através dos tolerância regional (48).
tribunais da Santa Inquisição. A homosse- Há provas antropológicas e históricas
xualidade é apontada como motivadora não que confirmam tal assertiva: dois exem-
só de castigos divinos pretéritos e futuros, plos clássicos remetem-nos às sociedades
representando igualmente deletério risco à tribais da Nova Guiné e ao Japão novecen-
recuperação do crescimento habitacional tista. Os etoros, papuanos negróides da
após a dramática depopulação da Europa Oceania, pertencem a uma cultura que po-
em decorrência da peste negra. A associa- deríamos chamar de homossexualista, de
ção implícita ou explícita do amor unis- tal forma é oposta à nossa tradição
sexual ao risco da bancarrota demográfica heterossexista abraâmica: todos os rapazes
tem sido uma constante ao longo da histó- dessa tribo, quando entram na puberdade,
ria humana. são confiados a um jovem adulto, que tem
Mesmo em nossos dias, quando a hu- como obrigação transmitir ao adolescente,
manidade se vê confrontada com o espec- por via anal, seu próprio sêmen, justifican-
tro da explosão demográfica, os homosse- do os nativos que essa é a única forma de
xuais continuam sendo acusados de cons- tornar aquele jovem iniciando num homem
tituírem uma grave ameaça à sobrevivên- de verdade, futuro transmissor de esperma.
cia de nossa espécie: é comum ouvirmos, Se não receber sêmen pelo ânus, não pode-
entre intelectuais e gente do povo, o argu- rá, quando adulto, fecundar sua futura
mento de que se for completamente libera- mulher. Esses povos cumprem à risca um
do o homoerotismo, a humanidade corre ditado comumente ouvido na Bahia con-
inevitável risco de extinção. Mais do que temporânea: “o baiano dá de pequeno para
ledo engano, tal assertiva indica claramen- não dar de grande…”, provérbio que eu,
te o quanto a sociedade heterossexista teme paulistano radicado na Boa Terra e cidadão
a normalização dos amores unissexuais, soteropolitano diplomado pela Câmara
pois suspeita que sua liberação redundaria Municipal, a bem da verdade, atesto ser
num crescimento incontrolável de homens pura maledicência…
e mulheres que deixariam de interagir se- Tão homossexualista é a cultura etoro,
xualmente, pondo em xeque a perpetuida- assim como a de diversas outras socieda-
de de nossa descendência. Subjacente a este des da Oceania, que a cópula heterossexual
enunciado, está a crença inconfessa de que é proibida de 205 a 260 dias por ano, estan-
a maioria dos casais de homens e mulheres do limitada a certos espaços marginais à
continua a praticar o heterossexualismo por aldeia, rodeada de uma série de restrições
mera imposição da moral dominante. heterofóbicas.
Heterossexualidade compulsória e por de- Pois bem: mesmo nessa sociedade radi-
creto, portanto… calmente homossexualista, estudos reve-
O já citado dr. Boswell, assim como A. lam que a taxa anual de fecundidade da
Kinsey e F. Whitam, são unânimes em re- população se reduz em apenas 15%, se com-
conhecer o contrário dessa crença alarmis- parada com os demais povos heteros-
ta: “Não há teoria científica contemporâ- sexistas, não chegando portanto essa práti-
nea relativa à etiologia da homossexuali- ca privilegiada do homoerotismo a amea-
dade que defenda que a tolerância social çar a perpetuidade desses exóticos exem-
determina sua maior incidência. Mesmo plares da espécie humana (49). 47 Boswell, op.cit., pp. 8-9.
teorias puramente biológicas postulam uni- Um outro exemplo histórico que con- 48 Frederick Whitam, Male Homo-
formemente que a homossexualidade seria sexuality in Four Societies, New
tradiz a fobia irracional de que a liberação York, Praeger, 1986.
uma preferência minoritária sob qualquer homossexual possa provocar o fim de nos-
49 Dennis Werner, op. cit., pp.
condição, mesmo nas mais favoráveis” (47). sos semelhantes remete-nos ao Japão antes 345-62.

REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 40-59, março/maio 2001 51


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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
da restauração da dinastia Meiji (1865), 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
quando a prática homossexual era social- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
mente aceita como comportamento normal 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
e moralmente correto. Hoje se sabe que 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
grande parte dos valorosos samurais e a 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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S D MA
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maior parte dos delicados atores transfor- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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mistas do teatro nô e kabuki eram pratican- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
tes do homoerotismo, gozando de enorme 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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admiração e aplauso geral (50). Pois bem: 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
comprova a demografia histórica que, ape- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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I
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
sar da grande tolerância e prática generali- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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zada da homossexualidade, a população 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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nipônica cresceu naquele período até os 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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limites extremos da subsistência física, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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derrubando-se assim as ilações alarmistas 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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de que a liberação do amor entre parcei- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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ros(as) do mesmo sexo levaria necessaria- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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mente à depopulação e extermínio do Homo 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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sapiens (51). 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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Apesar de há décadas ser este o ensina- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

