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A

ELENA VÁSSINA

ELENA VÁSSINA
é professora de Letras
Russas do Departamento
de Letras Orientais da
FFLCH-USP.

s primeiras experiências de Tolstói (1828-


1910) em gênero dramático – O Niilista
e A Família Contaminada – da-
tam de 1862. O conde esboçou essas peças para
apresentações caseiras (em muitas famílias da
nobreza russa, existia uma longa tradição de es-
petáculos amadores) e nunca as levou a sério. Por
isso é comum se afirmar que o verdadeiro Tolstói
dramaturgo se forma bastante tarde, depois de ter sido
consagrado como o autor dos magníficos romances Guer-
ra e Paz (1863-69) e Anna Karenina (1878) e depois de
ter passado pela profunda crise espiritual retratada em sua
Confissão (1879). Ele escreve a sua primeira obra dramática
séria, uma verdadeira tragédia popular, O Poder das Trevas,
em 1886. Concebida pelo próprio autor como uma “peça para
o povo”, ela logo consagra Tolstói entre os clássicos da criação
dramática na Rússia e no exterior (já em 1887, o diretor francês
A. Antoine encenou O Poder das Trevas em seu Teatro Livre, em
Paris). E a peça seguinte, Os Frutos da Civilização, só prova o in-
contestável talento de Tolstói-dramaturgo. Mas talvez o seu último
drama, O Cadáver Vivo, possa servir como o mais impressionante
exemplo da liberdade e magnitude do gênio literário-dramático tolstoiano.
O reconhecido teórico da literatura Mikhail Bakhtin, no ensaio “Tols-
tói Dramaturgo” (1929), analisa como e por que o escritor chegou à forma
dramática e acha que isso aconteceu devido “à crise da palavra épica e auto-
ral”, que Tolstói percebera, com clareza, no início dos anos 80, após o que lhe
foram “abertas novas e essenciais possi- te para que, obtendo o divórcio, pudesse
bilidades, contidas na forma dramática”1. se casar novamente com o homem que
De uma maneira paradoxal, a arte teatral, amava. Assim, o marido lhe teria escrito
tão desprezada por Tolstói por se tratar uma carta na qual lhe comunicava que,
da “arte falsa”, “cheia de convenção”, de desesperado quanto à falta de possibilidade
repente ganhou do escritor peças impor- de consertar sua vida, decidia suicidar-se.
tantíssimas. Mas parece-nos importante Ekaterina Grímer entregou a carta do marido
observar também que essa adesão tardia de à polícia e logo a roupa de Nikolái Grímer
escritor maduro ao gênero teatral é muito foi encontrada, boiando no Rio Moskvá,
característica para toda a literatura russa, coberta de gelo, assim como seus docu-
clássica e contemporânea. Por exemplo, mentos de identificação. Pouco depois, foi
A. Púchkin, M. Liérmontov, N. Gógol, A. retirado, de dentro do rio, o cadáver de um
Tchékhov, entre outros, aderem ao drama desconhecido, que foi tomado como o do
já na segunda metade de seus percursos falecido marido. Ekaterina Grímer casou-se
artísticos, e a linguagem dramática torna- pela segunda vez. No entanto, não tardou a
se para eles o meio importante da comu- esclarecer-se que seu primeiro marido es-
nicação viva e do diálogo eficiente com tava, de fato, vivo: os dois cônjuges foram
seus leitores e espectadores que, no ato entregues à justiça e condenados ao exílio
de assistir ao espetáculo teatral, unem-se, na Sibéria.
