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Ocimar, 29 anos
Valdemir, 21 anos
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português
Estudo da percepção dos usuários da praça Vidal de Negreiros, conhecida popularmente
como “Ponto de Cem Réis”, em João Pessoa, à luz de conceitos de “legibilidade” e
“morfologia urbana”, cujo referencial teórico principal é Kevin Lynch
como citar
Esta crise decorre, dentre outros aspectos, de longos anos em que a divisão disciplinar
do conhecimento dificultou o reconhecimento da realidade tal como se apresenta na
experiência comum. Na perspectiva interdisciplinar os objetos e assuntos são híbridos e
por isto abrangem uma consideração além da condição científica disciplinar. A
interdisciplinaridade é, neste sentido, uma das formas de enfrentamento destes desafios
no ensino e na pesquisa. Em especial, destacamos estudos que relacionam arquitetura,
urbanismo, meio ambiente, sociologia, antropologia e história.
Convém ressaltar que a percepção mental apreendida pelo indivíduo, suas avaliações e
preferências sobre o ambiente, de caráter subjetivo, mas também sociocultural, não
representa toda a cidade, mas indivíduos que compartilham situações semelhantes no
tempo e no espaço, que vivenciam as mesmas experiências perceptivas e que por isto
tendem a formar imagens mentais semelhantes. Para Kevin Lynch, “parece haver uma
imagem pública de qualquer cidade que é a sobreposição de muitas imagens
individuais” (3).
Tal estudo tem por propósito compreender como as mudanças no desenho de uma área
urbana – a praça Vidal de Negreiros conhecida popularmente como “Ponto de Cem
Réis” – influenciaram na percepção e imagem urbanas e como isto influenciou, ou ainda
influencia, o comportamento dos usuários em seu uso atual. O estudo foi encaminhado
utilizando como fundamentação e roteiro o método apresentado por Kevin Lynch em
seu livro A imagem da cidade (1997), trabalhando conceitos como “imaginabilidade”,
“legibilidade” e “morfologia urbana”. Articulados, ainda, aos trabalhos de Vicente Del
Rio em Introdução ao desenho urbano no processo de planejamento (4) e de Gordon
Cullen em especial seu conceito de visão serial, em obra intitulada The concise
townspace (5), na qual a paisagem urbana é definida como uma série de espaços
correlatos.
De maneira geral, nas diversas cidades em nível mundial, a população foi se afastando
das áreas centrais em busca das condições ideais de moradia, atraídos pela oferta de
infra-estrutura em espaços onde tudo era corretamente planejado, e com ela as grandes
empresas também entraram no processo de migração em busca do melhor meio para sua
atuação, ou seja, onde houvesse um público consumidor. Com a formação de uma
sociedade de consumo veio a nova forma de comprar em Shopping Centers – espaços
“semi-públicos”, reservados e planejado para um público com potencial de consumo.
Vicente Del Rio descreve esse processo migratório urbano:
Nas últimas duas décadas, a partir de meados da década de oitenta, são intensificados os
estudos sobre o centro histórico de João Pessoa assim como os trabalhos de catalogação
de seu patrimônio histórico-cultural a partir do Convênio Brasil/Espanha de cooperação
internacional com parceria do IPHAEP – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
do Estado da Paraíba (10). Ressalta-se o fato de que as propostas de intervenção no
centro histórico da cidade, em geral, mediadas e executadas pelos órgãos públicos
federais, estaduais e municipais ou em parcerias com iniciativas privadas ou órgãos
transacionais, não procederam a um estudo prévio sobre como os usuários desses
espaços o enxergam dentro do contexto urbano, nem ao levantamento da história do
local de forma sistematizada a fim de orientar uma possível intervenção.
O logradouro em foco, a Praça Vital de Negreiros (vulgo Ponto de Cem Réis) nasceu
devido à confluência das três linhas de bondes elétricos, instalados em 1914, que
serviam a população: Varadouro, Trincheiras e Tambiá. O apelido do lugar, até hoje
utilizado, deve-se ao hábito que os condutores tinham de ao chegarem na Praça gritar:
Ponto de Cem Réis! Este era também o valor da passagem.