O
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mento de diferentes ramos do saber, persiste 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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no imaginário coletivo esta conclusão sim- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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plista: já que os homossexuais não reprodu- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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zem – “bicha com bicha dá lagartixa”, “mu- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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lher com mulher dá jacaré”, ou ainda, “ho- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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mem com homem dá lobisomem” –, gays e 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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lésbicas representam séria ameaça à sobre- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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vivência humana. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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Esta é uma das explicações da recru- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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descência da homofobia logo após a enor- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
me mortandade registrada na Europa em 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
conseqüência da peste negra: “os homos- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
sexuais se tornaram bodes expiatórios para 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
a peste e para o declínio populacional, e 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
eram claramente vistos como um ultraje
para o código de respeitabilidade burgue-
sa, recém-estabelecido e influenciado pe-
O
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
las Ordens Mendicantes”. Como se sabe, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
aproximadamente 40% da população eu- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
50 Ihara Saikaku, The Great Mirror ropéia pereceu em conseqüência da peste 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
of Male Love , Stanford, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
Stanford University Press, negra (1348), provocando enorme desequi- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
1990. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
líbrio sociodemográfico, inclusive em Por- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
51 Luiz Mott, “Antropologia, Po- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
tugal, daí a necessidade premente de 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
pulação e Sexualidade”, in Re- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
vista Gente, Departamento de repopular vastos territórios desertificados 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
Antropologia da UFBa, no 1, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
de gente após tamanha mortandade. Além 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
jul.-dez./1984, pp. 87-103. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
52 J. Richards, op. cit., p. 150. de “os pregadores invariavelmente atribu- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
írem o início da Peste Negra à sodomia” 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
53 Donald J. Kagay and Theresa 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
M. Vann, “Peste Negra: The (52), o desperdício do sêmen por parte dos 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
Fourteenth-Century Plague 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
sodomitas passou a ser ainda mais atenta- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
Epidemics in Iberia”, in On the 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
Social Origins of Medieval 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
tório dada a calamidade populacional vivi- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
Institutions, Leiden, E. J. Brill, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
da numa quadra tão dramática (53). 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
1998, pp. 47-62. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

52 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 40-59, março/maio 2001


Se de um lado a imoralidade do clero e discernimento e não com paixão e, conse-
o espectro da peste desencadearam reações qüentemente, controlar seus desejos e não
de intolerância localizadas ou regionais se deixar levar à copulação. Nada é mais
contra os sodomitas, uma terceira hipótese imundo do que amar a sua mulher como
explica a generalizada onda de desconfian- uma amante” (57).
ça e repressão aos amores unissexuais – Dentro desse estóico código moral, o
onde novamente se revela o temor de seu amor deve suceder ao casamento e não
caráter intrinsecamente revolucionário e necessariamente precedê-lo, obrigando a
demolidor: a preservação do padrão tradi- Santa Igreja a se dar publicidade da ceri-
cional do casamento heterossexual e da mônia nupcial como forma de controlar os
constituição da família burguesa. Os gays desejos, interferir nas alianças familiares,
foram vistos, e de fato assim agiram, em exigindo para tanto que os proclamas fos-
variegados contextos históricos, como pe- sem realizados com bastante antecedência,
rigosos “filhos da dissidência”. evitando-se assim os riscos da fraude e
Segundo relatam os etnógrafos, a quase sobretudo o pecado e crime da bigamia. A
totalidade das sociedades humanas teve burocratização cartorial do matrimônio,
como critério definidor dos enlaces matri- formalizada a partir de então, além de ga-
moniais, não o amor romântico ou paixão rantir muitas benesses e polpudas espórtulas
sexual, mas os interesses patrimoniais de ao clero, visava o controle integral, através
aliança das famílias dos nubentes. Matri- dos sacramentos, de todo o ciclo vital do
mônio = Patrimônio. Ainda no tempo de rebanho dos fiéis: batismo no nascimento,
nossos avós ou bisavós, sobretudo nas clas- matrimônio na maturidade sexual, extre-
ses mais abastadas e controladas pela mo- ma-unção na hora da morte (58).
ral cristã, predominavam os casamentos ar- Uma perigosa brecha persistia, porém,
ranjados, onde o que menos importava era embutida na tradição cristã: segundo o di-
a vontade dos noivos. Na esteira da tradi- reito canônico medieval, os próprios
ção judaica, ao longo de toda a Idade Mé- nubentes eram reconhecidos como os legí-
dia, os cristãos continuam a visualizar a timos ministros do matrimônio, bastando
mesma finalidade no casamento: antídoto para sua validação legal que o casal decla-
contra a tentação sexual e a geração de rasse perante uma testemunha, podendo ser
numerosa prole. Casa-se para procriar, de inclusive um leigo, que a partir daquele
preferência filhos homens. Filhos numero- instante passavam ambos a reconhecer-se
sos são interpretados como inefável bên- e coabitar como marido e mulher. Tal pos-
ção divina e felicidade suprema. A esteri- sibilidade canonicamente válida colocava
lidade da mulher representa desgraça má- em grave risco o controle da família cristã,
xima, castigo de Deus. O apóstolo Paulo e desde quando sobretudo os jovens, “tenta-
Jesus reinterpretam neste particular a Lei dos pelo demônio”, realizavam clandesti-
de Moisés, passando o cristianismo a con- namente o chamado “casamento de pala-
denar o divórcio (54), embora somente a vras”, arruinando os projetos de aliança
partir do século XIII a Igreja confira ao familiar zelosamente construídos pelos
54 Serafin Sudejo, Diccionario de
casamento o status de sacramento, ao lado progenitores. la Biblia, Barcelona, Editorial
do batismo e da ordem (55). Foi somente o Concílio de Trento (1545- Herder, 1964.