segundo a feliz definição de Lotman, “em Partindo dessa história real, Tolstói
uma personalidade coletiva”2. Com efeito, começa escrever o seu drama no final de
a especificidade de comunicação dramática 1897. Em 29 de dezembro, ele anotou no
reforça as aspirações de vocação profética, seu diário: “Ontem, o dia todo, estava se
fundamental para a literatura russa, em geral, construindo o drama-comédia O Cadáver”.
e, em particular, tão marcante para Tolstói. No ano seguinte, o escritor continua pen-
No seu ensaio sobre Shakespeare, Tolstói sando “como seria bom escrever uma obra
afirma que “somente pode escrever o dra- em que fosse claramente refletida a fluidez
ma aquele que tem o que falar a homens, do ser humano, o fato de que ele próprio
dizer-lhes algo importante sobre a relação ora é malvado, ora é anjo, ora é sábio, ora
do ser humano com Deus, com o mundo, é idiota, ora é forte, ora é um ser fraquíssi-
com tudo o que é eterno e infinito”3. mo”5. (A idéia da fluidez do caráter humano
A idéia de obra muito similar ao drama destaca-se como uma das principais no mé-
O Cadáver Vivo data dos meados da década todo artístico e nas reflexões filosóficas de
1890. Em 9 de fevereiro de 1884, Tolstói Tolstói. Ela se reflete tanto na criação dos
anota no seu diário que teve uma idéia clara personagens, quanto na minuciosa análise
de novela que representasse dois homens. de si mesmo, feita nos seus diários escritos
1 M. M. Bakhtin, “Tolstói – Dram-
turg” (“Tolstói – Dramaturgo”), in Primeiro seria um ser libertino, perdido, durante toda a vida, a partir de 18 anos. O
Sobránie sotchinénii (Coletânea decaído até se desprezar e ser desprezado, escritor acha que “um dos maiores erros em
das Obras), Moscou, Rússkie
slovari, 2000, v. 2, p. 177 mas levado a tal situação só por causa da apreciação de pessoa é que o chamamos,
2 Lotman, “Iazik teatra” (“Lingua- sua própria bondade. O outro, ao contrário, definimos de inteligente, tolo, bom, mau,
gem de Teatro”), in Ob iskússtve
(Sobre Arte), São Petersburgo, teria aparência de pureza, seria honrado e forte, fraco, enquanto ser humano é tudo,
Ed. Iskússtvo-SPB, 1998, p. respeitado, “um aristocrata ideal”, porém e uma substância fluida”6.)
607.
cheio de frieza e privado de amor4. O enredo Mas o verdadeiro trabalho com a peça
3 Lev Tolstói ob iskússtve i literature
(Lev Tolstói sobre Literatura e do drama O Cadáver Vivo, porém, começa foi iniciado somente em janeiro de 1900,
Arte), Moscou, Ed. Iskússtvo, a se concretizar somente no final dos anos depois que Tolstói assistiu a Tio Vânia, de
1958, p. 316.
90, a partir de circunstâncias reais, refe- Tchékhov, que tinha estreado havia dois
4 Tolstói, Pólnoe sobránie sotchi-
néni v 90 tomakh (Obras rentes a um processo que envolvia o casal meses, no palco do Teatro de Arte de Mos-
Completas em 90 Volumes),
Moscou, Ed. GIHL, 1928-
Grímer, que Tolstói conhecia pessoalmente. cou. O resultado dessa visita do escritor ao
1958, v. 52, p. 112. Ekaterina Grímer, que não suportava mais a Teatro de Arte de Moscou era inesperado, do
5 Idem, ibidem, v. 53, p. 187. vida com um marido decaído e alcoólatra, ponto de vista de conseqüências artísticas.
6 Idem, ibidem, v. 53, p. 185. resolveu realizar a simulação de sua mor- Tolstói, segundo as próprias anotações no