Em 12 outubro de 1924 foi a inauguração da Praça Vidal de Negreiros, que logo ficaria
conhecida como Ponto de Cem Réis – uma marca simbólica do seu uso. A Praça surgiu
como resultado de uma intervenção na área onde, antes, localizava-se a Igreja Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos. Na ocasião, o então presidente do Estado, Sólon de
Lucena, discursa sobre a importância da área e sua simbologia:
“Toda vez que se sentirem diminuídos nas suas liberdades coletivas, que toda vez que
tiverem que cogitar de uma comemoração cívica, de defender uma idéia nobre, toda vez
que tiverem que confabular por um princípio de honra nacional, o façam na Praça Vidal
de Negreiros, que evoca o espírito forte, adamantino, daquele que melhor defendeu
nossa nacionalidade” (14).
Em 1951, uma nova intervenção substituiu alguns elementos físicos, como a coluna com
o relógio pelo busto de Vidal de Negreiros (ver figura 2), ao centro, e do pavilhão em
estilo eclético por dois novos pavilhões em estilo moderno. Eram nos pavilhões onde os
encontros eram marcados e a vida da cidade se desenrolava. Não passadas duas décadas,
a área sofreu uma quarta intervenção, essa modificação foi a mais significativa,
mudando completamente a fisionomia e a identidade do lugar com a construção de um
viaduto, inaugurado em 17 de julho de 1970 (ver figuras 3, 4 e 5). Com essa intervenção
foram retirados os pavilhões e o estacionamento para os carros de aluguel.
O processo entendido como análise visual e o estudo da morfologia de uma área está
intimamente relacionado com a imagem final gerada pelo usuário, resultado da
percepção deste do meio em que se insere. Assim, dentre os diversos fatores que
influenciam na formação dessa imagem – como o significado social da área, sua função
e história, etc – destacamos agora os efeitos dos objetos físicos perceptíveis levando em
consideração que “a forma deve ser usada para reforçar o significado, e não para negá-
lo” (15).
No entanto, a poluição visual por placas e anúncios em cores diversas prejudica a leitura
das fachadas de prédios como os acima citados e outros como o Edifício Duarte da
Silveira e a residência dos Ávila Lins, o que demonstra o descaso com edificações que
antes serviram de identificadores do espaço da Praça Vidal de Negreiros. Assim, um dos
componentes da escala ambiental é comprometido – a identidade. E, conseqüentemente,
a imagem formada pelo usuário dessa área pública.
Os pontos nodais “são (...), lugares estratégicos de uma cidade através dos quais o
observador pode entrar, são os focos intensivos para os quais ou a partir dos quais ele se
locomove” (17). Os que identificamos no local foram as áreas onde se concentram os
engraxates na “entrada” da praça pela Visconde de Pelotas e o ponto de encontro dos
aposentados, marcado pela arborização que convida à permanência e ao descanso. Outro
ponto nodal seria um trecho da rua Duque de Caxias convidativo pelos seus bancos e
árvores de pequeno porte, em uma área de grande fluxo.
O conceito de vias para os usuários não é o mesmo entendido por Kevin Lynch, ou seja,
os entrevistados não mencionaram seus percursos internos na Praça por entenderem
como vias ruas e avenidas. A mais citada como percurso e até mesmo como ponto de
permanência é a Rua Duque de Caxias. Enquanto que a Avenida Padre Meira é a mais
citada quando os usuários se referiam ao trajeto percorrido no deslocamento do Parque
Sólon de Lucena até o Ponto de Cem Réis. Ainda como referência viária temos a Rua
Visconde de Pelotas, único caminho de acesso de veículos. Um dos entrevistados ainda
lembra de citar a Avenida General Osório.
Segundo Lynch, uma imagem ambiental pode ser decomposta em três componentes:
identidade, estrutura e significado. Identidade no sentido de unicidade, o
reconhecimento do lugar como entidade separável, individual. Assim, um objeto ou
lugar que apresenta uma boa imagem, ou uma imagem viável, é também aquele
apreendido pelo usuário como único, que se diferencia facilmente de outros por
características próprias e únicas. Com relação ao segundo componente, a imagem
refere-se à relação espacial e interação com o usuário. Por último, esse objeto ou lugar
deve ter algum significado para o observador, seja ele prático ou emocional.
Para os usuários os limites são fortemente representados pelas ruas Duque de Caxias e
Visconde de Pelotas – apesar de Lynch não considerar vias de circulação como limites.