Teólogos, como o bispo Huguccio e Jean 1563) que proibiu rigorosamente tal práti- 55 P. Ariès e A. Béjin (eds.), Sexua-
lidades Ocidentais, São Pau-
Gerson, defendiam, ainda no século XV, ca, obrigando a divulgação dos banhos lo, Brasiliense, 1985, p. 160
que mesmo dentro do matrimônio o sexo, (“O Amor no Casamento”).
corridos e a presença de um sacerdote ofi-
até na posição “papai-mamãe”, também ciante como condição sine qua non da va- 56 Richards, op. cit., p. 40.

conhecida como “posição do missionário”, lidade desse sacramento, ratificando-se


57 São Jerônimo, Contra Jovinia-
constituía pecado venial (56). Predomina- nesse mesmo sínodo tridentino outro dogma no, I, 49, apud P. Ariès, op.
cit., p. 157.
va, em amplos círculos da cristandade, o relativo à união conjugal católica: a
vetusto ensinamento de São Jerônimo: “Um 58 Georges Duby, Amor e Sexua-
stabilitas – a estabilidade indissolúvel dos
lidade no Ocidente, Lisboa,
homem sábio deve amar sua mulher com casados. Terramar, 1991.

REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 40-59, março/maio 2001 53


“Equilíbrios tão cuidadosamente prepara- moral sexual natural –, ultrajavam com sua
dos e tão frágeis, onde se patenteia o cará- dissidência erótica o ensinamento oficial
ter coercitivo da aliança entre famílias e da ortodoxia, ostentando o caráter revolu-
dos intercâmbios de rapazes e moças, teri- cionário de sua insubordinação às leis divi-
am sido comprometidos se os casamentos nas e insistência na prática do peccatum
pudessem ser rompidos com demasiada fa- contra naturam.
cilidade, e as esposas repudiadas… Tem- Eis o pensamento oficial da Inquisição
se a impressão de que a stabilitas do casa- Portuguesa sobre este particular:
mento precoce era a condição da stabilitas
da comunidade inteira. Cabia à própria co- “O crime de sodomia é gravíssimo e de tal
munidade fazer com que ela fosse respeita- qualidade que houve quem afirmasse com
da” (59). grande fundamento que quem o cometia
era suspeito na fé, e tão contagioso, que
Nesse contexto de crescente domesti- mostra a experiência pois em breve tempo
cação das moralidades, como agiam e eram infecciona não só as casas, lugares, vilas e
vistos os praticantes do amor unissexual, cidades, mas ainda Reinos inteiros, e é
ou melhor, do abominável e nefando peca- obrigação precisa atalhar males grandes e
do de sodomia? Com a palavra nosso já de que Deus tanto se ofende, com meios
conhecido São Bernardino de Sena: eficacíssimos e, para os descobrir, não há
outro meio mais adequado que a denúncia
“Pode existir um jovem rapaz de raros ta- forçada”(62).
lentos, alguém de grande inteligência, fei-
to para realizar maravilhas, mas uma vez Num sermão num auto-de-fé, realiza-
corrompido pela sodomia, ele se transfor- do em Lisboa em 1645, onde foram quei-
ma numa criatura do Diabo. Ele rejeita to- mados diversos sodomitas, esse mesmo
das as coisas naturalmente boas, todos os pensar é assim ratificado: “Sodoma quer
pensamentos de Deus, do Estado, de sua dizer traição. Gomorra, rebelião. É tão
família, rejeita seus negócios, sua honra, contagiosa e perigosa a peste da sodomia,
sua própria alma. Ele só pensa em assuntos que haver nela compaixão, é delito. Fogo
malignos” (60). e todo rigor, sem compaixão nem miseri-
córdia! Tanta força tem o lugar apestado
Quem melhor sintetizou em nossa lín- deste vício que para livrar dele até a um
gua a suposta malignidade revolucionária inocente, é necessário violência de mui-
representada pelos sodomitas foi o cardeal tos anjos” (63).
D. Henrique (1512-80), segundo inquisidor Considero um precioso achado socio-
geral da Inquisição Portuguesa, que, em lingüístico a caracterização dos amantes do
1574, obteve um Breve de Gregório XIII mesmo sexo como “filhos da dissidência”,
59 Ariès, op. cit., p. 178. ratificando a pena de morte aos sodomitas, pois, por mais alienado, enrustido e pré-
60 Richards, op. cit., p. 150. referidos na documentação inquisitorial político que seja um homossexual, sua in-
61 Colectório de Bulas e Breves como “filhos da dissidência” (61). Dissi- subordinação aos cânones da moral oficial
Apostólicos, Biblioteca Nacio- dência, cisma, cisão equivale a se separar representa uma violenta revolução que
nal de Lisboa, Seção de Reser-
vados, Códice 105 A, fls. 75- de uma corporação por divergência de opi- ameaça arruinar os alicerces constitutivos
77.
niões, atentar contra a tão desejada unida- da hegemonia do macho e da sociedade
62 Tribunale Perfectum sive Comen- de do orbe católico, “um só rebanho e um heterossexista. Ao tomar como móvel da
taria ad Regimen Sancti Officii
Regni Portugaliae, Manuscritos só pastor!”. Os sodomitas atentavam con- aproximação dos corpos tão-somente a
da Livraria, Arquivo Nacional
da Torre do Tombo, n. 1358- tra esse desiderato ideológico, assustando paixão erótica e eventualmente o amor ro-
1359, Joannis Alvares Soares, todas as camadas sociais, dos donos do mântico, os gays, desde priscas eras, privi-
Tomo I, Gloss. 38.
poder ao populacho. Tanto quanto ou até legiaram a emoção e o prazer em detrimen-
63 Frei Felipe Moreira, Cônego de
Santo Agostinho, Sermão do mais que os hereges, os filhos da dissidên- to da reprodução biológica ou das alianças
Auto de Fé, Lisboa, 25-6-1645, cia, devido ao seu inconformismo numa patrimoniais. Anteciparam em milênios o
Biblioteca Nacional de Lisboa,
Reservado 3243, P. questão reputada como indiscutível – a que Freud antevia como elemento desesta-