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diário, ficou tão indignado com Tio Vânia cada ser humano, existe, afinal, algo de “di-
que decidiu retomar a idéia do “drama-co- vino”. E não há como não concordar com o
média” O Cadáver e logo fez o esboço. A respeitado historiador da literatura russa D.
raiva impulsionou Tolstói a escrever a peça, Sviatopolk-Mírski, que afirmou que, dessa
cujo nome seria definido, posteriormente, última peça de Tolstói, transbordam
na sua versão final, com oxymoron, ou seja,
com uma junção impossível de palavras: O “[…] uma enorme piedade, cheia de ternu-
Cadáver Vivo7. Mas de um jeito muito para- ra, para com toda a humanidade, perdida
doxal (e, também, muito tolstoiano) o drama e pecadora, e um respeito ao sofrimento
criado por polêmica artística com Tchékhov humano, quer se trate de um alcoólatra,
viria a ser o drama mais tchekhoviano em abandonado por todos, ou de uma soberba
toda a obra de Tolstói. Escrita por um autor mãe, da alta-sociedade. O Cadáver Vivo
“indignado” com Tio Vânia, a última peça representa a última manifestação do gênio
de Tolstói está bem próxima dos dramas de tolstoiano. Está evidente que a peça foi
Tchékhov, mais se assemelhando a eles do escrita por uma pessoa muito idosa, com
que se diferenciando. aquela amplitude e suavidade do olhar que,
Em outubro de 1900, a notícia da nova quando acontecem de surgir, são o melhor
peça de Tolstói, O Cadáver Vivo, alcançou a enfeite da velhice”9.
imprensa e, logo, Nemiróvitch-Dântchenko
visitou Tolstói na sua propriedade rural, O próprio Tolstói reconheceu que, em
Iásnaia Poliana, com o propósito de obter a O Cadáver Vivo, ele “não se propunha
peça para encenação. No entanto, a família estabelecer quaisquer metas didáticas ou
Grímer receava que esse espetáculo pudesse educacionais, submetendo-se, unicamen-
atrair uma nova onda de sensacionalismo em te, à emoção artística”10. A peça consegue
torno do processo escandaloso que inspirou ultrapassar a inclinação melodramática
a peça e pediu a Tolstói que não liberasse e, sendo isenta de artificialismo teatral,
o texto para o teatro. O escritor prometeu aproxima-se da linguagem do novo drama.
atender ao pedido dos Grímer. Alegando que Isso proporciona uma oportunidade surpre-
a peça ainda não estava terminada, Tolstói, endente de vivenciar toda a profundeza e
naquele momento, recusou o pedido de a sutileza dos sofrimentos psicológicos,
Nemiróvitch-Dântchenko, mas prometeu não apenas por meio das palavras, mas
que permitiria a montagem do drama no por tudo aquilo que está oculto, atrás do
palco… só após a sua morte. verbal. É preciso observar que Tolstói,
O Teatro de Arte de Moscou foi o pri- como nenhum outro clássico russo, sabia
meiro grupo a obter o direito de encenar a de maneira simplesmente genial descrever,
peça, logo após a morte de Tolstói, em 1910. com vastíssima diversidade de nuances, a
Stanislávski e Nemiróvitch-Dântchenko dificílima “dialética da alma humana”. Toda
7 Com efeito, o nome da peça
trabalharam em conjunto para montar O a estrutura do drama está construída sobre faz lembrar também a clássica
Cadáver Vivo, que veio a ser “um dos aquilo que deixou de ser dito, em cima das obra de Gógol Almas Mortas.