O Viaduto Damásio Franca é outro elemento também importante no sentido de
demarcar o lugar (figuras 8 e 9). Porém, poucos identificaram as edificações sendo
mencionadas como limites, talvez pela pouca expressividade/visibilidade que possui
apesar dos inconvenientes em termos urbanísticos e desperdícios por estar desativado há
muitos anos.
Assim como na análise anterior, os usuários também destacaram a área onde se fixam os
engraxates como local de maior concentração de pessoas (figura 12), Pontos Nodais.
Ainda que para a maioria falte infra-estrutura, é naquele ambiente onde eles passam a
maior parte do tempo quando estão na Praça. Muitos não explicaram o porquê da
escolha daquele ponto, porém alguns mencionam a questão do conforto térmico devido
a presença de árvores de grande porte no local, tornando o espaço sombreado e
agradável. Confirmamos essa visão quando alguns entrevistados mencionaram a
impossibilidade de permanência no centro da Praça por falta de arborização adequada,
local onde há também fontes e espelhos d’água desativados (ver figuras 8, 10 e 22).
Outro fator importante para tal falta de ocupação da área central seria o desnivelamento
do piso (ver fotos da área, foto 17 desnível e outras), sendo este mencionado como
elemento que isola regiões dentro do Ponto de Cem Réis, e pela memória coletiva que
se refere àquele lugar como espaço utilizado por prostitutas e “cheira-colas”. A falta de
segurança inibe os usuários.
Apesar da pouca manutenção e do mau cheiro, os bancos onde as pessoas sentam para
conversarem, em especial, os aposentados da cidade, localizados na Duque de Caxias
também são percebidos como Pontos Nodais, pois caracterizam-se como pontos de
permanência em uma via de grande fluxo e destinada unicamente ao passeio público.
Através da análise dos marcos, presentes na memória do usuário podemos observar com
maior eficácia a falta de legibilidade da Praça Vidal de Negreiros. Vários pontos de
referência foram citados ao pedirmos que os entrevistados descrevessem a Praça e como
chegar nela e houve certa dificuldade na localização dos mesmos. Observa-se então, que
os marcos não são tão expressivos, gerando percepções múltiplas.
Mesmo que não mais existam fisicamente ou que estejam em desuso, como é o caso das
cafeterias, do Cinema Plaza e da fonte no centro da Praça, respectivamente, esses
elementos ainda são tidos como marcos. Para os que conhecem bem a história do Ponto
de Cem Réis, até mesmo os antigos pavilhões e o bonde apresentam-se como marcos
sensitivos, além da coluna com o relógio. Para estes entrevistados era mais fácil
identificar esses elementos de referência e muitas vezes referiam-se a estes como forte
saudosismo.
Para finalizar, destacamos nesta análise os “mapas mentais” que foram de grande
importância, pois são representações do espaço elaboradas em imagens pelos próprios
usuários. Analisamos na seqüência alguns dos desenhos feitos pelos entrevistados
quando solicitados a ilustrarem o espaço da Praça Vidal de Negreiros, seus percursos
habituais e seu(s) local(is) de permanência (estão registrados nas figuras 9, 10, 11, 12 e
13). Deixados livres para representarem como quisessem o ambiente em que se
encontravam e freqüentavam, destacando ou não marcos ou pontos de referência,
fornecemos apenas papel e lápis. As representações foram as mais diversas possíveis e
destacamos aqui alguns dos desenhos mais relevantes para nosso estudo por mostrarem
com clareza os elementos que buscamos determinar – vias, marcos, limites, etc – e por
mostrarem-se imagens pessoais cuja ligação com o campo subjetivo mostrou-se bastante
estreita.
Na figura 10, o desenho elaborado por outro usuário demonstra que ele também entende
o espaço da praça como sendo circular destacando alguns elementos físicos, como as
árvores e bancos. Mostra ainda um marco-referencial, que caracteriza a área, o Paraíba
Palace Hotel (indicado pela sigla PH), porém dentro da praça, enquanto ele está, na
verdade, à direita da via criada pelo Viaduto e assinalada no desenho. Dessa forma, ele
incorpora o prédio do Paraíba Palace Hotel à praça e destaca como vias principais a Rua
Visconde de Pelotas, acima, e a Av. Padre Meira, à direita.