54 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 40-59, março/maio 2001


bilizador da hierarquia dos sexos em nossa sexista e falocrática, onde as regras de
civilização: a possibilidade de libertar os comportamento de gênero e o erotismo são
amantes de uma gravidez indesejável numa definidos hierarquicamente garantindo a
sociedade que desconhecia métodos efica- supremacia do macho. As uniões nôma-
zes de anticoncepção. Foram os homosse- des ou passageiras, a “promiscuidade”, a
xuais os apóstolos do sexo livre, descom- rotatividade de parceiros e inversão de
prometido do espectro da gravidez inde- performances, a androginia são mais al-
sejada, dissidentes da dominante endoga- guns elementos revolucionários da subcul-
mia de classe e raça (64). tura gay, já documentada no mundo luso-
Uma segunda e não menos assustadora brasileiro desde o século XVI, constantes
ameaça dos filhos da dissidência nestes ainda hoje em dia (65), que questionam e
quatro mil anos de história pós-abraâmica assustam a sacralidade e indissolubilidade
tem sido o questionamento da cruel dos vínculos matrimonias dos casais hete-
hegemonia falocrática do macho todo-po- rossexuais. Daí a repulsa neurótica de al-
deroso, da perpetuação da hierarquia patri- guns homófobos mais autoritários que se
arcal através de contratos nupciais, onde a opõem tenazmente à legalização da parce-
cobiça do patrimônio prevalece no matri- ria civil e mais ainda, ao casamento gay,
mônio, onde o prazer sexual e emocional é alegando que a família e o matrimônio
relegado à periferia da instituição conju- heterossexual estariam gravemente amea-
gal. Os homossexuais, inversamente, ao çados. Novamente aqui, a mesma fobia
privilegiarem desde sempre a atracão físi- mitológica, de que a liberação homossexu-
ca, a emoção, o amor e paixão, como ingre- al redundaria na bancarrota da heteros-
dientes indispensáveis dos arranjos íntimos sexualidade. Freud explica…
interpessoais, tornaram-se, historicamen-
te, se não os inventores, quando menos os
precursores e principais praticantes do amor
romântico, isto, muitíssimos séculos antes SODOMA TROPICAL
da paixão impossível de Romeu e Julieta e
dos trovadores medievais. Após ter discutido a gênese do precon-
Tal dissidência inovadora ao modelo ceito anti-homossexual na tradição abraâ-
erótico-sentimental dominante foi altamen- mica e mostrado que no imaginário de nos-
te reprimida por ser causadora de incon- sos antepassados da Antigüidade, durante
trolável desestabilização da autoridade do boa parte da Idade Média e particularmen-
pater-familias e da família patriarcal, tanto te na Península Ibérica a partir da Idade
que o casamento de palavras passou a ser Moderna, o amor entre pessoas do mesmo
perseguido como grave delito do conheci- sexo foi violentamente reprimido devido a
mento da justiça eclesiástica, posto repre- seu caráter eminentemente revolucionário
sentar uma forma também revolucionária e e desestabilizador de significativos princí-
insurgente de os jovens contestarem o au- pios e regras sociais considerados basilares
toritarismo familiar. para nossos ancestrais, concluo este pas-
A repressão anti-homossexual tem a ver seio pelos alicerces, ruínas e fantasmas de
diretamente com o medo representado pelo Sodoma, mostrando como a fobia à homos-
cisma, quase heresia, representada pelo sexualidade na sociedade brasileira contem-
estilo de vida dos sodomitas, onde estão porânea tem relação direta com o projeto
reunidos ingredientes explosivos, tais como civilizatório do macho português no con-
64 Daniel Guerin, A Revolução Ho-
a democracia sexual, o questionamento da texto escravista do Novo Mundo. Nova- mossexual, São Paulo, Brasilien-
hierarquia dos gêneros, a alternativa da mente aqui, é a etno-história que nos forne- se, 1980; Guy Hocquenghem,
A Contestação Homossexual,
unissexualidade, a inversão dos papéis se- ce a melhor pista para desvendar o São Paulo, Brasiliense, 1980.
xuais, o travestismo, a transexualidade, background ideológico da homofobia con- 65 Luiz Mott, A Cena Gay de
todos comportamentos e condutas altamen- temporânea. Salvador em Tempos de Aids,
Salvador, Editora Grupo Gay
te desestabilizadores da sociedade heteros- Ao desembarcarem na Terra dos Papa- da Bahia, 2000.

REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 40-59, março/maio 2001 55