espetáculos mais maravilhosos daquele insinuações, da contradição, indefinida, 8 Nemiróvitch-Dântchenko, Tvórt-


cheskoie nasliédie (Herança
teatro”8. O sucesso da estréia no Teatro de das reações emocionais dos personagens. Artística), Moscou, Ed. TAM,
Arte de Moscou era profético: ele se tornou Já em um dos primeiros ecos à publicação 2003, p. 456.

o prenúncio do destino, incrivelmente bem- (póstuma) de O Cadáver Vivo, Serguéi 9 Sviatopolk-Mírski, Istória rússkoi
literatúri (História da Literatura
sucedido, de O Cadáver Vivo no teatro do Volkónski bem define as particularidades do Russa), Novossibirsk, Ed. Svinin
i sinoviá, 2005, pp. 535-6.
século XX . O drama de Tolstói foi mais do método dramático de Tolstói: “E eis o que
10 Apud E. Poliakova, Teatr Lvá
que oportuno, revelando tudo o que havia é surpreendente nesta peça […] é que até Tolstogo (Teatro de Liev Tolstói),
de “tolstoiano” na natureza artística do tea- nem as próprias palavras são importantes, Moscou, Ed. Iskússtvo, 1978,
p. 241.
tro: verdadeira manifestação de amor pelo nem são o principal; o que importa não é o
11 Apud A. Anikst, Teoria drami v
ser humano – mesmo que, às vezes, seja que os personagens dizem, nem aquilo que Róssii ot Púchkina do Tchékhova
apresentado como pecador –, bem como a eles fazem – eles não fazem nada – mas o (Teoria do Drama na Rússia de
Puchkin até Tchekhov), Moscou,
expressão de uma fé profunda de que, em que acontece com eles”11. Nauka, 1972, p. 540.

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Tal como os dramas de Tchékhov, que é o amor. A cena da felicidade de Liza e
Tolstói cria a tessitura do novo drama por Kariénin não convence, é uma ficção, como
meio de nuances e indefinições. Torna-se “casa de bonecas” que se desmontaria assim
difícil determinar o conflito dramático em que chegasse a carta de Fiédia, em que ele
O Cadáver Vivo; os atos dos personagens, escreve: “Incomodo-os, portanto devo aca-
que eram considerados por Hegel uma das bar comigo. […] Devo acabar comigo. Então
principais características do gênero dramá- vou acabar comigo. Quando receberem essa
tico, perdem sua definição. Sendo assim, carta, já não existirei”14. Assim que Liza lê
o drama de Tolstói elimina as oposições essa frase, ela percebe que tudo é falso, que
básicas entre protagonista e antagonista. ela só finge que ama Kariénin.
Será que existe aqui a tensão irresolúvel do A personagem principal de O Cadáver
triângulo amoroso, típico do melodrama? Vivo é Fiódor Protássov, ou simplesmente
À primeira vista, pode parecer que sim: Fiédia, como o chamam. Esse homem
Liza está infeliz com Fiédia Protássov, seu encantador, fraco e pecador, que costuma
esposo sempre bêbado, gastador e decaído, beber, ao ter abandonado a família e rompido
e se apaixona por Víctor Kariénin, um ho- com seu meio social (a mais alta sociedade
mem impecável de todos pontos de vista. russa, à qual pertencia também o conde
(Certamente, na criação desse personagem, Lev Tolstói), passa a vida em farras com os
observa-se a relação paródica do escritor ciganos. A principal justificativa de Fiédia
com sua própria obra anterior. Kariénin é de não poder levar uma vida “correta”,
do drama tem muito em comum, ou seja, é que só tem a aparência de decente, mas
um “duplo” do seu homônimo do romance que, em essência, está cheia das mentiras e
Anna Karenina.) Mas Tolstói nunca seria hipocrisias dos condicionamentos sociais.
o grande artista de sutilezas da dialética Ele procura a verdade, a autenticidade e
da alma humana se se deixasse cair em a naturalidade das relações humanas e da
banalidades melodramáticas. Vê-se como vida. E as encontra longe dos salões da alta
é complexo o relacionamento entre Liza e sociedade, em meio aos ciganos, escutando
Fiédia; afinal, o que existe entre ambos é as maravilhosas canções desse povo que,
um amor, cheio de tortura, por não poderem antes de tudo, valoriza a liberdade (na litera-
viver juntos e, ao mesmo tempo, sofrerem tura russa, desde Púchkin, o tema do cigano
em virtude disso. Para não atrapalhar “o sempre está ligado ao tema da liberdade).
futuro feliz” de Liza com Kariénin, Fiédia E, mais uma vez, podemos anotar os traços
imita o suicídio, mas quando se verifica que autobiográficos da peça refletidos nesse
ele ficou vivo e esse fato ameaça a nova motivo cigano, pois se sabe que Serguéi,
vida conjugal da sua ex-mulher, Fiédia o irmão mais velho de Lev, estava casado
suicida-se de verdade. com a cigana Macha. Em O Cadáver Vivo
E, muito embora Liza tentasse se con- é justamente a cigana Macha que encanta
vencer de que a vida “correta” com Kariénin Fiédia. Fica óbvio que ele guarda uma pai-
lhe proporcionaria a felicidade, sentimos xão platônica por ela, por isso é tão difícil
12 Felicidade Conjugal (1859),
nas cenas de “felicidade conjugal”12 de concordar com a sugerida idéia do divórcio,
novela de Tolstói. Essa cena Liza e Kariénin toda a impossibilidade que a família de Kariénin exige dele, pois,
da felicidade familiar de Liza
e Kariénin é, com certeza, uma desse tipo de happy end. Por meio do seu para obtê-lo, Fiédia seria obrigado a mentir,
reelaboração paródica do predileto procedimento de estranhamento confessando publicamente haver praticado
epílogo de Guerra e Paz que
relata a vida conjugal feliz de (ostraniênie), primeiro anotado por Víktor adultério com a cigana. Quando o príncipe
Natacha e Pierre Besúkhov.
Chklóvski em seu clássico ensaio “A Arte Abriézkov, a pedido da família Kariénin,
13 Chklóvski, O teórii prósi (Sobre
Teoria da Prosa), Moscou, como Procedimento”13, Tolstói mostra as vem falar com Fiédia sobre o divórcio,
Soviétski pissátel, 1983, pp. convenções teatrais e a artificialidade da Fiédia lhe responde:
9-25.
“felicidade conjugal” de Liza e Kariénin.
14 Tolstói, Sobránie sotchinéni v 22
tomakh (Coletânea das Obras O que é considerado “correto”, pelo senso “Que devo fazer? Ponha-se no meu lugar.
em 22 Volumes), Moscou, comum, torna-se tão enfadonho e careta Nem tento me tornar melhor. Sou um ca-
Khudojéstvénnaia Literatura,
1982, v. 11, p. 316. que mata o sentimento vivo e verdadeiro nalha. Mas há coisas que não posso fazer