A figura 11 é a única que mostra alguns dos elementos internos da Praça com o formato
“real”, como também sua forma retangular e não circular. E que não se define na parte
delimitada pela alça viária do viaduto. Além de marcar as ruas mencionadas.
Dos desenhos apresentados, a figura 13 nos chamou mais a atenção por sua
subjetividade. O entrevistado era um ‘cadeirante’, filho de um engraxate local e que
sempre acompanha o pai no seu trabalho na Praça durante alguns horários do dia. O que
ele faz é, na verdade, o retrato do que ele vive no espaço da Praça, ou seja, as árvores e
os boxes dos engraxates. Lembrando algumas palavras de Lynch:
Essa abordagem não tem por fim solucionar o problema da inserção do usuário aos
novos projetos urbanos, mas objetiva colocar em pauta a discussão sobre a inserção
daquele nos projetos de intervenção em áreas públicas, uma vez que o impacto dessas
medidas pode tanto ser positiva quanto negativa a esses espaços e, sobretudo, aos seus
usuários, tendo-os sempre como referências fundamentais. É, a relação que o indivíduo
mantém com o espaço que o cerca, o que mais influencia na sua forma de uso,
significação e valorização. Portanto, é sobre essa ligação que precisamos iniciar a
elaboração de novos projetos buscando reconhecer o potencial de uso da área, suas
marcas histórias e o que esse espaço representa na memória coletiva de seus habitantes.
notas
1
O presente texto é fruto de pesquisa desenvolvida no âmbito do Estágio Curricular
Supervisionado para o Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB) pelas alunas Carolina Chaves e Juliane Lins, sob orientação da Profa.
Dra. Jovanka B. Scocuglia, referente ao aprofundamento de estudos anteriores sobre
parques e praças da cidade de João Pessoa desenvolvidos entre 2004/2005 na disciplina
Elementos de História da Arte e da Arquitetura e posteriormente nas disciplinas História
da Arquitetura e Urbanismo no Brasil I e História da Arquitetura e do Urbanismo III,
ministradas pela referida professora.
2
HALL, Edward. “A dimensão oculta”. Apud ELALI, Gleice Azambuja. Psicologia e
arquitetura: em busca do locus interdisciplinar. Disponível em:
<http://biblioteca.universia.net/ficha.do?id=621084>. Acessado em: jan. 2004.
3
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Traduzido por Jefferson Luiz Camargo. São
Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 51.
4
DEL RIO, Vicente. Introdução ao desenho urbano no processo de planejamento. São
Paulo, Pini, 1990.
5
CULLEN, Gordon. The concise townspace. London, The Architectural Press, 1971.
6
DEL RIO, Vicente. Op. cit.
7
Idem, ibidem, p. 20.
8
Idem, ibidem, p. 2.
9
SCOCUGLIA, Jovanka Baracuhy C. Revitalização urbana e reinvenção do centro
histórico na cidade de João Pessoa – 1987-2002. João Pessoa, Editora Universitária
UFPB, 2004. E ver também da mesma autora: Cidadania e patrimônio cultural. João
Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2004.
10
Ver a respeito os livros de Jovanka Scocuglia (op. cit.), nos quais estes processos são
analisados bem como a história recente do patrimônio cultural em suas interfaces entre
o global, o nacional, o regional e o local. Trata também dos usos e dos contra-usos dos
espaços públicos e do patrimônio cultural urbano na contemporaneidade.
11
CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas: estrategias para entrar y salir de la modernidad.
México DF, Grijalbo, 1989; “O patrimônio cultural e a construção imaginária do
nacional”. Revista do IPHAN, nº 23. Rio de Janeiro, 1994, p. 94-115; Consumidores e
cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ,
1995.
12
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo, Brasiliense, 1994,
p. 132.
13
Idem, ibidem, p. 135-136.
14
AGUIAR, Wellington Hermes Vasconcelos de. Cidade de João Pessoa: a memória do
tempo. João Pessoa, Idéia, 3ª ed., 2002, p. 241.
15
LYNCH, Kevin. Op. cit, p. 50.
16
Idem, ibidem, p. 53.
17
Idem, ibidem, p. 52.
18
Idem, ibidem, p. 101.
sobre os autores