gaios os colonizadores traziam arraigados bestalidade por proeza. E nas suas al-
em suas consciências forte sentimento anti- deias pelo sertão há alguns que têm ten-
homossexual, registrando-se alguns casos da pública a quantos os querem como
de sodomitas que foram ameaçados de ser mulheres públicas” (67).
jogados no mar, ou gravemente agredidos,
durante as viagens transoceânicas, acusa- Assim, o primeiro perigo a ser evitado
dos de serem eles os causadores da ira di- pelos colonizadores era o risco do “contá-
vina, manifesta através das calmarias, tem- gio” pelo mau pecado. Temor e risco am-
pestades ou epidemias ocorridas durante a pliado com a chegada dos primeiros escra-
viagem. Mitos homossexuais povoavam o vos da Guiné, posto que, também na Áfri-
imaginário de nossos colonos: já em 1594, ca, documentação fidedigna atesta que o
malgrado o mandamento paulino de que “vício dos bugres” era igualmente conhe-
“estas coisas não sejam sequer menciona- cido, praticado e, em certas etnias, social-
das entre vós”, as pessoas não resistiam à mente aceito e até divinizado. Não é por
tentação de conversar e até citar “causos” menos que o primeiro travesti documenta-
tendo o amor italiano como mote. Eis um do na história pátria é um negro, Francisco
exemplo: Estêvão Cordeiro, 31 anos, la- Manicongo, membro de uma seita de temi-
vrador residente no Engenho Carnijo, na dos feiticeiros homossexuais de tradição
freguesia de Santo Amaro, em Pernambu- banto (68).
co, confessou perante o Inquisidor que, Acresce-se um outro fator à temida
“estando em prática com alguns vizinhos, homossexualização da América Portugue-
não se lembra em que tempo nem a que sa: o próprio perfil heterodoxo dos primei-
propósito, disse que em Roma andavam as ros povoadores da novel colônia. Já em 1549
mulheres com os peitos descobertos e que desembarca em Pernambuco, na época ain-
os Padres Santos concediam indulgências da chamada de Nova Lusitânia, o primeiro
aos homens que com elas dormissem car- sodomita degredado pela Inquisição: Es-
nalmente, por respeito de com isso divertir têvão Redondo, criado do governador de
aos homens de fazer o pecado nefando…” Lisboa, tendo seu nome assentado no Li-
(66). A fama de que a Itália e Roma em vro dos Degredados com o selo do pró-
particular eram sucursais de Sodoma e prio governador local (69). Seguindo a
Gomorra impregna o imaginário luso-bra- este, nas décadas subseqüentes, diversos
sileiro ao longo de toda a história moderna. outros degredados sodomitas, jovens e
Após séculos e séculos de condenação adultos, estabelecem-se sobretudo nas
e repressão ao “mau pecado” eis que os capitanias do Nordeste, todos inculpados
reinóis confrontam-se de repente, na Terra no “vício nefando”, alguns, considerados
Brasilis, com povos que além de viverem pelos inquisidores como “incorrigíveis”.
nus, sem nenhum pejo ou vergonha, osten- A imensidão do território e sua ocupação
tavam práticas sexuais completamente an- rarefeita, o afrouxamento da moral e rela-
tagônicas à moral cristã, incluindo incesto, xamento do clero são alguns dos fatores
poligamia e outras “perversões”, então ro- que tornavam nossa terra um paraíso para
66 Confissões e Denunciações de
Pernambuco, 1593-1595, Re- tuladas de “invenções diabólicas”, sobre- quantos quisessem se entregar aos amores
cife, Coleção Pernambucana,
Fundarpe, 1984, pp. 27.
tudo a generalizada prática do abominável proibidos.
e nefando pecado de sodomia. Diz um cro- Portanto, preocupados em evitar que a
67 Gabriel Soares Sousa, Trata-
do Descritivo do Brasil, São nista na Bahia em 1587: Terra de Santa Cruz se tornasse uma
Paulo, Civilização Brasileira,
1971, p. 308. reedição tropicalista de Sodoma e Gomor-
68 Luiz Mott, “Relações Raciais “Os Tupinambá, não contentes em an- ra, El Rei delibera cortar a cabeça da hidra
entre Homossexuais no Brasil darem tão encarniçados na luxúria natu- sodômica em seu nascedouro: no próprio
Colonial”, in Revista de Antro-
pologia, USP, vol. 35, 1992, ralmente cometida, são muito afeiçoa- regimento de instalação das capitanias he-
pp. 169-90.
dos ao pecado nefando, entre os quais se reditárias (1532), confere-se aos capitães-
69 Arquivo Nacional da Torre do não tem por afronta. E o que se serve de mores autoridade para condenar à morte,
Tombo, Inquisição de Lisboa,
Proc.352, [22-4-1547]. macho se tem por valente e contam esta sem necessidade de autorização da metró-