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Reprodução

Foto do escritor
com a família

a sangue-frio. Não posso mentir a sangue- E quanto mais me deixo levar por isso, mais
frio. […] Já faz dez anos que levo essa vida vergonha sinto depois”15.
desgraçada. […] Como cheguei a minha
destruição? Primeiro, pela bebida. Não é Não é por acaso que Fiédia usa tantas
porque o vinho seja saboroso. Mas por mais vezes uma das palavras-chaves do Tolstói
que eu faça, sinto que não é o que deveria tardio, vergonha, que tanto o próprio au-
fazer e fico envergonhado… Agora estou tor, quanto o seu personagem sentem por
falando com o senhor e estou com vergo- causa da falsidade, das convenções sociais
nha. E imagine ser um decano, trabalhar absurdas que os rodeiam e que os fazem se
no banco, que vergonha, que vergonha… sentir forasteiros da vida social.
E só quando bebo, a vergonha passa. E a O caráter principal do drama constrói-se
música verdadeira, não aquelas óperas e pela lógica do paradoxo, um dos procedi-
Beethoven, mas ciganos. Isso que é vida, mentos prediletos de Tolstói. Um primeiro
abastece a gente de energia. E também há aspecto dessa lógica pode ser constatado no
aqueles simpáticos olhos negros e sorrisos. modo como, pelas falas das personagens, 15 Idem, ibidem, pp. 306-7.