56 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 40-59, março/maio 2001


HOMOFOBIA
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 pole, apenas os culpados em quatro gravís-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 simos crimes: traição e aliança com os ín-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 dios e invasores; heresia; fabricação de
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 moeda falsa; e a prática da sodomia. Pena
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 capital aos traidores e trânsfugas, porque
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 ameaçavam a soberania e posse da terra;
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 aos hereges, por desafiarem a unicidade da
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Santa Madre Igreja; aos falsificadores de
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 moeda, por desestabilizarem a vida econô-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 mica; aos sodomitas, não só pelo risco de
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 atraírem a maldição divina, mas também
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 por revolucionarem os costumes, sobretu-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 do os alicerces da família, da moral e da
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
própria estrutura da sociedade.
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 No Novo Mundo, nesse início da era
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 moderna, a homossexualidade é muito mais
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 temida do que na Europa, na medida em
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 que a frágil conjuntura colonial vai exigir
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 um incremento da autoridade do macho,
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 significativo crescimento demográfico e
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 reforço das funções sociais da família pa-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 triarcal. São várias as aproximações que
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 podemos fazer entre o desenvolvimento
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 ideológico da homofobia nos primórdios
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 da colonização da América Portuguesa e
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 sua gênese histórica no mundo abraâmico.
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 A primeira analogia tem a ver com o proje-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 to demográfico pró-natalista de nossos pri-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
meiros povoadores: urgia que a imensidão
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
dos Brasis fosse ocupada e possuída pelos
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 portugueses, caso contrário, outros aven-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 tureiros lançariam mão deste éden tropical.
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Na capitania de Pernambuco, na mes-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 ma Visitação do Santo Ofício de 1594, um
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 carpinteiro lusitano, Pero Gonçalves, dizia
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 sem pejo: “Fornicar, fornicar que farte, que
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 del Rei é a terra e que nunca ninguém foi ao
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 inferno por fornicar [em lugar da palavra
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 fornicar, que aqui se escreveu, disse a pa-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 lavra portuguesa que isso significa, deso-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 nesta, (foder), que por honestidade se não
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 escreveu]” diz o notário da Visitação (70).
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Certamente esse destemperado reinol esta-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 va imbuído da idéia que “ultra equinotialem
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 non pecari” – abaixo do Equador não há
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
pecado! Daí a conhecida sugestão ultra-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 liberal do padre Nóbrega, que de Portugal
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 se enviassem mulheres para casar com os
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 brancos – não importando que fossem
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 70 Confissões e Denunciações de
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 mulheres perdidas, pois aqui achariam
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Pernambuco, 1593-1595, op.
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 quem as quisesse desposar e com seus fi- cit., p. 436.

REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 40-59, março/maio 2001 57


lhos povoar o litoral e os sertões deste Novo das nas relações heterossexuais. “A ruptu-
Mundo. Ora, sodomitas não reproduzem, ra com os amores interclassistas é a condi-
cometem o pecado mortal de desperdiça- ção de salvação homossexual”, lembra um
rem a semente da vida, daí sua repulsa numa dos fundadores do movimento gay da Fran-
terra carente de novos colonos. ça, o já citado Hocquenghem (72). Numa
Igualmente como sucedeu nos primór- colônia com enorme contingente de índios
dios da formação dos povos descendentes e negros, cujas culturas demonstravam
de Abrãao, também aqui nossos ancestrais grande tolerância à libido unissexual, nada
tiveram de enfrentar dramático impasse: mais ameaçador do que a aliança sexual e
uma minoria demográfica – os brancos afetiva entre sodomitas brancos com mem-
colonizadores – confrontou-se com uma bros de outras raças, posto que tais aproxi-
imensidão de colonizados – índios, negros, mações íntimas minavam a desejada dis-
mestiços, escravos em sua maioria –, que tância entre opressores e oprimidos. Dar
só foram subjugados à exploração e tirania carinho, prazer e eventualmente até dar as
dos donos do poder mediante o emprego da costas e deixar-se penetrar por machos
violência máxima, monopólio dos machos negros ou índios, a quem as regras consu-
brancos. Numa sociedade em que, generali- etudinárias determinavam que fossem tra-
zadamente, os descendentes dos europeus tados na “porrada”, revolucionava perigo-
representavam no máximo 25% da popula- samente os códigos de interação estamental,
ção, se excluirmos desse contingente as dando ousadia aos oprimidos e estímulo a
mulheres, os idosos e as crianças, restarão se rebelarem contra a dominação dos que
aproximadamente 10% de homens bran- detinham o controle legal do uso da espa-
cos, responsáveis pela manutenção da or- da, do chicote e das armas de fogo.
dem e subserviência da multidão de todos Também no Novo Mundo, como suce-
os demais oprimidos. deu na Idade Média, o amor homossexual
Somente homens fortes, ultraviolentos, foi duramente reprimido por constituir dele-
poderosos, conseguiram a proeza de man- téria ameaça à estabilidade da família tradi-
ter sua hegemonia em face de 90% da po- cional, na medida em que minava perigosa-
pulação carente deste diferencial privilé- mente a autoridade patriarcal no tocante ao
gio: ser macho branco. Daí o machismo controle das estratégias de aproximação dos
latino-americano apresentar-se muito mais sexos e a constituição de novas unidades
virulento e institucionalizado do que o familiares. Na América Portuguesa, assim
observado na Península Ibérica, pois, nas como na Espanhola, a endogamia das famí-
regiões plurirraciais dominadas pelo modo lias de origem européia foi a estratégia ofi-
de produção escravista, ser super-homem cial, abençoada pela Igreja, instaurada a fim
foi condição sine qua non da manutenção de evitar que “cristãos-novos” e “gente de
do próprio projeto colonial (71). Um ho- sangue impuro” se unissem e infectassem as
mem delicado, medroso, efeminado, sen- “famílias limpas”. A endogamia da oligar-
sível, jamais conseguiria manter o indis- quia colonial, evitando a mistura de seus
pensável clima de terror para conservar descendentes com a raia miúda e sobretudo
submissa a “gentalha”, todos os que não com a gentalha não-branca, tornou-se uma
eram machos brancos. Daí a repressão bru- obsessão das elites fundiárias, optando mui-
71 Luiz Mott, “Sexualidade no Bra- tal contra qualquer efeminação e inversão tas famílias, às vezes, pelo enclausuramento
sil Colonial”, in Carlos A. M. sexual, por representarem perigosíssimo forçado de suas filhas donzelas, evitando
Sá (org.), Sexualidade Huma-
na, Rio de Janeiro, Revinter, fator de instabilidade do projeto coloniza- assim uniões com indivíduos considerados
2000, p. 117-29.
dor e hegemonia dos donos do poder. de condição social ou racial inferior. Os
72 Hocquenghem, op. cit., p. 16;
E. Blackwood (ed.), The Many
Mais ainda: como salientei alhures, uma famigerados processos de “qualificação de
Faces of Homosexuality, New constante observada na longa história da pureza de sangue”, indispensáveis para ad-
York, Harrington Park Press,
1986; J. A. McCaffreey (ed.), homossexualidade tem sido a quebra, por missão na clericatura e nas altas funções
The Homosexual Dialectic , parte dos amantes do mesmo sexo, das governamentais, visavam exatamente man-
Englewood Cliffs, Prentice Hall
Inc., 1972. barreiras estamentais zelosamente manti- ter na elite tão-somente os cristãos-velhos.