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ele cria o retrato de Fiédia: antes de surgir objetivo da sua existência terrena. Todos
no palco, ele é, ao mesmo tempo, “ruim” os prediletos heróis tolstoianos passam
e “maravilhoso”, “trapo” e “encantador”. A pela crise espiritual, pela aspiração por
lógica do paradoxo também se torna a base uma nova vida, pura e consciente. E aos
do enredo: Fiédia é considerado “o cadá- personagens das obras tardias de Tolstói
ver vivo” porque fingiu que se suicidara. dá-se a oportunidade de romper radical-
Mas, ao mesmo tempo, é óbvio que, para o mente com tudo o que há de “material”
autor, Fiédia é o herói mais vivo, que está e ingressar no mundo da liberdade. Esse
vivendo de verdade e não fingindo viver, ingresso está ligado a uma enorme força
como fazem muitas outras personagens da de vontade, com a negação dos condicio-
peça. A situação dramática da peça é tão namentos sociais e, em geral, de tudo o
paradoxal que parece uma comédia absur- que é imposto ao indivíduo pelas formas
da: o homem é julgado porque ficou vivo externas da sua existência. E o último
e não se suicidou. drama de Tolstói, com certeza, baseia-se
O Cadáver Vivo trata do drama do “ho- também nessa idéia de “afastamento” do
mem natural”, que não segue os princípios mundo material, na idéia da liberdade
estabelecidos e aceitos por todos. Sobre a espiritual em forma de renúncia de tudo
personagem principal, Fiédia Protássov, que é morto e imóvel, na idéia de autode-
“pesa a maldição da riqueza original”16, terminação da personalidade, em oposição
aquela mesma que o próprio Tolstói passou ao que foi dado e imposto. Por outro lado,
a sentir tão fortemente no final da sua vida. para Tolstói isso significa uma volta à
Essa “maldição da riqueza” e o motivo da natureza humana, profundamente moral
vida indevida também definem outro tema na sua origem.
muito importante para a obra do último O desencadear catastrófico de aconteci-
período de Tolstói – o da retirada, da partida mentos eleva o conflito dramático à colisão
ou fuga, sendo este um tema profundamente trágica. A impossibilidade de resolver o nó
autobiográfico, segundo a anotação precisa das relações familiares leva Fiédia ao suicí-
de M. Bakhtin17. E suas personagens, como dio de fato durante o processo de julgamen-
Fiédia Protássov, realizam antes aquilo com to, no tribunal. Finalmente o “cadáver vivo”
o que sonha o autor. morre. Mas essa última cena do tribunal e
Essa peça de Tolstói é muito pessoal. do suicídio de Fiédia nem um pouco parece
Trata-se de questão, talvez, mais dolorida no o final comme il faut, não resolve nada, o
último período da vida: um desejo profundo verdadeiro tribunal é a consciência, aquela
e permanente de fugir para fora da família, questão que se torna central da literatura
para fora do casamento… Em junho de 1884, russa, desde Dostoiévski… Como aponta
Tolstói anota no seu diário: “Tudo ficou Lotman,
terrivelmente penoso para mim. Eu fui-me
embora e quis ir-me embora de vez, mas a “[…] em antítese de misericórdia e justiça,
gravidez dela [da esposa] me obrigou a voltar a idéia russa, baseada no princípio binário,
do meio do caminho para Tula”18. opõe-se às regras latinas, baseadas no espí-
A possibilidade de fuga é uma forte rito de lei: Fiat justitia — per eat mundus
tentação durante todo o último período da e Dura lex, sed lex. […] Nisso se revela a
16 Segundo uma observação bem vida do escritor, realizada somente no seu antítese do direito estatal e de moral, de
acertada da pesquisadora
russa E. Poliakova (op. cit., p. final quando, em 28 de outubro, Tolstói política e de santidade individuais. […]
241). foge efetivamente de casa e faz seu último Tolstói declara a supremacia da consciên-
17 Bakhtin, op.cit., p.180. caminho terrestre até a pequena estação cia sobre a lei e a supremacia da confissão
18 Tolstói, Pólnoe sobránie sotchi- de trem Astápovo, onde morre em 20 de sobre o tribunal”19.
néni v 90 tomakh (Obras
Completas em 90 Volumes), novembro de 1910.
v. 49, p. 105.
Vale a pena anotar que a principal per- Ao contrário de todas as outras obras
19 Lotman, Semiosfera, São Peters- sonagem da obra inteira de Tolstói é um de Tolstói, o final da peça fica aberto, tal
burgo, Ed. Iskússtvo-SPB, 2000,
p. 143. homem que busca a verdade, sendo esse o como acontece no novo drama.

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