58 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 40-59, março/maio 2001


A união livre dos homossexuais, des- apanágio dos sodomitas em épocas coevas
respeitando as barreiras de raça, estamento (74). Da mesma forma, o amor romântico
e idade, parceria baseada tão-somente na e a atração física, antigamente privilégio
paixão e mútua empatia, detonava a ordem dos filhos da dissidência, tornaram-se hoje,
familista patriarcal tradicional, daí o afin- graças aos efeitos da globalização da cultu-
co com que os donos do poder colonial re- ra ocidental, a regra áurea da aproximação
primiram os “filhos da dissidência”. dos sexos em grande parte do universo. E o
Hoje em dia, nos inícios do terceiro que falar da moda unissex, dos homens com
milênio, quando muitos e muitos machistas brinco na orelha, das mulheres usando
homófobos repetem acriticamente a terrí- jeans, da cultura “GLS”, das drag-queens,
vel pena de morte: “Viado tem mais é que das operações transexuais…
morrer!”, e quando, na prática, os homos- Parece que uma parcela dos próprios
sexuais continuam sendo, no Brasil, dentre homossexuais, depois que saíram do armá-
todas as minorias sociais, as principais ví- rio, nos anos pioneiros da Revolução de
timas do preconceito e discriminação, es- Stonewall (1969), o festejado coming out
tamos presenciando a persistência de um (75), tende hoje mais à integração do que à
mito, velho de quatro mil anos, imposto a dissidência: “Os gays organizados repre-
nossos antepassados à custa de pedradas e sentam hoje uma forma nova de encarar a
da fogueira da Inquisição – mito cruel e vida. Casam, adotam crianças. Os gays não
pernicioso que hoje, na era dos computa- querem mais revolucionar o mundo. A re-
dores, urge que ceda lugar ao respeito dos volução sexual ocorreu na década de 70 e
direitos humanos e à diversidade cultural. já é fato consumado. Agora é a hora da
Sobretudo, porque há muito tornou-se ridi- estabilidade, é a hora de se impor, de con-
culamente caduca aquela fobia irracional quistar lugares. Estamos fazendo isso” (76).
ao potencial revolucionário representado Estas são as palavras do primeiro gay
pelo amantes do mesmo sexo. O problema assumido, do partido republicano, a fazer
atual da humanidade é a explosão demo- parte oficial do atual governo norte-ameri-
gráfica, sendo portanto absurdo e antieco- cano. Homossexuais que conquistam luga-
lógico pretender aumentar a população res e se impõem não deixam de representar
“como as estrelas do céu e as areias do mar”. uma força revolucionária no mundo 73 David Fernbach, The Spiral
Hoje gays e lésbicas deveriam ser premia- heterossexista. Enquanto isto, na Terra dos Path: a Gay Contribution to
Human Survival, Boston, Alyson
dos por colaborarem efetivamente com o Papagaios, deputados crentes se unem à Publications, 1981.
controle da natalidade (73). TFP e à CNBB, advertindo a população e 74 Lawrence Lippton, A Revolução
Erótica , São Paulo, Ibrasa,
Uma segunda invenção dos homosse- os parlamentares que não aprovem o proje- 1975; Vance Packard, A Re-
xuais, antigamente revolucionária e temi- to de lei que regulamenta a parceria civil volução Sexual, Rio de Janei-
ro, Record, 1982.
da, tornou-se hodiernamente inofensiva: o registrada entre homossexuais, pois o “ca-
75 Sue March, Libertação Homos-
sexo prazer dissociado da reprodução e o samento gay” além de levar à destruição da sexual, São Paulo, Nova Épo-
primado do amor romântico como critério família brasileira, redundará em incalculá- ca, 1981; Michael Warner,
“Fear of a Queer Planet”, in
das uniões conjugais. Hoje, graças à pílula, veis castigos divinos contra nossa pátria. Social Text, volume 9, n. 4,
1991, pp. 3-17; Daniel
ao preservativo e aos novos métodos anti- Não é por menos que o arcebispo de Guerin, A Revolução Sexual,
concepcionais ou abortivos, os heterosse- Florianópolis não teve pejo em declarar: São Paulo, Brasiliense, 1980.

xuais também podem manter relações se- “Os gays são gente pela metade. Se é que 76 Veja, 16/4/2001.
xuais sem o risco da gravidez indesejada, são gente!” (77). 77 A Notícia (SC), 1/10/1998.

REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 40-59, março/maio 2001 59

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